Oiço Für Alina, de Arvo Pärt, e interrogo-me sobre a diferença do uso do silêncio nesta peça e em 4’33”, de John Cage. Talvez, pensei, que um caminho interpretativo fosse recorrer à distinção proposta por Agostinho de Hipona entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. O silêncio de Für Alina é o espaço onde o sagrado se manifesta, envolvendo a expectativa do auditor e transportando-o para uma outra dimensão, a qual não existe noutro lugar, mas que mostra que o aqui é já um além. O ostensivo silêncio da peça de John Cage é uma abertura. Não ao sagrado, mas à sonoridade do mundo. É aqui que a Cidade do Homem, de Agostinho, terá menos pregnância. Não se trata de escutar os sons do amor sui, do amor de si dos homens, mas do mundo em geral, onde a sonoridade humana não necessita de ter um estatuto especial, mesmo que, quando a peça é interpretada num auditório, o silêncio que a compõe seja maioritariamente ferido pelo ruído humano. O que une as duas peças, na sua radical diversidade, é o desejo de escuta. A escuta do sagrado e a escuta do mundo. E nisso há um compromisso com algo que está a morrer: a disciplina da escuta. Talvez essa disciplina da escuta tivesse, na nossa tradição cultural, começado a morrer com Sócrates e a sua necessidade de se envolver no diálogo como caminho para a verdade. Isso subverte a tradição do pitagorismo. A comunidade pitagórica estava dividida entre acusmáticos e matemáticos. Os primeiros estariam numa espécie de período de aprendizagem, que poderia chegar aos cinco anos. A sua função era escutar a lição do mestre sem lhe ver a face. O essencial era, antes de ter o direito à palavra, exercitar o dever de escutar. O diálogo platónico, que surgia em contraponto com a retórica demagógica dos sofistas, mais do que uma condenação do ruído público, acabou por ser uma legitimação da ruína da disciplina da escuta. Talvez porque escutar se tenha tornado, nos tempos modernos, um pesadelo, a música, por vezes, tenta abrir clareiras para que os homens rememorem esse acto de humildade que é escutar o outro, seja este um homem, um deus, o rumor do vento ou a música das esferas celestes. Também eu preciso de aprender a escutar. Em vez de ficar em silêncio perante o desenrolar de Für Alina, fui escrevendo, escrevendo.
quarta-feira, 18 de junho de 2025
terça-feira, 17 de junho de 2025
Estranheza
Desconheço a razão, mas pus-me a ouvir um álbum de 1975, de um tempo que ainda não tinha chegado aos vinte anos. Um estilo de música que me recusei a cultivar – o rock progressivo –, mas que fui ouvindo, nessa época em que se ouviam essas coisas. Enquanto o álbum, proveniente de uma plataforma musical, vai correndo, tento imaginar-me nesses dias. Não encontro nada de extraordinário, a não ser a banalidade da existência. Na verdade, desconheço-me naqueles traços que recordo. Isto não é uma negação do que fui no passado, é apenas perplexidade. Caso a vida me desse mais cinquenta anos, uma impossibilidade biológica, e me oferecesse uma capacidade de pensar idêntica à que ainda me resta, por certo, aquele que sou hoje seria um estranho para esse eu impossível. Enquanto escrevo, as canções vão correndo. Em mim, porém, nada vibra. Aquilo parece-me uma xaropada, mas, disciplinado, obrigo-me a ouvir até ao fim, tentando descobrir o que, por vezes, me levava a ouvir estas canções, sem um particular desagrado. Aqueles foram uns estranhos anos, embora na altura me parecessem normais. Imagino que todas as décadas são tempos estranhos, o que tem uma consequência extraordinária: a vida mais vulgar é feita de coisas estranhas, feitas de uma familiaridade inquietante. Chego aqui e suspendo a tentação de cair – toda a tentação está ligada a uma queda – na exegese dos conceitos Unheimlich e Unheimlichkeit provenientes de Freud e de Heidegger. Deixemo-los a repousar lá no etéreo lugar que lhes cabe. Ponhamos de lado o familiar, o estranho, a inquietante estranheza. Embora, pensar-me em 1975 não deixe de ser uma inquietante estranheza.
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Casamento
Hoje, estive quatro horas em videoconferência, uma modalidade branda de enlouquecer. Não, equivoquei-me. A modalidade não é branda, mas áspera. Sendo assim, a loucura que me calhar será também ela áspera, crespa, rugosa. Talvez acre e ácida ao mesmo tempo. Se enlouquecer desse modo, a culpa não será minha. Tão pouco, dos genes recebidos, pois são genes muito bons. Quero dizer: são os melhores que consegui, embora sem fazer nada para isso. A culpa do meu futuro enlouquecimento não poderá ficar solteira, mas temo que nessa altura não saiba qual o marido com que devo acasalá-la. Talvez nem consiga para ela uma simples união de facto. Agora, poderia casar esse hipotética culpa com o videoconferenciar. Contudo, como ainda não estou louco, não há culpa, embora haja marido – ou parceiro – para ela, que até lá terá de se entregar à abstinência. O casamento exige a mais pura virgindade. A culpa e o videoconferenciar descobrirão um com o outro os factos da vida. Também é possível que a vida não tenha factos e, por isso, não haja nada para descobrir. Pode-se argumentar que este texto anuncia que o videoconferenciar não ficará abstinente por muito tempo. Cada um que julgue, mas poupem-me os pormenores. Se estou a ficar louco, uma presunção sem fundamento, quero entrar nessa fase da existência sem saber. A ignorância é uma amante virtuosa, mais do que a inocência.
domingo, 15 de junho de 2025
Dobrar o cabo
Dobrámos o meio de Junho e preparamo-nos para lançar âncora no porto do Estio. Então, os dias começarão a diminuir. Cheguei tarde a casa, vindo de Lisboa, e antes de escrever fui fazer a minha caminhada. A noite tinha-se apossado da cidade e, apesar da iluminação pública, as pessoas eram apenas vultos, sombras sorrateiras. No percurso escolhido, há uma capela dedicada a Santo António, por certo o de Lisboa; aqui não haverá devotos do santo em versão paduana. No átrio, vivia-se ainda o rescaldo das festas em honra do santo. Havia farturas à venda numa roulotte à beira da estrada. Não se pense que caí na tentação. Passeio ao largo. Num palco, alguém cantava uma música que passa por popular, mas que é apenas um exercício de mau gosto, esse mau gosto que se apossou da cultura popular e que transbordou para todo lado. Passei rápido, não fosse contaminado por algum vírus. Entrei na avenida, e conforme ia andando chegava até mim o perfume doce e intenso das flores das tílias. As árvores estão belíssimas, mas o aroma é enjoativo. Haverá quem goste. Apesar dessa leve disfunção aromática, sentia-me bem, penetrando solitário na solidão da noite. Enquanto contemplava a pujança das tílias, lembrei-me dos jacarandás da 5 de Outubro, já sem o esplendor que devem ter tido há uns dias. Além de terrível, a beleza é efémera. Por vezes, não há nada melhor do que uma trivialidade para dizer o que as coisas são. Aliás, haverá coisa mais trivial do que o ser esse objecto último de toda a meditação filosófica?
sábado, 14 de junho de 2025
Sentido
Durante parte substancial da minha vida, este era um dia de festa. Hoje – na verdade, há mais de duas décadas – é data de rememoração. Festa, rememoração, nada. Uma sequência inevitável, por muito que nós, mortais dotados de consciência, queiramos resistir-lhe e subverter. Por que razão as coisas têm de ser assim, não o sei, ninguém o saberá. Podemos especular sobre a fragilidade dos materiais de que somos compostos, mas isso é apenas constatar factos. Ora, os factos nada nos dizem. Limitam-se a acontecer. E isso não lhes confere qualquer sentido. Mesmo que os saibamos explicar pela sua inserção numa legalidade da natureza, enquadrá-los num esquema de causa-efeito ou num outro do mesmo género, isso nada nos diz por que motivo as coisas são como são e não de outra maneira. As leis da natureza não explicam nada. Mais: são elas que necessitam de explicação. Por que estas e não outras? Anaximandro via, nesse processo de vir ao mundo e de dele ser expulso, um acto de justiça que repunha as coisas no seu lugar, devido à injustiça cometida pela entrada no mundo. Há, nesta resposta, por ingénua que pareça, mais sabedoria do que numa explicação científica. Dá-nos um sentido, oferece-nos um porquê para a sequência: festa, rememoração, nada. A ciência explica-nos como as coisas acontecem, mas em nós nunca deixa de vibrar a pergunta que, na infância, repetimos vezes sem conta, até exasperarmos os adultos: Porquê?
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Pobres diabos
Releio Fome, o romance de Knut Hamsun publicado em 1890. Antecipa a revolução modernista. Conforme vou lendo, pressinto a incomodidade com que críticos e leitores fundados nas tradições rivais do romantismo e do naturalismo devem ter recebido a obra. Nem a subjectividade hiperbólica e exaltado do génio romântico, nem a subjectividade determinada pela hereditariedade ou pelo meio do tipo ideal ou clínico da personagem do naturalismo. O narrador protagonista, sem nome, é o retrato de uma subjectividade em colapso. Um leitor atento encontrará, por certo, tonalidades românticas e naturalistas, mas ambas superadas na implosão de um sujeito assombrado pela fome e tomado pelo desejo de escrever. Não é um tipo universal, mas também não é um herói singular. É apenas um pobre diabo que tem fome. Contudo, este pobre diabo esfaimado está mais próximo de cada um de nós do que as personagens romanescas anteriores. Não por causa da fome, mas porque é um pobre diabo. E é isso que somos, mesmo que a fome não nos atormente. A fome designa o desejo, a cujo império só poucos, muito poucos, conseguem furtar-se. É pelo desejo que se entra na confraria dos pobres diabos e é por causa dele que não saímos dali.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Equívocos
Uns dias fora e, quando chego a casa, as orquídeas estão todas doentes, moribundas. Foram atingidas por uma pandemia para a qual desconheço vacina. Talvez o número seja excessivo e a competição pelo título de a mais bela do ano as tenha enfraquecido, lançando-as num estado depressivo que se apodera das flores e das hastes onde brotam os botões. Em contrapartida, o jacarandá da praceta do outro lado da avenida está exuberante, de uma beleza inominável. O facto de ser inominável deve-se apenas a uma incapacidade minha para a nomear. Poderia encontrar metáforas, mas serão as metáforas um nome? Talvez todos os nomes não sejam mais do que metáforas. Dar nome não à beleza, mas às coisas belas, é um exercício difícil. As palavras estão gastas. O melhor seria inventar uma palavra para a beleza específica daquele jacarandá. Contudo, há um problema: a beleza que entrevi há pouco não será a mesma que ele terá ao crepúsculo, o que me obrigaria a inventar uma nova palavra, a qual também não seria adequada para a beleza que a árvore ostentará na aurora de amanhã. É aqui que nascem todos os equívocos linguísticos. A realidade está em constante metamorfose – em leitura hegeliana, dir-se-ia: está em devir –, mas a linguagem é muito mais lenta na sua adaptação a essa realidade. Eu mantenho o nome desde que nasci, mas eu não sou aquele que nasceu há tantas décadas. Sou outro, continuamente outro, o que implicaria que tivesse de mudar continuamente de nome. Em linguagem política – Honi soit qui mal y pense –, a língua é conservadora, a realidade é revolucionária. Isto tem implicações extraordinárias: os revolucionários odeiam a língua; os conservadores, a realidade. Por mim, não odeio nem a língua nem a realidade. Sofro-as como posso, com a paciência de um santo, a qual não é outra coisa senão um compromisso que compatibiliza os ardores revolucionários da realidade com a gélida solidez da língua. O pior é que a realidade está a destruir as orquídeas cá de casa e não tenho palavras para solidificar a sua beleza.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Um súbito interesse
De súbito, sem razão aparente, interessei-me por um assunto que nunca me tinha interessado: o regicídio de 1908. Não se trata de um interesse político, da querela entre monárquicos e republicanos. Também não se trata de um interesse técnico — desde o planeamento e a execução dos homicídios até à completa inoperância de todas as estruturas que teriam, em todos os momentos, de defender a família real. O que, de modo inesperado e intempestivo, se acordou em mim foi tentar perceber como é que as pessoas sentiram o acontecimento. Como vibrou ele no espírito de monárquicos e de republicanos? Como repicou no coração popular? Este tipo de interesse não é diferente de um que tivesse por objecto compreender como ressoou, na consciência das pessoas, o terramoto de 1755. Aparentemente, são dois casos bastante diferentes — um de ordem natural, fruto das leis da natureza; outro, de ordem cultural, resultado da agência dos homens. Também os diferencia o grau de devastação humana. Contudo, estes acontecimentos atingem o espírito das pessoas e ficam por lá, enquanto elas o ruminam. E é esta ruminação acerca do regicídio que, de um dia para o outro, me interessou. Muitas vezes procura-se definir qual terá sido o acontecimento mais importante de um dado século. Talvez o acontecimento decisivo do século XX português tenha sido o assassinato dos dois Braganças. O que é que esse assassinato — não o facto, mas a sua repercussão nas consciências — diz de nós? Não sei se a resposta — por muito matizada que seja — será agradável.
