quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Perder o pé

Dois versos de Rilke: Es tauchen tausend Theologen / in deines Namens alte Nacht. A tradutora portuguesa – Maria Teresa Furtado Dias – verteu assim: Mil teólogos mergulharam / na antiga noite do teu nome. Talvez fosse preferível traduzir tauchen por afundaram-se, não porque a tradução esteja incorrecta, mas porque estaria mais perto da realidade. Mais do que mergulhar na antiga noite do nome de Deus, os teólogos afundam-se, perdem o pé, andam à deriva naquele lago feito de uma noite antiga, a mais antiga das noites. Contudo, foi Rilke que escolheu tauchen e a tradutora tentou evitar a traição. Mesmo contra Rilke, prefiro a ideia de que os teólogos se afundam, pois o mar onde entram é feito de uma água que não é própria ao logos que cada teólogo transporta no nome da sua ocupação e no espírito com que entram nela. 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Azares

Deixei passar a tarde como água que se esvai entre os dedos. A imagem não é extraordinária e muito menos inédita. Talvez devesse ser acusado de plágio. Contudo, tenho uma teoria sobre o plágio e os plagiadores. O facto de usarmos palavras que foram criadas muito antes de sabermos falar é um exercício de plágio. Para designarmos uma laranja dizemos a palavra laranja roubada sabe-se lá a quem. Só não haveria plágio se inventássemos todas as palavras que usamos. Isso conduziria a uma cacofonia universal e a uma radical incomunicabilidade. Conclusão: o plágio é a condição de possibilidade da comunicação humana. Quanto mais plagiamos, melhor comunicamos. Há ainda o problema dos plagiadores, aqueles que são censurados moralmente e, talvez, juridicamente. Esses, em vez de censura, merecem piedade. Porquê? Porque têm um grande azar. Eu uso laranja, mesa, intervalo, tudo palavras que plagiei, mas ninguém me censura. Ora, os pobres plagiadores sofrem de falta de sorte. Imaginemos que alguém, numa tese de doutoramento, tem toda a tese ou parte substancial dela igual a uma outra que foi escrita antes por outra pessoa. O plagiador consegue um feito notável: escreve as mesmas palavras e na mesma ordem que o plagiado. Querem azar maior? Uma pessoa senta-se para escrever e, na sua inocência, escreve um texto exactamente — nos casos mais radicalmente azarados — igual a um outro que já existia. Com tantas combinações de palavras possíveis, é preciso mesmo grande falta de sorte para sair um texto igual, mas essas coisas acontecem. Todos conhecemos pessoas que têm azar. Ainda há pouco, ao passar por um canal desportivo, vi uma guarda-redes — era um jogo de futebol feminino — deixar escapar uma bola das mãos, vê-la passar sorrateira entre as pernas e entrar vagarosamente na baliza. Um azar. Acontece o mesmo com os plagiadores: deixam passar, por entre as mãos, as palavras organizadas por outros, e estas caem no seu texto.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Meia efeméride

Efeméride. Chegou-se ao meio de Setembro. Então, não é uma efeméride, mas apenas meia efeméride. Concordo, pois hoje estou virado para a concórdia, mas não tanto para a concordância, o que é um perigo para quem escreve, ainda que coisas sem sentido. Não convém exagerar, e há que assegurar, por exemplo, a concordância entre sujeito e predicado. Discutível, oiço-me dizer. Imagine-se a frase: Ela corremos todos os dias. Uma frase lamentável, onde o sujeito não concorda em pessoa e número com o verbo. Contudo, a frase pode ser lida de modo mais fundo, percebendo-se que o eu está subentendido: ela (e eu) corremos todos os dias. As regras gramaticais são impotentes para dar conta do uso da língua, pois é tão importante o que se explicita como o que se cala. Podemos imaginar que o eu tem prazer em correr com ela, mas pretende guardar segredo linguístico. A sua omissão no sujeito é uma máscara, mas o verbo na primeira pessoa do plural é uma pista para quem queira descobrir com quem ela corre. O verbo “correr”, na expressão “correr com ela”, é ingrato: pode significar que eu e ela nos deslocamos juntos com rapidez superior à marcha, mas também que o eu corre com ela, a expulsa, a põe a milhas. Também é plausível que seja ela a correr com o eu, mas aqui entra-se no domínio da ascese: ela liberta-se do seu eu na busca de realização do self. Esta foi a minha comemoração da efeméride – ou meia efeméride – de 15 de Setembro. Amanhã será 16, e a temperatura disparará.

sábado, 13 de setembro de 2025

Uma alegoria

Diante de mim tenho um pequeno romance de Hermann Hesse. Há muitas décadas, li várias obras do autor alemão. Li-as com verdadeiro prazer: desde Siddartha até a O Jogo das Contas de Vidro, passando por O Lobo das Estepes ou Narciso e Goldmundo. Por volta dos trinta, tentei voltar ao autor, mas, ao fim de algumas páginas, abandonava enfastiado a obra. Vou tentar de novo: começo com o primeiro romance, Peter Camenzind, que nunca li. Se conseguir ler a obra romanesca de Hesse, então sei que estou já num processo de regressão. Ficarei a aguardar o momento em que procurarei as edições antigas da Romano Torres das Aventuras de Pinóquio, tendo antes passado por Enid Blyton e por outros autores que não vêm agora ao caso, sem esquecer as aventuras de Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o famoso Major Alvega da colecção Falcão. Do Pinóquio aos grandes autores da literatura universal, e retorno à casa da partida: eis uma alegoria sobre as limitações do mito do progresso.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Meditação

A semana útil termina hoje, mas para mim a utilidade desvaneceu-se. Entrei pela casa da inutilidade e estou nela como quem está numa casa de repouso, embora não saiba que tipo de casa é esta, pois nunca me repousei por lá. Talvez já não existam casas de repouso. Há estabelecimentos – ou designações de estabelecimentos – que o tempo, com os seus dentes aguçados, devorou. Uma dessas designações desaparecidas é a de casa de pasto. Não havia vila ou cidade que não tivesse a sua casa de pasto. Depois, sem me darem qualquer explicação, desapareceram. Seriam uma solução intermédia entre a taberna e o restaurante, um lugar onde se comia barato. Hoje, os portugueses já não têm onde pastar, mas também os seus gostos começam nos restaurantes com estrelas Michelin e terminam sabe-se lá onde. Estou a cometer uma falácia, a da generalização precipitada, mas este é um tempo de falácias. Quanto mais falácias um indivíduo mobilizar nas suas arengas, e quantas mais mentiras contar, mais digno de crédito se torna no auditório universal. Universal referente aos portugueses. Não é que os outros auditórios sejam diferentes, mas conheço melhor o nacional. E este é o que é. Não há nada que uma boa tautologia não resolva, e «é o que é» será a melhor de todas as tautologias. Em vez de explicar, afirma a existência. E se existe, então não precisa de explicação ou de justificação. Isto recordou-me uma antiga idiossincrasia pátria coeva das casas de pasto. Para certos – e não seriam poucos – assuntos de ordem burocrático-legal, não bastava o bilhete de identidade: era preciso uma certidão de nascimento passada no registo civil. A medida justificava-se plenamente, não fosse o portador do bilhete de identidade estar ali e não ter nascido. Era uma coisa frequente, naqueles dias, andarem por aí pessoas que, apesar de devidamente identificadas, não tinham nascido. Eram os chamados vivos não nascidos. Hoje, o Estado português já não se importa que possam existir pessoas que não tenham nascido: deixa-as andar por aí e não exige certidão de nascimento. Se se descobre algum cidadão não nascido, é obrigado a pagar uma coima, pois ninguém imagina como seria possível obrigar a nascer alguém que existe mas não nasceu. A coima é mais sensata e rentável. Perdi-me na meditação. Vou repousar e, depois, procurar uma casa de pasto.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

O filho do sapateiro

Ontem referi o estranho caso de Manuel Ribeiro. Protelei na revelação da sua estranheza. Nasceu em 1878, em Albernoa, filho de um sapateiro, e morreu em 1941. Por norma, conta-se que foi um dos fundadores do Partido Comunista Português e que, posteriormente, se converteu ao cristianismo. Ora, a história é mais complexa. É um facto que foi eleito, em 1920, para a comissão organizadora do Partido Comunista. Em 1921, foi eleito para a Junta Nacional do Partido e, imagine-se, foi enviado a Moscovo, ao III Congresso do Comintern (Internacional Comunista), como delegado da Secção Portuguesa. Antes disso, tinha escrito no jornal anarquista A Batalha e fora secretário da Comissão Executiva da Federação Maximalista Portuguesa e director do jornal A Bandeira Vermelha. A lista da sua actividade revolucionária é maior, incluindo o sindicalismo revolucionário. É provável que seja após 1921 que ele se desliga deste mundo, mas a sua atracção pelo cristianismo e pela vida espiritual católica é bem anterior. Em 1920, publica o romance A Catedral, onde é muito clara essa aproximação. No ano de 1916, publica no jornal A Capital artigos sobre literatura monástica. A estranheza reside nesta dupla atracção – pelos valores do cristianismo e pelos ideais revolucionários – num tempo em que a adesão a uns implicava a negação dos outros. Quem ler A Catedral, sem saber estes traços biográficos, nunca imaginará que o autor é um dos fundadores do Partido Comunista Português, que também é um estranho caso, e que, de algum modo, se liga a Manuel Ribeiro. Enquanto a generalidade dos partidos comunistas nasceu de cisões nos partidos sociais-democratas, o português nasceu a partir de um grupo de anarquistas, como o terá sido Manuel Ribeiro. Se se deixar de lado a espuma dos dias, o caso de Manuel Ribeiro deixa de ser estranho. Os credos anarquista e comunista são laicizações do credo cristão, devendo-lhe muitas das suas ideias. Manuel Ribeiro terá pressentido isso. Descobriu, porém, que o original era preferível aos sucedâneos – simulacros poderá ser o termo mais exacto – e abandonou a ideia de um paraíso na Terra. É pena que já não seja lido. Também é verdade que um leitor actual teria de o ler com um dicionário à mão, tal a riqueza do vocabulário deste filho de um sapateiro.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Uma visita a Lisboa

Chegado hoje a casa, em fuga do mau tempo na Figueira, encontro na caixa do correio um livro que tinha comprado num alfarrabista online. Não se trata, na realidade, de um verdadeiro livro, tal como o imaginamos, mas de uma brochura, de pouco mais de trinta páginas. Foi publicada em 1922 e contém uma novela de Manuel Ribeiro, A Madona do Convento. Faz parte de uma colecção lançada pela revista mensal Contemporânea, que parece ter tido notoriedade naqueles anos. Talvez um dia, caso me lembre, escreva sobre o estranho caso de Manuel Ribeiro. A brochura apresenta na capa a identificação do comprador. Um certo António, cujo apelido omito, apesar de explícito, comprou-a em 1923. Custou, segundo a indicação da badana da capa, um escudo, o preço de qualquer uma das novelas da colecção lançada pela revista. Do proprietário, não consigo descobrir mais nada. Terá lido a novela? Nada há que permite dizer que sim ou que não. Descobrem-se, porém, coisas interessantes. Há uma lista de autores de novelas e nessa lista, de acordo com uma prática antiga, os licenciados surgem com o título de dr. no nome. Por exemplo, a novela número 2 é do Dr. Feliciano Santos. Descubro, também, que o melhor chocolate é o da Leitaria Portugália, na Rua do Ouro, que também tem a melhor doçaria regional. Por outro lado, se alguém quisesse mandar imprimir livros de luxo ou revistas ilustradas, podia ia à Imprensa Libânio da Silva, na Travessa do Fala-Só. E fotogravuras? Na Fotogravura Nacional Ld.ª, na Rua da Rosa. Se  o problema era comprar um relógio ou um anel, uma jóia, na Praça dos Restauradores, Júlio Rei, Ld.ª seria um destino a ponderar. Contudo, se o problema era barbear-se ou tratar das unhas, o Salão Modelo de Pereira & Brio esperava o cliente no número 94 da Rua dos Fanqueiros. Isto no ano de 1922, há 103 anos. E também se descobre onde era a sede da Contemporânea. No segundo andar do 53 da Rua Nova do Almada. Lisboa era pequena, os portugueses eram, em grande percentagem analfabetos, mas os romances de Manuel Ribeiro – tanto A Catedral como  O Deserto – já iam na terceira edição, o equivalente a oito milhares. E o que trata a novela? De uma Madona, claro.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Outros mundos

