sábado, 2 de agosto de 2025

Desastres naturais

Há por aqui festejos; ouvem-se vozes ampliadas por potentes colunas, também um foguetório sem fim, depois uma espécie de música ao gosto popular, cada uma pior do que a anterior. Um desastre, ou a combinação de múltiplos desastres. Para piorar as coisas, o molhe estava interdito a caminhantes e pescadores: preparavam-no como ponto de lançamento de fogo de artifício que há-de abrilhantar os festejos. Como encarar estes acontecimentos? Como se encaram as tempestades, os tufões, os ciclones, os tsunamis. São coisas da natureza que não se tem ainda não se tem – o poder de evitar. Os festejos populares, mais do que acontecimentos culturais, devem ser interpretados como episódios naturais. Neles manifesta-se a natureza humana, e ainda não se descobriu como evitar tudo aquilo. Serão reminiscências de épocas arcaicas – talvez ainda pré-humanas – em que certos episódios geravam uma grande confusão, um enorme alarido, uma tremenda algazarra. Com o passar dos milénios, o processo foi-se suavizando, deu-se-lhe o nome de festa, mas ainda está longe – muito longe – de se ter tornado razoável. Talvez tenha dormido pouco, pois a açougada vai pela noite fora, não deixando dormir mesmo quem está longe. A inclinação misantropa incendiou-se – talvez seja do calor, que agora chega em vagas, uma espécie de ondas gigantescas feitas de temperaturas elevadas e que não param de crescer, de se elevar, desejosas de tocar nos céus. Enquanto o mundo arde, as festas continuam, com aquela música ronceira, o vozear aviltante da razão humana, o foguetório inútil, que há-de trazer um fogo de artifício cheio de lágrimas – as lágrimas de quem não pode dormir, dos animais assustados, das plantas que amam tanto o silêncio que se tornaram mudas.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Correspondência

Julho despenhou-se no grande abismo onde todas as coisas se precipitam, mal chegue a hora da precipitação. Para o seu lugar, veio Agosto, um mês dedicado ao imperador Augusto, como aquele que acabou pagava tributo a Júlio César. Há meses atraídos por imperadores, outros por deuses, outros nem se sabe bem por quem. Recebi uma encomenda de livros vindos da Alemanha, comprados num alfarrabista online. São romances alemães. Como vou lê-los, eu que não sei alemão, pode perguntar-se. Irei lê-los, mas omito o processo. Não serão os primeiros, nem os segundos, nem… que lerei desse modo, aqui omitido. O importante, porém, é que num deles vinha um postal datado de 2 de Agosto de 2017. Fará amanhã oito anos que foi escrito por uma mulher alemã para uma amiga, também alemã, que, lido o postal, o guardou dentro de um livro que acabou por vender. A receptora tem o apelido de um importante músico do romantismo alemão, um compositor de que gosto bastante. O seu nome próprio é belíssimo em alemão e também é de bom gosto em português — por acaso, o nome de uma tia-avó minha e o feminino do nome de um dos meus bisavôs. O postal reproduz, em fotografia, duas focas-cinzentas e três ostraceiros (Haematopus ostralegus), sendo um deles um junior, ainda sem a belíssima aparência dos adultos. E o que diz o postal? Transcrevo, omitindo os nomes: Querida ..., A grande onda de calor passou; com 18º–20º, sol e vento, aguenta-se bem. Tomamos banho no mar todos os dias e já contornámos várias vezes o extremo norte da ilha. Com a … e o … tornou-se tudo mais animado, mas também mais cansativo. Agora, a última semana de férias está quase a terminar. Até breve, com muitas saudações luminosas da … E eu fico a imaginar quem será a mulher com nome musical e se aquela que lhe escreve está em férias familiares. Serão ainda todos vivos, as quatro pessoas envolvidas no postal? E elas continuarão amigas? A que escreve, por certo, está preocupada com o ambiente, pois o postal tem a seguinte mensagem: Com a aquisição deste postal, está a apoiar a protecção da natureza e das aves marinhas. Saiba mais sobre nós em… Também não é sem interesse o selo, com uma paisagem da Suíça Saxónica, que nada tem que ver com a Suíça. Um postal de férias, no primeiro dia em que entrei numas férias das quais não terei de regressar, pois agora só haverá férias diante de mim — férias ininterruptas das funções exercidas até que chegue o dia das férias eternas da existência, a hora de me precipitar no abismo em que Julho se precipitou.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Convicções

Alguém disse alguma coisa com a qual discordo. Há, na afirmação, um grande equívoco. Terei desfeito o equívoco? Não. Apenas encolhi os ombros, pois a convicção com que aquilo fora dito é ainda maior que o equívoco. A convicção não nos diz nada sobre a relação da crença com a verdade, mas diz-nos muito da relação da crença com a identidade da pessoa. Quem está disposto a uma crise de identidade só para adquirir uma crença verdadeira? Se tentamos descobrir quem somos, a única coisa com que nos deparamos são convicções. Se estas são postas em causa, ficamos ameaçados. Por isso, a ideia iluminista do esclarecimento, do desfazer dos equívocos, choca sempre com uma realidade que resiste em nome da existência. Por isso, mudar de ideias ocorre apenas naquilo a que se dá o nome de conversão. Veja-se o caso de Paulo de Tarso: de zeloso perseguidor de cristãos, por conversão transformou-se em zeloso pregador do cristianismo. A sua mudança de convicção – e Paulo era um homem de convicções – não se deveu a nenhum esclarecimento, apenas a um acontecimento inexplicável. O melhor que posso fazer por alguém que, convictamente, está errado é desejar que encontre a sua estrada de Damasco.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Ultravioletas

Encurtei a caminhada matinal, uma ânsia de chegar a casa, um cansaço de sol sobre o corpo. Os ultravioletas dardejavam com inclemência — entravam já numa escala anunciada como muito elevada — e eu pensava nas possibilidades de combinar infra e ultra com as cores: o ultra-amarelo e o infra-azul; mas a realidade é muito mais prosaica, entrega-se aos infravermelhos e aos ultravioletas, como se fora um pedinte, incapaz de investir no grande empreendimento cromático do mundo, comprar acções do supra-verde ou do sub-rosa. A verdade, porém, é que os ultravioletas me fizeram regressar um pouco mais depressa: apenas seis quilómetros de caminhada, partir de casa para chegar a casa. Que estúpido — pensei —, se era para chegar ao ponto de partida, mais valia não ter saído, não me tinha encontrado com os UV que andam por aí, desencabrestados, prontos para apunhalar caminhantes desavisados, enlouquecidos pelo desejo de caminhar, com o sangue a latejar nas têmporas e o sol a chamar o suor, a transpiração, um asco. O melhor é ir para casa e tomar banho, deixar os UV para as ervas, as dunas, os passadiços de madeira, para aqueles que sonham com calor e navegam sonâmbulos pelas chamas do Inferno. Em casa, sento-me e olho para a existência, e tudo se passa entre o excesso dos ultravioletas e o defeito dos infravermelhos, como se todas as outras cores não possuíssem nem acima nem abaixo — o que faz delas cores sem espaço, pois, se há espaço, há, necessariamente, um acima e um abaixo, que podemos dizer ultra e infra, se tivermos desejo de o fazer, mesmo que os outros digam que não é a mesma coisa, que cores e espaço têm outra relação, as cores pegam-se às superfícies, mas elas não têm superfície. É nestas coisas que penso, enquanto espero que me dê vontade de ir tomar banho: um compromisso social, um almoço com amigos, um silêncio no coração, com o punhal do tempo encostado à jugular, os ultravioletas a mudarem de cor e o choro contido dos infravermelhos a murmurejar nos meus ouvidos, como se fosse água a correr de uma torneira ou um bico do fogão a libertar gás, para envenenar o ambiente e liquidar de vez todos os ultravioletas e os infravermelhos. São dias difíceis, a pátria está a partir para férias, e o ribombar dos canhões solares, disparando projécteis ultravioletas, não se cala. Partir de um sítio e chegar a ele. A vida — a minha, pois não conheço outra — é uma circularidade, um círculo vicioso, uma petição de princípio. Nasci predisposto à falácia.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Um ataque

Por aqui o calor não morde como no resto do país. Sim, o calor é um cão raivoso, agastado com a vida amena, sedento de uma água que não pode beber. Que começo dramático!, grita de dentro de mim um homúnculo que habita na minha consciência. Enquanto o homem não tem consciência, não há homúnculos que habitem nela. Porém, como no processo evolutivo da espécie, há um momento em que os homens adquirem — lentamente, pois não têm pressa para certas coisas — consciência, esta torna-se um propriedade imobiliária, um imóvel para habitação. E, como tal, os preços são exorbitantes. Os homúnculos instalam-se em sótãos e caves. Não têm dinheiro, dizem, nem para um Tê Zero. É daí que investem contra mim. Este é um homúnculo da cave, cavernícola e impiedoso, mais próximo do orangotango do que dos homens. Contudo, arvora-se a esteta opinioso e, caso se lhe preste atenção, começará a dissertar sobre filosofia da arte, a discutir o problema da morte da beleza – um tema que lhe é adequado – ou o da possibilidade de definir arte, enquanto olha para uma reprodução dos quadros com latas de sopa Campbell e vocifera contra a Pop-Art. Ora, como se vê, o homúnculo é eficaz, pois desviou-me do começo, da vexata quaestio do calor e das metáforas que usei ou que estaria disposto a usar, caso não fosse interrompido. Aqui retomo: o calor não é um cão raivoso, mas um cachorro simpático, que se deixa enrolar pela nortada e poisa sobre os corpos com a leveza de uma bela mão feminina. Ah…, grita o homúnculo, agora falas em beleza, mas na arte és capaz de preferir latas de sopa a belas paisagens que repousam o olhar e tranquilizam a alma. Olhei para ele, ergui a mão e fiz um gesto pouco digno de um narrador respeitável. Ele sumiu-se na cave, cujo aluguer está por pagar há anos. Devia pôr-lhe um processo de despejo.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Mudanças

Entrei hoje definitivamente naquela fase da vida em que a diferenciação dos dias da semana não tem importância. É uma aprendizagem que tem de se fazer com algum cuidado. Não é que não tenha experiência, mas ela é tão arcaica que a esqueci. Ocorreu até ao dia em que entrei na escola; desde essa hora, a recitação dos dias da semana foi sempre uma espada encostada à garganta. A desconstrução da semana – que expressão tão pomposa – não é coisa que se faça, mas que se deve deixar acontecer. A memória desliga-se da realidade, e esta evapora-se. Pelo menos, devia evaporar-se. Agora estou mais interessado nos dias dos meses: por exemplo, nos concertos a que espero ir e para os quais já tenho bilhete comprado. Aí posso esquecer-me do dia da semana, mas não do dia do mês. Imagino que posso alongar as caminhadas e vou fazer a assinatura das transmissões da Filarmónica de Berlim. Talvez esta decisão seja insensata, caso queira que a semana se desconstrua. Terei de estar atento aos dias dos concertos, em que momento da semana ocorrem. Diante de mim, uma tarefa interessante: esquecer os dias da semana e, ao mesmo tempo, lembrar-me deles. São estes desafios que alimentam as epopeias e que tornam heróis aqueles que se tornam heróis. Estou a escrever de forma circular – influência de uma leitura de Thomas Bernhard. Contudo, não quero imitar a escrita do autor austríaco. Não há em mim o rancor que o devorava. Prefiro cultivar inutilidades e platitudes, e agora posso distribuí-las ao acaso, sem me preocupar com as que devo dizer à segunda ou à quarta, as que devo evitar ao sábado e as que tenho por obrigação cultivar aos domingos à tarde, naquelas horas de melancolia que antecediam o crepúsculo e a conformação com a entrada, no dia seguinte, no império da realidade. O meu mundo mudou; o outro, porém, não tem melhoras.

