domingo, 11 de junho de 2023

Bebidas

Para o que é a norma, a norma dos domingos, esclareça-se, almocei cedo. Bebo agora café. Há muito que, num movimento centrípeto, deixei de frequentar cafés, reduzindo-me ao convívio do lar ou comigo mesmo para tomar uma das bebidas de que mais gosto. Há, para além da água, bebidas notáveis. O café, por exemplo. O vinho, uma boa aguardente vínica, o cognac e, como não podia deixar de ser, o whiskey, a versão irlandesa de preferência à escocesa, a qual não leva e. O Word sublinhou-me coganc, assinalando um terrível erro, pois só conhece conhaque. Erro pior cometi há muitos anos quando, num restaurante em França, onde me serviam um cognac e, imprudente, falei de armagnac. O proprietário seria um típico cognaquiano e não me mandou fuzilar por pouco. Um cognac resulta de uma tripla destilação de vinho branco, enquanto o armagnac apenas de uma, não há comparação, sublinhou perante a minha heresia, a qual consistiu apenas na nomeação da coisa, sem fazer comparações. Se o pobre senhor fosse filósofo dira que pertenciam a paradigmas diferentes e, como tal, incomensuráveis. Sobrevivi, mas a partir daí nada de comentários sobre bebidas, pois aquilo pareceu-me pior do que uma disputa política ou mesmo futebolística, que ainda é pior. A realidade, triste realidade, é que, nos tempos que correm, deixei os destilados numa outra era e restrinjo-me a uma santíssima trindade. Água, vinho e café. A água purifica-me, o vinho dá-me o pouco espírito que tenho e o café talvez me mantenha acordado, mas tenho dúvidas. Dá-me prazer. Daqui a pouco chega o meu neto. Tenho de me preparar.

sábado, 10 de junho de 2023

Mitologias

Há pouco passei uns minutos diante da televisão. Num canal de desporto, via-se uma das mais importantes corridas de automóveis, as 24 Horas de Le Mans. Há cinquenta anos eu teria ficado muito mais do que os minutos que fiquei. Nessa altura, as corridas fascinavam-me. Hoje, o que me fascinou não foram os carros que giram interminavelmente pelos mesmos lugares, mas o facto de isso me fascinar há cinquenta anos. Não demorou muito a que o fascínio desse lugar ao alheamento. Será essa a natureza das paixões, um fogo intenso que termina nas cinzas da indiferença. Enquanto arde, parece ser coisa eterna. Terminada a combustão, a vida refaz-se noutros horizontes. De que me lembro desses anos em que as 24 Horas de Le Mans faziam parte da minha mitologia pessoal, bem como dos meus amigos de então? Da feroz rivalidade entre os Ferraris 512S e os Porsches 917K e da morte, faz amanhã 51 anos, de Jo Bonnier, na altura um piloto da Lola. Os Ferraris eram vermelhos e os Porsches, azul-claro com uma lista cor-de-laranja, salvo erro. A experiência diante da televisão não me elucidou sobre o que me apaixonava naqueles tempos. Os comentários fizeram-me sorrir, perguntar-me como é que adultos podem mostrar, perante um simples divertimento, um entusiasmo de jovens acabados de sair da adolescência. Por certo, há cinquenta anos ter-lhes-ia dado a máxima atenção e pensaria que eram sábios. Cada um de nós traz em si um conjunto de mitologias. As mais intensas foram aquelas que, iniciando-se na infância, foram morrendo com o aproximar da idade adulta. A partir daí os mitos morreram e passaram a existir razões, mesmo que, por vezes, travestidas de paixões.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Sonhos