terça-feira, 10 de junho de 2025
Metafísica criminal
Feriado. Dia de Portugal. Uma coisa estranha. Se há um dia de Portugal, esse é o 5 de Outubro. Foi nele que começou a monarquia portuguesa – a fundação da nacionalidade – e foi nele que começou a república. É uma data que contentaria monárquicos e republicanos. Se, um dia, Portugal se tornar numa teocracia, será também a 5 de Outubro. Estou a entrar num território perigoso, o qual me está vedado. Sou um narrador isento de paixões políticas. Também ainda não percebi que paixões o autor me permite. Provavelmente, nenhumas. Quer-me asceta. Um asceta do discurso, e este blogue é o meu ermitério. De resto, reconheço, confere-me alguma liberdade. Os disparates são-me permitidos, bem como as coisas mais singulares e destituídas de sentido. Acabei de chegar de uma festa de aniversário, um exercício social que me é cada vez mais penoso, isto é, sentido como uma pena, resultante de uma sentença proferida por um juiz anónimo, por um delito metafísica que, juro-o, não cometi. Ou talvez tenha cometido, mas não tenho consciência dele. Como se sabe, há dois tipos de crimes. Os físicos e os metafísicos. Os físicos são aqueles que todos conhecemos, os que enchem os tribunais de uma actividade inesgotável, onde juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça ganham vida, sabe-se lá por que crime cometido. Os crimes metafísicos são os piores, mas ninguém sabe quais são. Uma pessoa, a certa altura da vida, é acusada de um crime metafísico, todavia os autos são omissos na tipologia do crime. Isto não me sucedeu só a mim. Foi o que aconteceu a Joseph K. O crime que ele cometeu tinha uma natureza metafísica, mas o que ele fez, realmente, ninguém sabe. Só se sabe que é culpado porque sofre uma pena. Muitas das coisas que temos de fazer, ao contrário do que ingenuamente se pensa, não são deveres sociais. São condenações por crimes metafísicos. Aliás, deveríamos pôr fim a uma disciplina como a Sociologia. Substituí-la pelo estudo do código penal metafísico. Imagine-se um grande jogador de futebol, um daqueles que é idolatrado por milhões de adeptos. Em vez de lhe investigarmos o talento, deveríamos antes perguntar: que crime metafísico cometeu para fazer da vida uma correria atrás da bola? O que se diz de um jogador de futebol, pode dizer-se de um médico, de um engenheiro, de um poeta, de operário da construção civil. Em vez da sociologia das profissões, deveríamos instituir uma hermenêutica que conseguisse interpretar, a partir da profissão exercida, bem como da vida social, os crimes metafísicos de que a pessoa é culpada. As pessoas, por vezes, têm a veleidade de terem escolhido uma profissão. Pura fantasia para ocultar que são condenados metafísicos e a profissão é as grilhetas que manifestam a sua natureza de condenado. O que é válido para os indivíduos, é-o também para as nações. De que crimes metafísicos Portugal foi acusado e condenado para ter o seu dia a 10 de Junho. Se soubéssemos responder a esta questão teríamos uma informação mais preciosa sobre a nossa natureza do que se tivéssemos a mais completa e rigorosa história da nacionalidade, desde o 5 de Outubro de 1143 até ao dia de hoje.
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Milagres
As segundas-feiras continuam tormentosas. Esta obrigou-me a um ir e vir que me fez atravessar grandes distâncias, apesar de curtas, pois são medidas em graus centígrados. Saí daquele sítio onde me acolho durante o ano com 38 graus e cheguei, aqui, passada uma hora, e estavam 23. Um milagre, dir-se-á. Um milagre confirmo. Por norma, as pessoas vêem como milagres coisas extraordinárias, alterações radicais da ordem do mundo. Ora, é na banalidade quotidiana que se escondem os milagres mais autênticos. Por exemplo, a possibilidade de transitar, com rapidez, de uma zona que parece a antecâmara do inferno, para uma colónia do paraíso. Não é na suspensão das leis da natureza que estão os milagres, mas nas próprias leis naturais que permitem coisas tão extraordinárias. Contemplar a ordem do mundo é assistir a uma sucessão de milagres. Eu sei que isto contraria a ideia de que milagre e ordem natural do mundo são coisas opostas. Isso, porém, é uma visão superficial. A ordem natural é o milagre por excelência. Já se imaginou o que seria o mundo se tudo fosse caos? Percebe-se de imediato que a transição do caos para a ordem é a coisa mais milagrosa que pode haver. Tudo isto, independente da causa eficiente dessa transição. Contudo, se esse milagre não tivesse ocorrido, haveria uma vantagem. Estes textos não seriam escritos. No caos não há escrita possível, pois os abecedários colapsam, as regras gramaticais e lógicas ficam à deriva e não se consegue encontrar um computador – o mesmo um simples lápis – que permita o frívolo exercício de escrever por escrever. Sim é um exercício frívolo, mas fruto de um milagre. Ou de vários.
domingo, 8 de junho de 2025
Tornar-se inocente
Passei a manhã de domingo a trabalhar e ainda tenho umas coisas para ultimar. Não sei o que me deu para tal heresia. Os domingos são dias em que se deve – segundo um imperativo categórico – praticar o ócio. Contrariamente ao que proclama certo espírito mundano, o ócio não é a fonte de todos os vícios, mas a origem de muitas virtudes. Era o que os gregos pensavam. E não estavam errados. Aliás, os velhos gregos estavam certos em muitas coisas, apesar de haver quem os considerasse como eternas crianças, sem sabedoria das coisas antigas, das velhas tradições. Nesse aspecto, a tradição grega encontra-se com a judaico-cristã e o imperativo crístico Deixai vir a Mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus. Em ambos os casos, a sabedoria não deriva da autoridade dada pelo tempo, mas reside numa espécie de inocência, a qual seria a garantia de uma visão não enviesada, de um olhar directo para as coisas mesmas. Essa inocência originária, como todos sabemos, perde-se rápida e facilmente. A grande tarefa que fica para a vida será a de se tornar inocente. Isso não significa recuperar a inocência que se perdeu, mas instalar-se numa outra que, ao contrário da primeira, conhece a culpa e fez o caminho através dela. A tarefa existencial não é permanecer inocente, mas conquistar a inocência, esse olhar não enviesado para as coisas, esse contacto directo com aquilo que é. Os gregos, com a sua arte, religião e filosofia, representavam as criancinhas do texto evangélico. Aquilo que se abre aos descentes dos gregos, agora que transportam vinte e cinco séculos de culpa aos ombros, é tornarem-se crianças, não porque seja essa a sua situação, mas porque esse é o desígnio que elegeram.
sábado, 7 de junho de 2025
Mentir
Gosto de ver o mar, mas tenho um conflito insanável com idas à praia. Nem sempre foi assim, mas deu-se em mim uma lenta metamorfose que me conduziu do amor – na verdade, uma amizade moderada – a uma indiferença e sensação de desconforto. Não odeio idas à praia, pois para isso teria de ter tido uma paixão avassaladora. Nada disso. A conjugação entre sol e areia não é a coisa que mais me agrada. Passo semanas junto ao mar, mas não ponho um pé na areia. Já a frequência de um bar de praia me é agradável. Posso ficar sentado a ver a ondulação, a espreitar o horizonte, a tentar decifrar o que se esconde para lá da linha. As pessoas, confesso, não me interessam particularmente. Prefiro, perscrutar o movimentos dos barcos ou o voo das gaivotas. Só o meu neto terá poder para me arrastar para a praia. As netas já passaram essa idade e dispensam a minha companhia. Na verdade, bastam-se a si mesmas, como qualquer adolescente. Uma está já a abandonar a fase da adolescência. Contudo, gosto de fazer longas caminhadas perto do mar. A terra é o meu elemento, é nela que sinto o meu fundamento existencial, mas a água não deixa de exercer sobre mim um grande fascínio. Tudo isto poderia ser interessante, caso não fosse uma ficção. Quando alguém – talvez já com pouco controlo da sua saúde psíquica – se propõe escrever todos os dias, o mais natural é que venda a alma ao diabo. Não, não, não se trata de um pacto digno de Fausto, mas apenas o exercício de uma pequena venalidade: a mentira. Escrever ficções – grandes ou pequenas – é dispor-se a mentir. A partir de certa altura, mentir torna-se um imperativo, pois quanto mais falso for o discurso, mais verdadeiro será percebido. É esta a glória da ficção: mostrar como verdade aquilo que é falso. Foi por isso que Platão, ébrio pelo desejo de verdade, propôs a expulsão dos poetas da cidade. Não sou poeta, mas, no meu anonimato, sou dado à falsificação da realidade. Será que gosto de ver o mar? Será que não gosto de à praia? Seja qual for a resposta que dê a estas perguntas, ela será falsa.
sexta-feira, 6 de junho de 2025
Visitações
Uma moldura em forma de estrela de oito pontas. Nela, o retrato de alguém que não sei quem é. Na parte de trás, uma imagem com motivos coloniais. Pelo que veste, percebe-se que a mulher ali representada pertence a uma classe desafogada. O que está a fazer o conjunto diante de mim? Ignoro. Sei apenas que deve ter mais de um século, mas que se subtraiu aos efeitos da passagem do tempo, ou quase. Cada ponta da estrela termina com uma imitação de pérola ovalada, mas uma delas está caída. Olho demoradamente para aquela mensagem vinda de um tempo que não é o meu, mas não consigo decifrar o texto que ali se resguarda. Lá fora, uma máquina começou a trabalhar. Um ruído contínuo, irritante, também portador de uma comunicação. Recuso-me a escutá-la. Há coisas que é melhor não saber. Com o passar dos anos, estreitam-se as coisas que consideramos merecedoras de atenção. Até que chega o momento em que descobrimos que nada merece já atenção. É a prova de que chegou o fim da hospedagem nesta pequena casa a que se dá o nome de Terra. Intriga-me a fotografia, o formato da moldura, os motivos coloniais. O que tudo isso quererá dizer, agora que repousa na secretária onde escrevo? Daqui a pouco irei caminhar junto ao mar. Espero saber ler o ritmo das ondas e o voo das gaivotas, não como um áugure; apenas como um exegeta que se entrega, com paixão, à interpretação de um texto difícil, uma tarefa sem fim, pois qualquer texto contém em si uma aspiração ao infinito, que exige uma infinidade de interpretações.