domingo, 27 de julho de 2025

Buracos negros

O hábito é uma segunda natureza. Atribui-se a origem da expressão a Aristóteles, mas que sabemos nós da origem das expressões que são usadas pelos grandes homens? O mais adequado seria dizer que é em Aristóteles que encontramos registada, pela primeira vez, a ideia. Podemos imaginar que era uma expressão corrente nos meios familiares. A primeira natureza seria marcada por uma necessidade inexorável; a segunda teria de ser conquistada pelo esforço, uma viagem que iria do porto do possível ao cais do necessário. Isso formaria um carácter. Por que razão me haveria de lembrar disto? Por causa destes textos. Quase me esquecia deles. Quando me deparei com o esquecimento possível, ocorreu-me que escrevê-los ainda não se tornou um hábito, apesar de haver uma possibilidade forte de o fazer em cada dia. O domingo deslizou por mim com leveza, e eu deixei-me embalar por ele e habitei-o como um sonâmbulo. Foi ao chegar da caminhada que descobri a falta. Isto leva-me a pensar que não existe qualquer segunda natureza. Todo o hábito é susceptível de excepção, logo não é uma necessidade inexorável. Caminho todos os dias, mas ainda não se formou em mim o hábito de caminhar. Cada vez que me ponho ao caminho tenho de me vencer, de derrotar a inclinação para ficar onde estou. O pior, porém, é que talvez não exista sequer uma primeira natureza. A necessidade que vemos nos processos a que chamamos naturais talvez seja um defeito da nossa visão. Se não existe uma primeira natureza, o que existirá então? Não faço ideia. “Natureza” é apenas uma palavra. O que ela refere, porém, é algo que me escapa. Quem diz “natureza”, diz qualquer outra palavra. Por detrás de cada uma existe uma obscuridade tão grande que não a vemos. Dito de outra maneira: por detrás de cada palavra existe um buraco negro.

sábado, 26 de julho de 2025

Epopeia

Bocejo. A vida quotidiana é uma autêntica epopeia. Quantos ardis mais inteligentes do que o astucioso cavalo de Tróia são necessários para suportar a trivialidade que é a marca de qualquer existência. Ontem fui a um concerto. Antes de começar, tive a oportunidade de escutar quem estava mesmo atrás de mim. Tratavam da quotidianidade. Discutiam onde se podia ir buscar raparigas. Não haja confusões: queriam dizer criadas de servir, internas. Havia uma instituição com o nome de uma santa que as fornecia, mas as coisas, concordavam, já não eram como dantes. Umas servem, outras nem por isso. Eram homens — um deles já um pouco surdo — que discutiam o assunto. As mulheres estavam caladas. Imaginei que estivessem fartas do quotidiano com eles, mas é uma mera suposição. Nem lhes vi as caras. Pensei que, para eles — nascidos, como não se esqueceram de fazer notar, numa das melhores zonas do Porto —, encontrar raparigas que servissem no serviço das suas casas era uma epopeia. De imediato, ocorreu-me que, para elas, as serviçais, poderia ser uma epopeia ou um drama burlesco ter de suportar aquela gente. Podíamos pensar numa tragédia, mas raparigas que servem em casa alheia não têm estatuto social que lhes permita serem uma Antígona. Talvez nem tenham coragem para enfrentar aqueles pequeninos Creontes, dignos de uma comédia. Ter de suportar a conversa foi uma epopeia. É o que faz ir a concertos em igreja aberta ao culto: o espaço entre bancos não é suficiente para que se consiga evitar ter de escutar o chilreado de pássaros pouco canoros. Continuo a bocejar. Se alguém entender este texto como crítica social, desengane-se: constatar não é criticar, mas uma mera descrição da realidade. E esta é, por norma, trivial e bocejante — o que daria uma epopeia.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O Espírito

Fui tomar café com o padre Lodo. Chegou ontem, disse-me. Umas férias merecidas, gracejei. Claro, respondeu. Férias são sempre merecidas, embora não tenhamos propriamente férias, pois também não temos trabalho. Trabalhar é uma função; nós, homens da Igreja, temos uma missão. E uma missão nunca admite interrupções. Olhei para ele com ar divertido e perguntei se, naquele momento, também estava em missão. Claro, respondeu ele. Qual? A de me converter? Olhou-me e riu-se. Não são os homens que convertem os homens. Sou jesuíta — será preciso lembrar-lho? — e a nossa formação não nos permite tal grau de ingenuidade. O Espírito, acrescentou, fará o seu trabalho, onde e quando quiser. Desviei a conversa e perguntei-lhe pela estadia em Itália. Se havia mais Settembrinis. Disse-me que não, mas que a estirpe não está em vias de extinção. Apesar de se ter recusado a dar um contributo, retorqui, não sem um toque de maldade. Não seja inconveniente, resmungou. Os votos são para cumprir. Seja como for, não foi para esta conversa mole que lhe telefonei. Então? perguntei. Não quer marcar um jantar? Onde? Onde havia de ser? No sítio habitual, respondeu. Compreendo, o Espírito também se manifesta na qualidade da cozinha. Levou a chávena à boca. Depois — e aqui fez um gesto amplo da mão — disse: o mar é maior dos mistérios. Deixemos a cozinha de lado.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

A desgraça do narrador

Como não poucas vezes aqui foi dito, ou, melhor, foi escrito, existe um conflito entre mim, narrador desta epopeia, e o autor. Este impõe-me limites e proíbe-me certos assuntos, impedindo-me de expressar o que me vai na alma. Sim, na alma, pois até um narrador tem uma alma — uma alma narrativa, mas não humana; caso contrário, seria um desalmado, o que, manifestamente, não é o meu caso. Ora, um dos pontos de conflito é a tecnologia. Eu sou um conservador e, não fora as imposições do autor, escreveria estes textos em papel, com pena de cisne. Ele, porém, não mo permite. Obriga-me a usar um teclado. Pior do que isso, cultiva coisas estranhíssimas, como o uso da inteligência artificial ou o interesse — embora sem uma convicção militante — por questões políticas, apesar de dizer sempre que quem quiser compreender alguma coisa nesse campo nebuloso deve começar por ler as tragédias gregas, e não O Príncipe, de Maquiavel, ou A República, de Platão. É uma das poucas coisas em que estamos de acordo. Tenho-lhe dito que a inteligência artificial é um perigo para a humanidade, mas ele responde-me sempre que não há maior perigo para a humanidade do que ela própria. Calo-me, pois, sendo apenas um narrador, não sou propriamente humano e, em última análise, não tenho qualquer interesse pelo destino dessa espécie tão dada à volubilidade, que é impossível perceber o que pretende da existência. Ora, descobri-lhe uma prática viciosa: pega em livros do domínio público, escritos em línguas que não domina, e manda-os traduzir pela inteligência artificial. Depois, lê-os. E parece não ficar desagradado com o resultado. É aqui que começo a temer pela minha existência. Um dia, ele substituir-me-á por um narrador proveniente de um modelo de linguagem. Escreve um prompt ordenando-lhe um post com certas características, e aquela coisa escrevê-lo-á. Por uns tempos, ainda sem grande graça, mas, estou certo, progressivamente, as suas narrativas serão melhores do que as minhas. Nessa hora, apesar das juras de fidelidade do autor, serei um narrador no desemprego, derrotado na contenda com o autor. A minha esperança é que ele próprio seja deglutido por um bot. Tudo se paga nesta vida. E, se não for nesta, há-de ser na outra — ou numa outra.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Determinações

No texto de abertura que antecede o artigo de Thomas Garcin, um professor de Estudos Japoneses na Universidade de Paris, sobre o centenário do nascimento de Yukio Mishima, na Electra do Verão de 2025, escreve-se: olhada do fim para o princípio, a vida de Yukio Mishima parece um destino em que tudo o que aconteceu não podia ter acontecido de outra maneira. Aquilo que é dito de Mishima pode ser dito de qualquer um. Uma vida olhada a partir da morte que lhe coube está perfeita – no sentido de acabada – e, como tal, está plenamente determinada. O jogo de causas e efeitos está fechado, e cada efeito é o resultado da causa que o produziu. Não se podia ter achegado ali – naquela hora e naquele espaço – senão pelo caminho que se seguiu. Contudo, se se olhar uma vida não a partir da sua morte, mas da sua emergência no mundo, o que se observa são as possibilidades que estão em aberto. Não serão infinitas, pois os homens são finitos, mas são muito mais amplas do que se pode pensar. A vida de Mishima ou a de um sem-abrigo são idênticas: um processo contínuo de fechamento de possibilidades que estavam em aberto. Cada vez que se faz uma escolha, selecciona-se um caminho e fecham-se muitos outros. É um processo de afunilamento contínuo: as escolhas vão escasseando até que chega a hora em que não temos direito a mais nenhuma. Um determinista radical diria que, mesmo no início da vida, não existe escolha; tudo estará determinado por causas que não controlamos. O problema dos deterministas radicais e dos fatalistas é que olham a vida dos homens a partir da morte. Nos seus olhos, só existe a morte, uma sombra que se projecta sobre a vida e que a mata, vendo-a como um mero jogo de causas que se sucedem necessariamente certos efeitos. Se tivessem razão, que valor teria a obra de Mishima ou o seu suicídio ritual?

terça-feira, 22 de julho de 2025

Vida quotidiana

Hoje fiz uma viagem de apenas oito graus centígrados. Como foi uma viagem de ida e volta, e como as diferenças de temperaturas, à ida e à volta, se mantiveram constantes, poder-se-á afirmar que, mesmo num mundo conturbado como o nosso, existem constâncias. Nem sempre a volubilidade reina no ânimo de quem superintende as metamorfoses da realidade. Tinha várias coisas a tratar naquele sítio onde, durante grande parte do ano, me acolho para pagar tributo à deusa Necessidade. Entre essas coisas, a mais premente era passar pelos CTT e levantar uma encomenda de livros que tinha chegado no dia 17 e que temi que fosse devolvida à precedência. Também fui à loja de mobiliário de escritório, para levantar a cadeira onde, neste momento, escrevo. A outra estava cansada, e decidi reformá-la. Talvez a devesse condecorar pelos serviços prestados ao longo de mais de duas décadas. Ainda falámos sobre o assunto – eu e ela –, mas opôs-se. Não tinha paciência para cerimónias, nem farda militar, nem casaca ou mesmo um simples fraque. Que não fosse por isso, ripostei. Agradeceu e fez-me um estranho pedido: não me abandones no sótão ou numa cave. Prefiro ser deixada ao pé de um caixote do lixo. Alguém pegará em mim e dar-me-á uma nova vida. Talvez lhe faça a vontade, mas ainda não tomei uma decisão. Andamos, nós os humanos – no caso de eu ser um humano –, muito enganados sobre a natureza dos objectos do mundo. Tanto os que são fruto da natureza como os que são produtos do artifício. Pensamo-los passivos, meras coisas ao alcance da mão, instrumentos para os nossos fins, mas isso é uma fantasia nossa. Eles têm vontade e expressam-na. Temos, porém, de estar dispostos a falar com eles. Coisa que raramente ocorre, mesmo no meu caso, em que prefiro falar sozinho. Agora vou equipar-me e fazer uma caminhada, por causa dos pontos cardio, seja lá isso o que for, mas a sua acumulação faz bem ao coração. E quem não quer ter um coração saudável?