Procurei, durante o dia, um poema que fosse pequeno e que nele contivesse uma porta para outro mundo. Encontrei-o há pouco, de Emily Dickinson: Uma sépala, uma pétala e um espinho / Numa vulgar manhã de Verão — / Um frasco de Orvalho — uma ou duas Abelhas — / Uma Aragem — um volteio nas árvores — / E sou uma Rosa! Mas este não será o nosso mundo? Claro que não. Este é o mundo onde o sujeito do poema – como é insuportável a expressão sujeito lírico – é um ser do mundo vegetal. Entramos nele e vemos rosas que não as nossas rosas, mas seres dotados de consciência, pensamento e linguagem. Não são mudas nem surdas, e não estão presas ao solo. Pelo contrário, caminham e voam, talvez nadem, mas não tive tempo de averiguar. A estadia nesse lugar é excessivamente cara, alguns minutos ainda se podem comprar, mas há que ter cuidado para não se ficar falido para o resto da vida. De resto, a contabilidade sempre teve um contencioso com a poesia e ainda mais com a poesia dos mundos possíveis. Vi o que me foi possível e paguei o que pude. Agora, estou sentado no quarto de hotel, olho o mar e recito baixo o poema da Dickinson. Espero uma rosa, ou uma Emily, ou uma poetisa vinda de um outro mundo possível.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Coincidência

Sentado na varanda do hotel, olho o mar. Este, porém, está longe, pois o areal parece não ter fim. A nortada agita o arvoredo, fustiga as bandeiras que nunca faltam em lugares de veraneio, o sol hesita entre o vigor de Junho e o cansaço de Novembro. Imagino que um dos encantos da Figueira da Foz seja esse: uma promessa de oceano que parece retroceder a cada passo. Daqui a pouco irei caminhar, talvez me aproxime das águas, se os passadiços me levarem até lá. Respiro o ar marítimo trazido pelo vento, observo o movimento na marginal e penso que Setembro deixou de ser um dos meses de férias, apesar de ainda haver pessoas a fazer a grande travessia das areias até chegarem perto do mar. Hoje, sabe-se lá porquê, tenho-me lembrado dos tempos de escola, dessas férias grandes, tão grandes que só o Outono, e não de imediato, lhes punha fim. Gostava particularmente do mês de Setembro, mas não me lembro das razões. Talvez não as tivesse ou ainda não me preocupasse com elas. Gostava porque gostava, e isso era tudo. Coincidia comigo, na inocência que me cabia naqueles dias. Perde-se a inocência quando se descobre que não se coincide consigo mesmo ou, para ser mais exacto, quando a coincidência consigo se torna um projecto, ou uma doença, o que será a mesma coisa.

domingo, 7 de setembro de 2025

Tempo

Sem se dar por isso, a primeira semana de Setembro – sete dias exactos – está consumada. Faltam ainda umas horas, é certo, mas elas apressar-se-ão a esgotar-se. Talvez o tempo não exista. Para onde vão os dias que acabam? Nunca ninguém encontrou vestígio de nenhum. É certo que não é prova suficiente para negar a existência do tempo o facto de ninguém ter encontrado vestígios de um dia que passou; contudo, pode ser razão suficiente para tornar plausível a sua inexistência. Fomos habituados a pensar na existência do tempo. Esse hábito, todavia, não se deve a uma experiência real do tempo, mas à necessidade de ordenar a nossa existência. Transferiu-se uma crença utilitária para uma crença ontológica. Isto quer dizer: transformou-se a utilidade para os nossos negócios de ordenar as coisas em sequências – umas vêm antes de outras, outras acontecem em simultâneo e outras, depois – numa realidade a que se dá o nome de tempo, mas essa transformação é subjectiva e pode não corresponder a nada de efectivamente real. Não devia pensar nestas coisas ao domingo. É dia de descanso e o pensamento – por fútil e incompetente que seja – também precisa de sossego, mesmo que, durante o resto da semana, seja pouco dado ao trabalho. O dia, por aqui, nasceu chuvoso, mas agora debita uma luz açucarada que banha o telhado do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, que responde com uma reverberação anémica. Na avenida, os carros passam devagar, sem motivação para chegar a segunda-feira, enquanto os peões seguem a sua transumância habitual dos domingos. Caminham para aqui e para ali, sem destino, mas apenas porque é domingo e eles não sabem o que fazer com esse dia. Nem eu.

sábado, 6 de setembro de 2025

Hábitos

O sábado começou com uma ruptura com as rotinas ultimamente instaladas. Levantei-me demasiado tarde para ir caminhar. Portanto, a rotina ainda não é um verdadeiro hábito. Se o fosse, ter-me-ia levantado mais cedo, apesar das razões que tive para o não fazer. Aristóteles definiu o hábito como uma segunda natureza. Como muitas coisas que provêm de Aristóteles, também esta ideia deveria fazer parte do senso-comum da época. Ele registou-a, dando-lhe um relevo que, sem esse acto de registo, não existiria. Diante de mim tenho um livro publicado no final do século XVIII. Questiona duas coisas: o fundamento da autoridade e o dever de obediência. A resposta que o autor dá não vem para o caso, mas eu poderia dizer que ambos se devem ao hábito. Uns habituam-se a mandar e outros a obedecer. O que conduz a uma conclusão inesperada: não há uma humanidade, mas duas humanidades, a humanidade que manda e a humanidade que obedece. A pergunta que surge é se essas espécies, caso se cruzem, darão origem a um novo ser ou se esses eventuais cruzamentos serão estéreis. Imagino, mas imagino apenas, que ainda não serão completamente estéreis. As razões, porém, não são fundadas em dados empíricos, mas numa intuição. A educação daqueles que se habituaram a mandar destina-se a que os novos membros da espécie evitem cruzar-se com alguém que esteja habituado a obedecer. Seja como for, é muito possível — contam-se histórias — que existam híbridos, o que será sempre um problema, mais para quem pertence à espécie obediente do que para quem pertence à espécie mandante. A hibridação, caso seja verdade, mostra, porém, que a teoria aristotélica do hábito apresenta alguns problemas. Confesso que me falta assunto. Poderia falar do romance Ave do Paraíso, de Carlos Selvagem, mas nunca o li.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Caminhar

Começo, agora, os dias com uma caminhada. Saio ainda o ar da manhã está fresco e são poucas as pessoas em circulação. Se me atraso um pouco, porém, já encontro pais a deixarem crianças nos infantários e algum movimento perto dos cafés. Num dos parques da cidade, deparo-me todos os dias com um grupo de imigrantes vindos da Ásia, talvez do Paquistão, mas não sei. Estão divididos em duas equipas e jogam futsal, num campo para o efeito mas a céu aberto. É a sua preparação para o dia de trabalho. A forma como gritam durante o jogo é em tudo idêntica ao que fazem os portugueses, só que a letra é, para mim, incompreensível. Pela música que emana da disputa, porém, quase sei o que estão a dizer. Quando caminho ao anoitecer, também se joga no mesmo campo, mas agora é gente mais nova, em idade escolar, e muito misturada: portugueses, brasileiros, angolanos. Enquanto o jogo matinal é exclusivista, o vespertino é abrangente, pois não só alberga múltiplas nacionalidades – mas apenas uma língua – como existe sempre uma rapariga, por vezes duas, entre os jogadores, bem como um atleta de cadeira de rodas, que toma parte no jogo, umas vezes como guarda-redes, outras como jogador de campo. Enquanto caminho, deixo que a cidade invada os meus olhos e descubro-a sempre diferente, apesar da aparente imutabilidade com que ela se apresenta à razão. Este é o velho conflito entre Parménides e Heraclito: onde o primeiro vê a imutabilidade do ser, o segundo considera tudo em devir, um fluxo perpétuo. Enquanto caminho, sou os dois ao mesmo tempo. Os meus olhos são os de Heraclito; o pensamento, porém, está fidelizado – tal como um cliente a uma operadora de telecomunicações – a Parménides.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Descobertas tardias

Hoje passei pela Biblioteca Municipal. Descobri que ali havia a velha tradução de Paulo Quintela de Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke – sim, Rilke mais uma vez. Eu tenho uma outra tradução da obra, a de Maria Teresa Dias Furtado, para a Relógio d’Água. A do professor Paulo Quintela foi publicada pela Editorial Inova, do Porto. Percorro-lhe as páginas e irrito-me. Existem sublinhados e anotações nas margens. É certo que são feitos a lápis, mas o livro é público e o seu utilizador não tem o direito de o conspurcar com os seus pensamentos, se é que são pensamentos. Eu sei que existe, na mesma biblioteca, um outro exemplar. Faz parte do espólio deixado por alguém que conheci. De súbito, retornou, vinda de um tempo arcaico, a sua imagem de mulher, um pouco descompassada das imagens das outras mulheres – raparigas, quero eu dizer – que por aqui havia. Enquanto viveu, nunca soube que lia Rilke e, agora que o sei, desconfio que esse meu não saber talvez tenha sido uma perda irremediável. Há coisas que se descobrem demasiado tarde. Se fosse o seu exemplar que estivesse nas minhas mãos, aquelas podiam ser as suas palavras, e eu haveria de as ler como se fossem uma revelação.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Doença, morte, política

Recebi hoje um grosso volume com as cartas de Rainer Maria Rilke sobre política. A primeira carta, enviada de Praga, é de 29 de Janeiro de 1896, e a última, enviada da clínica de Val-Mont, s/Terriet, p. Glion (Vaud), no dia 21 de Dezembro de 1926. O poeta morrerá oito dias depois, a 29 de Dezembro. A carta — apenas algumas linhas — é dirigida ao poeta Jules Supervielle, como agradecimento de algo não especificado. Não há, em momento algum, qualquer alusão à política. A carta começa dizendo: Gravemente doente, dolorosamente, miseravelmente, humildemente doente… O que há nela é a declinação em vários tons da doença, o pressentimento da iminência da morte. Dir-se-á que, no âmbito de uma biopolítica, nem a doença nem a morte estão fora da política. Pelo contrário, estão no seu centro, são o seu tema decisivo. Mesmo a doença e a morte privadas de um poeta são casos políticos. Não encontro outra explicação para que os editores tenham integrado a mensagem para Supervielle no âmbito da correspondência rilkeana sobre política. Muito provavelmente, Rilke terá morrido na clínica. Esta, porém, ainda existe. Comemora os 120 anos. As instituições são mais duradouras do que os homens. Isso é uma coisa boa, pois, quando um ser humano vem ao mundo, precisa de instituições que o acolham e dêem um significado, mas não um sentido, a essa vinda à existência.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Um regresso

De regresso a casa, escutava a Antena 2. Um programa sobre a música no cinema. O de hoje era dedicado a uma obra extraordinária, a Flauta Mágica, de Ingmar Bergman. Um filme que faz cinquenta anos. Ora, vi-o pela primeira vez, ainda nos anos setenta do século passado, no cine teatro daqui, num ciclo dedicado ao cinema do realizador sueco. Bergman não se limitou a gravar uma ópera, produziu uma obra de arte onde a ópera de Mozart, a encenação teatral e a sua linguagem cinematográfica se conjugaram para produzir qualquer coisa que me deixou completamente perplexo. Claro, a célebre ária onde a Rainha da Noite, Birgit Nordin, atormenta Pamina, a filha, mas também as figuras de Papageno e de Sarastro, ou o próprio conteúdo iniciático da ópera de Mozart. Foi também nesse ciclo que vi, pela primeira vez, Morangos Silvestres, talvez o filme de Bergman que mais vezes vi. Já não consigo precisar o ano em que isso aconteceu e uma pesquisa online não me forneceu qualquer indicação. Talvez porque um ciclo de Bergman numa vila de província seja uma coisa inverosímil, uma espécie de sonho ou uma fantasia. Caminho para a idade de Isak Borg, o protagonista de Morangos Silvestres, mas ainda não terei atingido a sabedoria de Sarastro, da Flauta Mágica. A cada um os seus limites e também as suas perfeições.