Descubro, com a prestimosa ajuda de Alexander Kluge, que Theodor Adorno, em carta escrita a de 2 de Agosto de 1935 para Walter Benjamin, afirmou o seguinte: Chaque époque rêve la suivante. Estas frases nunca deixam de ser fascinantes, mas o fascínio é um exercício de cegueira. Poder-se-ia perguntar quais as provas que Adorno tem do que afirma. Se isso fosse verdade, bastaria descobrir o que sonha cada época para saber o que virá a seguir. O pior é que as épocas não sonham e os homens, que nunca deixam de sonhar, sonham com coisas tão diferentes que, caso o dito de Adorno fosse verdadeiro, a época a vir seria não uma, mas múltiplas épocas, em conformidade com os diversos sonhos existentes na época anterior. Este tipo de afirmações revela que os homens, mesmo os mais racionais, estão sempre dispostos ao augúrio. Seja no voo das aves, seja nos sonhos dos indivíduos ou das épocas. Existe um inconformismo com o facto de o futuro estar oculto por uma espessa e intransponível muralha. Este narrador está convencido do contrário do que afirma Adorno. Nenhuma nova época se reconhece nos sonhos da anterior, achá-los-á sempre descabidos e, irremediavelmente, presos ao mundo que acabou. Se por acaso as épocas sonhassem, não sonhariam o mundo do futuro, mas o do presente, a do seu presente. O que nos vale, porém, é que as épocas não sonham.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Encarnações

Por quantas encarnações passa uma alma? Ora, não se pense que este narrador se tornou adepto da teoria da reencarnação. Por encarnações entende-se as várias faces, ou máscaras, que, ao longo da vida, uma pessoa vai usando. Nada de transmigrações, apenas metamorfoses. Será que eu sou a mesma pessoa do que aquela que eu era há vinte anos. Tenho dúvidas. Estas meditações foram desencadeadas por uma súbita nostalgia que me pôs a ouvir coisas que eu ouvia noutra encarnação. A nostalgia, porventura, será um sintoma de que sou a mesma pessoa, mas talvez não seja prova suficiente para me convencer. O dia está triste e ventoso. Um sol anémico, alguns chuviscos. Entrego-me a meditações silenciosas. Na verdade, não são meditações, mas antes ruminações e cismas. O pensamento vai correndo, embora, como um bom ruminador e um ainda melhor cismador, não chegue a lado nenhum. Os meus argumentos nunca têm conclusão. E se por acaso encontro alguma conclusão, ela é destituída de premissas. A música parou. Vou deixar a nostalgia dissipar-se e recuperar aquilo que sou nos dias de hoje. O passado é uma sombra pesada, um país estrangeiro em que, acredito, nunca vivi.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não jogo aos dados

Estava a preparar-me para o feriado de amanhã quando me deu o sono. Tive de fazer um grande esforço para não interromper a preparação. Estas coisas têm de ser levadas a sério. Nunca se deve entrar por um feriado dentro sem o devido planeamento, antecedido por um período mais ou menos longo de deliberação. Há quem dê valor ao improviso, defenda que a vida se deve enfrentar com tudo aquilo que tem de inesperado e inquietante. Na verdade, desculpas de mau pagador de quem gere a existência segundo o princípio de incerteza de Heisenberg. Eu sei que o princípio de aplica nos domínios da mecânica quântica, e só neles, um lugar pouco recomendável para pessoas de bem. Contudo, ao falar dele, sempre posso aparentar erudição, e as aparências são a realidade de quem é, como este narrador, destituído de essência. Não me vou pôr aqui a falar de posições e momentos lineares, do facto do crescimento da certeza de um implicar o aumento da incerteza do outro. Não falo disso, em primeiro lugar, porque não sei nada sobre o assunto. Depois, porque não vem ao caso. Aqui defende-se tudo o que é certeza, mesmo que seja a mais estúpida, e procura-se com denodo a sua certificação. Se Deus não joga aos dados, como afirmou Einstein, seria eu que iria jogar aos dados com um feriado, ainda por cima dia santo? Não sou assim tão estulto, embora, não raras vezes, o pareça. Vou continuar a preparar o feriado de amanhã.