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Calendários e deadlines

Aproximo-me, a passos largos, daquela fase da existência em que a denominação dos dias da semana desaparece. Aquilo que era uma experiência ténue, localizada nos tempos de férias, será agora — imagino — a natureza da minha relação. Isto, porém, é uma especulação, pois, em todo o lado, a começar pelo telemóvel, está a informação do dia da semana, do mês em que se está e até do ano que corre, como um rio tranquilo, para a foz. A tranquilidade fluvial dos anos não deriva daquilo que acontece neles, mas da regularidade que os habita. Começam sempre a 1 de Janeiro e terminam a 31 de Dezembro. De quatro em quatro anos, dão um bónus ao mês de Fevereiro – nada que o compense do injusto quinhão que lhe coube em sorte. Há pouco, li uma notícia: tinha sido descoberta uma flauta feita em osso de urso, que pertenceria a Neandertais. A conclusão óbvia é que também eles faziam música. Com alguma evidência empírica, desconfia-se de que também se entregavam à pintura, bem como à bijutaria. Podemos mesmo dizer: humanos, demasiado humanos. E teriam eles calendário? Dividiriam o tempo de algum modo? Observariam os astros? O seu desaparecimento continua a ser um mistério. Talvez a falta de um calendário seja a causa da sua tragédia. O calendário permite colocar deadlines, o que significa que há um espaço temporal, a que se segue uma deadline, a qual, sendo atingida, está ultrapassada. Sem um calendário, os Neandertais não distinguiam a deadline do tempo que está antes e depois dela. Para eles, todo o tempo era uma deadline, por onde entraram e de onde não conseguiram sair. Sem calendário, a deadline deixa de ser um prazo-limite, para ser a linha da morte ou, melhor, uma superfície da morte, isto é, um campo da morte. Esta é a minha contribuição para decifrar mais um mistério que atormenta a imaginação, se não da espécie, pelo menos de uma parte que se entrega a este tipo de coisas. Se me perguntarem por evidências empíricas, direi que foi uma dedução a priori, sem necessidade do recurso à experiência. O pior, para a minha tese, é, se um dia descobrem que também os Neandertais tinham calendários e usavam deadlines para as suas tarefas. Enquanto isso não acontece, pode ser que eu esteja a transformar-me num Neandertal.

domingo, 20 de julho de 2025

Incomunicabilidade

Quais os limites da linguagem? Num conto de 1959, denominado Martelo, Stanisław Lem escreve: Pedregulhos enormes, aquecidos pelo sol e, na sombra, frios como gelo, pontiagudos, com aquele odor… não sei como descrevê-lo, mas quase sinto o seu cheiro neste momento…. A questão central expressa-se no “não sei como descrevê-lo”. Não se trata de uma falta de habilidade, de uma incapacidade derivada da falta de técnica, mas da confissão de uma impotência – não de natureza pessoal, mas da própria linguagem. Como descrever um odor ou um sabor? Tenho sempre uma grande curiosidade pela avaliação feita dos vinhos, pois aí está patente toda a impossibilidade de descrever o odor e o sabor. Os críticos recorrem, então, a um arsenal de metáforas. Esperam, através de uma poética tornada convencional, que o leitor aceda à sua experiência do vinho. Esperança vã – não porque a sua poética seja convencional, mas porque a experiência é absolutamente singular e incomunicável. A linguagem tem dispositivos para falar do singular, mas nenhum para comunicar, a outra pessoa, a experiência que eu tenho de um odor, de um sabor, de um prazer, de uma dor. A experiência, além de absolutamente singular, é incomunicável. O escritor russo Lev Tolstói propôs uma doutrina estética como forma de ultrapassar a incomunicabilidade da experiência: a arte teria a função de comunicar ao público a experiência singular que o artista teve e que desencadeou a produção da obra de arte. O receptor da obra, caso esta fosse uma verdadeira obra de arte, refaria em si a experiência singular do autor. Talvez seja nesta ideia que os críticos de vinho se fundamentam para descrever o odor e o sabor dos vinhos. Não serão grandes artistas – ou talvez sejam e Tolstói estivesse enganado, pois é impossível fazer o outro viver a experiência que eu vivi. A incomunicabilidade das nossas experiências é muito mais radical do que aquela que é suposta existir nas experiências do olfacto e do sabor. A minha experiência do amarelo é tão incomunicável quanto o sabor de um vinho. Aquilo que os outros experimentam na experiência do amarelo permanecerá sempre, para mim, um mistério. Nada nos salva da incomunicabilidade radical da experiência – nem a poesia, nem o amor; muito menos a linguagem. Além da morte, a experiência é a única coisa que é verdadeiramente nossa.

sábado, 19 de julho de 2025

Organização

Tenho aqui alguns livros – mais do que devia – que estão organizados por alturas. Nunca me tinha ocorrido esse critério de organização, mas talvez seja tão pertinente como outro qualquer. O caso, porém, deve-se à mais pura necessidade: a estante tem prateleiras com diferentes alturas, o que me obriga a uma ginástica organizacional. A espécie humana tenta encontrar motivações racionais para organizar o seu mundo; no caso dos livros, os temas e os autores são princípios racionais de organização. Será a melhor forma? Haverá bons argumentos a seu favor. Contudo, podemos supor que, num mundo em que os livros fossem arrumados ao acaso – uma radicalização da organização por altura –, se cultivariam virtudes que a actual organização das bibliotecas não permite. Imaginemos uma grande biblioteca onde não há qualquer critério de organização: o leitor parte em demanda do livro desejado. Isto tem várias vantagens. Em primeiro lugar, faz a experiência da incerteza, o que é uma preparação para lidar com a existência, que nunca deixa de ser incerta. Pergunta-se: existirá o livro ou desapareceu, apesar de haver um registo de compra? Depois, empreende uma viagem que não deixa de ser uma aventura. Se vai descobrir ou não a obra que pretende, isso nunca saberá. Contudo, aprenderá a mapear a biblioteca, a construir esquemas racionais para lidar com o caos. A certa altura – a experiência mais fundamental – descobrirá que o importante não é a obra, mas a viagem, a aventura da caça, mesmo que o livro a caçar não exista. Como não tenho espírito de aventura, em casa, a minha biblioteca está racionalmente organizada: temas e autores. Contudo, aqui e ali vou introduzindo pequenas clareiras onde o caos reina, os temas se cruzam e os autores se misturam. Isso serve para me lembrar a minha falta de espírito de aventura – ou então da necessidade de comprar mais estantes.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Leitura meditada

A vida literária da Áustria, nos primeiros trinta anos do século XX, é uma espécie de milagre: Robert Musil, Hermann Broch, Joseph Roth, Leo Perutz, Karl Kraus, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannsthal, Stefan Zweig. Contudo, se se quiser passar da Áustria para um espaço cultural mais alargado, aquele que é designado pelo termo Mitteleuropa (Europa Central), descobrimos que o milagre austríaco se inscreve numa área mais vasta de milagres literários. Desde muito cedo, a minha pátria literária foi essa Mitteleuropa, talvez por culpa de Franz Kafka, cuja leitura me mostrou um mundo literário que não era plausível para um meridional. Tudo isto vem a propósito da leitura de Das Spinnennetz (A Teia de Aranha), o primeiro romance de Joseph Roth. O autor expõe, em 1923, o foco psicológico que dá energia a dois fenómenos que vão ter, na história do século XX, as mais funestas consequências: trata-se do ressentimento, que é um dos elementos centrais tanto do nacionalismo como do anti-semitismo. Impressiona a clareza com que Roth, muito antes da catástrofe se declarar, a torna patente. Talvez a sua condição de judeu e de jornalista o tenha tornado sensível ao espírito do tempo. No entanto, o que é marcante no diagnóstico feito é a clara compreensão do papel do ressentimento na determinação da agência dos indivíduos. Os europeus — mesmo os meridionais, como os portugueses — fizeram uma dura aprendizagem sobre o papel do ressentimento na história. Quando os indivíduos ressentidos se tornam uma massa, as maiores desgraças estão ao virar da esquina. Essa aprendizagem parece já ter sido esquecida e vemos o ressentimento tomar conta de cada vez mais pessoas. É um problema difícil de tratar, pois o ressentido tem a causa da sua patologia em si mesmo, nas escolhas que fez e no talento — ou falta dele — que lhe coube em sorte. Nunca se culpará pelo seu falhanço, mas encontrará um bode expiatório, uma vítima sacrificial. Uma leitura meditada do primeiro romance de Roth ajuda-nos a compreender o mundo actual melhor do que muitas análises sociológicas ou de ciência política.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Arbitrariedade geográfica

Percorri sem pressa o molhe. O céu nublado, as águas cinzentas, os barcos ancorados. Parece uma praia da Normandia, pensei. Como tudo na realidade se desconcertou, é possível que as próprias praias tenham mudado de lugar. Não é improvável, nos tempos que correm, andar, por exemplo, pela Beira Alta e encontrar uma pequena cidade alemã ou belga, com os seus habitantes perplexos por, sem darem por isso, terem mudado de lugar, apesar de não terem mudado de cidade. Nasci num tempo em que ainda havia um reflexo de uma ordem no mundo. Mas um reflexo de uma ordem já não é uma ordem, mas um caos que ainda não tomou consciência de si mesmo. As décadas foram passando e aquilo que estava oculto foi-se revelando. A arbitrariedade tornou-se a imagem de marca do mundo. Talvez por isso a Geografia seja, no concerto dos saberes científicos, uma área em crise. Quem pode mapear uma realidade física ou social, se os espaços perderam a fixidez que outrora os ligava à Terra, sendo agora a sua distribuição o resultado de um baralhar de cartas de um jogador amante do acaso? Digo para mim mesmo: conversa idiota de um velho do Restelo. O meu tempo passou e aquilo que é para ti desordem é a ordem rígida dos que agora começam a olhar com alguma atenção para o sítio onde chegaram quando nasceram. Contudo, não me sinto convencido e arquitecto uma outra teoria. A realidade espacial onde habitamos sempre dependeu do arbítrio. Nunca o jogador de cartas amante do acaso esteve ocioso na sua distribuição dos lugares. Contudo, os olhos e o coração são cegos para a realidade: precisam de muito tempo para começarem a ver e ainda mais para crerem no que vêem. Estou em Portugal, mas a praia por onde caminhei esta manhã era normanda. O que me preocupa agora é saber onde estará a praia que aqui estava. Talvez ela volte um dia destes. É possível, porém, que só retorne daqui a séculos. E amanhã, de onde virá a praia que aqui haverá? Deveria fazer um registo das mudanças, para memória futura.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sem sentido

Por aqui o dia começou deslumbrante, mas, conforme as horas foram passando, o que havia de deslumbre foi sendo substituído por uma névoa esbranquiçada, como se fosse um véu de uma noiva abandonada no altar, trapo andrajoso, sujo, cravejado pelos dardos escuros da dor. Talvez a tonalidade do dia servisse para cenário de um romance policial, com um crime urdido nas teias virginais da vingança. A vítima fora encontrada com um estilete cravado no coração, de onde saíra apenas um fio de sangue insignificante. Ninguém sabia quem ele era e que culpas carregava na consciência. Só a noiva abandonada o conhecia. Isto, porém, não faz sentido, pois uma noiva abandonada no altar não tece vinganças, mas, livre de um futuro incerto, dá graças por o destino lhe ter perdoado a precipitação de um sim ou a falta de coragem de um não. O melhor é não imaginar crimes e detectives, deixar o dia correr e esperar que tudo siga o caminho traçado sabe-se lá onde ou por quem, sem noivas ultrajadas nem véus gastos pelo vitríolo da vingança.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Hara-Kiri

