sexta-feira, 26 de março de 2021

Cabalas e citações

De noite, o parque infantil recebe a luz de um candeeiro, daqueles que se tornaram comuns na iluminação pública um pouco por todo o lado, um poste de aço terminado por um globo de um branco encardido, e de onde se solta uma luz amarelada que espalha pelo parque uma atmosfera fúnebre. Ao olhar cá de cima descubro uma amolgadura no globo, como se alguém, talvez por falta de ocupação, tivesse querido emular o ovo de Colombo. O que torna o mundo digno de interesse são estas pequenas imperfeições, uma forma de resistência da realidade aos instintos perfeccionistas da espécie humana. Onde se queria a pura esfericidade, um corpo perfeito no seu ser rotundo, inscreveu-se uma depressão. Assuntos profissionais ocuparam-me com uma chamada telefónica de uma hora. Devia ter posto o telemóvel em alta-voz, mas esqueci-me. Agora tenha a orelha a arder e o ouvido exausto. Talvez por causa disso bebo um copo de água, dizem que faz bem, que hidrata o corpo e que devemos beber um número significativo deles durante o dia. Suspeito que serão sete os necessários, pois é um número cabalístico e a vida não passa de uma cabala. Devo evitar estas considerações, pois acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Esta é uma famosa citação. Também poderia dizer, e ainda com maior exactidão, bem-aventurado silêncio. Feliz o homem que nada sabe e nada quer. E esta é a segunda citação, embora não do mesmo autor. Na verdade, não há discurso, oral ou escrito, que não seja citação, mas também sobre isto o melhor é silenciar-me.

quinta-feira, 25 de março de 2021

À varanda

Almocei tarde, pois passava do meio-dia quando fui levantar à FNAC dois livros que tinham sido encomendados para a minha neta mais velha. Aproveitei e comprei um livro de Louise Glück, a Nobel da Literatura de 2020. Leio o primeiro poema e discordo de imediato da tradução de um verso, não porque esteja mal traduzido, mas porque lhe rouba o pathos poético. A palavra inglesa pode ser traduzida por um verbo ou por um substantivo. O tradutor escolheu o substantivo, eu traduziria com o verbo. O substantivo, naquele verso, fixa a realidade, o verbo põe-na em movimento. A poesia despetrifica o real, mostrara-o no seu eterno fluir. Umas vezes fá-lo com um verbo, outras com um substantivo. Depois da discordância, fui à varanda fumar meio cigarro, enquanto bebia café. Na praceta, um casal apanhava sol sentado numas escadas que esboçam um anfiteatro que nunca virá à existência. O cabelo dela refulgia. A uns dez metros, dois homens conversavam sentados no murete de cimento de um dos canteiros. Do outro lado, uma rapariga, sentada numas escadas que levam a uma empresa de serviços, apanhava sol e escrevia num computador. Tudo isto acontecia sob o véu do ruído que se desprendia da praceta contígua, onde um homem com uma máquina de cortar ervas as ia decapitando em sossego. Olho, agora, para a Sá Carneiro e vejo outro homem debruçado sobre o capot de um carro. Rubrica folhas brancas, talvez uma escritura. Aposto que o faz no canto superior direito. O documento é enorme, pois ele está constantemente a voltar as folhas e a rubricá-las. Temo que se canse ou que passe alguma sem nela deixar o sinal da sua vigilante anuência. Por detrás dele passa uma criança de bicicleta, seguida por uma mulher. Será a avó, pensei. Há poucos carros em movimento e o dia tem um ar quaresmal. Da varanda vejo tudo o que há para ver no mundo, pois este não é mais do que aquilo que se avista de uma varanda, da minha varanda.  Leio um novo poema, Primavera, e torno a discordar. A poetisa escreve the warm air fills with bird calls. O tradutor verte por o ar morno enche-se do chilrear dos pássaros. Agora, a minha discordância tem sinal contrário. Onde é usado o verbo, chilrear, eu usaria o substantivo, chamamentos, o ar morno enche-se com os chamamentos dos pássaros. Não, os pássaros meus vizinhos não chilreiam. Eles fazem chamamentos, convocações. Por vezes, intimações. É esse poder de convocação existente na linguagem dos pássaros que Louise Glück dá a ver. Digo eu, que talvez não veja muito bem.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Das coisas ambíguas