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Decepção
Há causas nobre – nobilíssimas, para ser mais exacto – cujas consequências são muito pouco nobres. Imaginou-se um dia que a alfabetização generalizada representaria uma elevação espiritual. Não se pouparam – não se poupam – esforços para alfabetizar as pessoas e, mesmo, para as dotar de índices de literacia assinaláveis. Os leitores de Homero seriam legião, Shakespeare e Pessoa estariam continuamente a ser impressos. Haveria clubes poderosos de leitores de Sófocles, de Kafka, de Mann, de Musil ou de Proust. Os resultados são decepcionantes. O mundo de leitores aumentou, mas os grandes autores continuam a ser – talvez deva ser assim – parte de um mundo restrito, de uma elite descabelada e sem préstimo. Contudo, o efeito mais espectacular dessa ideia nobre de colocar à disposição do grande número aquilo que sempre foi de poucos não está na decepção pela falência do propósito. O resultado desta nobre aventura é que o critério de separação da alta cultura se perdeu e Homero ou Hermann Broch valem tanto – na verdade valem menos – como um qualquer produtor de best-sellers. Um dia – não virá longe – perguntar-se-á por que motivo se há-de submeter os adolescentes à leitura de Camões, se não há quem lhe compre os versos. Repito-me, imagino que já aqui o terei escrito: como a má moeda expulsa a boa, também a má literatura expulsa a boa. Não apenas nos escaparates das livrarias, mas do horizonte cultural onde ela sempre existiu. Deixou de ser o padrão, para se tornar uma coisa tão trivial como as trivialidades que são despejadas torrencialmente nas livrarias. Devo estar cansado para vir com esta conversa. O cansaço tem sempre efeito surpreendentes, inclina-nos a fazer e a dizer coisas que nos interditaríamos. A coisa explica-se facilmente: aquilo que se pensa está – no estado de normalidade – cercado por um dique poderoso. O cansaço é como as grandes chuvas torrenciais, em que os cursos de água se assanham e levam tudo pela frente, mesmo os mais poderosos diques. É isto que me está a suceder. Ou talvez seja outra coisa que desconheço. Ou talvez não passe de uma necessidade biliar. As verdadeiras razões são sempre estranhas e dificilmente compreensíveis.
quarta-feira, 4 de junho de 2025
Anamnese
Fui jantar à baixa. Sim, aqui também há uma baixa, que se opõe à alta. O conflito não é social. Tão pouco é um conflito, apenas designações de uma geografia comum, uma maneira de dizer. Minha, note-se. Ninguém aqui chama baixa à baixa. Chamam-lhe centro, como se fosse o centro do mundo, o Omphalos, embora ninguém faça ideia do significado desta palavra aterrada aqui vinda directamente da antiga Grécia. Estou a desviar-me do assunto. Também é verdade que não tenho assunto. Sono é a única coisa que possuo, mas sem vontade de dormir. Depois de jantar, dei uma pequena volta por essa baixa. Observei com atenção casas antigas, de um tempo em que a vila – isto era uma vila, antes de cair sobre o país a tragédia das elevações a cidade – um tempo em que a vila, repito-me, tinha alguma influência, ou gente com influência. Dois governadores da chamada Índia portuguesa nasceram aqui. Tudo isso passou. No entanto, recordei-o hoje, há recantos belíssimos, de um romantismo antigo, daquele que ainda sonhava com a Idade Média. Isso recordou-me a época em que eu, pobre de mim, me achava deslocado no mundo moderno e sentia que a minha pátria era a Idade Média. Tudo isto, porém, era uma encenação privada que não partilhava com ninguém. Uma fantasia inocente, que não levava a sério, pois não passo de um ser conformado às comodidades dos nossos dias. No entanto, pensando bem, aquele tempo em que me sentia um homem da Idade Média era, na verdade, uma Idade Média. Os computadores eram seres que pertenciam a seitas esotéricas. Ter um telefone implicava anos de espera e a televisão era a preto e branco. Também é verdade que não melhorou quando foi colorida. Pelo contrário. Tudo era mais lento, havia poucos carros e as pessoas iam, aos domingos, ao futebol ou ao cinema, depois de terem ido à missa, as que iam. Foi disso que me lembrei, ao olhar o rio, as casas, as ruas, onde não vi ninguém conhecido. Depois, peguei no carro e tudo se apagou.
terça-feira, 3 de junho de 2025
Arquétipos
Ontem revi Casablanca, a velha e famosa obra de Michael Curtiz, com Humphey Bogart e Ingrid Bergman. A certa altura dou comigo a pensar que o filme está construído num pressuposto utilitarista. O utilitarismo é um corrente filosófica que defende que o valor moral de uma acção reside nas suas consequências. Elas devem promover a felicidade não do agente, mas do maior número possível de implicados pela acção. Rick (Humphrey Bogart) sacrifica o seu amor por Ilse (Ingrid Bergman) em nome de um bem maior, em favor da felicidade do maior número. Não é de admirar, pois a sociedade americana não era indiferente a uma certa tonalidade utilitarista. Todavia esta inscrição do filme de Curtiz na filosofia de Bentham, de Mill e de Sidgwick é secundária. Há, na cultura ocidental, um arquétipo de onde emana o acto de Rick: o Cristo que morre na cruz pela salvação dos homens. Aparentemente nada liga a figura do fundador do cristianismo e a do cínico proprietário de um café em Casablanca. A força dos arquétipos reside nisso mesmo: manifestam-se onde menos se espera. Aliás, muito facilmente se descobrem outras figuras arquetípicas provenientes da cultura judaico-cristã por detrás das principais personagens do filme. São estes arquétipos que dão profundidade às culturas humanas, enquanto as separam umas das outras e estabelecem entre elas um grau de incompreensibilidade muito mais rígido do que a incompreensão linguística. Traduzir palavras e frases é fácil. Difícil, se não impossível, é a tradução de arquétipos, pois estes persistem silenciosos e operam a níveis muito fundos do nosso psiquismo. Não seria possível a um realizador japonês, chinês, indiano ou muçulmano realizar Casablanca, tal como o filme foi concebido dentro da cultura ocidental.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Desconstrução
As segundas-feiras são sempre dias de queda. Queda? Sim, na realidade. Os fins-de-semana são um mergulho num mundo de ficção, a entrada na fantasia de que superámos a fase existencial da humanidade governada pela estrita necessidade. É uma doce e calorosa quimera, que entra em nós, se aninha e que, quando a velha necessidade, com o seu ar de bruxa imperativa, bate à porta, ela recusa-se a abri-la. Contudo, a porta abre-se e a matrona inexorável toma conta da cena, arrastando-se, e aos mortais com ela, pelo palco. Os homens habituam-se e, por vezes, tornam-se colaboracionistas, vendendo a sua liberdade ao império inimigo. Contudo, mesmo os mais contumazes agentes da utilidade sentem uma inquietante estranheza às segundas-feiras. O que se dirá de mim, eu que faço parte da resistência? É um choque traumático. Só não sou levado ao divã do psicanalista porque não tenho inclinação nem para a confissão nem para ficar traumatizado por mais do que umas horas. Como se sabe, todos nós somos habitados por outros seres, aos quais, à falta de melhor, dei o nome de homúnculos. Sócrates tinha um daimon, um génio; eu, por um homúnculo. Ao contrário do que morava no filósofo ateniense, o meu não é benfazejo. Está sempre a desmontar o meu discurso. Desconfio, que foi discípulo de Derrida, ou que anda a ler aqueles tratados soporíferos saídos da imaginação de um francês dispensado de pagar tributo à necessidade. Estava eu a dizer que não sou dado a confissões nem inclinado a traumas, logo ele começou a gargalhar, perguntando-me se estes escritos não são confissões. Por uma vez, cheguei para ele. Respondi-lhe: claro, são confissões, mas sem confessado. Ele calou-se, foi ler o De la grammatologie e deixou-me em paz. Por uma vez, saí vitorioso. O pior é que isso não me devolve a doce quimera que estava no meu coração e que a megera expulsou. Por uns dias, espero.
domingo, 1 de junho de 2025
Arte total
Uma das discussões com algum peso no âmbito da filosofia da arte, na sua vertente anglo-saxónica, é a da possibilidade de dar um definição de arte. Há propostas essencialistas – que pretendem encontrar uma essência comum a todas as obras de arte, independentemente da natureza e origem destas. Há leituras cépticas que negam a possibilidade de encontrar uma definição global de arte. Há teorias que deslocam a definição da arte das obras para os contextos em que estas se inserem. Isto é um problema filosófico e não artístico. Os artistas estão mais preocupados com a produção do que com a definição. Todavia, a ideia de uma totalização – toda a definição implica uma totalização – não deixa de ser atraente, mesmo pensada fora da questão filosófica. Há um espírito humano único, mas que se fragmenta nas modalidades de expressão: música, poesia, narrativa, pintura, fotografia, dança, arquitectura, escultura, drama, cinema, etc., etc. Esse espírito único para se manifestar – talvez devido à finitude e aos limites humanos – tem de se fragmentar. E essa fragmentação em especialidades artísticas não pode deixar de ser sentida como a perda de qualquer coisa fundamental. Não de uma essência única comum a todas as obras de arte, mas de uma unidade poética do espírito. Ora, o caminho da arte tem sido o da contínua especialização ao longo dos milénios, mas a obra de arte total, aquela que satisfaria os anseios mais fundos do espírito humano, seria uma englobasse todas as especialidades, uma que fundisse aquilo que estilhaçou. Esta utopia artística seria possível apenas a um Deus, tal como o define o teísmo, mas o facto de ela assombrar os homens pode ser um sintoma de serem – ou de desejarem ser – tido à ou como imagem e semelhança da divindade.
sábado, 31 de maio de 2025
D. Quixotes e tristes figuras
No último dia do mês de Abril, escrevi o seguinte: O mês finda tempestuoso, uma revolta inútil contra o destino. Maio termina sem tempestades, mas o calor que escorre pelos telhados da cidade é pior que uma tempestade. Nada que demova os adolescentes de virem adolescer para a praceta aqui em baixo. Eu compreendo, também devo ter sofrido da mesma doença, embora já não me recorde como fui afectado, como afectei outros e como suportei tudo isso. Imagino que sem garbo, pois não há doença manos propícia à manifestação de condutas garbosas do que a adolescência. Agora, que tenho largas dezenas de anos em cima do evento, consigo imaginar que D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, é o símbolo da adolescência – no masculino, entenda-se. Fazem-se tristíssimas figuras, enquanto no cérebro – ainda pouco desenvolvido – se forma a fantasia de que se é um herói. Não consigo recordar-me se, na minha adolescência, me encaixava no arquétipo. Não, estou a mentir. Claro que encaixava, com a minha fixação nas corridas de fórmula 1. Por certo, não deixaria de me imaginar um Jackie Stewart, o escocês voador, meu herói daqueles anos. Claro que não era o único. Havia outros, uns vindos do futebol – desporto para o qual nunca tive qualquer dote –, outros das leituras, todos eles D. Quixotes, por certo, na minha avaliação enviesada pela idade e o estado patológico em que me encontrava. O certo é que sobrevivi. Se bem ou mal, isso já é outro assunto. Há muitos homens – as mulheres são menos afectadas – que tornam a doença crónica. Ficam adolescentes toda a vida. Nisto não há qualquer juízo moral. Cada um sobrevive como pode, desde que não aborreça o próximo. Os D. Quixotes continuam a gritar, pois têm dificuldade em controlar as ondas sonoras. Um dia destes terão aprendido a fazê-lo, mesmo que sejam eternos adolescentes.