domingo, 31 de agosto de 2025

Mar de Setembro

Na esplanada, via-se, na linha do horizonte, o mar fundir-se com o céu, nessa zona de indistinção onde qualquer mundo se torna possível. O sol dardejava, a espaços, a areia, para logo se ocultar atrás de nuvens viandantes, nuvens de cinza, neve e alcatrão que se dirigiam para aquele lugar onde todas as nuvens se reúnem. Está um mar de Setembro, disseram-me. Concordei, o mar de Setembro tem uma natureza própria, ondula de outra maneira, mistura o branco da espuma e o turquesa das águas como se fosse uma anunciação. Não de um deus por vir, mas do fim de uma estação ou a aproximação de uma outra. Fiquei ali, diante daquele mar setembrino, contemplando o ir e vir das ondas, o exercício dos surfistas, a passagem de algum barco em direcção a um porto que desconheço. Talvez, pensei, venha de um daqueles mundos possíveis e se dirija para um porto num mundo impossível. Devemos esperar que as coisas mais inusitadas aconteçam, pois se nós próprios, com a vinda à existência, somos uma prova de coisa inusitada, por que não esperar que outras – talvez, menos inverosímeis – possam acontecer? Claro que podem, murmurei, enquanto o sol rompia, de novo, a muralha das nuvens.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Um mundo ruidoso

Retorno depois de prolongadas férias. Isso não significa que não continue em férias, pois a realidade deixou de solicitar a minha atenção. O mundo dispensa os meus afazeres e concede-me a graça de dispor do tempo que resta, seja lá ele qual for. Talvez devesse ter recomeçado de outra maneira: Vim da casa do silêncio e, agora, tomo a palavra. Diante de mim está um livro publicado pela Quetzal, com uma belíssima capa. O autor é Alain Corbin e o título, História do Silêncio. O Prelúdio da obra começa assim: O silêncio não é apenas ausência de ruído. Nós quase o esquecemos. As referências auditivas desnaturaram-se, enfraqueceram, dessacralizaram-se. Intensificaram-se o medo ou mesmo o terror suscitados pelo silêncio. Agora, estou envolvido pelo ruído. Máquinas em trabalho. Uma azáfama planeado no gabinete de algum demónio apostado em fazer perder a cabeça até a um santo. O mundo tornou-se num lugar em que o silêncio é um bem escasso e, por certo, haverá um mercado para o vender. Aquilo que inunda o mundo de ruído é também o que mercadeja o silêncio. Pode-se mesmo pensar que a omnipresença do estardalhaço foi uma estratégia para tornar o silêncio uma mercadoria mais valiosa do que qualquer outra. Se fosse economista, com ambições a crítico social, coisa que não sou, diria que houve uma apropriação por alguns de um bem que era de todos. O melhor é continuar a ler Corbin: No passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio. Consideravam-no como condição do recolhimento, da escuta de si mesmo, da meditação, da oração, do devaneio, da criação; sobretudo como lugar íntimo do qual a palavra emerge. Uma máquina ronca, outra troa, uma outra estrondeia. Não tarda, e surgirá a que ribomba. O demónio ri no seu escritório, o plano de negócios cumpre-se com eficácia. As almas perdem-se no meio de tanto barulho. Ou não se encontram, para ser mais preciso, pois a condição de qualquer alma é de andar perdida à procura do caminho. Um súbito silêncio. Não, apenas uma pequena ausência de ruído.

domingo, 3 de agosto de 2025

Nevoeiro

Hoje é domingo. Escrevo-o para não me esquecer. Levantei-me cedo e fui caminhar também cedo. O molhe estava livre, mas o nevoeiro era tanto que não se via o farol que termina o espigão que dilacera o mar. Por aí fui, envolto numa penumbra que anunciava o regresso de D. Sebastião. O porto, logo ali, era um belo sítio para que o desgraçado rei chegasse à pátria que o viu partir para nunca mais regressar. Quero dizer: para ainda não ter chegado. Como é hábito seu, D. Sebastião recusou-se a voltar, continua emigrado, ninguém sabe onde, não se importando ele com o ódio tecido em volta dos imigrantes, pois, onde quer que esteja, o nosso rei é um imigrante, que haverá quem queira expulsar, pois não percebe que é um rei, daqueles antigos, um monarca garboso, cavaleiro como D. Quixote. Quando voltar, no dia que lhe der na veneta, vai descobrir que o trono dele foi ocupado por outro, por outros, até por três espanhóis com o mesmo nome — que é a mesma coisa do que não ter nome —, e que agora já não há tronos, que a potestade é republicana e, se ele quiser ser o número um, como era quando partiu, tem de ir a eleições, fazer-se eleger e ser proclamado Presidente da República e, caso tenha talento, estar dez anos a presidenciar, para depois se retirar para Alcácer Quibir ou, se tiver algum trauma com Quibir, poder ser mesmo ali mais abaixo, para Alcácer do Sal, para depois passear pelo litoral alentejano em vez de ir matar mouros e acabar morto, sabe-se lá onde, com o reino a definhar e ninguém sem saber dele, só promessas de que haveria de voltar — e ainda hoje estamos à espera —, e sempre que há grandes nevoeiros, vai tudo para as praias e diz: é desta. Mas nunca é desta. Resta-nos esperar, mesmo aos republicanos, pois também estes têm o seu fraco pelo rei que se perdeu no caminho, não sabe onde é a pátria de onde partiu, falta-lhe um bússola e um mapa, talvez um GPS ajudasse ou o Waze e o Google Maps. Tivesse ele uma Penélope, e faria como Ulisses: voltaria, apesar dos trabalhos, mataria os pretendentes e cairia nos braços da mulher amada, sem notar que o rosto desta já tinha algumas rugas, pois o desejo do seu corpo era tanto que não havia rugas que o matasse. Mas o pobre rei foi desavisado, embarcou para a sua Tróia sem uma Penélope e agora, como uma alma penada, anda perdido por esse mundo — e nós, sempre que há nevoeiro, vamos para as praias à espera dele —, mas ele não volta. Um incómodo, pois uma nação inteira não pode estar sempre a caminhar para a praia só porque está nevoeiro, isso dá cabo da produtividade nacional, o PIB não sobe só porque vamos para a praia, mal um nevoazinha surge no horizonte, e olhamos, olhamos, olhamos, mas se aparece algum barco, não nos traz um rei, apenas sardinha e pouca, ou é um veleiro de um americano em férias, ou é um navio fantasma de corsários mortos há muito. E o PIB fica sempre aquém da expectativas, tudo por causa desta mania de ir esperar um rei que não quer, ou não pode, ou não sabe como voltar.

sábado, 2 de agosto de 2025

Desastres naturais

Há por aqui festejos; ouvem-se vozes ampliadas por potentes colunas, também um foguetório sem fim, depois uma espécie de música ao gosto popular, cada uma pior do que a anterior. Um desastre, ou a combinação de múltiplos desastres. Para piorar as coisas, o molhe estava interdito a caminhantes e pescadores: preparavam-no como ponto de lançamento de fogo de artifício que há-de abrilhantar os festejos. Como encarar estes acontecimentos? Como se encaram as tempestades, os tufões, os ciclones, os tsunamis. São coisas da natureza que não se tem ainda não se tem – o poder de evitar. Os festejos populares, mais do que acontecimentos culturais, devem ser interpretados como episódios naturais. Neles manifesta-se a natureza humana, e ainda não se descobriu como evitar tudo aquilo. Serão reminiscências de épocas arcaicas – talvez ainda pré-humanas – em que certos episódios geravam uma grande confusão, um enorme alarido, uma tremenda algazarra. Com o passar dos milénios, o processo foi-se suavizando, deu-se-lhe o nome de festa, mas ainda está longe – muito longe – de se ter tornado razoável. Talvez tenha dormido pouco, pois a açougada vai pela noite fora, não deixando dormir mesmo quem está longe. A inclinação misantropa incendiou-se – talvez seja do calor, que agora chega em vagas, uma espécie de ondas gigantescas feitas de temperaturas elevadas e que não param de crescer, de se elevar, desejosas de tocar nos céus. Enquanto o mundo arde, as festas continuam, com aquela música ronceira, o vozear aviltante da razão humana, o foguetório inútil, que há-de trazer um fogo de artifício cheio de lágrimas – as lágrimas de quem não pode dormir, dos animais assustados, das plantas que amam tanto o silêncio que se tornaram mudas.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Correspondência

Julho despenhou-se no grande abismo onde todas as coisas se precipitam, mal chegue a hora da precipitação. Para o seu lugar, veio Agosto, um mês dedicado ao imperador Augusto, como aquele que acabou pagava tributo a Júlio César. Há meses atraídos por imperadores, outros por deuses, outros nem se sabe bem por quem. Recebi uma encomenda de livros vindos da Alemanha, comprados num alfarrabista online. São romances alemães. Como vou lê-los, eu que não sei alemão, pode perguntar-se. Irei lê-los, mas omito o processo. Não serão os primeiros, nem os segundos, nem… que lerei desse modo, aqui omitido. O importante, porém, é que num deles vinha um postal datado de 2 de Agosto de 2017. Fará amanhã oito anos que foi escrito por uma mulher alemã para uma amiga, também alemã, que, lido o postal, o guardou dentro de um livro que acabou por vender. A receptora tem o apelido de um importante músico do romantismo alemão, um compositor de que gosto bastante. O seu nome próprio é belíssimo em alemão e também é de bom gosto em português — por acaso, o nome de uma tia-avó minha e o feminino do nome de um dos meus bisavôs. O postal reproduz, em fotografia, duas focas-cinzentas e três ostraceiros (Haematopus ostralegus), sendo um deles um junior, ainda sem a belíssima aparência dos adultos. E o que diz o postal? Transcrevo, omitindo os nomes: Querida ..., A grande onda de calor passou; com 18º–20º, sol e vento, aguenta-se bem. Tomamos banho no mar todos os dias e já contornámos várias vezes o extremo norte da ilha. Com a … e o … tornou-se tudo mais animado, mas também mais cansativo. Agora, a última semana de férias está quase a terminar. Até breve, com muitas saudações luminosas da … E eu fico a imaginar quem será a mulher com nome musical e se aquela que lhe escreve está em férias familiares. Serão ainda todos vivos, as quatro pessoas envolvidas no postal? E elas continuarão amigas? A que escreve, por certo, está preocupada com o ambiente, pois o postal tem a seguinte mensagem: Com a aquisição deste postal, está a apoiar a protecção da natureza e das aves marinhas. Saiba mais sobre nós em… Também não é sem interesse o selo, com uma paisagem da Suíça Saxónica, que nada tem que ver com a Suíça. Um postal de férias, no primeiro dia em que entrei numas férias das quais não terei de regressar, pois agora só haverá férias diante de mim — férias ininterruptas das funções exercidas até que chegue o dia das férias eternas da existência, a hora de me precipitar no abismo em que Julho se precipitou.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Convicções