Uma das coisas mais extraordinárias que as línguas possuem é a ambiguidade. Ocorreu-me isto quando, ao abrir um livro para consultar um certo assunto, me deparei com a seguinte interrogação: Para que serve argumentar? Pensa-se, de imediato, que a frase interrogativa abrirá o caminho para uma explicação sobre os serviços que são prestados pela arte de argumentar. O que é o caso. No entanto, essa mesma interrogação pode ser usada como uma exclamação que nega qualquer préstimo ao acto argumentativo. Usar a linguagem é entrar num território minado. Rio sempre que vejo certas personagens a vituperar o uso comum da linguagem por falta de precisão, por ambiguidade e por mais alguns crimes do género. Sonham com uma linguagem completamente unívoca e transparente. Não compreendem que essa ambiguidade estrutural não se deve ao desleixo ou à incompetência dos falantes, mas que a própria linguagem faz parte da imprecisão e ambiguidade gerais que compõem a realidade. É uma emanação desta. Ter-me dado para falar disto tem, desconfio, uma dupla explicação: o cansaço e a falta de assunto. Olho pela janela e as paredes encardidas do hospital reverberam fustigadas pelo brilho de uma intensa luz solar. Hoje de manhã perdi alguns minutos a contemplar o friso das orquídeas. Estão todas floridas, até a mais débil, que anda há anos a prometer morrer, está belíssima. Também nelas há uma ambiguidade, como se a existência fosse algo que não estivesse previamente determinado, mas fosse uma indeterminação que aparenta, aqui e ali, precisão, apenas para tranquilizar algumas almas infelizes pela complexidade do mundo. Para o que me haveria de dar hoje. Metafísica à hora do lanche é coisa que não se aconselha a ninguém. Além disso, não há mais metafísica no mundo do que comer chocolates.

terça-feira, 23 de março de 2021

Um bom conselho

Numa das estantes perto da secretária está o romance Adoecer, de Hélia Correia. Espera vez. Os extractos de críticas presentes na contracapa denunciam que se está perante uma segunda edição. Fui verificar. Não é o que se passa. É uma primeira edição, mas numa primeira reimpressão. Todos eles são encomiásticos e nada me leva a crer que haja ali algum exagero. O livro é de 2010, ainda não havia pandemia, e isso deve sossegar o leitor. No entanto, o título, vindo do passado, parece mesmo propositado. Na imprensa, a qual já pouco impressa é, as coisas obscurecem-se. Países a confinar de novo, outros em catástrofe contínua. Entre os hosanas à vacinação e a realidade da libertação do estado patológico em que se caiu há uma grande diferença. Afigura-se existir um braço de ferro entre o vírus e a humanidade. Esta teima em voltar ao ponto em que se estava. O vírus, todavia, parece não estar pelos ajustes. É um agente de mudança. Quer-nos a todos mais afastados, mais protegidos, mais comedidos. A questão que me surgiu ao ler o título do romance de Hélia Correia foi se o vírus nos tornou doentes ou se nós já estávamos doentes e ele veio chamar a atenção para o facto. Não tinha pensado em nada disto. Ocorreu-me agora, talvez devido à inclinação do sol. Na página 120 da primeira reimpressão, a autora escreve: O Doutor Hailes recomendou muito repouso. Era o que sempre recomendava quando não se entendia com a doença. Já há muito que não via conselho tão sensato. Alguém se entende com a doença? Parece que não. Então que se repouse muito e de preferência afastados uns dos outros, não vá o vírus tecê-las.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Uma colecção de hábitos