terça-feira, 6 de junho de 2023

O mais decisivo

Junho não é um mês fácil, embora tivesse a obrigação de o ser. Deveria entregar-se a amenidades, longe do furor estival e esquecido das intempéries invernosas. A prova de que estamos numa era negra manifesta-se no comportamento dos próprios meses, no esquecimento ostensivo dos seus deveres, da sua desatenção a todos os imperativos a que se submeteram na origem dos tempos. Quando foi altura de arranjarem um lugar no calendário, comprometeram-se a tudo e a mais alguma coisa. Agora, é o que se vê e o que se sente. E não há quem ponha o calendário nos eixos. Temo que nem um astuto Ulisses, tão devotado aos ardis mais inconcebíveis, teria poder para pôr os meses nos eixos ou nos carris, caso se prefira a metáfora ferroviária. Enquanto escrevo estas lamentações tão cheias de trivialidades, não paro de bocejar. Se dou sono a mim mesmo, o que não farei aos outros? Em resumo, sou um chato e talvez essa seja a minha principal característica. De lá de dentro vem um diálogo sobre propriedades matemáticas, diálogo a que minha pobre neta tem de se submeter, apesar dos mais de cem quilómetros de distância. Esta coisa das videoconferências é uma chatice, pensará ela, enquanto boceja e tenta resolver um exercício. Ora, não fora um maçador inveterado, escreveria coisas como estas: Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha e, levantando no ar o seu membro, mijou para cima deles tão energicamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito. Sem contar com as mulheres e com as criancinhas. Como sou o que sou, tive de deixar isto para o senhor Rabelais, o qual deu bem conta da tarefa. Diante de mim tenho um livro que é uma longa entrevista a um amigo meu, um amigo de há mais de quarenta anos. A certa altura ele diz: Platão ainda me desafia, continua presente… e delicia-me enquanto leitor! Uma grande parte da filosofia como a conhecemos é franchising de Platão, se é que não é toda. O que torna duas pessoas amigas é o facto de coincidiram naquilo que é decisivo. E Platão é, atrevo-me a dizê-lo, aquilo que é mais decisivo na tradição ocidental, e não apenas na filosofia. Um vento de noroeste atravessa Junho e eu penso numa grande baía onde pequenos veleiros deslizam à procura do porto do crepúsculo.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Enigmas

Sento-me para ver a Primavera passar, mas um calor lúgubre cai sobre o corpo, a pele parece estalar. Se viesse chuva e trovoada, tudo melhoraria, ouvi há pouco, quando, na rua, me escondia do sol. Retornado a casa, paro diante das orquídeas. Apenas uma ainda não floriu, mas já não faltará muito. O que não sei é se será possível estarem todas floridas ao mesmo tempo. As temporãs começam a ter dificuldade em segurar as flores, que têm um ar tristonho, um semblante que anuncia a queda iminente. A língua, qualquer língua, é uma coisa extraordinária. Veja-se a distância semântica que vai de iminência a eminência. Troca-se uma vogal e tudo muda. Talvez isso se passe em todas as coisas. Imagine-se uma equipa de um desporto qualquer. Troca um jogador e a realidade passa a ser outra. Pensa-se na língua como instrumento de expressão, mas ela também é, no seu conjunto, um símbolo do mundo, a sua estrutura reflecte a estrutura desse mundo. Todo o mundo se encontra em qualquer língua. Podemos pensar, talvez sem errar, que qualquer coisa no mundo pode ser o símbolo desse mundo. Jorge Luís Borges dá-nos, num conto denominado Aleph, uma visão restrita desta simbolização. Haveria um ponto do espaço, por acaso, em Buenos Aires, que abarcaria toda a realidade do universo. Ora, podemos ir mais longe e pensar que qualquer coisa ou ponto do universo contém a totalidade do universo, mesmo um habitante da mais recôndita província ainda traz consigo esse universo. O que é espantoso é que não sinta o peso que transporta. Este será o enigma dos enigmas, que nem o calor mais sinistro poderá apagar.