Alguém disse alguma coisa com a qual discordo. Há, na afirmação, um grande equívoco. Terei desfeito o equívoco? Não. Apenas encolhi os ombros, pois a convicção com que aquilo fora dito é ainda maior que o equívoco. A convicção não nos diz nada sobre a relação da crença com a verdade, mas diz-nos muito da relação da crença com a identidade da pessoa. Quem está disposto a uma crise de identidade só para adquirir uma crença verdadeira? Se tentamos descobrir quem somos, a única coisa com que nos deparamos são convicções. Se estas são postas em causa, ficamos ameaçados. Por isso, a ideia iluminista do esclarecimento, do desfazer dos equívocos, choca sempre com uma realidade que resiste em nome da existência. Por isso, mudar de ideias ocorre apenas naquilo a que se dá o nome de conversão. Veja-se o caso de Paulo de Tarso: de zeloso perseguidor de cristãos, por conversão transformou-se em zeloso pregador do cristianismo. A sua mudança de convicção – e Paulo era um homem de convicções – não se deveu a nenhum esclarecimento, apenas a um acontecimento inexplicável. O melhor que posso fazer por alguém que, convictamente, está errado é desejar que encontre a sua estrada de Damasco.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Ultravioletas

Encurtei a caminhada matinal, uma ânsia de chegar a casa, um cansaço de sol sobre o corpo. Os ultravioletas dardejavam com inclemência — entravam já numa escala anunciada como muito elevada — e eu pensava nas possibilidades de combinar infra e ultra com as cores: o ultra-amarelo e o infra-azul; mas a realidade é muito mais prosaica, entrega-se aos infravermelhos e aos ultravioletas, como se fora um pedinte, incapaz de investir no grande empreendimento cromático do mundo, comprar acções do supra-verde ou do sub-rosa. A verdade, porém, é que os ultravioletas me fizeram regressar um pouco mais depressa: apenas seis quilómetros de caminhada, partir de casa para chegar a casa. Que estúpido — pensei —, se era para chegar ao ponto de partida, mais valia não ter saído, não me tinha encontrado com os UV que andam por aí, desencabrestados, prontos para apunhalar caminhantes desavisados, enlouquecidos pelo desejo de caminhar, com o sangue a latejar nas têmporas e o sol a chamar o suor, a transpiração, um asco. O melhor é ir para casa e tomar banho, deixar os UV para as ervas, as dunas, os passadiços de madeira, para aqueles que sonham com calor e navegam sonâmbulos pelas chamas do Inferno. Em casa, sento-me e olho para a existência, e tudo se passa entre o excesso dos ultravioletas e o defeito dos infravermelhos, como se todas as outras cores não possuíssem nem acima nem abaixo — o que faz delas cores sem espaço, pois, se há espaço, há, necessariamente, um acima e um abaixo, que podemos dizer ultra e infra, se tivermos desejo de o fazer, mesmo que os outros digam que não é a mesma coisa, que cores e espaço têm outra relação, as cores pegam-se às superfícies, mas elas não têm superfície. É nestas coisas que penso, enquanto espero que me dê vontade de ir tomar banho: um compromisso social, um almoço com amigos, um silêncio no coração, com o punhal do tempo encostado à jugular, os ultravioletas a mudarem de cor e o choro contido dos infravermelhos a murmurejar nos meus ouvidos, como se fosse água a correr de uma torneira ou um bico do fogão a libertar gás, para envenenar o ambiente e liquidar de vez todos os ultravioletas e os infravermelhos. São dias difíceis, a pátria está a partir para férias, e o ribombar dos canhões solares, disparando projécteis ultravioletas, não se cala. Partir de um sítio e chegar a ele. A vida — a minha, pois não conheço outra — é uma circularidade, um círculo vicioso, uma petição de princípio. Nasci predisposto à falácia.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Um ataque

Por aqui o calor não morde como no resto do país. Sim, o calor é um cão raivoso, agastado com a vida amena, sedento de uma água que não pode beber. Que começo dramático!, grita de dentro de mim um homúnculo que habita na minha consciência. Enquanto o homem não tem consciência, não há homúnculos que habitem nela. Porém, como no processo evolutivo da espécie, há um momento em que os homens adquirem — lentamente, pois não têm pressa para certas coisas — consciência, esta torna-se um propriedade imobiliária, um imóvel para habitação. E, como tal, os preços são exorbitantes. Os homúnculos instalam-se em sótãos e caves. Não têm dinheiro, dizem, nem para um Tê Zero. É daí que investem contra mim. Este é um homúnculo da cave, cavernícola e impiedoso, mais próximo do orangotango do que dos homens. Contudo, arvora-se a esteta opinioso e, caso se lhe preste atenção, começará a dissertar sobre filosofia da arte, a discutir o problema da morte da beleza – um tema que lhe é adequado – ou o da possibilidade de definir arte, enquanto olha para uma reprodução dos quadros com latas de sopa Campbell e vocifera contra a Pop-Art. Ora, como se vê, o homúnculo é eficaz, pois desviou-me do começo, da vexata quaestio do calor e das metáforas que usei ou que estaria disposto a usar, caso não fosse interrompido. Aqui retomo: o calor não é um cão raivoso, mas um cachorro simpático, que se deixa enrolar pela nortada e poisa sobre os corpos com a leveza de uma bela mão feminina. Ah…, grita o homúnculo, agora falas em beleza, mas na arte és capaz de preferir latas de sopa a belas paisagens que repousam o olhar e tranquilizam a alma. Olhei para ele, ergui a mão e fiz um gesto pouco digno de um narrador respeitável. Ele sumiu-se na cave, cujo aluguer está por pagar há anos. Devia pôr-lhe um processo de despejo.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Mudanças

Entrei hoje definitivamente naquela fase da vida em que a diferenciação dos dias da semana não tem importância. É uma aprendizagem que tem de se fazer com algum cuidado. Não é que não tenha experiência, mas ela é tão arcaica que a esqueci. Ocorreu até ao dia em que entrei na escola; desde essa hora, a recitação dos dias da semana foi sempre uma espada encostada à garganta. A desconstrução da semana – que expressão tão pomposa – não é coisa que se faça, mas que se deve deixar acontecer. A memória desliga-se da realidade, e esta evapora-se. Pelo menos, devia evaporar-se. Agora estou mais interessado nos dias dos meses: por exemplo, nos concertos a que espero ir e para os quais já tenho bilhete comprado. Aí posso esquecer-me do dia da semana, mas não do dia do mês. Imagino que posso alongar as caminhadas e vou fazer a assinatura das transmissões da Filarmónica de Berlim. Talvez esta decisão seja insensata, caso queira que a semana se desconstrua. Terei de estar atento aos dias dos concertos, em que momento da semana ocorrem. Diante de mim, uma tarefa interessante: esquecer os dias da semana e, ao mesmo tempo, lembrar-me deles. São estes desafios que alimentam as epopeias e que tornam heróis aqueles que se tornam heróis. Estou a escrever de forma circular – influência de uma leitura de Thomas Bernhard. Contudo, não quero imitar a escrita do autor austríaco. Não há em mim o rancor que o devorava. Prefiro cultivar inutilidades e platitudes, e agora posso distribuí-las ao acaso, sem me preocupar com as que devo dizer à segunda ou à quarta, as que devo evitar ao sábado e as que tenho por obrigação cultivar aos domingos à tarde, naquelas horas de melancolia que antecediam o crepúsculo e a conformação com a entrada, no dia seguinte, no império da realidade. O meu mundo mudou; o outro, porém, não tem melhoras.

domingo, 27 de julho de 2025

Buracos negros

O hábito é uma segunda natureza. Atribui-se a origem da expressão a Aristóteles, mas que sabemos nós da origem das expressões que são usadas pelos grandes homens? O mais adequado seria dizer que é em Aristóteles que encontramos registada, pela primeira vez, a ideia. Podemos imaginar que era uma expressão corrente nos meios familiares. A primeira natureza seria marcada por uma necessidade inexorável; a segunda teria de ser conquistada pelo esforço, uma viagem que iria do porto do possível ao cais do necessário. Isso formaria um carácter. Por que razão me haveria de lembrar disto? Por causa destes textos. Quase me esquecia deles. Quando me deparei com o esquecimento possível, ocorreu-me que escrevê-los ainda não se tornou um hábito, apesar de haver uma possibilidade forte de o fazer em cada dia. O domingo deslizou por mim com leveza, e eu deixei-me embalar por ele e habitei-o como um sonâmbulo. Foi ao chegar da caminhada que descobri a falta. Isto leva-me a pensar que não existe qualquer segunda natureza. Todo o hábito é susceptível de excepção, logo não é uma necessidade inexorável. Caminho todos os dias, mas ainda não se formou em mim o hábito de caminhar. Cada vez que me ponho ao caminho tenho de me vencer, de derrotar a inclinação para ficar onde estou. O pior, porém, é que talvez não exista sequer uma primeira natureza. A necessidade que vemos nos processos a que chamamos naturais talvez seja um defeito da nossa visão. Se não existe uma primeira natureza, o que existirá então? Não faço ideia. “Natureza” é apenas uma palavra. O que ela refere, porém, é algo que me escapa. Quem diz “natureza”, diz qualquer outra palavra. Por detrás de cada uma existe uma obscuridade tão grande que não a vemos. Dito de outra maneira: por detrás de cada palavra existe um buraco negro.

sábado, 26 de julho de 2025

Epopeia

Bocejo. A vida quotidiana é uma autêntica epopeia. Quantos ardis mais inteligentes do que o astucioso cavalo de Tróia são necessários para suportar a trivialidade que é a marca de qualquer existência. Ontem fui a um concerto. Antes de começar, tive a oportunidade de escutar quem estava mesmo atrás de mim. Tratavam da quotidianidade. Discutiam onde se podia ir buscar raparigas. Não haja confusões: queriam dizer criadas de servir, internas. Havia uma instituição com o nome de uma santa que as fornecia, mas as coisas, concordavam, já não eram como dantes. Umas servem, outras nem por isso. Eram homens — um deles já um pouco surdo — que discutiam o assunto. As mulheres estavam caladas. Imaginei que estivessem fartas do quotidiano com eles, mas é uma mera suposição. Nem lhes vi as caras. Pensei que, para eles — nascidos, como não se esqueceram de fazer notar, numa das melhores zonas do Porto —, encontrar raparigas que servissem no serviço das suas casas era uma epopeia. De imediato, ocorreu-me que, para elas, as serviçais, poderia ser uma epopeia ou um drama burlesco ter de suportar aquela gente. Podíamos pensar numa tragédia, mas raparigas que servem em casa alheia não têm estatuto social que lhes permita serem uma Antígona. Talvez nem tenham coragem para enfrentar aqueles pequeninos Creontes, dignos de uma comédia. Ter de suportar a conversa foi uma epopeia. É o que faz ir a concertos em igreja aberta ao culto: o espaço entre bancos não é suficiente para que se consiga evitar ter de escutar o chilreado de pássaros pouco canoros. Continuo a bocejar. Se alguém entender este texto como crítica social, desengane-se: constatar não é criticar, mas uma mera descrição da realidade. E esta é, por norma, trivial e bocejante — o que daria uma epopeia.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O Espírito

Fui tomar café com o padre Lodo. Chegou ontem, disse-me. Umas férias merecidas, gracejei. Claro, respondeu. Férias são sempre merecidas, embora não tenhamos propriamente férias, pois também não temos trabalho. Trabalhar é uma função; nós, homens da Igreja, temos uma missão. E uma missão nunca admite interrupções. Olhei para ele com ar divertido e perguntei se, naquele momento, também estava em missão. Claro, respondeu ele. Qual? A de me converter? Olhou-me e riu-se. Não são os homens que convertem os homens. Sou jesuíta — será preciso lembrar-lho? — e a nossa formação não nos permite tal grau de ingenuidade. O Espírito, acrescentou, fará o seu trabalho, onde e quando quiser. Desviei a conversa e perguntei-lhe pela estadia em Itália. Se havia mais Settembrinis. Disse-me que não, mas que a estirpe não está em vias de extinção. Apesar de se ter recusado a dar um contributo, retorqui, não sem um toque de maldade. Não seja inconveniente, resmungou. Os votos são para cumprir. Seja como for, não foi para esta conversa mole que lhe telefonei. Então? perguntei. Não quer marcar um jantar? Onde? Onde havia de ser? No sítio habitual, respondeu. Compreendo, o Espírito também se manifesta na qualidade da cozinha. Levou a chávena à boca. Depois — e aqui fez um gesto amplo da mão — disse: o mar é maior dos mistérios. Deixemos a cozinha de lado.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