Os dias passam-se numa sucessão pavorosa de pequenos nadas, que, ao avolumarem-se, tomam o dia e acabam por lhe retirar sentido, se ele tivesse algum. Talvez a vida seja uma sucessão de irracionalidades, que de tão habituados a elas nem as vemos como tal. Aquilo a que chamamos razão não, passaria, de um longo hábito, de uma colecção de hábitos que rapta o que sucede da sua inquietante estranheza e nos permite dormir descansados. O pior é quando as pessoas envelhecem e os nexos criados pelo costume se começam a desfazer. Então, os tempos irrompem fora da ordem corrente e o caos instala-se. O que acontece agora já nem se distingue do que sucedeu há oitenta anos, saltando-se no tempo com muita mais vigor de que se salta no espaço. Parece mesmo haver uma estranha e negativa correlação entre um corpo cada vez menos capaz de saltitar e uma mente cada vez mais saltarela. Há em tudo isto alguma coisa de grotesco, traços demasiado exagerados que fazem lembrar certas obras expressionistas. A hora crepuscular aproxima-se, o dia acerta as contas na portagem da auto-estrada que o levará para a noite. É o que me apraz dizer neste dia em que faz anos que morreu Johann Wolfgang Goethe e que foi extinta a Ordem dos Templários. Estas informações são irrelevantes, mas o que o não será nesta vida?

domingo, 21 de março de 2021

Carpe diem

Ontem começou a Primavera. Só me lembrei disso já a hora equinocial tinha passado há muito. A vida tem destas coisas. Perde-se a hora e a perda torna-se irreversível. Nunca mais haverá equinócio da Primavera de 2021. Não há dias mais igualitários que os equinociais. Duas vezes em cada ano, noite e dia têm a mesma duração. Tirando estes momentos simbólicos, reina sobre a Terra a mais desenfreada desigualdade, embora essa desigualdade esteja cheia de remorsos. Durante uma época são os dias maiores que as noites, na outra acontece o contrário. Em tudo isto se poderá encontrar lições da mais profunda política. Em primeiro lugar, a igualdade pura é meramente simbólica e tem dias precisos para ser festejada. Nos outros, é um conflito sem fim entre as pretensões igualitárias e inigualitárias do cosmos. Os homens não inventam nada. Umas vezes descobrem as coisas na natureza e tentam imitá-las, outras são levados por elas sem sequer terem consciência de onde vêm os impulsos que os dirigem. Neste diário, nunca tinha escrito nada de tão político quanto este texto. O autor não me permite falar de política, remete-se para o papel de mero narrador destituído de convicções e de paixões. Se se tratar, porém, de uma política cósmica ser-me-á permitido, uma vez por outra, derramar sobre o assunto a minha fera ignorância. Foi o que aconteceu hoje. Haverá quem diga que o escrito se deveu à falta de assunto. Como narrador, não tenho poderes para contrariar a suposição. Hoje é domingo, o penúltimo de Março. Há que vivê-lo antes que passe. Se fosse uma pessoa culta diria neste instante: Carpe diem! O ponto de exclamação serve para transformar a sugestão numa obrigação, uma espécie de imperativo categórico kantiano. Depois, diria todo o verso de Horácio: carpe diem quam minimum credula postero, o que quererá dizer aproveita o dia e confia pouco no amanhã. Os antigos tinham a sabedoria que os modernos perderam. Estes descobriram no amanhã o lugar exaltante da felicidade. Aqueles viam o que sempre lá esteve e o que sempre lá estará, a morte. Por isso, atrevo-me a dizer que a nossa magnífica civilização é niilista. Fez do desaparecimento um lugar de culto e a promessa de uma festa sem fim. O melhor é acabar o texto aqui. Está enorme e já chega de trivialidades.