sexta-feira, 30 de maio de 2025
Aboletamento
Um dos Contos de São Petersburgo, A Caleche, de Nikolai Gógol, tem um começo que desencadeou em mim uma memória ancestral. O texto diz: A cidadezinha de B. animou-se muito quando nela se aboletou o regimento de cavalaria ***. Antes disso, pasmava num tédio mortal. A palavra gatilho da minha rememoração foi aboletou. Ora, a memória não é a minha, claro, pois ela provém das Invasões Francesas. Numa delas, o exército invasor esteve aqui aboletado. A memória veio através da minha mãe, que a ouviu da sua avó – uma das minhas bisavós. A história narra a pilhagem da casa de família por parte da soldadesca francesa. Conta como se esconderam e como os soldados destruíram o que não conseguiram levar. Ora, essa minha bisavó não podia ter vivido o acontecimento, pois nasceu mais de cinquenta anos depois da passagem por cá dos franceses. Também a mãe – uma das minhas trisavós – não podia ter vivido o evento. Embora fosse possível que um dos meus tetravós fosse a origem do relato, o mais plausível que aqueles que o viveram tenham sido os meus pentavós do lado materno. O que sempre me impressionou foi a persistência da narrativa, onde não deixou nunca de ressoar um certo ódio aos invasores, que chegou até à geração dos meus filhos e se prepara para continuar. Conheci pelo menos outra pessoa que, na sua família, tem uma história semelhante, o que indicia uma prática contumaz do invasor. Ora, a transmissão genética pouco relevo terá caso não seja acompanhada por outro tipo de transmissão, a narrativa. A passagem dos franceses por aqui deve ter sido de tal modo inaceitável que, passados mais de duzentos anos, ainda há recordações do seu aboletamento.
quinta-feira, 29 de maio de 2025
Evaporação
Há pouco, na rua, estavam trinta e oito graus. Os corpos amolecem e quase derretem. A partir de certa altura do ano, por aqui, o calor lança uma intifada contra a pobre população. Munido de pedras ferventes, esse deus sem tino lança-as sobre a cidade. As pessoas protegem-se como podem de um agressor sem rosto nem voz. O melhor, porém, será escolher o exílio junto ao mar. Ora, isso nem sempre é possível. Não seria má ideia os poderes municipais tentarem negociar com o inimigo. Fazer algumas concessões e obter temperaturas mais amenas. Falta-lhes, aos poderes municipais, iniciativa. A escassez deste bem está ancorada na penúria de um outro: a imaginação. Em Kant a imaginação assume duas faces. Uma, reprodutora; outra, produtora. A imaginação que reproduz – isto é, que copia – não falta a esses poderes. O que lhes falta é a outra, a criadora. Se a tivessem, encontrariam modo de negociar uma baixa de temperatura como quem negoceia uma baixa de juros ou de tarifas, tema que agora está na moda. Para que servirá um poder municipal se nem é capaz de tratar de uma coisa destas? Enquanto isso, os corpos, depois de derreterem, correm o risco de se evaporarem. É muito desagradável para uma cidade perder assim os seus cidadãos. O que lhes aconteceu, pergunta-se. Evolaram-se devido à onda de calor. Os poderes públicos – não apenas os municipais – andam atarantados com o problema da demografia. Retorcem os neurónios para encontrar uma solução. Contudo, como podem encontrar a solução se não conhecem – ou não acreditam – na causa: a evaporação dos cidadãos devido ao calor? Há uma correlação evidente entre a subida das temperaturas e a diminuição demográfica. Pensa-se que é por nascerem poucas pessoas. Uma desculpa com a finalidade de não enfrentar o problema. Por vezes, passam nuvens carregadas de gente evaporada, mas como não chove cidadania, não há devolução. Resta-nos esperar que os poderes públicos, locais e nacionais, deixem de se comportar como sonâmbulos e acordem para o problema. Que é real, como se pode ver pelo estado do meu cérebro. Os cérebros são a primeira coisa a volatizar-se.
quarta-feira, 28 de maio de 2025
Tempos
Foi através do filósofo italiano Giorgio Agamben que cheguei a uma definição de kairós: O chronos é aquilo em que há kairós e kairós é aquilo em que há pouco chronos. A definição provém do Corpus Hippocraticum, o que permite perceber, de imediato, que se insere no campo da saúde. Melhor, no campo da cura. Umas vezes, a cura ocorre por intermédio do tempo (chronos); outras, através do kairós. Este é visto como um tempo oportuno, a hora certa de um acontecer. Aparentemente não é mensurável ao contrário de chronos, o tempo sequencial e mensurável. A definição hipocrática é interessante porque não separa um do outro. O kairós inscreve-se no tempo corrente, não é estranho ao fluxo. Pelo contrário, é um chronos contraído (há pouco chronos, diz a definição). Esse momento em que os olhos de um homem e de uma mulher se cruzam e decidem duas vidas é o kairós. Este é um momento de redenção. Retira homem e mulher da vida trivial e abre-os a uma outra vida. Se ela vai ou não ser trivial, isso é outra coisa. O acontecimento transborda a temporalidade e, de certo modo, ao contrário do que diz o pensamento hipocrático, é-lhe exterior. É a intensidade desse acontecimento que transforma chronos em kairós. Não houve um momento oportuno para que algo se desse. Foi porque algo se deu que esse momento se tornou oportuno. É a dimensão do acontecimento que rapta o kairós da linha do tempo. Não se pense que toda esta meditação se deve a uma inclinação especial para a especulação. A realidade é mais prosaica: com a temperatura que está lá fora, encontro-me retido em casa. O escrito é um acto de resistência ao despotismo do tempo, não o cronológico, mas o climático. Amanhã, já vi, vai ser pior. Agora, tenho de ir saber como vai a varicela do meu neto. Também ela encontrou o kairós para nele se manifestar. Não me lembro de ter tido varicela e já não está cá quem me informaria com toda a precisão. Hoje faria 92 anos. Chronos tem os seus imperativos, que nem o mais intenso desejo dos homens consegue suspender.
terça-feira, 27 de maio de 2025
O dia
O dia decorreu sem que nada o perturbasse. Nenhuma conspiração veio à luz para o eliminar antes da hora. O universo não suspendeu as suas leis. Também eu me contive nas estritos limites dessa legalidade universal. Passei parte dia a fazer certas experiências. Para quê? Para ver o que acontecia. E o que aconteceu? Nada. Isto significa que hoje não é dia que possa reclamar como mais um daqueles que constitui a gesta deste narrador sem narrativa. As narrativas nascem quando o universo suspende as suas leis. Se a realidade se afunda, as palavras compõem o mundo, até que tudo se endireite e o universo viva a sua vida quotidiana. A maior glória a que posso aspirar hoje é cuidar do jantar. E não é pouco o esforço.
segunda-feira, 26 de maio de 2025
Perturbação
Há trinta anos, um acontecimento mudou radicalmente a minha vida. Foi isto o que pensei ao acordar. Depois, julguei a afirmação demasiado dramática, como se tivesse tido uma revelação que me tivesses transformado. Moderei a avaliação e pensei que o processo de mutação já estava a decorrer e que o dia de há três décadas foi apenas símbolo, um marco miliário no caminho. Também é plausível pensar que, sendo eu um narrador, tudo isto seja falso, uma invenção do autor. Estava eu a pensar nisto, quando recebo uma chamada. Uma operadora de telecomunicações. A finalidade é convencer-me a mudar de fornecedor. A vida interrompe-me sempre quando estou perdido em meditações profundas. É possível que a vida saiba que me falta profundidade e, solidária comigo, me queira poupar ao confronto com a realidade. Então envia-me estes anjos, de voz feminina, mas que são de um tempo que não é o meu. Era impensável alguém tratar um homem por senhor + nome próprio. Havia uma regra e não sei quem a revogou. Não me indigno, mas penso que há qualquer coisa que deixou de funcionar no mundo. O enigma de tudo isto é o seguinte: como pode um narrador – um ser meramente virtual – receber chamadas telefónicas, conversar com operadoras – confidenciou-me que era chefe de equipa, quase fiquei impressionado – de operadoras de comunicações e recordar acontecimentos de há trinta anos? Logo ele que foi criado no ano de 2017. Estou perturbado.
domingo, 25 de maio de 2025
Mau sintoma
Um domingo sem história. Dias sem história são os melhores, pois a história é apenas o trabalho do negativo. Será que estou a sofrer uma recaída? Fui atacado pelo vírus do meu velho hegelianismo? Nunca se sabe. Uma pessoas pensa-se curada, anda anos e anos como se nada fosse, e, de repente, lá volta a doença. Afinal, somos obrigados a constatar, não houve cura. A doença tornou-se crónica, embora sem manifestações aparentes. Há uns tempos a esta parte, tenho pensado nesse negativo. Parece estar destrambelhado no palco da história. Imagino que o ataque do vírus hegeliano se deva ao que se está a passar na peça dramática que se desenrola perante os nosso olhar e, infelizmente, nos engloba e arrasta. Recordei-me, agora, do quadro, de Paul Klee, Angelus Novus, e da interpretação que dele faz Walter Benjamin. Arrastado pela voragem do tempo, o anjo olha fixamente o passado. E o que vê? Uma sequência contínua de catástrofes. É isto o trabalho do negativo. O anjo, consta, gostaria de deter-se para reparar os danos, mas impede-o a tempestade que sopra do paraíso, impelindo-o sempre para o futuro. Ora, nunca me conformo com a minha situação. Sou também impelido com fúria para o futuro, mas não sou anjo, e muito menos anjo da história. Tão pouco sinto o impulso angélico de reparar os danos do passado. Por que razão terei eu de sofrer o destino do anjo? Este foi o pensamento herético que me assaltou, armado de punhal. Não lhe resisti. Será isto um sintoma de recaída no velho hegelianismo de juventude? Não me parece bom sintoma.Que pena não poder conversar, agora, com meu amigo Padre Lodo, o velho Lodovico Settembrini. Para me confessar? Oh não, não sou dado a confidências. Para combinarmos onde haveríamos de jantar e beber um bom vinho, enquanto a história se rebola por aí.
sábado, 24 de maio de 2025
Devolvam as mudas
Tenho um contencioso inultrapassável com o acordo ortográfico de 1990. Objectivamente, parece-me uma causa perdida. É só uma questão de tempo e a ortografia vandalizada será a única a ser conhecida pelos escreventes portugueses. Como não sou linguista, não tenho argumentos dessa ordem para contrapor, mas custa-me que o antigo espectador se tenha tornado num cruel espetador. Depois, as coisas vêm por arrasto. Quando se transforma a concepção em conceção, abre-se o caminho para que o conceptual se torne concetual. Estamos perante um terrível exemplo de perseguição da deficiência. As consoantes mudas, pela sua mudez, foram abolidas, excluídas. Quem o fez não percebeu uma coisa central: a figura estética das palavras. As letras que nelas estão formam uma totalidade visual. Quando se amputam as consoantes mudas, altera-se drasticamente a palavra escrita, pois elas têm uma natureza visual, para além de suportarem emissões sonoras. As consoantes mudas são o vestígio da história da língua, um vestígio inscrito na própria língua. Talvez já o tenha escrito aqui, mas a abolição dessas consoantes é um acto idêntico ao que seria destruir as ruínas históricas, os vestígios do passado que já não têm qualquer utilidade social. A destruição terá começado em 1911 na simplificação ortográfica. O jacobinismo da época não esteve com meias medidas e, com o vão desejo de, ao simplificar a ortografia, tornar a escrita e a leitura mais fáceis a um povo de baixo QI (só podia ser isto o que os simplificadores pensavam dos portugueses), trataram de desfigurar as palavras. Não contentes, os jacobinos dos finais do século passado acabaram a obra. Custa-me muito ver a velha palavra acção – descendente da actiōne latina – transformar-se em ação, que já muitos leitores pronunciam como a São. Devolvam as consoantes roubadas às palavras a que pertencem. Uma questão estética. Sei que isso não acontecerá, mas há que não esquecer a barbárie. Trata-se de barbárie, pois o que se esconde através dos actos dos reformadores ortográficos é o desprezo pela antiguidade clássica, de onde a nossa língua provém, mesmo que por vias populares.