A desgraça do narrador

Como não poucas vezes aqui foi dito, ou, melhor, foi escrito, existe um conflito entre mim, narrador desta epopeia, e o autor. Este impõe-me limites e proíbe-me certos assuntos, impedindo-me de expressar o que me vai na alma. Sim, na alma, pois até um narrador tem uma alma — uma alma narrativa, mas não humana; caso contrário, seria um desalmado, o que, manifestamente, não é o meu caso. Ora, um dos pontos de conflito é a tecnologia. Eu sou um conservador e, não fora as imposições do autor, escreveria estes textos em papel, com pena de cisne. Ele, porém, não mo permite. Obriga-me a usar um teclado. Pior do que isso, cultiva coisas estranhíssimas, como o uso da inteligência artificial ou o interesse — embora sem uma convicção militante — por questões políticas, apesar de dizer sempre que quem quiser compreender alguma coisa nesse campo nebuloso deve começar por ler as tragédias gregas, e não O Príncipe, de Maquiavel, ou A República, de Platão. É uma das poucas coisas em que estamos de acordo. Tenho-lhe dito que a inteligência artificial é um perigo para a humanidade, mas ele responde-me sempre que não há maior perigo para a humanidade do que ela própria. Calo-me, pois, sendo apenas um narrador, não sou propriamente humano e, em última análise, não tenho qualquer interesse pelo destino dessa espécie tão dada à volubilidade, que é impossível perceber o que pretende da existência. Ora, descobri-lhe uma prática viciosa: pega em livros do domínio público, escritos em línguas que não domina, e manda-os traduzir pela inteligência artificial. Depois, lê-os. E parece não ficar desagradado com o resultado. É aqui que começo a temer pela minha existência. Um dia, ele substituir-me-á por um narrador proveniente de um modelo de linguagem. Escreve um prompt ordenando-lhe um post com certas características, e aquela coisa escrevê-lo-á. Por uns tempos, ainda sem grande graça, mas, estou certo, progressivamente, as suas narrativas serão melhores do que as minhas. Nessa hora, apesar das juras de fidelidade do autor, serei um narrador no desemprego, derrotado na contenda com o autor. A minha esperança é que ele próprio seja deglutido por um bot. Tudo se paga nesta vida. E, se não for nesta, há-de ser na outra — ou numa outra.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Determinações

No texto de abertura que antecede o artigo de Thomas Garcin, um professor de Estudos Japoneses na Universidade de Paris, sobre o centenário do nascimento de Yukio Mishima, na Electra do Verão de 2025, escreve-se: olhada do fim para o princípio, a vida de Yukio Mishima parece um destino em que tudo o que aconteceu não podia ter acontecido de outra maneira. Aquilo que é dito de Mishima pode ser dito de qualquer um. Uma vida olhada a partir da morte que lhe coube está perfeita – no sentido de acabada – e, como tal, está plenamente determinada. O jogo de causas e efeitos está fechado, e cada efeito é o resultado da causa que o produziu. Não se podia ter achegado ali – naquela hora e naquele espaço – senão pelo caminho que se seguiu. Contudo, se se olhar uma vida não a partir da sua morte, mas da sua emergência no mundo, o que se observa são as possibilidades que estão em aberto. Não serão infinitas, pois os homens são finitos, mas são muito mais amplas do que se pode pensar. A vida de Mishima ou a de um sem-abrigo são idênticas: um processo contínuo de fechamento de possibilidades que estavam em aberto. Cada vez que se faz uma escolha, selecciona-se um caminho e fecham-se muitos outros. É um processo de afunilamento contínuo: as escolhas vão escasseando até que chega a hora em que não temos direito a mais nenhuma. Um determinista radical diria que, mesmo no início da vida, não existe escolha; tudo estará determinado por causas que não controlamos. O problema dos deterministas radicais e dos fatalistas é que olham a vida dos homens a partir da morte. Nos seus olhos, só existe a morte, uma sombra que se projecta sobre a vida e que a mata, vendo-a como um mero jogo de causas que se sucedem necessariamente certos efeitos. Se tivessem razão, que valor teria a obra de Mishima ou o seu suicídio ritual?

terça-feira, 22 de julho de 2025

Vida quotidiana

Hoje fiz uma viagem de apenas oito graus centígrados. Como foi uma viagem de ida e volta, e como as diferenças de temperaturas, à ida e à volta, se mantiveram constantes, poder-se-á afirmar que, mesmo num mundo conturbado como o nosso, existem constâncias. Nem sempre a volubilidade reina no ânimo de quem superintende as metamorfoses da realidade. Tinha várias coisas a tratar naquele sítio onde, durante grande parte do ano, me acolho para pagar tributo à deusa Necessidade. Entre essas coisas, a mais premente era passar pelos CTT e levantar uma encomenda de livros que tinha chegado no dia 17 e que temi que fosse devolvida à precedência. Também fui à loja de mobiliário de escritório, para levantar a cadeira onde, neste momento, escrevo. A outra estava cansada, e decidi reformá-la. Talvez a devesse condecorar pelos serviços prestados ao longo de mais de duas décadas. Ainda falámos sobre o assunto – eu e ela –, mas opôs-se. Não tinha paciência para cerimónias, nem farda militar, nem casaca ou mesmo um simples fraque. Que não fosse por isso, ripostei. Agradeceu e fez-me um estranho pedido: não me abandones no sótão ou numa cave. Prefiro ser deixada ao pé de um caixote do lixo. Alguém pegará em mim e dar-me-á uma nova vida. Talvez lhe faça a vontade, mas ainda não tomei uma decisão. Andamos, nós os humanos – no caso de eu ser um humano –, muito enganados sobre a natureza dos objectos do mundo. Tanto os que são fruto da natureza como os que são produtos do artifício. Pensamo-los passivos, meras coisas ao alcance da mão, instrumentos para os nossos fins, mas isso é uma fantasia nossa. Eles têm vontade e expressam-na. Temos, porém, de estar dispostos a falar com eles. Coisa que raramente ocorre, mesmo no meu caso, em que prefiro falar sozinho. Agora vou equipar-me e fazer uma caminhada, por causa dos pontos cardio, seja lá isso o que for, mas a sua acumulação faz bem ao coração. E quem não quer ter um coração saudável?

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Calendários e deadlines

Aproximo-me, a passos largos, daquela fase da existência em que a denominação dos dias da semana desaparece. Aquilo que era uma experiência ténue, localizada nos tempos de férias, será agora — imagino — a natureza da minha relação. Isto, porém, é uma especulação, pois, em todo o lado, a começar pelo telemóvel, está a informação do dia da semana, do mês em que se está e até do ano que corre, como um rio tranquilo, para a foz. A tranquilidade fluvial dos anos não deriva daquilo que acontece neles, mas da regularidade que os habita. Começam sempre a 1 de Janeiro e terminam a 31 de Dezembro. De quatro em quatro anos, dão um bónus ao mês de Fevereiro – nada que o compense do injusto quinhão que lhe coube em sorte. Há pouco, li uma notícia: tinha sido descoberta uma flauta feita em osso de urso, que pertenceria a Neandertais. A conclusão óbvia é que também eles faziam música. Com alguma evidência empírica, desconfia-se de que também se entregavam à pintura, bem como à bijutaria. Podemos mesmo dizer: humanos, demasiado humanos. E teriam eles calendário? Dividiriam o tempo de algum modo? Observariam os astros? O seu desaparecimento continua a ser um mistério. Talvez a falta de um calendário seja a causa da sua tragédia. O calendário permite colocar deadlines, o que significa que há um espaço temporal, a que se segue uma deadline, a qual, sendo atingida, está ultrapassada. Sem um calendário, os Neandertais não distinguiam a deadline do tempo que está antes e depois dela. Para eles, todo o tempo era uma deadline, por onde entraram e de onde não conseguiram sair. Sem calendário, a deadline deixa de ser um prazo-limite, para ser a linha da morte ou, melhor, uma superfície da morte, isto é, um campo da morte. Esta é a minha contribuição para decifrar mais um mistério que atormenta a imaginação, se não da espécie, pelo menos de uma parte que se entrega a este tipo de coisas. Se me perguntarem por evidências empíricas, direi que foi uma dedução a priori, sem necessidade do recurso à experiência. O pior, para a minha tese, é, se um dia descobrem que também os Neandertais tinham calendários e usavam deadlines para as suas tarefas. Enquanto isso não acontece, pode ser que eu esteja a transformar-me num Neandertal.

domingo, 20 de julho de 2025

Incomunicabilidade

Quais os limites da linguagem? Num conto de 1959, denominado Martelo, Stanisław Lem escreve: Pedregulhos enormes, aquecidos pelo sol e, na sombra, frios como gelo, pontiagudos, com aquele odor… não sei como descrevê-lo, mas quase sinto o seu cheiro neste momento…. A questão central expressa-se no “não sei como descrevê-lo”. Não se trata de uma falta de habilidade, de uma incapacidade derivada da falta de técnica, mas da confissão de uma impotência – não de natureza pessoal, mas da própria linguagem. Como descrever um odor ou um sabor? Tenho sempre uma grande curiosidade pela avaliação feita dos vinhos, pois aí está patente toda a impossibilidade de descrever o odor e o sabor. Os críticos recorrem, então, a um arsenal de metáforas. Esperam, através de uma poética tornada convencional, que o leitor aceda à sua experiência do vinho. Esperança vã – não porque a sua poética seja convencional, mas porque a experiência é absolutamente singular e incomunicável. A linguagem tem dispositivos para falar do singular, mas nenhum para comunicar, a outra pessoa, a experiência que eu tenho de um odor, de um sabor, de um prazer, de uma dor. A experiência, além de absolutamente singular, é incomunicável. O escritor russo Lev Tolstói propôs uma doutrina estética como forma de ultrapassar a incomunicabilidade da experiência: a arte teria a função de comunicar ao público a experiência singular que o artista teve e que desencadeou a produção da obra de arte. O receptor da obra, caso esta fosse uma verdadeira obra de arte, refaria em si a experiência singular do autor. Talvez seja nesta ideia que os críticos de vinho se fundamentam para descrever o odor e o sabor dos vinhos. Não serão grandes artistas – ou talvez sejam e Tolstói estivesse enganado, pois é impossível fazer o outro viver a experiência que eu vivi. A incomunicabilidade das nossas experiências é muito mais radical do que aquela que é suposta existir nas experiências do olfacto e do sabor. A minha experiência do amarelo é tão incomunicável quanto o sabor de um vinho. Aquilo que os outros experimentam na experiência do amarelo permanecerá sempre, para mim, um mistério. Nada nos salva da incomunicabilidade radical da experiência – nem a poesia, nem o amor; muito menos a linguagem. Além da morte, a experiência é a única coisa que é verdadeiramente nossa.

sábado, 19 de julho de 2025

Organização

Tenho aqui alguns livros – mais do que devia – que estão organizados por alturas. Nunca me tinha ocorrido esse critério de organização, mas talvez seja tão pertinente como outro qualquer. O caso, porém, deve-se à mais pura necessidade: a estante tem prateleiras com diferentes alturas, o que me obriga a uma ginástica organizacional. A espécie humana tenta encontrar motivações racionais para organizar o seu mundo; no caso dos livros, os temas e os autores são princípios racionais de organização. Será a melhor forma? Haverá bons argumentos a seu favor. Contudo, podemos supor que, num mundo em que os livros fossem arrumados ao acaso – uma radicalização da organização por altura –, se cultivariam virtudes que a actual organização das bibliotecas não permite. Imaginemos uma grande biblioteca onde não há qualquer critério de organização: o leitor parte em demanda do livro desejado. Isto tem várias vantagens. Em primeiro lugar, faz a experiência da incerteza, o que é uma preparação para lidar com a existência, que nunca deixa de ser incerta. Pergunta-se: existirá o livro ou desapareceu, apesar de haver um registo de compra? Depois, empreende uma viagem que não deixa de ser uma aventura. Se vai descobrir ou não a obra que pretende, isso nunca saberá. Contudo, aprenderá a mapear a biblioteca, a construir esquemas racionais para lidar com o caos. A certa altura – a experiência mais fundamental – descobrirá que o importante não é a obra, mas a viagem, a aventura da caça, mesmo que o livro a caçar não exista. Como não tenho espírito de aventura, em casa, a minha biblioteca está racionalmente organizada: temas e autores. Contudo, aqui e ali vou introduzindo pequenas clareiras onde o caos reina, os temas se cruzam e os autores se misturam. Isso serve para me lembrar a minha falta de espírito de aventura – ou então da necessidade de comprar mais estantes.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Leitura meditada