Em 1979, o filósofo alemão Hans Jonas, em Das Prinzip Verantwortung (O Princípio Responsabilidade), formulou um novo imperativo ético que se pode traduzir assim: age de modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra. Este princípio moral revela uma clara preocupação com o desenvolvimento das sociedades modernas e com o poder que elas têm, devido aos efeitos das tecnologias, de destruir a possibilidade de assegurar as condições para que uma vida humana seja possível no planeta. Esta preocupação foi recebida, por aqueles que não são tocados por ela, de quatro modos: em primeiro lugar, a indiferença perante essa preocupação, uma coisa de lunáticos; num segundo momento, quando a indiferença era já impossível de manter, passou-se à negação da relação causal entre a acção humana e a degradação do planeta; a terceira fase, depois de também a negação ser impossível, foi a da dissimulação: ficcionou-se a preocupação moral, enquanto tudo continuou a piorar; contudo, a própria consciência moral do problema era desagradável e, por isso, entrou-se numa quarta etapa: não apenas negar, mas afirmar e impor comportamentos que degradem efectivamente o planeta. Este desejo de destruição revela uma pulsão de morte, um desejo de aniquilação, um exercício niilista no qual estamos todos implicados. A nula relevância prática do princípio de Jonas deve-se a uma coisa muito simples: não nos sentimos responsáveis pelo futuro. O prazer do presente é muito mais relevante do que o cuidado com um futuro que desconhecemos como será. Provavelmente, só quando o presente se tornar uma dor contínua, a espécie perceberá o perigo em que se encontra e, mesmo nesse momento, não é seguro que o reconheça. É possível que a espécie esteja cansada de viver e tenha escolhido a destruição da casa como modalidade de hara-kiri.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Imaginações

Não sei o que se passa em mim. Por vezes, sou perturbado por estranhas decisões. Comecei ontem a ler Duna, de Frank Herbert. Qual o problema? Não foi esse romance que esteve na origem do filme Dune, de David Lynch? Sim, foi. Contudo, trata-se de ficção científica. Com tanta coisa fundamental para ler, por que razão gastar o tempo com esse tipo de literatura? Não faço ideia. Podia adiantar algumas razões. Por exemplo, gosto da editora portuguesa que publicou todos os romances da série; leio muitos livros publicados por ela. Outra razão será a capa: gosto das capas. E razões mais substantivas, não há? Esta pergunta veio nem sei bem de onde. Claro que posso apresentar razões mais interessantes. Se toda a ficção é um laboratório onde a vida se ensaia através de experiências imaginárias, a ficção científica fá-lo de um modo mais acentuado, pois desenha espaços e tempos que estão para além da experiência possível. Se não é assim, então deveria ser. Bem, não sou versado no tema, mas predispus-me a descobrir o que tem este género de literatura que represente um contributo da imaginação que não exista no romance tradicional. Fui educado numa espécie de literatura muito específica, a que se deu o nome de Filosofia. Os filósofos juram que usam a razão, deixando a imaginação para a arte. Nunca fiquei convencido. Os diálogos de Platão são racionalizações de um foco imaginário, o qual, não poucas vezes, é indisfarçável, e o autor, ao lado de argumentações mais ou menos sistemáticas, não consegue evitar o mito, o recurso explícito à imaginação, à literatura. Mesmo autores mais austeros, como Kant, fazem literatura, mobilizando a força da imaginação para dar vida e energia a conceitos e argumentos, uma literatura muito específica, que deve ser compreendida também a partir da poética e, pasme-se a heresia, da retórica. Volto à ficção científica: aquilo que me interessará, então, é ver como a poética e a retórica, utensílios da imaginação, aí operam. Estas são as minhas razões de hoje, talvez influenciado por ter ido à consulta de oftalmologia, tendo recebido a notícia de que os olhos de hoje estão como há dois anos e meio, que vá lá daqui a um ano, talvez haja novidades, porque, agora, ainda vejo bem. Eu achei que a médica também tinha uma certa propensão para a literatura, talvez para a ficção científica. Disse-me aquelas coisas depois de me espreitar para dentro dos olhos e ter-me posto a ler textos cada vez mais pequenos, que eu ia lendo sem óculos. Aliás, os textos não eram grande coisa. E, se os olhos me arderem, que lhes ponha um lubrificante. Imaginei que este era um recurso retórico desnecessário, que talvez ela não tivesse jeito para a ficção, nem a científica nem a outra. Mas nunca se sabe aquilo que vai na alma de uma pessoa que passa a vida a espreitar para dentro dos olhos dos outros.

domingo, 13 de julho de 2025

Ociosidades dominicais

Um domingo de Verão. Na banalidade de uma constatação esconde-se um mistério, o enigmático segredo que dorme esquecido nessa conjugação entre um dia da semana e uma estação do ano. Alguém dirá: Mistério? Trata-se antes de uma banalidade, pois todos os dias de qualquer semana estão conjugados com uma estação do ano. São convenções e os homens persistem em cultuar como verdades eternas aquilo que convencionaram. Aqui, aquiesço. Sim trata-se de uma banalidade. No entanto, acrescento, onde abunda a banalidade, superabunda o mistério, para fazer um pastiche retórico de uma conhecida frase de Paulo de Tarso. Recorde-se a ideia de banalidade do mal trazida por Hannah Arendt. Na mediocridade da vida quotidiana, por rotina e hábito, sem furor ou exaltação, o mal era metodicamente praticado. Contudo, essa banalidade de funcionário rotineiro na prática do mal não elimina – pelo contrário, acentua – o mistério do mal. Também a banalidade das convenções e das práticas quotidianas em vez de eliminarem o mistério que se esconde atrás delas, o acentua. Por isso, também na conjugação deste domingo com este Verão haverá um mistério. O facto de não sabermos qual, não invalida a sua existência. Esta ideia parece provir da pura ociosidade. E é verdade, só o ócio permite à mente desligar-se dos afazeres quotidianos e das preocupações com a necessidade e fornece o espaço para a especulação. Todos os mistérios têm a raiz naquele que é o mais radical de todos: porque existe o ser e não o nada. As religiões – pelo menos, as monoteístas – deram uma solução – Deus criou o ser a partir do nada – que não soluciona nada, pois a questão da existência de um Deus é tão ou mais misteriosa do que a existência do ser. Os mistérios que a banalidade esconde são emanações desse mistério último e fundamental, que contamina tudo o que existe, inclusiva a minha disposição para escrever este tipo de coisas em vez de estar a olhar o mar, contando os veleiros que passam.

sábado, 12 de julho de 2025

Exageros

No final da década de quarenta do século passado, Pierre Schaeffer traz para o campo musical as sonoridades do quotidiano e a manipulação de sons. A essa música deu-lhe o nome de música concreta em oposição à música erudita tradicional. Os sons concretos do mundo em oposição às abstracções sonoras a que se dava e dá o nome de música. Este é apenas um exemplo, no âmbitos das artes, em que foi possível rasgar os horizontes e pôr em causa a tradição. Podemos crer que o público e mesmo os especialistas terão ficado perplexos, pois o não musical era apresentado como musical, o não artístico era dado como artístico. Este episódio é, assim, mais um de um longo conflito entre o artista e o público. O gosto do público é sentido sempre como desadequado e aquilo que o artista procura está para além daquilo que agrada ao público, mesmo a um público educado. Se recuarmos a Kant, o juízo estético parte de uma experiência singular e eleva-se, através da reflexão, a uma comunidade de gosto, mesmo que apenas ideal. Ora, o que a arte do século XX pretende é quebrar esse laço entre a experiência singular e o gosto comunitário. Cada experiência da obra de arte deve permanecer na sua radical singularidade e, por isso, na sua incomunicabilidade. A arte mostrou-se, desse modo, como uma inimiga visceral do senso comum, ainda que ilustrado. Cada obra de arte é, desse modo, uma granada lançada sobre o público, pois este, com o seu gosto comum, é o inimigo da arte. Pode ser que esteja a exagerar. Este narrador, por vezes, é dado à hipérbole. Um narrador hiperbólico. Mas a hipérbole, como a caricatura, exagera para mostrar o que é decisivo e está escondido.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Paixão pela verdade

Os dias não estão muito saudáveis. Não, não me refiro à volubilidade de S. Pedro, mas ao conjunto de ideias absurdas que parecem ter invadido o mundo e que se aninham com surpreendente facilidade nas mentes humanas. Quanto mais absurdas são essas ideias, maiores são as legiões de adeptos que arrastam. É muito provável que Tertuliano nunca tenha dito ou escrito “creio porque é absurdo”; contudo, a máxima ilustra bem o mecanismo de formação de crenças na espécie a que pertenço. O problema dessas crenças não é existirem, mas o facto de elas moverem os homens, gerando ondas de fanatismo que se impõem — não sem violência — aos outros. Talvez o problema não seja tão antigo como se poderá pensar: Jan Assmann coloca-o em Moisés, naquilo a que chama a distinção mosaica. Moisés, ao propor a existência de um único Deus, o Deus verdadeiro, inaugurou uma nova maneira de pensar. Até aí, cada povo tinha os seus deuses e prestava-lhes culto conforme entendia. É a associação entre divindade única e verdade que abre o caminho não apenas para a imposição de uma crença — verdadeira, justificar-se-á — e a perseguição daqueles que não partilham dessa opinião. A partir do momento que uma crença se proclama como a única verdadeira, ela vai contaminar todas as outras, que passam a querer ser únicas e verdadeiras. Ora, uma das paixões mais funestas é a paixão pela verdade: as pessoas dispõem-se a morrer por ela, mas, acima de tudo, a matar em seu nome. E qualquer coisa absurda pode ser tomada por verdade. É esta proliferação de apaixonados pela verdade que tornam os dias de hoje pouco saudáveis.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Cuidado com o futuro

Um acaso levou-me à descoberta de uma incongruência, ou de um anacronismo, se se preferir. Numa obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, encontro uma referência a um S. Frutuoso de Braga. Fui pesquisar quem era e, nessa procura, encontro a referência de ter sido antecedido, no arcebispado de Braga, por Potâmio. É neste que está o problema. É dito ser um religioso português, bispo de Braga. Ora, Potâmio — assim como Frutuoso — viveu no século VII, altura em que Portugal não existia, nem ninguém pensava no assunto. Podia acontecer que existissem portugueses antes de existir Portugal, mas não é o caso. Primeiro existiu Portugal e, depois, vieram os portugueses. Potâmio seria um visigodo e, por certo, se lhe dissessem que era português, nem perceberia o que estavam a dizer. As fidelidades que temos são com o presente e com o passado. Se alguma fidelidade temos com o futuro, é o desejo de continuidade daquilo que amamos. Potâmio, caso fosse interrogado sobre o que desejaria para os dias de hoje, catorze séculos depois daquele em que viveu, diria que esperava que o reino visigodo continuasse vivo e próspero. Não quereria, por certo, ser despojado da sua identidade. Isto é um aviso para o futuro. Se, daqui a catorze séculos, existir neste sítio uma outra identidade política, eu — anónimo narrador desprovido de narrativa — quero continuar a ser português e não ser tido por uma outra coisa qualquer cuja natureza desconheço. Preservemo-nos do futuro.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Juízes e julgamentos

O corpo é um cruel juiz. Estava a reler textos escritos há muito e adormeci. Sobre eles, ficou um julgamento que não devo ignorar. Poderia argumentar que a condenação deve recair sobre o julgador, segundo a máxima popular: o bom julgador a si se julga. Isso, porém, seria tergiversar e cair numa fantasia infantil. O melhor será esquecer aqueles textos. Apagá-los. Outrora, os textos rasgavam-se ou queimavam-se, caso os autores fossem espíritos mais fogosos. Hoje, em aparência, tudo é mais higiénico. Não há papel ou cinza para limpar. Coisas que deveriam ser limpas são expressões como : uma brilhante auto-análise de um dos maiores pensadores do século XX. Nem me refiro à adjectivação da auto-análise. Com facilidade se atribuem epítetos e se proclamam grandezas. A pergunta, porém, que o leitor deve fazer é a seguinte: O tempo estará de acordo com essa classificação? Cronos é um juiz mais cruel do que o meu corpo. Aquilo a que uma época atribui a coroa de louros, o tempo, na sua desfaçatez, pode levar para a caverna escura do esquecimento. O mais sensato seria deixar a adjectivação de lado. Contudo, adjectivar é bem mais fácil do que descrever. Quando se diz que é um dos maiores pensadores, não se está a dizer rigorosamente nada. Alguém, vindo de outro planeta, poderia perguntar: Era dos mais altos? Quanto media? A resposta seria decepcionante. Se, porém, se desse uma explicação breve sobre o que pensou, isso seria mais adequado, embora tivesse o defeito de não tratar o leitor como um idiota.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Memórias