domingo, 4 de junho de 2023

Da perfeição

Acabei de ler, durante a insónia desta última noite, o romance de Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas Mann, Professor Unrat ou o Fim de um Tirano. É um excelente romance e prova provada de que o génio dos Mann não recaiu apenas em Thomas. Não encontrei mais nenhuma obra de Heinrich traduzida para português, apesar da sua produção ter sido considerável. Talvez alguém se lembre de dar continuidade à tradução das suas obras. Os livros de Heinrich foram queimados pelos nazis, quando ele já estava fora da Alemanha. Passou por Portugal a caminho dos Estados Unidos. A tradução portuguesa de Professor Unrat contém múltiplas informações sobre o escritor, desde as relações tensas com o irmão Thomas, que acabaram em reconciliação, até à notícia do suicídio de duas irmãs Mann. Este tem sido um belo domingo, entregue ao não fazer nada, a mais nobre das ocupações, aquela que é um sintoma da perfeição, num mundo repleto de imperfeições. Isto não significa que aquele que entra na casa do não fazer nada é um ser perfeito. Não, não é, mas reconhece que a perfeição reside não na azáfama que tomou conta do mundo, mas nessa imobilidade que imita o motor imóvel, para retomar, de novo, uma metáfora proveniente do velho discípulo de Platão. Agora, enquanto nada faço, tenho de decidir qual o romance que irei ler nesses longos minutos de insónia.

sábado, 3 de junho de 2023

Problemas de linguagem

Troveja, relampeja e choveja. Bem, choveja era uma ideia para rimar, mas não se pode rimar por dá cá aquela palha. O Word anda a ter lições de erudição. Não gostou que tivesse usado a expressão ‘dá cá aquela palha’, sublinhou-a, em estilo pontilhista, e propôs a substituição, sem se rir, por ‘um motivo fútil’.  A realidade é que tem estado a chover copiosamente, enquanto se ouve e vê nos céus a ira de Zeus, num espectáculo multimédia, com laivos realistas. Voltemos ao ‘dá cá aquela palha’. O processador de texto achou-a linguagem informal, apelando a uma mais formal. Pergunto-me quem andará a educar o Word. Vivemos num mundo informal, se não mesmo informe, logo a linguagem deve estar de acordo com o mundo. Só assim ela será capaz de o exprimir. Imagine-se que eu escrevia ‘mas não se pode rimar por um motivo fútil’. Logo se pensaria que tinha enlouquecido e que agora me tinha entregado a uma linguagem pomposa, empolada, que eu sofria, além de outros males físicos e morais, de afectação, e sabe-se lá mais de quê. Com esta conversa mole, Zeus abrandou a ira, a chuva deixou de cair, entre as nuvens avista-se, agora, pedaços azuis do céu, e o Sol, escondido atrás de uma nuvem esbranquiçada, envia uma luz porosa que cai sob a copa das árvores e as retira da cinza em que tinham caído, permitindo-lhe verdejar diante dos meus olhos. Gosto de espreitar as primeiras frases de um livro, talvez seja uma espécie de voyeurismo, mas já é tarde para abandonar o vício. Diante de mim tenho um que começa assim: A 13 de dezembro de 1880, cêrca das onze horas da manhan, era enorme a affluencia de gente na pequena povoação de Paardekraal, situada proximo de Heidelberg, cidade do Transvaal ou República da Africa do Sul. Esta era a ortografia ainda em vigor no ano de 1905, uma ortografia monárquica, ou que a monarquia não conseguira destruir, apesar de o ter tentado, com o álibi da simplificação, coisa em que a república foi mais bem-sucedida. Não me interessa muito saber as razões que levaram àquela afluência inusitada numa aldeola do Transval, nem o motivo por que um escritor português, Eduardo de Noronha, dedica um romance, O Extermínio de um Povo, ao assunto. Basta-me contemplar aquelas palavras que os simplificadores decidiram exterminar. Tens de te decidir, vociferou o homúnculo que vive na caverna da minha mente, se és adepto da escrita ao gosto popular ou da velha escola armada em erudita, cheia de consoantes mudas. Encolhi os ombros. Não há paciência para idiotas, pensei. Voltou a chover, mas não troveja.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Santa ignorância