A vida literária da Áustria, nos primeiros trinta anos do século XX, é uma espécie de milagre: Robert Musil, Hermann Broch, Joseph Roth, Leo Perutz, Karl Kraus, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannsthal, Stefan Zweig. Contudo, se se quiser passar da Áustria para um espaço cultural mais alargado, aquele que é designado pelo termo Mitteleuropa (Europa Central), descobrimos que o milagre austríaco se inscreve numa área mais vasta de milagres literários. Desde muito cedo, a minha pátria literária foi essa Mitteleuropa, talvez por culpa de Franz Kafka, cuja leitura me mostrou um mundo literário que não era plausível para um meridional. Tudo isto vem a propósito da leitura de Das Spinnennetz (A Teia de Aranha), o primeiro romance de Joseph Roth. O autor expõe, em 1923, o foco psicológico que dá energia a dois fenómenos que vão ter, na história do século XX, as mais funestas consequências: trata-se do ressentimento, que é um dos elementos centrais tanto do nacionalismo como do anti-semitismo. Impressiona a clareza com que Roth, muito antes da catástrofe se declarar, a torna patente. Talvez a sua condição de judeu e de jornalista o tenha tornado sensível ao espírito do tempo. No entanto, o que é marcante no diagnóstico feito é a clara compreensão do papel do ressentimento na determinação da agência dos indivíduos. Os europeus — mesmo os meridionais, como os portugueses — fizeram uma dura aprendizagem sobre o papel do ressentimento na história. Quando os indivíduos ressentidos se tornam uma massa, as maiores desgraças estão ao virar da esquina. Essa aprendizagem parece já ter sido esquecida e vemos o ressentimento tomar conta de cada vez mais pessoas. É um problema difícil de tratar, pois o ressentido tem a causa da sua patologia em si mesmo, nas escolhas que fez e no talento — ou falta dele — que lhe coube em sorte. Nunca se culpará pelo seu falhanço, mas encontrará um bode expiatório, uma vítima sacrificial. Uma leitura meditada do primeiro romance de Roth ajuda-nos a compreender o mundo actual melhor do que muitas análises sociológicas ou de ciência política.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Arbitrariedade geográfica

Percorri sem pressa o molhe. O céu nublado, as águas cinzentas, os barcos ancorados. Parece uma praia da Normandia, pensei. Como tudo na realidade se desconcertou, é possível que as próprias praias tenham mudado de lugar. Não é improvável, nos tempos que correm, andar, por exemplo, pela Beira Alta e encontrar uma pequena cidade alemã ou belga, com os seus habitantes perplexos por, sem darem por isso, terem mudado de lugar, apesar de não terem mudado de cidade. Nasci num tempo em que ainda havia um reflexo de uma ordem no mundo. Mas um reflexo de uma ordem já não é uma ordem, mas um caos que ainda não tomou consciência de si mesmo. As décadas foram passando e aquilo que estava oculto foi-se revelando. A arbitrariedade tornou-se a imagem de marca do mundo. Talvez por isso a Geografia seja, no concerto dos saberes científicos, uma área em crise. Quem pode mapear uma realidade física ou social, se os espaços perderam a fixidez que outrora os ligava à Terra, sendo agora a sua distribuição o resultado de um baralhar de cartas de um jogador amante do acaso? Digo para mim mesmo: conversa idiota de um velho do Restelo. O meu tempo passou e aquilo que é para ti desordem é a ordem rígida dos que agora começam a olhar com alguma atenção para o sítio onde chegaram quando nasceram. Contudo, não me sinto convencido e arquitecto uma outra teoria. A realidade espacial onde habitamos sempre dependeu do arbítrio. Nunca o jogador de cartas amante do acaso esteve ocioso na sua distribuição dos lugares. Contudo, os olhos e o coração são cegos para a realidade: precisam de muito tempo para começarem a ver e ainda mais para crerem no que vêem. Estou em Portugal, mas a praia por onde caminhei esta manhã era normanda. O que me preocupa agora é saber onde estará a praia que aqui estava. Talvez ela volte um dia destes. É possível, porém, que só retorne daqui a séculos. E amanhã, de onde virá a praia que aqui haverá? Deveria fazer um registo das mudanças, para memória futura.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sem sentido

Por aqui o dia começou deslumbrante, mas, conforme as horas foram passando, o que havia de deslumbre foi sendo substituído por uma névoa esbranquiçada, como se fosse um véu de uma noiva abandonada no altar, trapo andrajoso, sujo, cravejado pelos dardos escuros da dor. Talvez a tonalidade do dia servisse para cenário de um romance policial, com um crime urdido nas teias virginais da vingança. A vítima fora encontrada com um estilete cravado no coração, de onde saíra apenas um fio de sangue insignificante. Ninguém sabia quem ele era e que culpas carregava na consciência. Só a noiva abandonada o conhecia. Isto, porém, não faz sentido, pois uma noiva abandonada no altar não tece vinganças, mas, livre de um futuro incerto, dá graças por o destino lhe ter perdoado a precipitação de um sim ou a falta de coragem de um não. O melhor é não imaginar crimes e detectives, deixar o dia correr e esperar que tudo siga o caminho traçado sabe-se lá onde ou por quem, sem noivas ultrajadas nem véus gastos pelo vitríolo da vingança.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Hara-Kiri

Em 1979, o filósofo alemão Hans Jonas, em Das Prinzip Verantwortung (O Princípio Responsabilidade), formulou um novo imperativo ético que se pode traduzir assim: age de modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra. Este princípio moral revela uma clara preocupação com o desenvolvimento das sociedades modernas e com o poder que elas têm, devido aos efeitos das tecnologias, de destruir a possibilidade de assegurar as condições para que uma vida humana seja possível no planeta. Esta preocupação foi recebida, por aqueles que não são tocados por ela, de quatro modos: em primeiro lugar, a indiferença perante essa preocupação, uma coisa de lunáticos; num segundo momento, quando a indiferença era já impossível de manter, passou-se à negação da relação causal entre a acção humana e a degradação do planeta; a terceira fase, depois de também a negação ser impossível, foi a da dissimulação: ficcionou-se a preocupação moral, enquanto tudo continuou a piorar; contudo, a própria consciência moral do problema era desagradável e, por isso, entrou-se numa quarta etapa: não apenas negar, mas afirmar e impor comportamentos que degradem efectivamente o planeta. Este desejo de destruição revela uma pulsão de morte, um desejo de aniquilação, um exercício niilista no qual estamos todos implicados. A nula relevância prática do princípio de Jonas deve-se a uma coisa muito simples: não nos sentimos responsáveis pelo futuro. O prazer do presente é muito mais relevante do que o cuidado com um futuro que desconhecemos como será. Provavelmente, só quando o presente se tornar uma dor contínua, a espécie perceberá o perigo em que se encontra e, mesmo nesse momento, não é seguro que o reconheça. É possível que a espécie esteja cansada de viver e tenha escolhido a destruição da casa como modalidade de hara-kiri.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Imaginações

Não sei o que se passa em mim. Por vezes, sou perturbado por estranhas decisões. Comecei ontem a ler Duna, de Frank Herbert. Qual o problema? Não foi esse romance que esteve na origem do filme Dune, de David Lynch? Sim, foi. Contudo, trata-se de ficção científica. Com tanta coisa fundamental para ler, por que razão gastar o tempo com esse tipo de literatura? Não faço ideia. Podia adiantar algumas razões. Por exemplo, gosto da editora portuguesa que publicou todos os romances da série; leio muitos livros publicados por ela. Outra razão será a capa: gosto das capas. E razões mais substantivas, não há? Esta pergunta veio nem sei bem de onde. Claro que posso apresentar razões mais interessantes. Se toda a ficção é um laboratório onde a vida se ensaia através de experiências imaginárias, a ficção científica fá-lo de um modo mais acentuado, pois desenha espaços e tempos que estão para além da experiência possível. Se não é assim, então deveria ser. Bem, não sou versado no tema, mas predispus-me a descobrir o que tem este género de literatura que represente um contributo da imaginação que não exista no romance tradicional. Fui educado numa espécie de literatura muito específica, a que se deu o nome de Filosofia. Os filósofos juram que usam a razão, deixando a imaginação para a arte. Nunca fiquei convencido. Os diálogos de Platão são racionalizações de um foco imaginário, o qual, não poucas vezes, é indisfarçável, e o autor, ao lado de argumentações mais ou menos sistemáticas, não consegue evitar o mito, o recurso explícito à imaginação, à literatura. Mesmo autores mais austeros, como Kant, fazem literatura, mobilizando a força da imaginação para dar vida e energia a conceitos e argumentos, uma literatura muito específica, que deve ser compreendida também a partir da poética e, pasme-se a heresia, da retórica. Volto à ficção científica: aquilo que me interessará, então, é ver como a poética e a retórica, utensílios da imaginação, aí operam. Estas são as minhas razões de hoje, talvez influenciado por ter ido à consulta de oftalmologia, tendo recebido a notícia de que os olhos de hoje estão como há dois anos e meio, que vá lá daqui a um ano, talvez haja novidades, porque, agora, ainda vejo bem. Eu achei que a médica também tinha uma certa propensão para a literatura, talvez para a ficção científica. Disse-me aquelas coisas depois de me espreitar para dentro dos olhos e ter-me posto a ler textos cada vez mais pequenos, que eu ia lendo sem óculos. Aliás, os textos não eram grande coisa. E, se os olhos me arderem, que lhes ponha um lubrificante. Imaginei que este era um recurso retórico desnecessário, que talvez ela não tivesse jeito para a ficção, nem a científica nem a outra. Mas nunca se sabe aquilo que vai na alma de uma pessoa que passa a vida a espreitar para dentro dos olhos dos outros.

domingo, 13 de julho de 2025

Ociosidades dominicais

Um domingo de Verão. Na banalidade de uma constatação esconde-se um mistério, o enigmático segredo que dorme esquecido nessa conjugação entre um dia da semana e uma estação do ano. Alguém dirá: Mistério? Trata-se antes de uma banalidade, pois todos os dias de qualquer semana estão conjugados com uma estação do ano. São convenções e os homens persistem em cultuar como verdades eternas aquilo que convencionaram. Aqui, aquiesço. Sim trata-se de uma banalidade. No entanto, acrescento, onde abunda a banalidade, superabunda o mistério, para fazer um pastiche retórico de uma conhecida frase de Paulo de Tarso. Recorde-se a ideia de banalidade do mal trazida por Hannah Arendt. Na mediocridade da vida quotidiana, por rotina e hábito, sem furor ou exaltação, o mal era metodicamente praticado. Contudo, essa banalidade de funcionário rotineiro na prática do mal não elimina – pelo contrário, acentua – o mistério do mal. Também a banalidade das convenções e das práticas quotidianas em vez de eliminarem o mistério que se esconde atrás delas, o acentua. Por isso, também na conjugação deste domingo com este Verão haverá um mistério. O facto de não sabermos qual, não invalida a sua existência. Esta ideia parece provir da pura ociosidade. E é verdade, só o ócio permite à mente desligar-se dos afazeres quotidianos e das preocupações com a necessidade e fornece o espaço para a especulação. Todos os mistérios têm a raiz naquele que é o mais radical de todos: porque existe o ser e não o nada. As religiões – pelo menos, as monoteístas – deram uma solução – Deus criou o ser a partir do nada – que não soluciona nada, pois a questão da existência de um Deus é tão ou mais misteriosa do que a existência do ser. Os mistérios que a banalidade esconde são emanações desse mistério último e fundamental, que contamina tudo o que existe, inclusiva a minha disposição para escrever este tipo de coisas em vez de estar a olhar o mar, contando os veleiros que passam.