sábado, 20 de março de 2021

Das coisas abstrusas

Um sábado em que toda a manhã foi dedicada a coisas abstrusas que fazem parte da realidade em que, por vezes, sou obrigado a existir. Não é que goste particularmente da palavra abstruso. Não é esteticamente agradável. No entanto, sempre senti uma certa afinidade com ela. Como se pode ver num dicionário, vem de abstrūsu, particípio passado do verbo latino abstrudĕre, que significa ocultar. Abstruso não significa, todavia, oculto, mas obscuro, impenetrável, desordenado. Dito de modo mais directo, dediquei-me ao caos, esse estado de coisas que se suspeita estar mesmo à porta do cosmos. Mal uma pessoa se descuida, e tudo se torna abstruso, um caos. As palavras contam histórias. Por vezes, nos meus devaneios, imagino que, sob a capa da sua utilidade comunicativa, elas escondem verdadeiros romances, que literatura alguma haverá de igualar. Com ser de palavras que sou, sempre me pareceu de uma estultícia inominável o dito uma imagem vale mil palavras. Quem se dedica a dizer essas coisas não sabe que sob o som de uma palavra se escondem não mil, mas milhões de imagens, que, com um simples sopro vocálico, são atiradas ao vento, semeadas pela Terra e por aí ficam a germinar, enquanto uma imagem morre no momento da sua eclosão. São quase sete da noite, o crepúsculo invadiu a cidade, as crianças, que ainda não pensam em palavras, gritam no parque e eu continuo preso a coisas abstrusas.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Mistérios do mundo

Qual é o exacto momento, o exacto minuto ou segundo, em que uma pessoa ascende à categoria de velha ou de adulta? Qual é número preciso de grãos de areia que constituem um monte de areia, para que a subtracção de um deles faça com que um monte deixe de ser aquilo que é? Estas coisas têm preocupado os homens desde há muito e, ainda hoje, há pessoas que lhe consagram a vida. Percebo-as muito bem, pois também me dedico a coisas sem sentido. Caso não tivéssemos as palavras monte e velho, esses magnos problemas que dobram a cerviz da humanidade não se colocariam. Aliás, parte dos problemas que nos afligem não existiria se fôssemos privados de linguagem. Por exemplo, eu não existiria. Um narrador é um mero ser de linguagem, uma entidade feita de palavras que se combinam mais ou menos ao deus-dará. O parque infantil já foi reaberto. Famílias trazem os filhos para que estes possam gritar enquanto escorregam e se baloiçam. Um dia, serão eles que levarão os filhos a um parque infantil, para que eles gritem, enquanto escorregam e se baloicem. Também eu já fui levado ao parque infantil, para gritar enquanto escorregava e me baloiçava. Qual é o exacto instante em que alguém deixa de ser criança com idade para ser levado a um parque infantil? Um dia antes ainda podia ir? O mundo está cheio de mistérios.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Conversas de nada

Quando dei que hoje ainda não tinha preenchido esta espécie de diário, já passavam das oito da noite. Nunca tive tentações diarísticas. Na verdade, não se passa nada comigo que mereça ser registado, mas um acaso levou-me a alimentar este blogue. Registo aqui não o que me sucede, mas o que me passa pela cabeça. Há uns que nascem para Ulisses e Aquiles, outros para santos ou políticos, outros para escritores ou pintores. Eu não nasci para nada, e é de nada que eu falo. Como se manifesta para mim, perguntará o eventual leitor, o nada. O nada não se manifesta, mas aquilo que me passa pela cabeça é um sintoma desse nada. São coisas desconexas, como este texto, ou as declarações que faço dizendo que vou fumar um cigarro. Irei? Se a realidade fosse a luz, o nada seria a noite, mas talvez a realidade não seja apenas a luz e, assim, a noite não será nada, mas alguma coisa. Quando estou cansado, as sinapses começam a ocorrer em ritmo perturbado, como se houvesse um desvario neuronal. Isto, caso me tenham sido concedidos neurónios, coisa que, para ser sincero, duvido bastante. Se me deram, foram uns neurónios velhos e defeituosos. Bem chega de falar de nada. A noite vista da janela do escritório está magnífica, apesar das luzes e do enorme anúncio a uma cadeia multinacional de hambúrgueres que se veio instalar diante da minha janela, ainda que a algumas centenas de metros.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Das coisas vagas