Há coisas que os homens nunca deviam saber. Veja-se por exemplo o seguinte: O rei Uther Pendragon, governante de toda a Grã-Bretanha, estava em guerra havia muitos anos com o duque de Tintagil na Cornualha, quando soube da beleza de Lady Igraine, a esposa do duque. Eis uma novidade desnecessária a um rei. Nunca se sabe quão funestas são as consequências que um conhecimento arrasta atrás de si. Não se pense, porém, que este caso é original. Basta recuar ao paraíso. Também o saber que Eva adquiriu era desnecessário e as consequências dessa sabedoria são aquelas que todos experimentamos. Até o mais extremo e radical dos ateus sabe pelo menos uma coisa. Mesmo que nunca tenha existido um paraíso originário, nem um Adão, nem uma Eva, nem uma árvore do conhecimento, as consequências do acto de Eva e de Adão são absoluta e incondicionalmente verdadeiras. Alguém interessado em discussões estéreis perguntará de imediato como é que um efeito pode existir e ser verdadeiro, sendo falsas as causas. Uns rudimentos de lógica dão a chave para o mistério. Imaginemos a seguinte proposição condicional: Se existiu um paraíso e nele havia um casal humano (Adão e Eva) criado por Deus, que se deixou tentar e comeu o fruto proibido, então os seres humanos tornaram-se mortais, têm de trabalhar e tudo o mais que lhes acontece a cada dia.  Se a proposição antecedente, a que vai do ‘Se’ até ao ‘então’ é falsa, a consequente, a que se segue ao então, é verdadeira. Logo, a proposição condicional é verdadeira. Se Eva não tivesse curiosidade em saber ao que sabia o fruto da árvore do conhecimento, também Uther Pendragon não saberia da beleza de Lady Igraine, e o mundo seria um lugar mais respirável. E assim entro na parte final desta sexta-feira. Há uma trovoada seca, a atmosfera está irrespirável e este narrador, sem apetite para os deveres que tem pela frente, ouve os Gurre-Lieder, de Arnold Schönberg.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Designações

Estou a ouvir o concerto nº 1 de Il Cimento dell’Armonia e dell’Invenzione, Opus 8, de Antonio Vivaldi. Ao todo são doze concertos, mas quase só são conhecidos do grande público os quatro primeiros, ditos As Quatro Estações. É curioso o processo de denominação desses concertos. Começa com a Primavera, depois o Verão, segue-se o Outono e, de imediato, o Inverno. O quinto, talvez por as estações serem só quatro, recebe o nome de Tempestade no Mar, e o sexto a designação de O Prazer. A partir daí, não há títulos. Terá Vivaldi ficado sem imaginação para encontrar designações para os últimos seis? A estes apenas coube o número e a tonalidade. Talvez ele tenha pensado que, nestes últimos concertos, não deveria simbolizar fosse o que fosse. Seriam símbolos de si mesmos, pura música sem qualquer mácula exterior. Ou talvez lhe tenha dado nomes e estes se tenham perdido, ou ele se tenha esquecido. Lá fora, o céu está com um ar tempestuoso, mas não chove, não troveja, nada. Entre a escrita destas palavras e chamadas de telemóvel, chegou o quinto concerto. Há uma tempestade marítima, o mar agitado, raios e coriscos fazem os marinheiros praguejar, o revérbero nas águas encadeia quem as olha, a música é uma sombra cintilante na pradaria de Junho, onde os rebanhos adormecem. Volto à cidade, embora esta não seja mais do que uma pequena vila exausta, a perder sangue, uma terra vergada pela anemia. O mar tempestuoso fica longe. Na rua, um casal passa, ele à frente, ela atrás, vão presos à sua indiferença, enquanto o CD chega ao primeiro movimento, Allegro, do concerto Il Piacere. Suspendo a escrita e deixo-me levar no prazer de ser levado.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Em louvor da convenção