sábado, 12 de julho de 2025

Exageros

No final da década de quarenta do século passado, Pierre Schaeffer traz para o campo musical as sonoridades do quotidiano e a manipulação de sons. A essa música deu-lhe o nome de música concreta em oposição à música erudita tradicional. Os sons concretos do mundo em oposição às abstracções sonoras a que se dava e dá o nome de música. Este é apenas um exemplo, no âmbitos das artes, em que foi possível rasgar os horizontes e pôr em causa a tradição. Podemos crer que o público e mesmo os especialistas terão ficado perplexos, pois o não musical era apresentado como musical, o não artístico era dado como artístico. Este episódio é, assim, mais um de um longo conflito entre o artista e o público. O gosto do público é sentido sempre como desadequado e aquilo que o artista procura está para além daquilo que agrada ao público, mesmo a um público educado. Se recuarmos a Kant, o juízo estético parte de uma experiência singular e eleva-se, através da reflexão, a uma comunidade de gosto, mesmo que apenas ideal. Ora, o que a arte do século XX pretende é quebrar esse laço entre a experiência singular e o gosto comunitário. Cada experiência da obra de arte deve permanecer na sua radical singularidade e, por isso, na sua incomunicabilidade. A arte mostrou-se, desse modo, como uma inimiga visceral do senso comum, ainda que ilustrado. Cada obra de arte é, desse modo, uma granada lançada sobre o público, pois este, com o seu gosto comum, é o inimigo da arte. Pode ser que esteja a exagerar. Este narrador, por vezes, é dado à hipérbole. Um narrador hiperbólico. Mas a hipérbole, como a caricatura, exagera para mostrar o que é decisivo e está escondido.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Paixão pela verdade

Os dias não estão muito saudáveis. Não, não me refiro à volubilidade de S. Pedro, mas ao conjunto de ideias absurdas que parecem ter invadido o mundo e que se aninham com surpreendente facilidade nas mentes humanas. Quanto mais absurdas são essas ideias, maiores são as legiões de adeptos que arrastam. É muito provável que Tertuliano nunca tenha dito ou escrito “creio porque é absurdo”; contudo, a máxima ilustra bem o mecanismo de formação de crenças na espécie a que pertenço. O problema dessas crenças não é existirem, mas o facto de elas moverem os homens, gerando ondas de fanatismo que se impõem — não sem violência — aos outros. Talvez o problema não seja tão antigo como se poderá pensar: Jan Assmann coloca-o em Moisés, naquilo a que chama a distinção mosaica. Moisés, ao propor a existência de um único Deus, o Deus verdadeiro, inaugurou uma nova maneira de pensar. Até aí, cada povo tinha os seus deuses e prestava-lhes culto conforme entendia. É a associação entre divindade única e verdade que abre o caminho não apenas para a imposição de uma crença — verdadeira, justificar-se-á — e a perseguição daqueles que não partilham dessa opinião. A partir do momento que uma crença se proclama como a única verdadeira, ela vai contaminar todas as outras, que passam a querer ser únicas e verdadeiras. Ora, uma das paixões mais funestas é a paixão pela verdade: as pessoas dispõem-se a morrer por ela, mas, acima de tudo, a matar em seu nome. E qualquer coisa absurda pode ser tomada por verdade. É esta proliferação de apaixonados pela verdade que tornam os dias de hoje pouco saudáveis.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Cuidado com o futuro

Um acaso levou-me à descoberta de uma incongruência, ou de um anacronismo, se se preferir. Numa obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, encontro uma referência a um S. Frutuoso de Braga. Fui pesquisar quem era e, nessa procura, encontro a referência de ter sido antecedido, no arcebispado de Braga, por Potâmio. É neste que está o problema. É dito ser um religioso português, bispo de Braga. Ora, Potâmio — assim como Frutuoso — viveu no século VII, altura em que Portugal não existia, nem ninguém pensava no assunto. Podia acontecer que existissem portugueses antes de existir Portugal, mas não é o caso. Primeiro existiu Portugal e, depois, vieram os portugueses. Potâmio seria um visigodo e, por certo, se lhe dissessem que era português, nem perceberia o que estavam a dizer. As fidelidades que temos são com o presente e com o passado. Se alguma fidelidade temos com o futuro, é o desejo de continuidade daquilo que amamos. Potâmio, caso fosse interrogado sobre o que desejaria para os dias de hoje, catorze séculos depois daquele em que viveu, diria que esperava que o reino visigodo continuasse vivo e próspero. Não quereria, por certo, ser despojado da sua identidade. Isto é um aviso para o futuro. Se, daqui a catorze séculos, existir neste sítio uma outra identidade política, eu — anónimo narrador desprovido de narrativa — quero continuar a ser português e não ser tido por uma outra coisa qualquer cuja natureza desconheço. Preservemo-nos do futuro.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Juízes e julgamentos

O corpo é um cruel juiz. Estava a reler textos escritos há muito e adormeci. Sobre eles, ficou um julgamento que não devo ignorar. Poderia argumentar que a condenação deve recair sobre o julgador, segundo a máxima popular: o bom julgador a si se julga. Isso, porém, seria tergiversar e cair numa fantasia infantil. O melhor será esquecer aqueles textos. Apagá-los. Outrora, os textos rasgavam-se ou queimavam-se, caso os autores fossem espíritos mais fogosos. Hoje, em aparência, tudo é mais higiénico. Não há papel ou cinza para limpar. Coisas que deveriam ser limpas são expressões como : uma brilhante auto-análise de um dos maiores pensadores do século XX. Nem me refiro à adjectivação da auto-análise. Com facilidade se atribuem epítetos e se proclamam grandezas. A pergunta, porém, que o leitor deve fazer é a seguinte: O tempo estará de acordo com essa classificação? Cronos é um juiz mais cruel do que o meu corpo. Aquilo a que uma época atribui a coroa de louros, o tempo, na sua desfaçatez, pode levar para a caverna escura do esquecimento. O mais sensato seria deixar a adjectivação de lado. Contudo, adjectivar é bem mais fácil do que descrever. Quando se diz que é um dos maiores pensadores, não se está a dizer rigorosamente nada. Alguém, vindo de outro planeta, poderia perguntar: Era dos mais altos? Quanto media? A resposta seria decepcionante. Se, porém, se desse uma explicação breve sobre o que pensou, isso seria mais adequado, embora tivesse o defeito de não tratar o leitor como um idiota.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Memórias

Por aqui está um excepcional dia de praia, o que, para mim, não é, de todo, uma boa notícia. Como sou dado à hipérbole, estou a exagerar. O dia está bom para fazer praia, mas isso não constitui, para mim, uma tão má notícia quanto quero fazer crer. Aliás, fui-lhe fazer uma visita. As minhas netas disseram logo que era um acontecimento: nunca me tinham visto na praia. Fiquei perplexo. Eu, que ali as levei tantas vezes, que ali brinquei com elas, e disso não ficou um vestígio na memória. Não se lembrava de me ver perto do mar, disse-me a mais nova. Ainda olhei para a mais velha, mas esta corroborou a irmã. Não sei o que fazer com esta informação. Talvez o melhor seja não fazer nada e criar uma sólida narrativa de que nunca fui com elas à praia. Será uma narrativa falsa, mas terá a aparência de verdadeira, e daí vir-lhe-á a solidez. Lembrar-se-ão do avô como aquele que nunca foi à praia com elas. Em contrapartida, não se esquecerão de que as levava, nesta altura do ano, a concertos de piano. Será justo. Não se pode sobrecarregar a memória das novas gerações. E não somos nós que escolhemos as memórias que ficarão de nós, caso fiquem algumas. Os poderes humanos são parcos e de grande fragilidade, ao contrário do desejo, que é infinito. Não tarda, terei de as ir buscar.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Louvor da trivialidade

A trivialidade é um disfarce daquilo que não é trivial, cuja luz é de tal modo intensa que não a suportaríamos. Cultivar a trivialidade é uma estratégia de sobrevivência, pois nenhum mortal poderia estar continuamente a confrontar-se com aquilo que causa espanto. Os antigos Gregos fizeram dele – do espanto – o início da Filosofia. Implicaria uma atitude radical de corte com o que parece óbvio, mas, mesmo aí, há um mecanismo de defesa. A Filosofia, ao furtar-se ao óbvio quotidiano, acaba por instituir uma obviedade mais complexa, mais elaborada, mas que acaba por ter o efeito de dissolver o espanto. Nem o corpo nem o espírito humanos suportariam estar, a cada instante, a confrontar as coisas óbvias e triviais, pois é nesta modalidade de existência – a obviedade e a trivialidade – que a vida é possível. Hábitos e rotinas fecham-nos os olhos para o excesso que toda a realidade comporta em si mesma. Isso, porém, é o preço a pagar para estarmos vivos. Isto tem uma consequência interessante: a vida implica sempre um grau de alienação, de estranhamento a si mesmo, pois aquilo que somos é sempre excessivo para aquilo que suportamos. Alienarmo-nos é uma estratégia de sobrevivência. Quem suportaria ver-se como realmente é? A educação de um ser humano é um processo de contínua trivialização de si, para que o excesso de luz e de trevas que há em cada um não o arraste para fora da vida. 

domingo, 6 de julho de 2025

Vazio

Referindo-se à teoria da História de Tolstói, Isaiah Berlin, no início do capítulo IV de O Ouriço e a Raposa, escreve: As teorias raramente nascem do vazio. Fiquei longos minutos a olhar para a frase. O meu problema não era o seu sentido, mas as possibilidades que abre quando parece fechá-las. A frase de Berlin diz duas coisas: uma, a que está explícita – a maioria das teorias não nasce do vazio – contudo, diz também que algumas teorias, embora raras, nascem do vazio. Como é possível tirar alguma coisa de onde não há nada? A resposta conhecida pertence ao campo da teologia e da religião: só Deus pode tirar alguma coisa do nada. Foi assim que criou o mundo – do nada tirou o ser. Isto, porém, é matéria de fé e não de análise racional. Nenhuma teoria pode ser extraída do vazio, pois ela, mal se formule, usa palavras, e estas estão longe de serem coisas vazias. Se há coisas cheias – grávidas de uma prole incomensurável – essas coisas são as palavras. Veja-se a quantidade de coisas que existe numa palavra como “casa”. Mais do que isso: não seria possível tirar do vazio uma teoria sobre casas, pois a própria palavra é uma teoria cheia de decisões epistemológicas. É essa teoria que permite excluir na referência de “casa” os garfos, os copos, os planetas, as pulgas, por exemplo. Nenhuma teoria pode ser tirada do vazio, a não ser que Deus se tenha tornado filósofo e decida criar uma teoria a partir do nada. Ora, se a discussão sobre a existência de um Deus é um beco sem saída, menos saída haveria para discutir se, caso Deus existisse, ele poderia ser filósofo. Pode-se pensar que, por aqui, se formulam teorias que, não vindo do vazio, são elas próprias vazias. Sim, é um facto que este narrador tenta criar pequenas teorias vazias. É um objectivo existencial. O problema é que falha sempre: elas contêm sempre qualquer coisa, ainda que errada. Acho que dormi mal. Acordei de um sonho estapafúrdio e fiquei com estes pensamentos, ainda por cima açulados por um vento que não me convidou a fazer a caminhada matinal.