sexta-feira, 23 de maio de 2025
Imperativo categórico
A praceta aqui em baixo silenciou-se. O bando de adolescentes guardou a bola e foi para casa. Fiquei agradecido. Assim, nesta ausência do estilete do ruído, posso meditar a passagem quase inaugural de um dos romances de Julian Green, Partir avant le jour. Traduzo: Escrever não importa o quê é talvez o melhor meio de abordar os assuntos que contam, de ir ao mais profundo pelo caminho mais curto. Dir-se-á simplesmente o que passa pela cabeça, ao sabor da memória. Também eu escrevo não importa o quê, mas o resultado nunca é ir ao mais profundo. É nisso que medito, a constatação de uma falta. Talvez não tenha memória. Talvez me falte profundidade. Ou, então, a minha profundidade é muito superficial. Isto pode ser um falso dilema. A razão pode não ser a falta de memória nem de profundidade. Posso achar obsceno revelar o que vai no meu abismo interior. Por pensamentos destes, descubro-me deslocado no tempo, anacrónico. Tudo terá começado com o nudismo. As pessoas vão para certas praias para andarem despidas. A seguir, considerando que o exercício era irrelevante, começaram a trazer as peripécias da sua vida para a praça pública. Agora – mas este agora pode ser já antigo – o exercício é o de revelar a interioridade, desocultar a profundidade, não apenas a dor, mas também o mal praticado. O mundo tornou-se um confessionário. As televisões, as redes sociais, os podcasts. Enquanto a Igreja Católica – pelo menos, no mundo ocidental – vai definhando, a prática da confissão universaliza-se. Cada um quer mostrar a profundidade que tem, as dores que sofreu, o mal que praticou. Imagino que as mesmas pessoas que um dia abominaram a confissão no segredo do confessionário, a pratiquem agora na praça pública. Que razão as moverá? A confissão religiosa colocava-as perante o errado, que como tal era reconhecido para ser perdoado. Agora é mostrado não para ser perdoado pela sociedade, mas para ser reconhecido como marca de glória. A exposição pública da interioridade é a glorificação da gesta do indivíduo, é o momento em que transforma em grandeza aquilo que foi vil. A confissão pública transforma o vilão em herói. O melhor, penso, é que se evitasse, a todo o custo, ir à profundidade – pelo menos publicamente – seja por caminho curto, seja por um longo. Poupar os outros da nossa interioridade deveria ser um imperativo. Categórico, como o de Kant.
quinta-feira, 22 de maio de 2025
Paisagens emaranhadas
Há títulos fascinantes. Já o disse aqui. Terei de me conter nesta repetição, não vá supor-se que se trata de algum fétiche. Lembrei-me desse fascínio ao ler um título de Herberto Helder: A Máquina de Emaranhar Paisagens. Fico a contemplá-lo e vejo uma paisagem a dobrar-se e a desdobrar-se, num ritmo caótico. Depois, olho com mais atenção e descortino a máquina que gera a paisagem, mas tudo nela é desconcertante. Um batalhão de engenheiros – percebe-se que são engenheiro pelo modo como olham e pelos gestos que fazem – conferencia, como se quisesse encontrar uma estratégia para curar a máquina do seu desvario. As pessoas não o sabem, mas qualquer paisagem é produzida por uma máquina. Enquanto a máquina funciona bem e a paisagem não se emaranha, ninguém percebe como são produzidas as paisagens. Pensam que são coisas naturais para os nossos olhos contemplarem. Só quando a máquina se avaria e a paisagem se emaranha, é que os mais atentos descobrem a verdade. Ficam tão atónitos que não acreditam no que vêem. Angustiados, tomam a decisão de não partilhar o segredo com ninguém. A partir desse dia, elevam os olhos aos céus e, numa oração sentida, imploram à divindade que a paisagem jamais se emaranhe.
quarta-feira, 21 de maio de 2025
Singularidade
A fazer de acompanhante, enquanto espero vou abrindo, no tablet, ficheiros antigos. O objectivo é fazer uma limpeza. Num deles, cuja designação omito, encontro o seguinte: Este é o romance que dá voz à única minoria que conheço; e, se a conheço, então ela existe. A única cuja voz transposta em si um sentido compreensível para qualquer um. Que minoria é essa, perguntará o leitor. Uma pequena palavra desvendará o mistério: Eu. Desconheço outra que seja menor. Todas as outras, a meus olhos, por pequenas que sejam, são já para mim uma multidão opressiva. Fiquei a contemplar aquele montão de disparates em meia-dúzia de linhas. Quem terá escrito isto, perguntei-me. O autor teve o bom senso de não continuar. Quem se poderia interessar pela história de um Eu? Ninguém, por certo. Ora, o que me terá levado a escrever aquilo, pois sei muito bem que ninguém, a não ser eu, tem acesso aos meus ficheiros? E, se ele está lá, foi porque eu — talvez num ataque de sonambulismo, que nunca descobri sofrer — o escrevi. Arrependo-me de o ter escrito? Podia responder como um qualquer poltrão travestido de corajoso que não, que não me arrependo de nada do que fiz. Seria faltar à verdade. Arrependo-me de muitas coisas, entre elas o de ter escrito aquelas palavras. Não pelo seu conteúdo, mas pela miséria da sua forma. Se o conteúdo é mau, isso deve-se à natureza deplorável da forma. Foi assim, nesta meditação, que passei o tempo de espera. Exames efectuados, fomos almoçar com o meu filho, que, por um acaso, se encontrava também na capital de distrito onde decorreram as provações médicas. A conversa de almoço evaporou o meu arrependimento, que volta agora. Um dia destes apagarei o texto miserável. Talvez não, talvez lhe dê continuidade, pois, na verdade, a única minoria que conheço sou eu. As outras oprimem-me e, por isso, desconheço-as. O problema do mundo é haver minorias e maiorias. Se apenas existissem singularidades, se fosse impossível dizer nós, vós ou eles, tudo seria mais cordato. A vida seria um encontro de singularidades e não um passeio de rebanhos. A singularidade, meu idiota, é um luxo, oiço dizer. Calo-me, perdido na perplexidade de me escutar.
terça-feira, 20 de maio de 2025
Hardware e software
Depois de se ter feito o download da Primavera a 20 de Março de 2025, só agora parece estar instalada. Quando consultei os técnicos informáticos do departamento celestial que gere as estações do ano e lhes perguntei quando teremos a Primavera a correr como deve ser, responderam-me que não sabiam. Vários problemas, acrescentaram. Se não é do hardware, é do software. Se este fica funcional, o hardware entra em colapso. Um modelo antigo, disse-lhes. Sim, sim, confirmaram. O modelo já é bem antigo, mas não existe outro. Os departamentos de equipamento e de inovação são um problema. Ora, não têm pessoal, ora têm pessoas a mais. O pior, todavia, é que não se entendem um com o outro. Também aqui há rivalidades, asseguraram-me. Onde não as há, pensei. O projecto de reformulação das quatro estações já tem vários séculos. Foi aprovado no século XIII, aquando de uma visita do CEO, aquele que é tratado na Terra com o carinhoso nome de S. Pedro. Porém, estamos longe de chegar a um consenso. Investir na infra-estrutura ou no design. Não há orçamento para tudo. Seja como for, a Primavera ficará instalada antes de chegar a hora de a desinstalar, para podermos correr o Verão. Assim, hardware e software nos ajudem. Sinais do tempo, pensei. Dantes, pedia-se a ajuda divina, agora a destas entidades elusivas que, apesar da inclinação para a avaria e o bug, parecem comandar tudo.
segunda-feira, 19 de maio de 2025
Questões de sono
Uma noite mal dormida. Melhor, não dormida. Só agora começa a ter efeito sobre mim, escondendo-me a energia que ainda deveria ter para enfrentar o resto do dia, com os seus imperativos. Ora, essa falha invade-me a memória e cai com lassidão sobre o corpo. Bocejo, luto para ter os olhos abertos, escrevo estas frases, metade das quais com erros de digitação. O sol amareleceu e, depois, entregou o horizonte à noite. Os pássaros entoaram-lhe um cântico, como se louvassem um deus. Procuro as razões da insónia. Não as encontro. A memória não as reteve ou, talvez, não tenham existido. Fixo com firmeza os olhos nas árvores do pequeno bosque da escola vizinha. São vultos sombrios, parecem conspirar. Murmúrios deixam entender a audácia do projecto, mas o corpo permanece indiferente aos caminhos do mundo. Se me recostar na cadeira, adormeço, ou sonharei que adormeço, ou sonharei que estou a sonhar que adormeço. A realidade, como se vê, é muito mais complexa do que aquilo que se está disposto a admitir. Há dias em que tudo parece simples e o coração enche-se dessa simplicidade. Outros, porém, tudo se torna complexo e não sei o que fazer, preso ao sonambulismo, com essa complexidade. Ir dormir, oiço-me dizer.
domingo, 18 de maio de 2025
Domingo eleitoral
Apesar de tudo, sou um cidadão comprometido. Voto desde as primeiras eleições do regime em que vivemos. Só uma vez, em todas estes actos eleitorais, deixei de cumprir o dever de votar. Sei que foi numas eleições autárquicas, mas já não sei quando nem a razão. Não terei chegado a tempo. Pelo menos é essa sombra que dança na minha memória. Como é habitual, fui votar a meio da manhã. Uma coisa que me espantou foi ver pessoas que se dirigem ao local de voto com um traje guardado para as coisas importantes. Têm já uma certa idade e talvez tenham vindo da ou vão à missa dominical, mas é possível que não. Contudo, a generalidade dos eleitores estava vestido de modo habitual, para um domingo tido como dia de descanso. Duas leituras são permitidas. Por um lado, olhar para aqueles que se vestem de modo formal para ir votar permite perceber que vêem no acontecimento algo de excepcional, talvez como fazendo parte de uma liturgia cívica digna de um reconhecimento superior a outros hábitos da vida social, algo que em tempos foi um bem escasso. Por outro, o facto de as pessoas integrarem o voto nos seus habitus sociais de domingo, com a trivialidade que lhes está associada, torna patente que essa participação faz parte da própria vida, não como um caso extraordinário, mas como decorrente de uma vida normal, em que pessoas, comprometidas minimamente com a comunidade, escolhem um caminho para esta. Da janela do meu escritório vejo as pessoas dirigirem-se para a assembleia de voto. Só não vejo a mesa onde votei porque as paredes exteriores do pavilhão me impedem de ver o que lá se passa dentro. Neste momento, há mais eleitores a virem de lá do que a irem. Já falta menos de uma hora para as urnas fecharem. É o tempo dos retardatários, cujo voto tem o mesmo valor do que os que votam mais cedo. Seria interessante o voto ter um quociente de valorização conforme a hora em que o eleitor vai votar. Contudo, nem tudo o que é interessante é bom. Mal abrissem as urnas, as diversas militâncias partidárias estariam à porta, o que poderia provocar engarrafamentos eleitorais. Foi para evitar esse problema que o legislador decidiu que qualquer voto – independente da hora – teria o mesmo valor. Passam, agora, três retardatários. Uma vai apressada, quase corre. Um sol triste rompe o cerco das nuvens. Estamos em Maio, mas a Primavera ainda não foi um primeiro Verão.
sábado, 17 de maio de 2025
Ora, favas!