Por aqui está um excepcional dia de praia, o que, para mim, não é, de todo, uma boa notícia. Como sou dado à hipérbole, estou a exagerar. O dia está bom para fazer praia, mas isso não constitui, para mim, uma tão má notícia quanto quero fazer crer. Aliás, fui-lhe fazer uma visita. As minhas netas disseram logo que era um acontecimento: nunca me tinham visto na praia. Fiquei perplexo. Eu, que ali as levei tantas vezes, que ali brinquei com elas, e disso não ficou um vestígio na memória. Não se lembrava de me ver perto do mar, disse-me a mais nova. Ainda olhei para a mais velha, mas esta corroborou a irmã. Não sei o que fazer com esta informação. Talvez o melhor seja não fazer nada e criar uma sólida narrativa de que nunca fui com elas à praia. Será uma narrativa falsa, mas terá a aparência de verdadeira, e daí vir-lhe-á a solidez. Lembrar-se-ão do avô como aquele que nunca foi à praia com elas. Em contrapartida, não se esquecerão de que as levava, nesta altura do ano, a concertos de piano. Será justo. Não se pode sobrecarregar a memória das novas gerações. E não somos nós que escolhemos as memórias que ficarão de nós, caso fiquem algumas. Os poderes humanos são parcos e de grande fragilidade, ao contrário do desejo, que é infinito. Não tarda, terei de as ir buscar.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Louvor da trivialidade

A trivialidade é um disfarce daquilo que não é trivial, cuja luz é de tal modo intensa que não a suportaríamos. Cultivar a trivialidade é uma estratégia de sobrevivência, pois nenhum mortal poderia estar continuamente a confrontar-se com aquilo que causa espanto. Os antigos Gregos fizeram dele – do espanto – o início da Filosofia. Implicaria uma atitude radical de corte com o que parece óbvio, mas, mesmo aí, há um mecanismo de defesa. A Filosofia, ao furtar-se ao óbvio quotidiano, acaba por instituir uma obviedade mais complexa, mais elaborada, mas que acaba por ter o efeito de dissolver o espanto. Nem o corpo nem o espírito humanos suportariam estar, a cada instante, a confrontar as coisas óbvias e triviais, pois é nesta modalidade de existência – a obviedade e a trivialidade – que a vida é possível. Hábitos e rotinas fecham-nos os olhos para o excesso que toda a realidade comporta em si mesma. Isso, porém, é o preço a pagar para estarmos vivos. Isto tem uma consequência interessante: a vida implica sempre um grau de alienação, de estranhamento a si mesmo, pois aquilo que somos é sempre excessivo para aquilo que suportamos. Alienarmo-nos é uma estratégia de sobrevivência. Quem suportaria ver-se como realmente é? A educação de um ser humano é um processo de contínua trivialização de si, para que o excesso de luz e de trevas que há em cada um não o arraste para fora da vida. 

domingo, 6 de julho de 2025

Vazio

Referindo-se à teoria da História de Tolstói, Isaiah Berlin, no início do capítulo IV de O Ouriço e a Raposa, escreve: As teorias raramente nascem do vazio. Fiquei longos minutos a olhar para a frase. O meu problema não era o seu sentido, mas as possibilidades que abre quando parece fechá-las. A frase de Berlin diz duas coisas: uma, a que está explícita – a maioria das teorias não nasce do vazio – contudo, diz também que algumas teorias, embora raras, nascem do vazio. Como é possível tirar alguma coisa de onde não há nada? A resposta conhecida pertence ao campo da teologia e da religião: só Deus pode tirar alguma coisa do nada. Foi assim que criou o mundo – do nada tirou o ser. Isto, porém, é matéria de fé e não de análise racional. Nenhuma teoria pode ser extraída do vazio, pois ela, mal se formule, usa palavras, e estas estão longe de serem coisas vazias. Se há coisas cheias – grávidas de uma prole incomensurável – essas coisas são as palavras. Veja-se a quantidade de coisas que existe numa palavra como “casa”. Mais do que isso: não seria possível tirar do vazio uma teoria sobre casas, pois a própria palavra é uma teoria cheia de decisões epistemológicas. É essa teoria que permite excluir na referência de “casa” os garfos, os copos, os planetas, as pulgas, por exemplo. Nenhuma teoria pode ser tirada do vazio, a não ser que Deus se tenha tornado filósofo e decida criar uma teoria a partir do nada. Ora, se a discussão sobre a existência de um Deus é um beco sem saída, menos saída haveria para discutir se, caso Deus existisse, ele poderia ser filósofo. Pode-se pensar que, por aqui, se formulam teorias que, não vindo do vazio, são elas próprias vazias. Sim, é um facto que este narrador tenta criar pequenas teorias vazias. É um objectivo existencial. O problema é que falha sempre: elas contêm sempre qualquer coisa, ainda que errada. Acho que dormi mal. Acordei de um sonho estapafúrdio e fiquei com estes pensamentos, ainda por cima açulados por um vento que não me convidou a fazer a caminhada matinal.

sábado, 5 de julho de 2025

Bússola

Umas vezes estou em conflito aberto com o calendário; outras, num processo de desconhecimento radical. O primeiro caso acontece quando penso que se está num dia e, afinal, se está noutro; o segundo ocorre quando não faço a mínima ideia em que dia da semana se está. É este o caso de hoje. Faltam-me as referências. Aqui se condensa a diferença entre o erro e o desconhecimento: no primeiro caso, existe uma crença que se pensa verdadeira, mas que é falsa; no segundo, não há qualquer crença – apenas um vazio. Em que dia estamos?, pergunto-me, mas não consigo responder. Por norma, as pessoas preferem ter crenças falsas a não terem nenhuma: uma crença, mesmo errada, é uma bússola; a pessoa pensa que está a caminhar para Norte, mas dirige-se para Sul. Apesar disso, há uma consolação: caminha-se para algum lado. Eu prefiro não ter qualquer crença a ter uma errada. Quando não se tem uma crença, olha-se para a bússola e não se percebe que objecto é aquele. Em vez de me pôr a caminhar, fico sentado a pensar em coisas abstrusas ou a contemplar a minha ignorância. É neste momento que atinjo a sabedoria: a douta ignorância. Contudo, uma preferência não significa que seja isso que se faça. A maior parte das vezes ando de bússola na mão, sem a saber ler, pensando que vou a caminho do Oriente, enquanto me dirijo para Ocidente – esse lugar onde o Sol se põe, a luz se apaga e tudo acaba.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Mundos possíveis

Confirmei a tese de ontem. Na caminhada matinal, ao chegar ao molhe, este estava pejado de gaivotas. Também as praias eram poiso de bandos enormes dessas aves. Nem na água nem na areia se vislumbrava um único surfista. Se a tese não estava definitivamente confirmada – uma impossibilidade –, estava corroborada: a presença de surfistas implica a ausência de gaivotas. É evidente que o meu argumento é falacioso, mas poupo a demonstração. Terei de me cuidar, antes que pensem que creio na existência de uma relação causal entre a presença de surfistas e a ausência de gaivotas. Neste mundo, não é difícil apontar um contra-exemplo que mostre que a minha crença é falsa. Contudo, haverá um mundo possível em que a relação causal entre ambos os fenómenos será real. Podemos imaginar que, nesse mundo, os surfistas, um dia e por um motivo qualquer, decidiram atacar as gaivotas. A violência do ataque levou a que elas aprendessem a evitá-los, como uma modalidade de adaptação da espécie ao meio. Este mundo é possível porque nele não há qualquer contradição lógica. Um ataque de surfistas não é uma impossibilidade. A aprendizagem das gaivotas e a sua adaptação ao meio também não. O molhe que estava pejado desses animais termina num farol, e o ritual – o meu – é caminhar pelo molhe, contornar o farol e voltar por onde vim. São centenas de metros para um lado e para o outro, rodeado de água, com praias a perder de vista, barcos a passar e outros ancorados. Àquela hora da manhã ainda não havia pessoas nas praias. Só gaivotas. Agora que penso em tudo isto, descobri outra possibilidade. As gaivotas colonizam as praias, mas a certa altura transformam-se em surfistas e, por isso, quando se vêem uns, não se podem ver os outros, apesar de serem os mesmos. Imagino que haverá um mundo possível – talvez aquele em que Ovídio esteve para escrever as Metamorfoses – em que é possível aves transformarem-se em pessoas e vice-versa. Tudo é possível neste vasto universo. E, se não for neste, será num outro.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Autonomia da escrita

Não sei o que me deu, mas contra os meus hábitos – e esses hábitos não são meras rotinas, mas devoções de uma tradição arreigada no fundo do meu ser – decidi ir à praia. Perguntaram-me se estava bem. O melhor possível, respondi, embora não possa jurar que estivesse a dizer a verdade. Estive por lá cerca de duas horas, das quais há que descontar uma meia hora no bar. Caminhei, vi o mar, observei as pessoas. Não contei gaivotas, pois não vi nenhuma. O que reparei foi que o mar estava cheio de surfistas. Perguntei-me se haveria alguma relação entre a presença deles e a ausência de gaivotas, seguindo um princípio que me guia: os efeitos mais inesperados têm as causas mais estranhas. Este princípio, que se aplica a tudo o que acontece, pode ser responsável pelo que me sucedeu no pós-praia. Tinha pensado, como se fosse um dever irrefragável, em fazer um almoço frugal, talvez um esboço de jejum penitencial, como se vivesse no século XIX e estivesse a entrar em período quaresmal. Ora, o ter ido à praia, pisado areia, entrado em contacto – ligeiro, e apenas os pés – com a água do mar e recebido os raios que o sol decidiu dardejar sobre o meu pobre corpo, depois de tudo isso, chegado o almoço, descobri que a experiência me tinha aberto o apetite, que estava com fome e que não estava disponível para frugalidades e muito menos para penitências. Cedi. Agora, que o mal está feito, apesar do bem que me soube, tenho de repensar estes impulsos que me levaram a fazer o que por hábito me recuso a realizar. É assim que as pessoas se perdem. Fazem uma coisa e não esperam as consequências que ela trará. Teria sido mais assisado ter evitado a praia. Estou certo de que a frugalidade seria respeitada, mas faltar-me-ia assunto para escrever. Sempre podia meditar sobre a borbulha que me nasceu na cara, tentar descobrir de que causa excêntrica ela é efeito. O importante da escrita não é o assunto, o tema, mas o acto de escrever, de juntar letras em palavras, palavras em frases e frases em textos. A isto chamo: autonomia da escrita. Uma escrita autónoma é aquela que tem a sua razão de ser em si mesma e não num qualquer conteúdo. Se alguém argumentar com uma analogia dizendo que aquilo que digo seria o mesmo que dizer que o importante numa garrafa de vinho, não seria este, mas a garrafa, eu corroboraria. Do ponto de vista da garrafa, o importante é ela mesma, não o que ela contém. Com a escrita passa-se o mesmo.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ajustes e desajustes