sábado, 5 de julho de 2025

Bússola

Umas vezes estou em conflito aberto com o calendário; outras, num processo de desconhecimento radical. O primeiro caso acontece quando penso que se está num dia e, afinal, se está noutro; o segundo ocorre quando não faço a mínima ideia em que dia da semana se está. É este o caso de hoje. Faltam-me as referências. Aqui se condensa a diferença entre o erro e o desconhecimento: no primeiro caso, existe uma crença que se pensa verdadeira, mas que é falsa; no segundo, não há qualquer crença – apenas um vazio. Em que dia estamos?, pergunto-me, mas não consigo responder. Por norma, as pessoas preferem ter crenças falsas a não terem nenhuma: uma crença, mesmo errada, é uma bússola; a pessoa pensa que está a caminhar para Norte, mas dirige-se para Sul. Apesar disso, há uma consolação: caminha-se para algum lado. Eu prefiro não ter qualquer crença a ter uma errada. Quando não se tem uma crença, olha-se para a bússola e não se percebe que objecto é aquele. Em vez de me pôr a caminhar, fico sentado a pensar em coisas abstrusas ou a contemplar a minha ignorância. É neste momento que atinjo a sabedoria: a douta ignorância. Contudo, uma preferência não significa que seja isso que se faça. A maior parte das vezes ando de bússola na mão, sem a saber ler, pensando que vou a caminho do Oriente, enquanto me dirijo para Ocidente – esse lugar onde o Sol se põe, a luz se apaga e tudo acaba.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Mundos possíveis

Confirmei a tese de ontem. Na caminhada matinal, ao chegar ao molhe, este estava pejado de gaivotas. Também as praias eram poiso de bandos enormes dessas aves. Nem na água nem na areia se vislumbrava um único surfista. Se a tese não estava definitivamente confirmada – uma impossibilidade –, estava corroborada: a presença de surfistas implica a ausência de gaivotas. É evidente que o meu argumento é falacioso, mas poupo a demonstração. Terei de me cuidar, antes que pensem que creio na existência de uma relação causal entre a presença de surfistas e a ausência de gaivotas. Neste mundo, não é difícil apontar um contra-exemplo que mostre que a minha crença é falsa. Contudo, haverá um mundo possível em que a relação causal entre ambos os fenómenos será real. Podemos imaginar que, nesse mundo, os surfistas, um dia e por um motivo qualquer, decidiram atacar as gaivotas. A violência do ataque levou a que elas aprendessem a evitá-los, como uma modalidade de adaptação da espécie ao meio. Este mundo é possível porque nele não há qualquer contradição lógica. Um ataque de surfistas não é uma impossibilidade. A aprendizagem das gaivotas e a sua adaptação ao meio também não. O molhe que estava pejado desses animais termina num farol, e o ritual – o meu – é caminhar pelo molhe, contornar o farol e voltar por onde vim. São centenas de metros para um lado e para o outro, rodeado de água, com praias a perder de vista, barcos a passar e outros ancorados. Àquela hora da manhã ainda não havia pessoas nas praias. Só gaivotas. Agora que penso em tudo isto, descobri outra possibilidade. As gaivotas colonizam as praias, mas a certa altura transformam-se em surfistas e, por isso, quando se vêem uns, não se podem ver os outros, apesar de serem os mesmos. Imagino que haverá um mundo possível – talvez aquele em que Ovídio esteve para escrever as Metamorfoses – em que é possível aves transformarem-se em pessoas e vice-versa. Tudo é possível neste vasto universo. E, se não for neste, será num outro.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Autonomia da escrita

Não sei o que me deu, mas contra os meus hábitos – e esses hábitos não são meras rotinas, mas devoções de uma tradição arreigada no fundo do meu ser – decidi ir à praia. Perguntaram-me se estava bem. O melhor possível, respondi, embora não possa jurar que estivesse a dizer a verdade. Estive por lá cerca de duas horas, das quais há que descontar uma meia hora no bar. Caminhei, vi o mar, observei as pessoas. Não contei gaivotas, pois não vi nenhuma. O que reparei foi que o mar estava cheio de surfistas. Perguntei-me se haveria alguma relação entre a presença deles e a ausência de gaivotas, seguindo um princípio que me guia: os efeitos mais inesperados têm as causas mais estranhas. Este princípio, que se aplica a tudo o que acontece, pode ser responsável pelo que me sucedeu no pós-praia. Tinha pensado, como se fosse um dever irrefragável, em fazer um almoço frugal, talvez um esboço de jejum penitencial, como se vivesse no século XIX e estivesse a entrar em período quaresmal. Ora, o ter ido à praia, pisado areia, entrado em contacto – ligeiro, e apenas os pés – com a água do mar e recebido os raios que o sol decidiu dardejar sobre o meu pobre corpo, depois de tudo isso, chegado o almoço, descobri que a experiência me tinha aberto o apetite, que estava com fome e que não estava disponível para frugalidades e muito menos para penitências. Cedi. Agora, que o mal está feito, apesar do bem que me soube, tenho de repensar estes impulsos que me levaram a fazer o que por hábito me recuso a realizar. É assim que as pessoas se perdem. Fazem uma coisa e não esperam as consequências que ela trará. Teria sido mais assisado ter evitado a praia. Estou certo de que a frugalidade seria respeitada, mas faltar-me-ia assunto para escrever. Sempre podia meditar sobre a borbulha que me nasceu na cara, tentar descobrir de que causa excêntrica ela é efeito. O importante da escrita não é o assunto, o tema, mas o acto de escrever, de juntar letras em palavras, palavras em frases e frases em textos. A isto chamo: autonomia da escrita. Uma escrita autónoma é aquela que tem a sua razão de ser em si mesma e não num qualquer conteúdo. Se alguém argumentar com uma analogia dizendo que aquilo que digo seria o mesmo que dizer que o importante numa garrafa de vinho, não seria este, mas a garrafa, eu corroboraria. Do ponto de vista da garrafa, o importante é ela mesma, não o que ela contém. Com a escrita passa-se o mesmo.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ajustes e desajustes

Fechei a janela e o barulho da rua desvaneceu-se. Aqui, onde me encontro refugiado, as temperaturas são-me favoráveis. Até os olhos que esbraseavam caíram na rotina e deixaram de ser o prenúncio de um fim do mundo pelo fogo. Agora são apenas olhos, um pouco cansados, talvez a precisar de serem revistos – coisa que acontecerá em breve – para ajustar as lentes. Aliás, a partir de certa altura da existência, não são poucas as coisas que precisam de ir sendo ajustadas, mas nem sempre a tarefa é tão fácil de realizar quanto a afinação dos olhos. Se se pensar bem, a vida começa sempre em desajuste: são necessários muitos e muitos anos para se chegar a alguma precisão. Alcançada esta – quando é alcançada –, logo vem a hora em que as coisas começam a desafinar-se. Então inicia-se a saga do recurso aos afinadores. Estes são legião. Tenho passado estes últimos dias na companhia de um livro de um dos mais célebres filósofos do século XX – célebre por boas e por más razões. Reconheço, na obra, elevadíssima engenhosidade na sua fabricação, mas há qualquer coisa que me irrita. Trata-se de uma espécie de batota sub-reptícia. Aparentemente, o autor estaria comprometido com a verdade, mas o que se percebe – ou eu percebo, devido a uma mente enviesada – é uma preocupação com a persuasão de um certo auditório, composto pela elite intelectual, explorando estados de alma pouco razoáveis. Há, para falar segundo as categorias de Aristóteles, um excesso de pathos, o recurso a emoções, ainda que refinadas, de acordo com o auditório. Dito de outra maneira: há um desajuste entre a enunciação do que se pretende e aquilo que efectivamente se pretende. Isto, porém, é uma suspeita – muito provavelmente injusta –, resultado das coisas que se vão desafinando na minha mente. Daqui a pouco vou espreitar o mar. Nele, tudo se ajusta para ser aquilo que é: a tempestade é ajuste, a bonança é ajuste. Se recua, é ajuste; se avança, é ajuste. No mar, não há nada de humano, apesar do desajuste humano o invadir, mas ele persiste em ser o velho mar que sempre foi.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Demanda do Graal

Tenho de arrumar as coisas – ia dizer a tralha –, pois vou em demanda do Santo Graal. Contudo, aquela é para mim uma procura prosaica, nada comparável com a do Cálice da Última Ceia ou a da busca empreendida pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Se o encontrar – ao Graal –, partilho a informação sobre a sua natureza. Uma pessoa sensata dirá que, para encontrar alguma coisa, é preciso saber o que é. Ponto de vista discutível. Se se sabe o que é, então já, de algum modo, se encontrou o que se procura. A minha demanda, todavia, é mais radical: procuro, mas não sei o que procuro; saberei, porém, que o encontrei quando o encontrar. Será uma revelação e um encontro. Podia dar exemplos pessoais, mas isso seria expor a intimidade, ainda que narrativa, ao público – uma intimidade que, muito plausivelmente, não possuo. Quem tem uma intimidade não deve trazê-la para o espaço público; quem não a tem ainda deve ser mais cauteloso e protegê-la com mais afinco. Porquê? Porque, se se tem uma coisa, essa posse gera inveja e ressentimento; quando não se tem, a inveja e o ressentimento recrudescem ao incidir nesse poder ser sem posse. De certa maneira, sou como Ulrich, personagem central do romance de Musil, O Homem sem Qualidades: ele não tinha atributos definidos, mas tinha em aberto a possibilidade de ter qualquer um. Tal como eu. Também não tenho intimidade, mas a possibilidade de ter qualquer uma está em aberto. Ter uma intimidade é fechar-se a todas as outras. É possível que o Graal, objecto da minha demanda, seja uma intimidade. Se o for, porém, desisto de realizar o objectivo: prefiro a possibilidade à realidade. Como tantas vezes tenho escrito aqui, a realidade é como a história: uma velha rameira infrequentável.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Deflagrações

Está a acabar o sexto mês do ano. Junho fina-se entre calores. Não se pense, porém, que chegamos a meio do ano. Dos 365 dias que 2025 haverá de ter, hoje será centésimo octogésimo primeiro. Só ao meio-dia de 2 de Julho se alcançará essa meta. A partir daí tudo se inclina, cada vez mais, para o fim do ano. É como se depois de ter subido durante 182,5 dias a montanha, se começasse a descê-la. Oiço que esta informação não tem qualquer relevo e que ninguém quer saber dela. Se se escrevesse apenas sobre coisas relevantes, pensei, possivelmente nada teria sido escrito pela humanidade. E, depois, quem sabe aquilo que os outros querem saber. Hoje tinha duas tarefas para realizar. Uma, responder a um questionário, está acabada. A outra, enviar um email a uma editora por causa de uns livros que não chegaram, ainda está por fazer. A temperatura talvez me impeça de realizar mais do que uma tarefa por dia. Podia estar a ler, mas os olhos ardem-me. Por vezes, temo que peguem fogo. Têm-se visto tantas coisas, que não será impossível, de um momento para o outro, os olhos inflamarem-se e deles saírem labaredas. Isso seria impossível com os ouvidos, pois há entre eles um canal secreto por onde corre um vento fresco, que diminui a temperatura, e mesmo que um ouvido se inflame, logo a aragem apagará a deflagração. Na minha secretária repousam vários livros. Três deles, pelo menos, já os li. Por que razão os trouxe das estantes? Um enigma. Um outro jaz ao lado deles, mas esse não o li. Uma peça de teatro de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade. A capa diz: versão integral. Respiro descansado, pois se fosse apenas uma versão parcial ou resumida, talvez se atirasse para as três mil páginas. Kraus optou pela síntese e são apenas umas novecentas . Uma coisa é certa, aqueles não foram os últimos dias da humanidade. A primeira grande guerra foi terrível, mas ainda tivemos oportunidade para mais uma grande guerra, além das múltiplas pequenas e médias guerras, que parecem o resultado de globos oculares que se inflamam com facilidade e ateiam os conflitos num virar de olhos. O pior é o calor.