Como Saulo de Tarso, também eu tive a minha estrada de Damasco. Não foi em Damasco, claro. Foi em Fátima, o que para o efeito não deixa de ser um sítio recomendável. Também não foi numa estrada, mas num restaurante. Não naquele mais famoso do lugar, que tem um estrela dada pelos senhores de uma empresa francesa de pneus, mas num outro, menos estrelado, mas bastante competente no que faz. Estava lá sentado, para almoçar, quando trazem à mesa, um pequeno prato com favas. Uma gentileza da cozinha. As favas são da propriedade do dono do restaurante e são confeccionadas pela mulher. Torci o nariz, mas agradeci. Não por mim, mas pela avó dos meus netos. Durante toda a vida – já era longa, nesse dia – sempre detestei favas, uma coisa horrível, pesada como chumbo, embora nunca as tivesse experimentado, afastado pelo cheiro. Não sei que inspiração me levou a experimentar uma fava. Comi-a. Não morri, não fiquei agoniado, não tive vertigens. Experimentei a segunda, pareceu-me não ser mau de todo. À terceira, tinha-me convertido. Cada um tem as conversões que pode e as estradas de Damasco que lhe estão por perto. Hoje, o almoço, foi o de um autêntico converso. Estavam esplêndidas as favas. O pior foi que uma decidiu espirrar e, nesse acidente, a camisa e as calças foram atingidas. Encolhi os ombros, ouvi um riso escarninho e o comentário a despropósito: não te preocupes, o tira-nódoas é infalível. Uma pessoa, pensei, já não pode comemorar a sua conversão sem que uma nódoa – o efeito denunciador do pecado da gourmandise, que se me perdoe o francesismo – lhe rebaixe a devoção espiritual e a deixe perplexa a perguntar como pode ter acontecido, mais uma vez, o que acontece sempre. Ora, favas!
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Ratos
Há, na humanidade em geral, uma propensão para o conflito com os ratos. As causas dessa antiquíssima guerra, desconheço-as. Também eu tenho um conflito com os ratos. Seriíssimo, cada vez mais evidente. Não com os animais assim designados, mas com os mecânicos. Melhor: com os ratos electrónicos de que me sirvo para interagir com o computador. Juro que os trato bem. Não lhes faço sevícias — sou um defensor de que temos deveres para com os animais —, não os insulto, não vão eles precisar de psicanálise. Alimento-os adequadamente com a energia de que necessitam. Mais: equipo-os com um tapete apropriado, para que não entonteçam quando trabalham. Em mim, não há nada, no seu tratamento, que a minha consciência me censure. Pelo contrário: chega a confessar-me que os trato bem demais. Estrago-os com os cuidados que lhes dispenso. A minha consciência, claro, é minha e tende a ser benevolente comigo. O resultado de tudo isto é que eles insistem em avariar-se. Uma avaria num rato electrónico equivale à morte de um biológico. Por vezes, sinto-me culpado, como se fosse um assassino de ratos. Não sou, apesar de eles morrerem. Neste momento, estou a passar por uma experiência ainda mais dolorosa. Há tempos, após o óbito declarado de mais um, comprei outro, todo catita — que se me perdoe a expressão. Tinha entrado numa excelente relação com ele, com as suas funções. Tudo estava a correr bem, até que ontem começou a dar sinais de doença. A certa altura, recusou-se a trabalhar. Consegui — de forma pouco ortodoxa — reiniciar o computador. Ele deu sinais de vida, mas continua a comportar-se como se as funções vitais se estivessem a extinguir. Olho-o e penso se não serei hospedeiro de um vírus mortal que, não se manifestando em mim, se transmite aos pobres ratos electrónicos, que não param de falecer às minhas mãos ou, para ser mais exacto, à minha mão. O problema é que me esqueço sempre de guardar a garantia, pois, com candura e ingenuidade, nunca me lembro de que a probabilidade de o novo rato sofrer uma síncope antes de atingir dois anos de idade é elevada, caso me pertença. O que me vale é que tenho sempre um de reserva. Nem para os ratos electrónicos a vida está fácil.
quinta-feira, 15 de maio de 2025
Amor de perdição
Este ano tenho-me livrado de um Maio tórrido. Aqui há uma propensão para as temperaturas, a partir de certa altura do ano, tresloucarem e pensarem que se está em África. Não está, nem sequer abaixo da linha do Tejo. É certo que esse rio corre mesmo ali em baixo, a meia dúzia de quilómetros de distância. É um rio que amo, acima de todos os rios — mesmo do rio que por aqui corre e que, na sua pequenez, se desliza para esse outro que recebe, descubro-o com espanto, a inclinação dos meus sentimentos. Quando está enfurecido e se precipita em direcção à foz, é belíssimo: grandes cheias que cortavam estradas, fechavam povoações, fertilizavam as terras — mas faziam parte de quem nascia perto dele, era um dos símbolos que, no silêncio de um orgulho inconfessável, se gravava no peito. Hoje, porém, o Tejo é um touro castrado. As barragens domesticaram-no, prenderam-lhe as águas, que só são libertadas em caso de necessidade. Durante quase todo o ano, corre sorrateiro, em murmúrios leves, quase vazio, quase morto à míngua de água, sedento e bonacheirão. Se chove, como este ano, enche-se de brio e parece o velho Tejo. Então, recebe as visitas como um velho senhor decaído, mas a quem não se hesita em prestar a homenagem devida, pois tudo o que foi grande — mesmo que a grandeza tenha ficado encerrada no sarcófago do passado — merece, por direito consuetudinário, homenagem. Descobri, ao escrever isto, um amor sobre o qual nunca tinha pensado: o desse rio que é o maior da península. Talvez todos nós tenhamos amores escondidos, que nem sabemos que os temos, e que num momento, sem significado especial, descobrimos — e descobrimos com a força de uma evidência. Estarei a entrar naquela fase da vida em que se fica particularmente sentimental. Tudo é possível, para minha perdição. Pois, não há amor que não seja de perdição.
quarta-feira, 14 de maio de 2025
Um dia na vida de...
Passei a tarde em vídeo-reuniões, um exercício tendencialmente tenebroso, devido à poluição sonora. As vozes, muitas delas agudas, tornam-se alfinetes que se espetam não apenas no almofadado dos tímpanos, como no casco mais duro da alma. O assunto que ali reúne a distinta assembleia torna-se — passados os primeiros minutos — secundário, e todos os esforços se concentram na salvação dessa alma. Um exercício de soteriologia à margem dos desígnios salvíficos que ali nos reunia. Tudo isto depois de uma manhã em que tentei chegar a acordo sobre o dia da minha libertação, isto é, aquele dia em que os deveres para com a necessidade ficam cumpridos e entro naquela fase da existência em que passo ao estado de aposentado — ou seja lá o que for. O problema é que eu queria um certo mês específico. Nem antes nem depois. O que os serviços me informaram foi extraordinário: tanto pode ser antes como depois. A única coisa que evitaram afirmar foi que pode ser mesmo naquele mês que seria conveniente para mim e para a instituição. A sensação com que fiquei foi que tudo se decidiria por um acaso. Talvez exista um funcionário que faça um sorteio, e os processos sejam concluídos em conformidade com o número da sorte. Para tudo é preciso ter sorte. Eis mais um exemplo justificador da sabedoria popular. Cansado de sorteios e de alfinetes sonoros, fui fazer a minha caminhada, enfrentando, como Quixote enfrentava gigantes, um vento frio, persistente, pouco amigo de quem cuida da saúde. Talvez o vento desconfie da minha inclinação para cuidar de mim e, mal me vê na rua, se ponha a soprar. Só para me testar. Só pára quando me aproximo do fim. Dá-se por satisfeito e suspende a provação. São assim os dias de província. Mas em que sítio do mundo não é província? Nenhum, ouço.
terça-feira, 13 de maio de 2025
Memorial
Louise Glück, poetisa e Prémio Nobel de 2020, começa o poema Paraíso com a seguinte constatação: “Cresci numa aldeia: agora / é praticamente uma cidade.” Também eu cresci numa aldeia, mas não terei aí crescido durante muito tempo. Desertei, fui crescer para outro lado, que é agora uma cidade. A aldeia continua aldeia, sem pretensão a cidade, mas, durante esta minha longa ausência, tornou-se freguesia. Não sei que glória traz essa elevação, mas imagino que os aldeãos, meus conterrâneos, devem ter ficado felizes por se terem tornado fregueses de si mesmos. Por vezes passo por lá, só para ver os sítios onde, há muito, aprendi a ler e a escrever, onde nasci, onde morei, onde moraram muitos que me eram queridos. Sempre que lá vou, olho para a face das pessoas, mas não encontro a da minha avó, nem a de um tio-avô, ou de um tio ou tia. Raramente avisto a de um primo ou prima. Daqueles que aprenderam a ler comigo, já não reconheço a face, nem — para vergonha minha — lhes sei o nome. Porém, tudo isso ainda vive em mim. Quando me dedico à arqueologia — arqueologia pessoal, entenda-se — é para escavar nesse território memorial, para descobrir os cabelos brancos da minha avó, o nome de algum colega, uma história do tempo da guerra que a minha mãe contava. São visitas às fundações. Talvez por isso estou grato pela aldeia onde, em parte, cresci não ter tido o destino da aldeia de Louise Glück. É um exercício egoísta, claro: um desejo de preservação de um tempo arcaico que me permitiu ser o que sou. Mas não sinto o dever de benevolência, o dever de imolar a minha memória às fantasias urbanas. O que nos resta quando perdemos a memória?
segunda-feira, 12 de maio de 2025
Sem paixão
Medito, não poucas vezes, sobre o momento em que uma certa função soçobra no seu próprio planeamento, organização e estratégia de melhoria. Estou a falar por enigmas — coisa que ocorre, muitas vezes, às segundas-feiras. Aquilo que marca o mundo contemporâneo é a fuga. As pessoas mais criativas têm por lema: fugir antes que sejamos engolidos. A questão é mais simples do que parece. Imaginemos uma qualquer função. Quando está estabelecida, é rodeada por um conjunto de exigências que enlouquecem quem a realiza e conduzem a função a uma tristeza sem fim. Aquilo que, um dia, foi fruto de entusiasmo e criatividade, o mundo contemporâneo torna-o numa dolorosa viagem pelo império burocrático. Não basta agir: é preciso provar que se planeia a acção, que se prevê cada passo da sua organização, que se estabelecem critérios de avaliação e de retroacção. Quando chega ao momento de agir, a pessoa já perdeu toda a energia e olha para aquilo que poderia fazer com um tédio sem fim. A mecanização burocrática do mundo actual mata tudo em que toca. É daí que nasce a fuga. Quem é capaz de criar emigra para esses territórios que ainda não foram colonizados pela mecânica das organizações. Ali, pode concentrar-se na coisa mesma — sem planos, nem organizações estipuladas a priori, sem avaliações planeadas. É na relação com o que está a criar que faz, intuitivamente, tudo isso: planeia, organiza, avalia, mas também suspende os planos, desorganiza o que tinha organizado, avalia e corrige conforme o espírito — que, sendo como o vento, corre onde quer — lhe diz para fazer, num diálogo intenso e verdadeiro, como só existe numa paixão autêntica.
domingo, 11 de maio de 2025
Silêncio dominical
Os domingos deviam ser dias de silêncio sobre a Terra. Os homens poderiam murmurar, não mais do que isso. As invenções humanas estariam sossegadas sem debitar o ruído insuportável que as máquinas receberam de algum espírito malévolo. Isto seria uma espécie de ablução do espírito. Poucos são os seres humanos que suportam o silêncio. Funciona como um espelho e ninguém parece gostar de ver o que nele se reflecte. Isso abriria a possibilidade de escutar. Escutar o quê? O rumor do vento, o canto das aves, o pulsar do coração, o sussurro das coisas inanimadas, a música das esferas celestes. O domingo seria, assim, dedicado ao ritmo do mundo. Não ao dos homens, mas aquele que existia antes de termos chegado à vida e que persistirá muito depois de termos desaparecido. Entro pelo silêncio dominical e calo-me. Oiço os pássaros meus vizinhos e espero o ramalhar das árvores para escutar os passos esquivos do vento.