Diante de mim tenho um livro com o estranho título de Vagueness. Os que se preocupam com o assunto em Portugal traduzem o conceito por vagueza. É uma palavra horrível. Além do seu desprimor estético, ela é uma palavra vaga, vaguíssima. Diria mesmo que não há coisa mais vaga do que a palavra vagueza. Um dos sintomas da minha humanidade é ter embirrações com palavras. Olho para uma palavra e, sem saber bem porquê, começo a embirrar com ela. Por exemplo, a palavrava empreendedorismo gera em mim ataques de urticária. Não é o que se passa com vagueza. Nesta irrita-me a sonoridade, o facto de rimar com magreza. Seja como for, eu sou uma pessoa cordata e não tenho por hábito embirrar com pessoas. O que também não será uma virtude, pois, como ontem me disse a minha filha, se alguém se mandasse de um sexto andar e caísse ao meu lado, eu não daria por isso ou, caso desse, não me meteria na vida da pessoa. É agora que deve entrar a expressão popular andou um pai a criar uma filha para ouvir coisas destas. Os pais nunca imaginam o que vai na cabeça dos filhos. Não tarda, terei de entrar dentro da realidade. Espera-me uma maratona de coisas que não me interessam para nada, que ainda são mais vagas do que a própria vagueza, a que terei de assistir por videoconferência, uma maldição inventada por inspiração do maligno. Antes queria dedicar esse tempo a estudar o que diz o livro cujo título tem o estranho nome de Vagueness. Assim fosse.

terça-feira, 16 de março de 2021

O grito do Ipiranga

Oiço o sexto livro de Madrigais de Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa. Melhor, os madrigais do sexto livro. O compositor destas extraordinárias obras era, literalmente, um assassino. A distância entre o sublime e o macabro é muito mais curta do que pensamos. Nem se pode dizer que tenha sido movido pela paixão amorosa, mas apenas pela fria fogueira da honra. Pode ser que, penso-o caridosamente, naqueles dias, a honra ainda aquecesse os corações. Consta que toda a vida de D. Carlo esteve em conflito com a sua música, mas isso será um modo superficial de ver o assunto. A sua música sublime terá nascido como apaziguamento da desarmonia que o habitava. O dia, como o de ontem, tem estado estival. Uma luz exuberante, agora a declinar. Devia ir caminhar, desentorpecer as pernas, respirar o ar puro dos campos, caso ainda exista ar puro nos campos. O que desejava, na verdade, era andar perto do mar, agora que não há turistas, nem veraneantes, apenas as pessoas de ocasião. A realidade, sempre pronta para me contrariar, não me o permite, e eu aceito as coisas como elas são, com resignação, sem tentações de dar o grito do Ipiranga. Nada, porém, me ajuda nessa libertação. Não sou um D. Pedro e o rio que passa aqui não se chama Ipiranga, fosse eu outro e o rio, o certo, haveria de se ouvir a mil quilómetros o urro que daria. Assim, limito-me ao grito mudo do quadro do Munch. O expressionismo ficar-me-á melhor que o romantismo independentista e liberal do D. Pedro. A conversa hoje está muito voltada para príncipes e reis, e eu que sou republicano. Talvez seja um republicano não praticante.

segunda-feira, 15 de março de 2021

A realidade desconfina-se

Depois de almoço, fui ver o correio e aproveitei para dar uma volta pela rua. Havia já sinais de desconfinamento. Da escola primária vinha o alarido de crianças a correr e a gritar. Um ou outro estabelecimento ensaiava a venda ao postigo, mas o verdadeiro desconfinamento que encontrei, e esse preocupou-me, foi o do calor. A temperatura inclinava-se não já para a Primavera, mas para um Estio precoce. Eu sei que a maioria vive na ânsia estival e entrega-se a longas fantasias com esse tempo que, a mim, parece, muitas vezes, uma anunciação do inferno. Também é um facto que sou, enquanto narrador destas tristes narrativas, dado à hipérbole. Talvez o Verão não anuncie o inferno, mas apenas um purgatório um pouco exacerbado. Há aqui dois problemas que não vou tentar deslindar. Nem a psicologia perante o clima nem a teologia das comparações são assuntos que mereçam a minha meditação. No bosque na escola ao lado, uma escola ainda vazia, as árvores não mexem. O vento que se anunciava vindo do Norte suspendeu a sua correria em direcção ao Sul. Olho para a rua e a realidade parece-me falsificada, um cenário incompetente de um cenógrafo realista.