Fechei a janela e o barulho da rua desvaneceu-se. Aqui, onde me encontro refugiado, as temperaturas são-me favoráveis. Até os olhos que esbraseavam caíram na rotina e deixaram de ser o prenúncio de um fim do mundo pelo fogo. Agora são apenas olhos, um pouco cansados, talvez a precisar de serem revistos – coisa que acontecerá em breve – para ajustar as lentes. Aliás, a partir de certa altura da existência, não são poucas as coisas que precisam de ir sendo ajustadas, mas nem sempre a tarefa é tão fácil de realizar quanto a afinação dos olhos. Se se pensar bem, a vida começa sempre em desajuste: são necessários muitos e muitos anos para se chegar a alguma precisão. Alcançada esta – quando é alcançada –, logo vem a hora em que as coisas começam a desafinar-se. Então inicia-se a saga do recurso aos afinadores. Estes são legião. Tenho passado estes últimos dias na companhia de um livro de um dos mais célebres filósofos do século XX – célebre por boas e por más razões. Reconheço, na obra, elevadíssima engenhosidade na sua fabricação, mas há qualquer coisa que me irrita. Trata-se de uma espécie de batota sub-reptícia. Aparentemente, o autor estaria comprometido com a verdade, mas o que se percebe – ou eu percebo, devido a uma mente enviesada – é uma preocupação com a persuasão de um certo auditório, composto pela elite intelectual, explorando estados de alma pouco razoáveis. Há, para falar segundo as categorias de Aristóteles, um excesso de pathos, o recurso a emoções, ainda que refinadas, de acordo com o auditório. Dito de outra maneira: há um desajuste entre a enunciação do que se pretende e aquilo que efectivamente se pretende. Isto, porém, é uma suspeita – muito provavelmente injusta –, resultado das coisas que se vão desafinando na minha mente. Daqui a pouco vou espreitar o mar. Nele, tudo se ajusta para ser aquilo que é: a tempestade é ajuste, a bonança é ajuste. Se recua, é ajuste; se avança, é ajuste. No mar, não há nada de humano, apesar do desajuste humano o invadir, mas ele persiste em ser o velho mar que sempre foi.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Demanda do Graal

Tenho de arrumar as coisas – ia dizer a tralha –, pois vou em demanda do Santo Graal. Contudo, aquela é para mim uma procura prosaica, nada comparável com a do Cálice da Última Ceia ou a da busca empreendida pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Se o encontrar – ao Graal –, partilho a informação sobre a sua natureza. Uma pessoa sensata dirá que, para encontrar alguma coisa, é preciso saber o que é. Ponto de vista discutível. Se se sabe o que é, então já, de algum modo, se encontrou o que se procura. A minha demanda, todavia, é mais radical: procuro, mas não sei o que procuro; saberei, porém, que o encontrei quando o encontrar. Será uma revelação e um encontro. Podia dar exemplos pessoais, mas isso seria expor a intimidade, ainda que narrativa, ao público – uma intimidade que, muito plausivelmente, não possuo. Quem tem uma intimidade não deve trazê-la para o espaço público; quem não a tem ainda deve ser mais cauteloso e protegê-la com mais afinco. Porquê? Porque, se se tem uma coisa, essa posse gera inveja e ressentimento; quando não se tem, a inveja e o ressentimento recrudescem ao incidir nesse poder ser sem posse. De certa maneira, sou como Ulrich, personagem central do romance de Musil, O Homem sem Qualidades: ele não tinha atributos definidos, mas tinha em aberto a possibilidade de ter qualquer um. Tal como eu. Também não tenho intimidade, mas a possibilidade de ter qualquer uma está em aberto. Ter uma intimidade é fechar-se a todas as outras. É possível que o Graal, objecto da minha demanda, seja uma intimidade. Se o for, porém, desisto de realizar o objectivo: prefiro a possibilidade à realidade. Como tantas vezes tenho escrito aqui, a realidade é como a história: uma velha rameira infrequentável.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Deflagrações

Está a acabar o sexto mês do ano. Junho fina-se entre calores. Não se pense, porém, que chegamos a meio do ano. Dos 365 dias que 2025 haverá de ter, hoje será centésimo octogésimo primeiro. Só ao meio-dia de 2 de Julho se alcançará essa meta. A partir daí tudo se inclina, cada vez mais, para o fim do ano. É como se depois de ter subido durante 182,5 dias a montanha, se começasse a descê-la. Oiço que esta informação não tem qualquer relevo e que ninguém quer saber dela. Se se escrevesse apenas sobre coisas relevantes, pensei, possivelmente nada teria sido escrito pela humanidade. E, depois, quem sabe aquilo que os outros querem saber. Hoje tinha duas tarefas para realizar. Uma, responder a um questionário, está acabada. A outra, enviar um email a uma editora por causa de uns livros que não chegaram, ainda está por fazer. A temperatura talvez me impeça de realizar mais do que uma tarefa por dia. Podia estar a ler, mas os olhos ardem-me. Por vezes, temo que peguem fogo. Têm-se visto tantas coisas, que não será impossível, de um momento para o outro, os olhos inflamarem-se e deles saírem labaredas. Isso seria impossível com os ouvidos, pois há entre eles um canal secreto por onde corre um vento fresco, que diminui a temperatura, e mesmo que um ouvido se inflame, logo a aragem apagará a deflagração. Na minha secretária repousam vários livros. Três deles, pelo menos, já os li. Por que razão os trouxe das estantes? Um enigma. Um outro jaz ao lado deles, mas esse não o li. Uma peça de teatro de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade. A capa diz: versão integral. Respiro descansado, pois se fosse apenas uma versão parcial ou resumida, talvez se atirasse para as três mil páginas. Kraus optou pela síntese e são apenas umas novecentas . Uma coisa é certa, aqueles não foram os últimos dias da humanidade. A primeira grande guerra foi terrível, mas ainda tivemos oportunidade para mais uma grande guerra, além das múltiplas pequenas e médias guerras, que parecem o resultado de globos oculares que se inflamam com facilidade e ateiam os conflitos num virar de olhos. O pior é o calor.

domingo, 29 de junho de 2025

Temas

Não sou só eu. Em As Sete Idades, de Louise Glück, encontramos o poema Marmeleiro. O primeiro verso estabelece, de imediato, uma relação comigo: No fim, só tínhamos o clima como tema. É o que me resta nestes dias sem nome – pois até o dia da semana se evapora da consciência – em que o calor cai sobre a cidade como um bombardeamento de poderosas esquadrilhas inimigas. Sim, também só tenho o clima como tema. Podia contar o terror do dia de ontem, mas nada acrescentaria ao tema do clima, pois foi dele que veio o terror, como se fosse um directório jacobino em exercício no poder, sempre com a guilhotina do sol à mão. O segundo verso do poema tem uma natureza salvífica: Felizmente, vivíamos num mundo com estações. A pluralidade de estações do ano traria uma diversificação temática às conversas de um casal a quem, faltando temas, não faltariam palavras. Também não me faltam palavras. Aliás, há em mim uma fonte borbulhante de vocábulos, sempre prontos a ser mobilizados para formarem frases atrás de frases. O pior é o tema. A minha expectativa é que o frio do Inverno e o calor do Verão me forneçam o que não tenho, assim como as indecisões climáticas da Primavera e do Outono. Acabei de espreitar a Sá Carneiro. Apenas casas e árvores na avenida. Nem carros passam, como se se tivesse voltado àqueles dias da pandemia, onde as coisas desapareceram do horizonte onde estavam habitualmente. Bebo água, dormito, deixo que pensamentos sem nexo dancem na minha mente e espero que o ataque funesto do inimigo passe, para poder ir à rua certificar-me de que ainda existe um espaço público, que a aviação inimiga não destruiu aquilo que levou séculos – talvez milénios – a erguer. Sim, eu sei: o resultado não é extraordinário, mas o que conta é o processo, e esse, pela sua longevidade, é extraordinário – tal como o clima. Ordinária é apenas a falta de tema. Felizmente, ainda não desapareceram as estações.

sábado, 28 de junho de 2025

Maldita referência

Chegou a época em que a consulta a um site meteorológico se tornou indispensável. Por aqui, a temperatura chegará hoje aos 42 graus, mas na terça-feira, aos 44. Nem sei o que dizer sobre o destempero de S. Pedro. Terei de ir a Lisboa, à festa, ao ar livre, de fim de ano lectivo do meu neto. Começa às três da tarde, quando estarão por ali 39 graus. Duvido que a direcção e os organizadores tenham o hábito de consultar a meteorologia quando programam estas coisas. Como não tenho vocação para mudar o mundo – e mesmo que a tivesse, o mundo não gosta de ser mudado – aceito as coisas como elas são, apesar de elas deverem ser de outra maneira. Não se trata de uma consciência demissionária das suas responsabilidades comunitárias, mas de saber o que a casa gasta – uma belíssima expressão – e ter idade suficiente para perceber que a casa não está interessada em novos produtos. Por casa, não me refiro ao colégio, mas a este país. Aliás, tenho assistido ao longo da vida a coisas extraordinárias. Não apenas à manutenção de coisas completamente disfuncionais, mas que fazem parte daquilo que a casa gasta, como, não poucas vezes, vejo pegar em coisas que funcionam muito bem e mudá-las até que se tornem disfuncionais. Se há uma coisa que os portugueses gostam é da disfunção. Consomem disfunção atrás de disfunção, com grande prazer. É isso que os alimenta e lhes permite dizer mal de tanta disfuncionalidade. O amor à disfunção é uma paixão pela maledicência. Temos medo de não haver matéria a maldizer, por isso apostamos tudo na disfunção. Não sei o que me deu, para hoje estar a dissecar a alma-pátria. Eis mais uma bela expressão: alma-pátria. É daquelas que Frege diria que tem sentido, mas não tem referência. Todos percebemos o que ela quer dizer, mas, mesmo que procuremos bem, nunca encontraremos uma alma-pátria. E isto revela o grandioso desígnio destes textos: falar de coisas que têm sentido, mas que não têm referência, que não se referem a nada. O pior é a temperatura alta, que não apenas tem sentido, como tem uma efectiva referência. Maldita Bedeutung.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Reciprocidades

Por vezes interesso-me pelo estado do mundo, mas, em contrapartida, o estado do mundo nunca se interessou por mim. Ora, uma relação onde não há reciprocidade é um casamento condenado. Kant, na Filosofia do Direito, tanto quanto me lembro, emitia um juízo negativo aos casamentos interclassistas e também aos poligâmicos. A razão seria a mesma: a ausência de reciprocidade. Não consta que o venerado filósofo de Königsberg tivesse inclinação para a poligamia – mas, quem sou eu para saber das inclinações de outro? – por isso, a explicação mais plausível para se ter mantido solteiro toda a vida é não ter encontrado uma mulher com quem pudesse estabelecer uma relação de reciprocidade. Se ele pensava que num casamento entre alguém com mais dinheiro ou influência e alguém com menos, este último estaria em desvantagem e, de algum modo, perderia a sua autonomia, também é plausível pensar que essa assimetria entre cônjuges estaria presente entre um homem como ele e uma mulher que não se interessasse pelo magno problema de saber se a Metafísica era possível enquanto ciência. A minha tese, porém, é outra. Certamente haveria mulheres dispostas a discutir, no leito matrimonial, o espinhoso problema que assombrou a Crítica da Razão Pura. No vasto mundo, pode-se encontrar de tudo. O problema é que Kant nunca saiu da cidade onde nasceu e, devido ao seu amor ao torrão natal, não encontrou aquela que lhe abriria o espírito para a possibilidade de tornar a Metafísica uma ciência ao lado da Física e da Matemática. Talvez, enquanto estudante, tenha ouvido uma outra versão, um mito urbano recolhido por algum biógrafo tardio. Kant terá dito que, quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela, e, quando chegou a uma situação económica desafogada, já não precisava de uma mulher. Se esta historieta é verdadeira, dever-se-ia perguntar ao eminente pensador como é que tal afirmação se coadunava com a fórmula da humanidade do imperativo categórico, que ordena respeitar a dignidade do outro, tratando-o sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Este texto é um exemplo do estado corrompido da minha mente: começo a falar de uma relação pessoal com o estado do mundo e acabo a lançar a suspeita de uma incoerência na mais alta personagem que a cidade de Königsberg alguma vez deu ao mundo.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