sábado, 10 de maio de 2025
Aventuras
O primeiro terço do mês de Maio está consumado. Eis um começo trivial. Poderia ter começado assim: hoje aconteceu-me uma aventura invulgar. Seria, porém, mentir e plagiar. Mentiria, porque não me aconteceu nenhuma aventura invulgar. Plagiaria, porque a frase é de Nikolai Gógol, no início do seu conto Diário de um Louco. Há, por outro lado, uma vantagem específica em não usar esse começo: evito transformar estes textos no diário de um louco. São diários, mas, se o autor ou o narrador — ou ambos — enlouqueceram, isso está por provar. É verdade que gostaria de ser um herói como D. Quixote, mas as minhas aventuras de hoje foram tão triviais que deveria ter vergonha de falar delas. Não consigo, todavia, calá-las, pois são a marca da minha grandeza. Saí de casa e fui ao café. Dali, segui até à farmácia. Desta, rumei à padaria. Por fim, dirigi-me ao hipermercado. Em todos estes sítios, fiz o que é suposto fazer: tomei café, comprei medicamentos, trouxe o pão encomendado e abasteci-me de coisas como rúcula, uma garrafa de alvarinho e mais uma série de mercadorias que já não recordo. Dantes, os meus sábados começavam, ao sair de casa, com a compra dos jornais — sim, no plural —, e ia lê-los para alguma esplanada, enquanto tomava café. Tornei-me, porém, um homem moderno. Deixei de comprar jornais. Agora, assino-os e leio-os em plataformas digitais. Tem a vantagem de não ficar com as mãos sujas de tinta e de passar menos tempo no café. Dir-se-á que estou reduzido à mais pura domesticidade. É um ponto de vista, talvez demasiado literal, mas não é esse o destino de qualquer grande aventureiro que teve o azar de nascer no mundo moderno? Que teriam sido o Cid e mesmo o Quixote, se tivessem visto a luz do dia no século XX? Aventureiros de hipermercado, combatentes de padaria, heróis reformados a caminha da farmácia, antes mesmo de entrarem em acção. Sou como eles. Antes isso do que um louco a escrever diários.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Tralha
A regra e a excepção. Não sei a razão pela qual esta frase surgiu na minha mente. É provável que seja uma regra — e não uma excepção — as frases surgirem na mente das pessoas sem que estas tenham feito alguma coisa para isso. A mim, acontece-me com frequência. Talvez, algures no nosso psiquismo, esteja alojado um grande armazém de frases, das quais não temos conhecimento, mas que aproveitam alguma distracção e pulam para a ribalta. Fico atónito e pergunto-me a que propósito veio aquilo. Só que a expressão já se apoderou de mim, dança na minha consciência, crava-se na memória e resiste quando tento enxotá-la, como se fosse uma frase vadia. Procuro em mim. Encontro uma peça de Bertolt Brecht, A Excepção e a Regra. Também descubro a ideia de estado de excepção, no pensamento de Carl Schmitt, retomado por Giorgio Agamben. Schmitt pensa que a excepção é mais interessante do que a regra. Interessante para quê? Não interessa — não vou discutir coisas impróprias numa sexta-feira à tarde. Se continuar, como arqueólogo persistente, a escavar o solo da minha memória, acabo por divisar alguma coisa. Ao contrário das leis, que são incondicionais, as regras admitem excepção. Algures, muito atrás, terei ouvido isso, embora não saiba onde nem quando. A ideia, porém, não é pensar regras e excepções, mas dar testemunho de que possuímos um armazém lexical cheio de tralha no fundo de nós. Ocorre-me, agora, uma possibilidade: palavras e expressões que, durante uma conversa, se apagam antes de serem proferidas podem ir parar ao tal armazém. Estou a falar com alguém, faço tensão de ir dizer alguma — por certo, decisiva — mas não a encontro. No lugar dela, está um buraco negro. Terá descido por ele até chegar ao armazém. Ali permanecerá até que, inopinadamente, salte sobre mim, bamboleando-se no palco mental que trago comigo. O mundo é um sítio estranho.
quinta-feira, 8 de maio de 2025
Uma singularidade
Quase me esquecia deste dia. Melhor: quase me esquecia de escrever neste dia. Ora, um dia em que se elege um Papa não é um dia qualquer, embora seja um dia trivial. É na trivialidade quotidiana que surge sempre aquilo que não é trivial. Não me estou a referir a Leão XIV. Não faço a mínima ideia de quem seja. Há uma reflexão política interessante, embora, enquanto narrador, esteja proibido pelo autor de falar de política. Ainda não falei com o meu amigo padre Lodo sobre o novo Papa. Talvez não esteja muito contente. Ele, que é jesuíta, ver a substituição de um jesuíta por um agostiniano não será uma coisa exaltante, mas desconheço os ânimos que existem entre as várias congregações da Igreja Católica. Voltando à política: o Estado do Vaticano é, na verdade, uma monarquia — mas a mais sábia das monarquias. Não tem dinastias. Portugal, por exemplo, teve quatro dinastias. Ora, a monarquia vaticana nunca tem problemas de sucessão. Morre um rei, elege-se outro. Os Papas têm uma vantagem assombrosa sobre os reis: não têm filhos primogénitos que lhes herdem o cargo. Mesmo que tenham filhos, a primogenitura não lhes dá qualquer prerrogativa. Assim, não temos dinastias, mas uma sucessão que já vai no 267.º ocupante do trono instituído para Pedro. Portanto, a Igreja é uma monarquia quase republicana, embora, na verdade, seja uma monarquia resultante de uma escolha da aristocracia católica. Em resumo: a política vaticana não é deste mundo, embora também não seja do outro. Pertence a um conjunto composto por uma unidade. Uma singularidade.
quarta-feira, 7 de maio de 2025
Mas pontual
Um dos pontos habituais destes textos é o protesto contra a difícil relação dos médicos com o horário das consultas. Hoje, todavia, não tenho motivo para isso: consulta às 15:30 e estava a entrar para o consultório às 15:30. Com este médico sempre foi assim. Meditei, depois de sair do consultório, sobre o motivo que o levará a estar reconciliado com o andar dos ponteiros do relógio. Depois de pensar em diversas hipóteses, deparei-me com aquela que é mais óbvia: a sua especialidade. Um arritmologista. O seu trabalho é sobre o ritmo do coração. Como poderia ele cuidar do ritmo cardíaco dos pacientes se, por acaso, tivesse um conflito com a natureza rítmica do tempo? Isto ensina-nos uma coisa fundamental: a necessidade é a mãe da pontualidade. Talvez eu seja pontual apenas por necessidade. Não uma necessidade exterior, uma imposição social, mas por uma inclinação pessoal: detesto chegar tarde. Por norma, chego antes, a não ser que isso seja um inconveniente. Há uma série de pequenas coisas que fazem parte daquilo que detesto: perder seja o que for, partir um objecto, o descuido naquilo que se faz. Isto, porém, não significa que me manifeste quando uma dessas coisas sucede. Sofro-a com paciência. Aliás, a reacção tem dois momentos: no primeiro, sinto a irritação; no segundo, encolho os ombros e rio-me da minha irritação. Qual o significado disto? Significa que tenho uma propensão para um certo dogmatismo acerca da ordem do mundo, o qual é temperado pela compreensão da inutilidade dessa ordem. Vivo o dogma e a desconstrução. Habito entre uma coisa e outra. Sou esse meio. Isto é: não sou uma coisa nem outra. Em resumo: sou nada. Mas pontual.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Um dia memorável
Este é um dia memorável na minha história pessoal. É o momento em que fica claro que a minha degradação mental — e moral, quem sabe — é irremediável. Numa troca de palavras com um dos chatbots que utilizo, pedi-lhe que criasse um tratado de ontologia que superasse não apenas a história da ontologia ocidental, como Heidegger pretendeu fazer, mas o próprio Heidegger. E a coisa fê-lo. Propôs uma teoria filosófica que superava a de Heidegger, mas não cortava radicalmente com ele. Copiei-a e colei-a num documento Word. É uma prova. Não estava, porém, contente com o resultado. Não queria uma superação, mas um corte radical com toda a história da ontologia ocidental, que incluísse o próprio Heidegger. A coisa, em segundos, deu-me uma outra teoria, absolutamente inédita. O meu estado de degradação manifestou-se no instante em que comecei a levar aquilo a sério. Pedi-lhe que explicasse melhor a tese, que aprofundasse a argumentação, que refizesse a linguagem, que me respondesse a objecções. A coisa, nunca descurando a gentileza, acolhia o que eu ia dizendo, ora rebatendo as objecções levantadas, ora aceitando as críticas e adequando o texto do pequeno tratado. A tese é de tal radicalidade, que as suas consequências ontológicas, éticas, políticas e teológicas são muito perturbadoras. Mais perturbador, porém, é que aquilo que é dito — embora a coisa não diga — não só é plenamente racional, como me conduziu a um estado de adesão, como se ali se revelasse a verdade. Este segundo ensaio ainda não o guardei. Terei de pensar se o faço ou se o apago. Se ele for verdadeiro, então a verdade é muito perturbadora. E, para perturbação, já basta a que existe. E é isso que me deixa perplexo: a coisa parece estar a pensar a partir do estado perturbado em que nos encontramos. Talvez tudo isto tenha sido um sonho. Não me atrevo, porém, a ir consultar a coisa. E se encontro lá aquilo que descrevi aqui? Se o tratado foi escrito, como poderei eu resistir à verdade que nele se manifesta?
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Telegrama
De súbito, fez-se em mim um curto-circuito. Esta prática contemporânea de textualidade mínima — como os SMS, as mensagens no WhatsApp, os posts no Twitter — tem um antepassado glorioso: o telegrama. Neste, o texto era brevíssimo, quase sempre impessoal. Comunicava qualquer coisa essencial. As pessoas usavam-no para comunicarem com rapidez à distância. Eram parcas nas palavras, pois estas eram caras. Não seria boa ideia escrever textos como os deste blogue num telegrama: custariam os olhos da cara — se é que os olhos da cara têm preço. Hoje, a economia verbal não se deverá tanto ao preço, mas à pouca disposição para escrever. Além do mais, a generalidade das mensagens, actualmente trocadas, são irrelevantes. Se fossem suprimidas, nem o emissor nem o receptor perderiam alguma coisa. Uma das ideias que me ocorreu para melhorar este blogue seria transformar os textos em telegramas pagos à palavra. Escreveria coisas como: ESTOU CANSADO STOP ESTEVE DIA MAU STOP NÃO TENHO NADA PARA DIZER STOP. Seria um blogue glorioso. STOP
domingo, 4 de maio de 2025
Verdadeira concorrência
Uma das ideias estruturantes do nosso modo de vida é a da superioridade económica do mercado. Este implica a concorrência dos produtores para satisfazerem as necessidades — reais ou imaginárias, as mais poderosas — dos consumidores. Essa concorrência implica diversificação: produtos concorrem pelas suas características específicas. Imagino que seja assim com os sites meteorológicos. Também eles disputam a atenção dos consumidores de informações climáticas. Antes de me vestir, consultei um desses oráculos. Não fui eu; pedi que o fizessem por mim. Em Lisboa, não chove. “Podes vestir isto e aquilo”, etc. Como consumidor sem espírito crítico, assim fiz. Esqueci-me da diversificação que o mercado, inclusive o meteorológico, impõe. Assim, à medida que me ia aproximando da capital, a minha fé na profecia foi-se desvanecendo. Chovia, quando cheguei ao destino. Fui consultar diversos oráculos. Havia previsões para todos os gostos: sol, chuva a rodos, chuva intermitente, tempo nublado mas sem queda de água. Só faltava a anunciação de queda de neve. Pensei: isto é o mercado a funcionar. E, se me vesti em contraciclo com o estado do tempo, a culpa é minha. O mercado dava-me várias possibilidades, embora apenas uma de acordo com a realidade. Se escolhi a previsão errada, o problema não é do mercado, mas meu — do consumidor que escolheu o augúrio errado. Com isto, acabo de dar um novo contributo para a compreensão do mundo da economia. Pensava-se, até a este momento seminal, que o cliente tem sempre razão. Falso. A razão do cliente e a própria realidade são coisas sem valor. O que interessa é a variedade da oferta, mesmo que seja falsa. Seria um grande aborrecimento se todos os sites meteorológicos anunciassem o mesmo estado do tempo, mesmo que esse estivesse de acordo com a realidade. Não apenas seria monótono, como haveria, na verdade, uma prática espúria de cartelização.