domingo, 14 de março de 2021

A vertigem do tempo

Março atingirá amanhã o meio do mês. A natureza do tempo sempre confundiu os homens. Tentaram domesticá-lo através do calendário, mas ele sempre se mostrou avesso à vida doméstica. O tempo é um animal selvagem, uma flor silvestre. Melhor, o tempo é uma vertigem, na qual se mergulha e onde nunca se encontra equilíbrio. Um dicionário afirma, talvez sem pudor, que o tempo é sucessão de momentos em que se desenrolam acontecimentos. Penso de imediato que se nada acontecesse não haveria momentos a sucederem-se uns aos outros, logo não haveria tempo. Contudo, julgo que os acontecimentos se propuseram acontecer apenas para que o tempo exista e nos trazer à existência para logo nos varrer para o passado. Este é, na verdade, o caixote do lixo para onde são enviados os detritos das coisas que ocorrem. Ficam lá até que os homens do lixo os ponham no camião e os queimem numa incineradora de resíduos perigosos. Devia ter pensamentos mais risonhos, hoje que é domingo e as famílias saem à rua para apanhar sol e deixar as crianças espairecer, para que os adultos espaireçam também eles. A Páscoa aproxima-se e será feita de afastamentos, proibições de circular e avisos sobre os perigos que espreitam por aí. Fez-se na rua um grande silêncio, nada acontece e o tempo suspendeu a sua marcha. Os momentos foram abolidos, mas retornarão como um vírus. No friso das orquídeas, todas estão em flor, num concerto de cores que cresce para dentro dos olhos e desencadeia na consciência estranhas e silvestres melodias.

sábado, 13 de março de 2021

Viver em vários tempos

Pela primeira vez desde que começou o confinamento fui comprar laranjas ao campo. Um comércio arcaico e contemporâneo. Arcaico porque se funda numa relação directa entre produtor e consumidor, sem esse gigantesco exercício a que se dá o nome de intermediação. Contemporâneo porque é feito ao ar livre, o que conjugado com o uso de máscaras, estará de acordo com as normas de segurança contra os vírus perigosos que a contemporaneidade trouxe. Nunca deixa de me maravilhar o facto de num mesmo instante se poder existir em várias épocas. Talvez cada um de nós viva constantemente em diversas eras, apesar de não ter consciência disso. Talvez sejamos construídos por fatias de tempo, que se vão mesclando dando a ilusão de serem um único e mesmo tempo. Depois de comprar laranjas, fui ver o meu neto. Brincámos um pouco, mas as distâncias ainda são grandes. Quase metade da vida dele foi passada em pandemia. Agora, deixo cair a noite sobre os ombros e escuto os rumores da cidade e a música de Morton Feldman. As peças para piano são construídas por hiatos ostensivamente perspícuos entre as notas, então estas parecem emergir do nada e afundar-se nesse mesmo nada de uma forma tão nítida que torna patente o quão finita é a realidade. Como é hábito, falo do que não sei, mas se as pessoas falassem apenas do que sabem, a espécie humana seria muda.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Pequenos nadas