In vino veritas

Acabei de chegar. Fui a um bar de vinhos beber um copo. Caí, agora, numa metonímia banal: tomar o continente pelo conteúdo. Ninguém bebe copos, mas o líquido que está dentro deles. No meu caso, o conteúdo era vinho branco. Primeiro, um alvarinho; depois, um loureiro. Também ninguém bebe alvarinhos ou loureiros, mas os vinhos que se fazem destas castas. O alvarinho era interessante, mas não extraordinário. Contudo, o loureiro foi o melhor que bebi até hoje. Quem me vê, não poucas vezes me confunde com um nórdico, mas em certas coisas sou estruturalmente latino. Cerveja é, claro, bebida de nórdicos, bárbaros. O vinho é uma herança do velho Lácio. E nele se concentra muito do que há de extraordinário neste mundo e talvez em outros que não conhecemos. Requer a lentidão contemplativa. A cor – o loureiro tinha uma belíssima cor –, o aroma e, depois, a multiplicidade de sabores, tudo isso exige mais, muito mais do que um desejo de álcool. O famoso adágio in vino veritas não que dizer aquilo que se pensa. Não significa que bêbadas, as pessoas tendem a dizer a verdade, a revelar os segredos. A verdade que se manifesta no vinho não é a que está no sujeito que bebe, mas na coisa bebida. Nele, a realidade do mundo manifesta a sua essência e nessa manifestação está a verdade desse mundo. Um mundo que não permitisse o fabrico do vinho não seria um verdadeiro mundo, mas um simulacro. Todos nós pensamos em mundos possíveis, mas quando se pensa num mundo onde não existe vinho pensa-se num mundo impossível. Se eu fosse um Leibniz tardio – coisa que não sou – argumentaria que este é o melhor dos mundos possíveis. Porquê? Porque nele existe vinho e a música de Bach. Sim, estou a ouvir as Variações Goldberg, por Glenn Gould. Não, não estou a beber. Não suporto demasiada verdade num só dia.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Na mesoguarda

Podia ter sido mais um dia glorioso para a minha gesta – mas não foi. A causa? Uma noite de insónia. Quando me levantei para ir tratar de assuntos que a vida me colocou pela frente, percebi que a principal tarefa seria segurar as pálpebras, para que não se fechassem em algum momento inconveniente. Se se fecharem agora, ninguém quer saber. Aliás, é coisa que elas estão a tentar fazer. Resisto como posso, embalado pela música produzida pelos dedos ao chocarem contra as teclas. Sim, é uma composição musical contemporânea. De vanguarda. As vanguardas perderam o brilho de outros tempos. Ninguém quer saber de vanguardistas. Eles que se atolem no futuro – onde chegarão antes de nós. É isto que significa ser de vanguarda: atolar-se no pântano do futuro antes dos outros. Não se pense que sou retaguardista. Não sou. O meu lugar é no meio – na mesoguarda –, na perfeita equidistância dos que correm para diante e dos que correm para trás. No meio está a virtude da imobilidade. Sou um homem virtuoso – mas a cair de sono.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Química

Acordei sorumbático, uma visão cinzenta sobre o estado das coisas, embora nem o estado nem as coisas estivessem definidos na minha consciência. Também algumas dores, sem importância, induzidas pela incerteza do tempo, me obsidiavam. Quando me cansei, decidi-me a tomar um comprimido receitado por uma médica. Quando a acção do químico começou a fazer efeito, não apenas as dores deixaram de me importunar, como o cinzento com que via o mundo da manhã, deu lugar a uma visão mais solar pela tarde. Agora que penso em tudo isso, vejo nascer em mim dois núcleos de perplexidades. O primeiro grupo é de natureza epistémica: será que a minha visão sorumbática e cinzenta do estado das coisas era mesmo minha ou induzida pela manhã sombria? Ou será que a manhã estava sombria porque, estando eu com visões em cinzento, a via assim? O segundo núcleo toca a ontologia. Será que a natureza das minhas visões é o fruto de combinações químicas? Basta uma leve alteração química no organismo, e logo a minha visão se torna outra? E, para tornar as coisas piores, se a visão é apenas uma metonímia, onde se toma a parte pelo todo? E se não é apenas a natureza da minha visão das coisas que é fruto de meras combinações químicas, mas todo o meu ser? Preocupamo-nos com a nossa identidade, elaboramos teorias sobre o eu e o self, mas não deveríamos antes preocuparmo-nos com a química? Talvez vivamos sob uma despótica tirania química, onde somos, ao mesmo tempo, tiranos e tiranizados, enquanto construímos narrativas onde nunca deixamos de ser os heróis – mesmo quando fazemos de anti-heróis – num mundo ora malévolo, ora benevolente, conforme a disposição e o humor da química. O pior é que as próprias ilusões são ainda fruto da química.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Um dia de glória

Um dia esfusiante para acrescentar glória à minha gesta gloriosa. A manhã ocupei-a em luta contra os dragões burocráticos. Enfrentei um ligado aos impostos e outro aos deveres profissionais que ainda vou tendo. Luta feroz, terrível, mas a minha auréola de herói saiu reforçada: perdi ambos os combates, pois ninguém derrota o fisco, nem as invenções que um deus inútil forja para espalhar a inutilidade entre os mortais. Animado, reservei-me para depois do almoço enfrentar o terceiro dragão. Um dragão técnico. Apesar de tudo, ainda sou quase uma pessoa normal. Tenho um contrato com uma operadora de telecomunicações, uma daquelas ínvias instituições que me vendem a possibilidade de telecomunicar, internetar, telefonar – apesar de ter mandado para o lixo o telefone fixo – e telever. Fazem isso a troco de uma mensalidade generosa, com a finalidade de testarem a minha inclinação natural para a bondade. Ora, essa Santa Casa da Misericórdia Telecomunicacional decidiu trocar dois aparelhos que montara cá em casa por um único. Teve uma ideia brilhante. Nada de enviar um profissional para fazer o processo, mas testar a capacidade técnica dos assistidos pela sua generosa caridade. Sim, fomos nós, os donos da casa e felizes consumidores telecomunicacionais, que recebemos o imperativo – estou a medir as palavras – de desmontar e montar aquela tralha tecnológica, o qual foi acompanhado por uma terrível ameaça, a lembrar uma praga do Egipto, para o caso de não se entregar os dois aparelhos substituídos. Havia instruções para a desmontagem e remontagem, claro. Umas em papel, mas a letra era tão pequena que nem com a lupa se conseguiam ler. Outras num manual digital em pdf, mas eram omissas precisamente naquilo que não conseguíamos resolver. Havia ainda outras, um vídeo com um rapaz que pensava que tinha graça e debitava instruções a uma velocidade digna de um Grande Prémio de Fórmula 1, tratando os clientes como se tivesse andado com eles na noite a fumar substâncias ilícitas. Agora, pensei ao fim de três minutos, perante este dragão, estou perdido. Desmontei, montei, liguei, desliguei. Decido telefonar e, nem sei como, não me enganei no número. Depois daqueles preâmbulos com vozes gravadas, sou encaminhado para um assistente. Não era um assistente, era uma assistente. Não, na verdade, era um assistente, pois, apesar da voz feminina, foi um anjo descido dos céus que nos ajudou –esta era uma tarefa colaborativa – a matar o dragão. Para ser mais preciso, foi o anjo que matou o dragão, só para acrescentar glória à minha gesta nesta Terra. Um grande dia.

domingo, 22 de junho de 2025

Vida doméstica

A minha neta acabou de sair. Retorna a Lisboa, depois de uma semana por aqui, em luta com a economia. Agora, a casa ficou mais vazia. Ontem também cá esteve o mais novo. Perguntou-me se queria jogar xadrez, mas não estive pelos ajustes. Tinha de procurar o tabuleiro e as peças. Ficámos pelas damas. Ganhou-me um jogo e empatámos outro. No fim, comentou que o avô o tinha deixado ganhar. Desmenti. Este desmentido não foi uma mentira piedosa. Faço sempre um certo esforço para jogar seja o que for, e ontem estava com pouca disposição, mas há coisas que não se recusam. Transbordando de entusiasmo fingido, lá fui movendo as peças sem grande nexo e ele ganhou mesmo. Tenho de lhe comprar um jogo de xadrez, mais tarde ficará com o meu. Na adolescência joguei muito xadrez, mas, depois, perdi o interesse, talvez a paciência. Tenho de a ganhar, para o ensinar. A relação entre avós e netos é uma coisa muito especial. Não conheci nenhum avô – as avós, sim –, pois morreram antes de eu nascer, e, por vezes, sinto que foi um indecência que o destino me fez a mim, que me privou deles, e a eles, que morreram ainda relativamente novos. Está um dia indeciso, estranho como uma página de metafísica, soturno como uma sermão moral. Os pássaros meus vizinhos – são aves urbanas – não param de falar, mas ainda não consegui descobrir o alfabeto que usam e por isso perco-me na tradução. Eles estão seguros da incompreensibilidade; sabendo-me por perto não se coíbem de dizer o que têm a dizer. Não há problemas que ele nos oiça. Ouvir é uma coisa e compreender é outra, dizem entre si, e ele – referindo-se a mim – não compreende nada do que dizemos. Só posso corroborar. Não entendo nada do que eles dizem, nem do que eu escrevo ou penso, caso ainda pense. Bebo água para não desidratar.

sábado, 21 de junho de 2025

Meditação solsticial

Começou o Verão. O solstício foi lá pelas 3 horas e 42 minutos, mas não dei por ele. Estava a dormir. Também se estivesse acordado não daria por ele. Não é coisa que se veja, oiça, cheire, saboreie ou tacteie. Isto nada nos diz sobre ele, mas é muito esclarecedor sobre as limitações a que os nossos órgãos sensoriais estão sujeitos. Hoje, quando saí de manhã, estava muito menos Verão do que ontem, anteontem e antes de anteontem. A empresa fornecedora de estações do ano cumpre os prazos, mas entrega produtos de duvidosa qualidade. É capaz de enviar uma Primavera que parece um Verão consumado, para logo de seguida nos dar um Verão que é uma Primavera tardia. Este é um tema inesgotável por aqui. Sem conversa, logo vem o clima, o calendário, as estações, a imprevisibilidade do tempo, a má gestão de S. Pedro. Hoje será o maior dia do ano; depois, começa um lento definhamento até chegar ao mais pequeno. Podia falar de coisas mais interessantes e fingir erudição. Por exemplo, escrever sobre Georg Groddeck. Dele sabia duas coisas: que teria tido alguma influência no doutor Sigmund Freud e que na colecção TEL da Gallimard havia a sua obra mais conhecida, Le Livre du Ça. Uma das características mais notáveis da colecção, para além dos autores que publicava, eram as capas de Vasarely. Descobri, entretanto, outras coisas interessantes sobre o autor, mas guardo-as para futura oportunidade, não vá ter uma crise de falta de inspiração. Um outro tema curioso seria os meus erros de digitação. Por que razão escrevo sempre falat em vez de falta? Tenho outros, que raramente consigo evitar. Os dedos precipitam-se e querem ultrapassar-se uns aos outros. Sofro de indisciplina digital. Não tenho dedos prussianos, é a conclusão a que chego. Lamento-me muito da falta de ideias, mas o mundo e eu mesmo estamos repletos de matérias aliciantes. Meu Deus, quem poderá querer ignorar o drama da minha precipitação digital? Ontem, refresquei-me com o velho mazagrã, coisa de senhoras de outras eras, mas o que me apetece agora é uma bela cerveja belga, uma daquelas produzidas pelos monges trapistas. O problema é que nunca me lembro de comprar cerveja. Talvez seja demasiado filho do Lácio para me entregar a uma bebida de bárbaros, mesmo que abençoada. Como o Verão astronómico começou, fico-me pela água.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Mazagrã