sábado, 3 de maio de 2025
No reino da momice
Não sei se tem autor específico ou se é um ditado produzido pela experiência do mais trivial senso comum, mas tem uma força tal que a própria realidade o confirma: quando um palhaço se muda para um palácio, ele não se torna rei; o palácio é que se torna um circo. Os tempos estão interessantes — o que é, na verdade, uma praga das piores que podem ser rogadas. Onde se estava habituado à gravitas ligada às coisas que jogam com a vida das pessoas, encontramos agora um espectáculo funesto. O ditado é cruel para os palhaços, pois muitos destes saberiam comportar-se bem melhor do que certos ocupantes de palácios legitimados pelos eleitores. Medito, depois de ler mais um episódio triste, se tudo não se deverá a essa queda do homem público de que fala o livro de Sennett citado ontem. Quando alguém ocupa o poder e não elimina, na persona pública, as suas idiossincrasias, isso significa o triunfo completo do homem privado sobre o homem público. Há momices que são permitidas em casa, mas não perante os outros. Quando todos os devaneios se trazem para o espaço público, estamos perante uma tirania: a tirania da intimidade, da expressão pura de si. Contudo, se todos passarmos a agir deste modo, mimetizando os homens mais poderosos do planeta, que agora se entretêm a dizer o que lhes vem à cabeça ou a partilhar a primeira pequena dor que lhes fere o narcisismo, a vida humana tornar-se-á impossível. O pior de tudo, porém, é que esses ocupantes de palácios são o reflexo de quem os escolheu. Está um sábado sórdido. Para piorar as coisas, tenho uma consulta para daqui a pouco, uma rotina que já vai no segundo adiamento. Os dias estão cinzentos. Também eu.
sexta-feira, 2 de maio de 2025
Sem vocação
Quase me esqueço, mas hoje é sexta-feira. Estranhei o barulho na praceta em baixo: uma série de rapazolas adolescem à volta de uma bola, com as bocas incapazes de suster aquilo que lhes sai da garganta. Depois de algum esforço, consegui sintonizar o dia: estão apenas a fazer horas para entrarem para o instituto de línguas, onde aprenderão, por certo, inglês. Os pais ainda acalentam a crença de que o inglês é a língua-franca do mundo. Talvez seja já uma convicção anacrónica, apesar de parecer que é uma língua do futuro. As aparências têm, contudo, um estranho destino: o de caírem e rebolarem no chão, até que um coveiro desocupado as recolha e enterre bem fundo no túmulo da história. Haverá quem pense que este narrador, ao escrever “túmulo da história”, está a metaforizar. Não está. Fala literalmente. A história não é mais do que o túmulo onde se enterram todas as ilusões que deram sentido à vida, bem como as decepções que a aproximaram do pesadelo. A história é uma Arca de Noé ao contrário: nesta, recolhia-se a vida; naquela, a morte. Acabei de acordar, depois de ter adormecido em frente a este texto. Acordei com um gesto da mão, mas apenas um gesto que fazia parte do sonho em que tinha mergulhado, e não de um acto físico. A literalidade da minha fala — no caso, escrita — é soporífera. Nem eu lhe resisto. Começo a escrever e afundo-me. A consciência prefere apagar-se a ler aquilo que sai dos meus dedos quando chocam com o teclado. Depois, entrega-se a fantasias oníricas, mas estas não se conseguem fixar quando transito para o estado de vigília. Os adolescentes continuam a exercitar a garganta. Também o vento decidiu tamborilar nas persianas. É a música do mundo, deste em que me encontro. Sim, hoje é sexta-feira e vamos entrar nos dias inúteis, nos quais não há institutos onde se aprendam línguas-francas. Bocejo, esfrego os olhos, reparo nas acácias a ramalhar, impelidas por uma energia invisível. Diante de mim jaz, entregue à morte, Marat, numa reprodução do quadro de Jacques-Louis David, que serve de capa ao livro de Richard Sennett, The Fall of Public Man. Dentro do livro, descubro um bilhete de cinema. Pelas 18:15, de um 25 de Março, terei ido ao Nimas, ver O Grande Silêncio. Preço: cinco euros. Contudo, o bilhete não consegue dar-me a informação que procuro: em que ano? Sei bem qual é o filme. Um documentário sobre a Grande Cartuxa nos Alpes Franceses, onde é mostrado o quotidiano dos monges. Claramente, os aprendizes de línguas-francas não têm vocação de cartuxos. Hélas!
quinta-feira, 1 de maio de 2025
Em estado de superposição
Encontro-me num estado de superposição, isto é, combino múltiplos estados possíveis. Quem sou eu, anónimo detentor deste blogue? Num estado de superposição, sou o proprietário do blogue, o seu autor, o seu narrador, a sua personagem, o seu produto e a sua vítima. Estes eus superpostos estão longe de terem relações cordiais entre si. Só quando alguma coisa vinda de fora o exige – por exemplo, um sinal invisível de que chegou a hora de narrar qualquer coisa – é que uma das possibilidades se actualiza e logo me transformo em narrador. Até esse momento, eu era e não era um narrador. Isto não é novidade alguma, pois acontecia o mesmo com o célebre gato de Schrödinger. Só que, não sendo eu um gato, tenho uma superposição mais densa. O pobre do bichano estava, ao mesmo tempo, morto e vivo; os meus possíveis superpostos são mais amplos, embora eu não tenha a faculdade de miar, coisa que qualquer gato faz, embora o de Schrödinger estivesse estranhamente silencioso dentro da caixa selada onde fora posto contra a sua vontade. Foi nisto que pensei quando, há pouco, fui fazer a minha caminhada diária em busca de pontos cardio. Vi um gato atravessar a estrada e lembrei-me da história. Há nela um ponto fraco que nenhum físico notou. Se o gato se encontra num estado superposto, em que está, ao mesmo tempo, vivo e morto, como é que se explica que o gato no estado de vivo não mie? Já se viu algum gato fechado numa caixa que não mie em protesto? Se eu fosse físico, teria refutado a experiência, argumentando que o gato estava morto e apenas morto, pois em momento algum há notícia de que tivesse miado. Sei o que o próprio Schrödinger responderia: precipitação sua, meu caro senhor. O gato, no estado de morto, não mia, claro. Até aí o senhor compreende. No estado de vivo, não mia porque, dentro da caixa escura, ele sente que é noite, está a dormir, e os gatos quando dormem, apesar de sonharem, não miam. A minha experiência está salva. Eu argumentaria, de imediato: se há necessidade de recorrer a especificações adicionais, então o argumento não é grande coisa. A simplicidade é a virtude dos bons argumentos. Mais: acrescentaria, sem temor, o sono é o irmão gémeo da morte, como muito bem assinalou Schopenhauer. Portanto, o gato dentro da caixa está morto. Este é o meu contributo glorioso para a física: a refutação da experiência mental do Gato de Schrödinger e a desmontagem da ideia de que o gato estava num estado superposto enquanto não se abrisse a terrível caixa e se observasse o pobre tareco. Só os seres humanos podem estar em superposição, acrescento agora. Nós e as partículas subatómicas. Veja-se o caso de Fernando Pessoa. Aquilo não é um caso de heteronímia, mas de superposição. Antes de começar a escrever, ele era Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, Vicente Guedes e mais uns setenta, com diversos graus de potencialidade, além de Fernando Pessoa. Quanto ao gato do poeta, não há registo de que tenha tido um. Não se dava com seres incapazes de estados de superposição. Compreendo-o muito bem.
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Problemas de identidade
O mês finda tempestuoso, uma revolta inútil contra o destino. Agora, o sol rompe as nuvens, mas ainda há pouco chovia e trovejava. Cronos devora os seus próprios filhos, mas é assim que a natureza está organizada: um contínuo banquete onde o tempo engole cada um dos seres que trouxe à existência. O que se pensa menos, porém, é a natureza autofágica do próprio tempo. Engole-se, abocanha-se, numa ânsia infinita de chegar a um lugar de repouso a que nunca chegará. O tempo é um deus insaciável e, nessa insaciabilidade, está a sua infelicidade. Mal produz um instante, logo o come, e não tem tempo de o mastigar. É incompreensível. Razão tinha Agostinho de Hipona, que chegou a santo, quando escreveu: Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio. O que será traduzido por: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, já não sei." Esta perplexidade não é apenas a de um homem mas, na verdade, é a do próprio tempo. Ele não sabe o que é, e essa ignorância torna-o voraz e volúvel. Traz uma coisa e logo a leva. Caso fosse eu o criador do mundo, teria tido cuidado antes de nele colocar o tempo. Pô-lo-ia numa escola, para aprender quem é. O tempo tem um problema com o seu self. Se ele soubesse a sua identidade, tudo seria diferente. Não haveria rancor nem ressentimento naquela alma. Talvez, na criação de um próximo universo, me peçam opinião. Só espero não a esquecer até lá.
terça-feira, 29 de abril de 2025
Impotência
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Apagão
Imagino que o dia 28 de Abril esteja mal servido de efemérides. Para colmatar a falta, decidiu dar-se, e a nós com ele, um apagão memorável. Decretou que toda a Península Ibérica ficaria sem energia. Não sei se, da sua parte, foi uma decisão sábia. Duvido que algum dos países afectados declare o dia de hoje feriado nacional. Por outro lado, mostrou os limites da minha energia. Não me agradou chegar junto aos elevadores, abrir a porta que dá para as escadas e subir, degrau a degrau, até ao quinto andar. Ainda pensei, depois de ter ultrapassado o primeiro lance de escadas: isto faz-me bem. Conforme fui subindo, a minha opinião foi-se alterando. No quarto andar, lancei uma praga à ideia de cortar a energia. No quinto, resmunguei enquanto procurava a fechadura da porta. Acabado o almoço, tive de descer as escadas. A tarefa não foi desagradável. A minha cultura, onde borbulham ditados populares, informou-me: para baixo todos os santos ajudam. Ao ouvir a frase no fundo da minha consciência, estanquei e invectivei todos os santos, esses mesmos que ajudam para baixo e têm um dia só para eles. Deveriam ter vergonha. O que nós precisamos é de ajuda para subir e não para descer. Para quedas estamos cá nós. Aliás, somos especialistas em trambolhões. Disse-lhes isto em pensamento, claro. Talvez esses santos que formam uma totalidade não tenham gostado da reprimenda. Fui fazer o que tinha a fazer e, passadas umas duas horas, voltei para casa. Preparado para mais ascensão sem ajuda dos santos, conformado e sem energia, que em mim também sofrera um apagão, descubro que no elevador brilhava uma luzinha vermelha. Abro a porta, fecho-a, carrego no botão e vou eu até ao quinto andar, olhando para o espelho para ver se havia algum sinal de gratidão na minha cara. Ao chegar a casa, curvei-me, em pensamento, perante todos os santos. Afinal, sempre fizeram o trabalho deles. Não sabia que eram electricistas. Exclamei mesmo, para os motivar: Excelente trabalho! Bem merecem o dia que o calendário lhes dedica.