A vida está cheia de jogos florais. Foi o que me ocorreu há pouco quando passei os olhos pela imprensa. O facto de serem florais não dá a esses jogos um aroma aprazível. Muitas vezes, o cheiro é nauseabundo e sob o florilégio encontramos cadáveres em decomposição. Não devia escrever estas coisas, logo hoje que é sexta-feira e o fim-de-semana se apresta para entrar com a sua túnica de enganos. Na rua, brilha um sol pouco convicto, mas isso deve-se aos tempos que nos foram dados viver. Acabaram-se as grandes narrativas, as que geravam férreas crenças e inabaláveis convicções, abundando pequenas narrativas sem nexo, a que as pessoas emprestam, por instantes, o seu crédito, para logo as esquecerem e comprarem outras que exibirão nas próximas horas. Quem quer saber da Quaresma e dos rituais preparatórios da Páscoa? Tudo isso pertence a um passado que, visto da estância balnear do presente, não passa de uma sombra. Coisas importantes mesmo são a abertura do cabeleireiro ou do restaurante. Nisto não há nenhuma censura da escala de valores que guiam as gentes. Pelo contrário, também eu aspiro a poder ir a um restaurante. A vida é feita de pequenos nadas.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Meditações inúteis

Dou comigo, por vezes, a perguntar-me como chegam, os compositores, à música que compõem. Ouvi-la-ão dentro de si? Resultará de conexões abstractas de tipo matemático? Nunca li nada sobre o assunto e talvez existam múltiplos processos de composição. Uns mais concretos, outros mais abstractos. Haverá uma ideia a priori daquilo que vai ser composto, ou a composição vai emergindo, as partes posteriores fundadas nas anteriores, num jogo de tentativas e erros? O que vale para a música valerá para qualquer outra arte? O pintor verá na mente aquilo que pintará, ou o quadro vai emergindo de um nevoeiro inicial? O dia está nítido, apesar de sombrio. Ora aquilo que agora é plenamente visível proveio de uma zona de trevas, a que damos o nome de noite. Dessa zona de escuridão, a realidade que agora observo foi-se libertando pouco a pouco, até se tornar visível, clara e nítida. Não devia ter comido chocolate, ocorre-me. Não comi muito, mas o suficiente para sentir que foi demais. Será a feitura do chocolate uma arte como a música ou a poesia? O artesanato foi separado drasticamente da arte, mas talvez seja possível pensar num chocolate ou numa refeição como uma performance e fazer entrar no domínio da arte aquilo que se dirige ao sentido do gosto. O melhor é deixar de lados estas meditações, as quais fazem parte da minha colecção de pensamentos inúteis e sem nexo. Esperam-me para um evento online. O que é justo, pois sou já um ser virtual.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Causalidade nula

Às oito horas desta manhã completámos o primeiro terço do mês de Março. Depois de escrever a frase olho para ela e descubro dois enigmas, qual deles o maior. Por que motivo a terei escrito? Aquela informação serve para quê? Não faço ideia por que razão a escrevi e muito menos sei para serve a informação nela contida. A maior parte das coisas que faço são desta natureza. Não sei o seu motivo e desconheço a sua finalidade. Dito de uma forma aristotélica – para dar impressão de erudito – desconheço a causa eficiente e a causa final. Desconheço-me e desconheço os objectivos que deveria perseguir. Enquanto escrevo estas sensaborias, vou escutando um CD de Heiner Goebbels, Ou Bien le Débarquement Désastreux. Quem ouve esse tipo de música, dirá o leitor, o mais natural é sofrer de falta de causalidade. Nem causa eficiente, nem causa final, mas também terá perdido a causa material e a formal. Já passou à condição de puro nada. O que é um narrador? Um ser de papel? Ora, o que é um ser de papel? Um puro nada, uma nulidade ontológica. Acho que vou fumar um cigarro para ver se ma passa este delíquio. Há palavras extraordinárias como delíquio – quase uma onomatopeia – ou cerúleo. São palavras que contêm uma certa imperfeição prosódica, mas isso apenas lhe realça a beleza que as habita.