Abro um dos eReaders que uso para leitura e descubro um romance que não li até ao fim. Faltam, segundo a informação disponível, 59 minutos para acabar, o que equivale, na contabilidade do dispositivo, a 21% da obra. Um pequeno romance. Não me lembro das razões que me levaram a suspender a leitura, mas devem existir. Ou talvez não. Sou eu que, por desleixo trazido pelo hábito, olho para tudo o que acontece como se estivesse amarrado a uma cadeia causal. Nada acontece sem que haja uma razão suficiente que explique por que é assim e não de outro modo, diria o senhor Gottfried Leibniz. Este princípio, porém, entedia-me. Não se trata de dizer que é falso ou verdadeiro, mas que provoca em mim, com a temperatura ambiente, um tédio incalculável. Tomemos em consideração o dístico de Angelus Silesius: A rosa é sem porquê, floresce porque floresce, / Não cuida de si própria, nem pergunta se a vêem. A rosa não é a rosa, ou só a rosa. Do ponto de vista poético, é uma metonímia. Não é apenas ela que é destituída de porquê, mas toda a realidade, onde se inclui o meu abandono do romance. Abandonei-o porque o abandonei. Só isso. Hoje todos sabemos – pelo menos os que se interessam pelo assunto – a razão por que a rosa floresce; sabe-se as cadeias causais que conduzem ao florescimento. Contudo, apesar disso, nada sabemos, e a verdade está toda no verso de Silesius. Refresco-me com um copo de mazagrã. Sabe-me bem, mas esse saber bem é como o florescer da rosa, e é nele que está toda a sua verdade. A autora do romance – omito o nome – é uma bela e interessante mulher. Vi-a há dias numa entrevista. Está na idade em que as mulheres florescem, fazendo-o sem porquê. Contudo, cuida de si própria e, por certo, já se perguntou ao que veio. E é aí que começa a queda. Voltarei ao romance um dia destes. Por agora, fico no mazagrã.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Beatices

Está um tempo esbranquiçado, uma luz anémica e um calor insuportável. Será das poeiras vindas de África, que decidiram emigrar do sítio onde estavam e procurar o estatuto de imigrantes, lançando um véu de irrealidade sobre este lugar que, por se acolher junto a uma serra, foi abandonado pelos ventos marítimos. Lá dentro, sob a rigorosa supervisão da avó, a minha neta mais velha confronta-se com as matérias da economia, para enfrentar o exame da próxima semana. Quando realizei esses exames, vivia-se um tempo extraordinário. Não apenas os professores fumavam na sala onde decorria a prova, como os alunos podiam fazer o mesmo. Isto é tão inverosímil que, quando penso nisso, acho que, como os actuais modelos de linguagem, conhecidos como Inteligência Artificial, estou a alucinar. O prompt que recebo de mim mesmo encontra um algoritmo que constrói uma história. Contudo, consigo mesmo ver-me a fabricar um cinzeiro em pleno exame, onde depositava a cinza e as beatas dos cigarros. Nunca soube a razão de se ter dado o nome de beata ao que resta do cigarro depois de fumado. Decidi, agora, perguntar a um Large Language Model a razão desse uso linguístico. Ele foi generoso e estabeleceu, de imediato, uma relação entre a beata do cigarro e a mulher beata da Igreja. Uma seria o que resta do consumo de um cigarro; a outra, o que resta pelo consumo do ardor religioso de alguém que se queima pela fé, que se consome pela devoção. Não fiquei particularmente convencido, mas não tenho contra-argumentos. A origem latina das palavras beato e beatitude não remete directamente para o contexto religioso, mas para a felicidade. Beatitude é felicidade, e beato é aquele que é feliz. Depois, o Cristianismo apropriou-se das palavras, dando-lhes um sentido mais restrito. Contudo, podemos imaginar, sem contradição, ateus beatos, isto é, felizes. Não consigo recordar-me, contudo, se, ao fumar em pleno exame, sentia alguma beatitude. Posso imaginar que sim, o que faria de mim, naqueles momentos, um beato a depositar uma beata num cinzeiro improvisado. Mesmo que essa memória seja falsa, alguma beatitude haverá nela para que a rememore. A minha neta não fuma, mas já ninguém fuma em exames. Tem uma vantagem sobre mim: a sabedoria que levar não se evola, durante a prova, com o fumo do cigarro. 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Escutar

Oiço Für Alina, de Arvo Pärt, e interrogo-me sobre a diferença do uso do silêncio nesta peça e em 4’33”, de John Cage. Talvez, pensei, que um caminho interpretativo fosse recorrer à distinção proposta por Agostinho de Hipona entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. O silêncio de Für Alina é o espaço onde o sagrado se manifesta, envolvendo a expectativa do auditor e transportando-o para uma outra dimensão, a qual não existe noutro lugar, mas que mostra que o aqui é já um além. O ostensivo silêncio da peça de John Cage é uma abertura. Não ao sagrado, mas à sonoridade do mundo. É aqui que a Cidade do Homem, de Agostinho, terá menos pregnância. Não se trata de escutar os sons do amor sui, do amor de si dos homens, mas do mundo em geral, onde a sonoridade humana não necessita de ter um estatuto especial, mesmo que, quando a peça é interpretada num auditório, o silêncio que a compõe seja maioritariamente ferido pelo ruído humano. O que une as duas peças, na sua radical diversidade, é o desejo de escuta. A escuta do sagrado e a escuta do mundo. E nisso há um compromisso com algo que está a morrer: a disciplina da escuta. Talvez essa disciplina da escuta tivesse, na nossa tradição cultural, começado a morrer com Sócrates e a sua necessidade de se envolver no diálogo como caminho para a verdade. Isso subverte a tradição do pitagorismo. A comunidade pitagórica estava dividida entre acusmáticos e matemáticos. Os primeiros estariam numa espécie de período de aprendizagem, que poderia chegar aos cinco anos. A sua função era escutar a lição do mestre sem lhe ver a face. O essencial era, antes de ter o direito à palavra, exercitar o dever de escutar. O diálogo platónico, que surgia em contraponto com a retórica demagógica dos sofistas, mais do que uma condenação do ruído público, acabou por ser uma legitimação da ruína da disciplina da escuta. Talvez porque escutar se tenha tornado, nos tempos modernos, um pesadelo, a música, por vezes, tenta abrir clareiras para que os homens rememorem esse acto de humildade que é escutar o outro, seja este um homem, um deus, o rumor do vento ou a música das esferas celestes. Também eu preciso de aprender a escutar. Em vez de ficar em silêncio perante o desenrolar de Für Alina, fui escrevendo, escrevendo.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Estranheza

Desconheço a razão, mas pus-me a ouvir um álbum de 1975, de um tempo que ainda não tinha chegado aos vinte anos. Um estilo de música que me recusei a cultivar – o rock progressivo –, mas que fui ouvindo, nessa época em que se ouviam essas coisas. Enquanto o álbum, proveniente de uma plataforma musical, vai correndo, tento imaginar-me nesses dias. Não encontro nada de extraordinário, a não ser a banalidade da existência. Na verdade, desconheço-me naqueles traços que recordo. Isto não é uma negação do que fui no passado, é apenas perplexidade. Caso a vida me desse mais cinquenta anos, uma impossibilidade biológica, e me oferecesse uma capacidade de pensar idêntica à que ainda me resta, por certo, aquele que sou hoje seria um estranho para esse eu impossível. Enquanto escrevo, as canções vão correndo. Em mim, porém, nada vibra. Aquilo parece-me uma xaropada, mas, disciplinado, obrigo-me a ouvir até ao fim, tentando descobrir o que, por vezes, me levava a ouvir estas canções, sem um particular desagrado. Aqueles foram uns estranhos anos, embora na altura me parecessem normais. Imagino que todas as décadas são tempos estranhos, o que tem uma consequência extraordinária: a vida mais vulgar é feita de coisas estranhas, feitas de uma familiaridade inquietante. Chego aqui e suspendo a tentação de cair – toda a tentação está ligada a uma queda – na exegese dos conceitos Unheimlich e Unheimlichkeit provenientes de Freud e de Heidegger. Deixemo-los a repousar lá no etéreo lugar que lhes cabe. Ponhamos de lado o familiar, o estranho, a inquietante estranheza. Embora, pensar-me em 1975 não deixe de ser uma inquietante estranheza.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Casamento

Hoje, estive quatro horas em videoconferência, uma modalidade branda de enlouquecer. Não, equivoquei-me. A modalidade não é branda, mas áspera. Sendo assim, a loucura que me calhar será também ela áspera, crespa, rugosa. Talvez acre e ácida ao mesmo tempo. Se enlouquecer desse modo, a culpa não será minha. Tão pouco, dos genes recebidos, pois são genes muito bons. Quero dizer: são os melhores que consegui, embora sem fazer nada para isso. A culpa do meu futuro enlouquecimento não poderá ficar solteira, mas temo que nessa altura não saiba qual o marido com que devo acasalá-la. Talvez nem consiga para ela uma simples união de facto. Agora, poderia casar esse hipotética culpa com o videoconferenciar. Contudo, como ainda não estou louco, não há culpa, embora haja marido – ou parceiro – para ela, que até lá terá de se entregar à abstinência. O casamento exige a mais pura virgindade. A culpa e o videoconferenciar descobrirão um com o outro os factos da vida. Também é possível que a vida não tenha factos e, por isso, não haja nada para descobrir. Pode-se argumentar que este texto anuncia que o videoconferenciar não ficará abstinente por muito tempo. Cada um que julgue, mas poupem-me os pormenores. Se estou a ficar louco, uma presunção sem fundamento, quero entrar nessa fase da existência sem saber. A ignorância é uma amante virtuosa, mais do que a inocência.

domingo, 15 de junho de 2025

Dobrar o cabo

Dobrámos o meio de Junho e preparamo-nos para lançar âncora no porto do Estio. Então, os dias começarão a diminuir. Cheguei tarde a casa, vindo de Lisboa, e antes de escrever fui fazer a minha caminhada. A noite tinha-se apossado da cidade e, apesar da iluminação pública, as pessoas eram apenas vultos, sombras sorrateiras. No percurso escolhido, há uma capela dedicada a Santo António, por certo o de Lisboa; aqui não haverá devotos do santo em versão paduana. No átrio, vivia-se ainda o rescaldo das festas em honra do santo. Havia farturas à venda numa roulotte à beira da estrada. Não se pense que caí na tentação. Passeio ao largo. Num palco, alguém cantava uma música que passa por popular, mas que é apenas um exercício de mau gosto, esse mau gosto que se apossou da cultura popular e que transbordou para todo lado. Passei rápido, não fosse contaminado por algum vírus. Entrei na avenida, e conforme ia andando chegava até mim o perfume doce e intenso das flores das tílias. As árvores estão belíssimas, mas o aroma é enjoativo. Haverá quem goste. Apesar dessa leve disfunção aromática, sentia-me bem, penetrando solitário na solidão da noite. Enquanto contemplava a pujança das tílias, lembrei-me dos jacarandás da 5 de Outubro, já sem o esplendor que devem ter tido há uns dias. Além de terrível, a beleza é efémera. Por vezes, não há nada melhor do que uma trivialidade para dizer o que as coisas são. Aliás, haverá coisa mais trivial do que o ser, esse objecto último de toda a meditação filosófica?