terça-feira, 9 de março de 2021

Como era tranquilo o mundo

A Primavera irrompeu por dentro do Inverno. As pessoas, cansadas do confinamento, precipitam-se nas ruas, passeiam devagar sob a luz solar, como se quisessem aspirar cada onda luminosa que chega a este pobre planeta. A minha neta mais velha, que está a passar cá a semana, interrompeu-me a meditação. Se lhe podia imprimir um trabalho que vai apresentar amanhã na aula online. Seis páginas sobre o Titanossauro da Patagónia, um lagarto gigantesco e, pareceu-me, feioso, dado a uma dieta de vegetais. Como era tranquilo o mundo quando as pessoas pensavam que as espécies eram fixas, que tinham sido criadas naquela azáfama divina dos seis dias, e que tudo estava explicado. Agora, as pessoas podem ter pesadelos com animais disformes que, vindos do início dos tempos, aterram dentro dos sonhos, para os poluir com o terror daquilo que é estranho. A terça-feira entardece por dentro das árvores, que logo projectam pelo chão longas sombras, como se chamassem a noite. Ela virá, trazida pelo vento, e eu anoitecerei mais um pouco. Num livro vejo escrito uma vida não examinada não merece ser vivida. Talvez Sócrates tivesse proferido a frase no seu julgamento, talvez tenha sido um dinossauro que, naqueles dias intérminos onde nada acontecia, se tenha lembrado dela ou mesmo um dragão dado ao ócio. Tudo é possível neste mundo.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Um sentido difuso

Há dias em que tudo tem um sentido difuso articulado por uma lógica também ela difusa. O espírito vagueia nem sabe por onde, mas qualquer tentativa de focagem, qualquer esforço em direcção à nitidez é repelido pelo corpo. Na verdade, nunca se sabe lidar com esse animal que nos coube em sorte. Pensamos que está domesticado e logo ele se entrega a desejos silvestres. Julgamo-lo vivaz e ele caminha sonâmbulo. Não admira que os homens se sintam estranhos perante essa carne em que têm de viver. Umas vezes, endeusam-na. Outras, diabolizam-na. A sabedoria, penso, seria não dar por ela. A semana começou e um cortejo de coisas inúteis, mas inadiáveis, perfila-se diante de mim. Deveria protelá-las até as esquecer, mas elas não se deixam cair no oblívio. Oiço música para piano de Debussy, mas não me sinto menos difuso. Olho pela janela, a escola ao lado permanece abandonada. Numa rotunda ao longe, os carros giram sem parar. Ainda mais longe, os fungos cobrem de cinzento e preto as paredes brancas do hospital. Em tudo, porém, há uma sensação de difuso, de falta de contorno, como se a realidade não passasse de um esboço. Talvez não passe. Talvez não.

domingo, 7 de março de 2021

Olhar de esguelha

Tive de sair para ir a uma farmácia. Esta frase é muito diferente da que diz: tive de sair para ir à farmácia. Nesta última, a farmácia é a que se vai sempre ou quase, aquela que um longo hábito a tornou a farmácia por antonomásia. Uma farmácia é a que resulta de uma procura motivada pelo encerramento dominical da outra, da autêntica. As farmácias são dos estabelecimentos que ainda resistem à infidelidade contumaz que as grandes superfícies trouxeram. Em tempos, os clientes estabeleciam relações de proximidade com os estabelecimentos do pequeno comércio. Conheciam os proprietários e os empregados. Por vezes, eram clientes, porque os pais já o tinham sido. Agora, ninguém é fiel ao hipermercado ou à empresa que vende electrodomésticos. Paga-se menos pelos produtos, mas as relações sociais ficaram mais pobres, mais abstractas e mais deslassadas. Perde-se o espírito de comunidade e os indivíduos tornam-se átomos guiados apenas pelos seus interesses. Nem sei o que me deu para esta deriva sociológica. O domingo está um dia indeciso, como muitas vezes acontece em Março. Vai variando entre um sol já quente e um céu nublado. Os dias estão bem maiores e nas ruas começa a espalhar-se o aroma da Primavera. Vi pouca gente, mas como fiz a viagem de carro e relativamente cedo, pode ser que a minha impressão esteja enviesada. Aliás, enviesamento é o que não falta nas minhas opiniões. Ando sempre a olhar de esguelha.