Maio, maduro Maio. Amadureceu de tal modo que está a cair de podre. A frase não é particularmente imaginativa, mas tem uma dupla vantagem. Assinala a efeméride, o fim do mês, e abre este texto, para o qual não me ocorria ideia alguma. Também poderia escrever o seguinte: Todos cantaram, dançando: / - Maio está morto! Viva Junho! Viva o novo mês! Isso , porém, seria apropriar-me de um excerto de Irène Némirovsky, que no romance Dois escreveu: Todos cantaram, dançando: / - 1920 está morto! Viva 1921! Viva o novo ano! O problema não seria tanto o plágio, mas a falta de força do escrito, do deste narrador. Uma coisa é comemorar a passagem de ano, outra bem diferente é a de assinalar a transição de um mês para o outro. Do ponto de vista físico, a realidade é exactamente a mesma, mas na perspectiva da psicologia colectiva são coisas absolutamente diferentes. Uma convenção, dir-se-á. Sim, uma convenção, mas nós seres humanos somos o que somos também porque existem convenções. Quando se é adolescente ou pós-adolescente é-se anticonvencional, mas esse sarampelho passa com idade. Se, para infelicidade da pessoa, se torna crónico, então é melhor consultar um médico da especialidade. Isto significa que este narrador é profundamente convencional e não se espere dele nada mais do que convenções e trivialidades. Se alguém estiver interessado em vanguardas, então está no pior sítio para as encontrar. Aqui não se marcha para a frente, mas também não se recua. Aqui é o lugar da pura imobilidade. Mais quieto só o motor imóvel, o qual, apesar da imobilidade, faz mover o mundo.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Palavras

Um dilema. Deixemos de lado os calendários digitais e concentremo-nos nos de papel. Que tipo será preferível? Aquele em que as folhas dos meses estão presas num sistema de argolas e que, acabado o mês, se faz girar a folha para trás ou os que exigem que a folha seja arrancada e deitada fora? São duas concepções de tempo diferentes. Na última, o tempo é visto como linear, esgotando-se para toda a eternidade. Na primeira, porém, subiste um sintoma do tempo cíclico. Ao fazer rodar a folha para trás, fica-se com a impressão de que ela acabará por voltar, numa cadeia interminável. É uma ilusão como todos sabemos, pois, acabado o ano, o calendário não volta ao Janeiro que passou, mas é deitado fora e substituído por outro, com um Janeiro novinho em folha. No entanto, uma ilusão pode ser bem mais do que um erro cognitivo. Pode ser um sinal de que a sensação de um tempo linear que se devora a si mesmo está incrustada no eterno retorno do mesmo. Nos dias que correm, as pessoas estão muito preocupadas com a vexata quaestio da verdade. Uns porque não suportam a sua luz e querem apagá-la, outros porque desejam que ela brilhe mais intensamente. O núcleo do drama reside nas palavras. Com elas podemos fazer quase tudo, inventar ou apagar problemas, estabelecer as mais inusitadas relações, produzir as meditações mais levianas, como a das folhas do calendário ou outras que se propagam nestes textos, cujo núcleo central é o disparate em forma de pensamento. Nos anos setenta, havia uma canção interpretada por Alain Delon e Dalida. A certa altura, ela dizia: paroles et paroles et paroles. Ora, se me falta uma filosofia para tratar do assunto, há sempre uma cançoneta, daquelas que passavam na rádio, perdida no fundo negro da minha memória que explica aquilo que há a explicar. Palavras, leva-as o vento.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Questões climáticas

Isto anda mal. Por isto refiro-me à imaginação. Parece estar pouco disponível para encontrar tema para esta narrativa. Resta-me falar do clima. Por aqui chove e chove desde a manhã. Aliás, já chovia quando ainda não tinha despontado a aurora de róseos dedos, pois acordei às tantas da noite e ouvi aquilo que me pareceu ser chuva. Até o assunto do clima se esgota rapidamente. Talvez seja essa a medida de todas as coisas humanas, esgotarem-se demasiado depressa. Sim, eu sei, há coisas que parecem nunca ter fim. Isso, porém, não passa de uma aparência e nem tudo o que parece é, como sublinha a sabedoria popular. Por desfastio, estou a ouvir uns quintetos com piano, de João Domingos Bomtempo. Ora, a questão climática persegue-me mesmo na música. Logo o homem haveria de se chamar Bomtempo. Por aqui, há uma família conhecida como os Má Tempo, assim mesmo. Não consta que tragam mais tempestades e ciclones do que qualquer outra família. Estes nomes são um mistério. Aliás, tudo é um mistério e o que não nos parece ser misterioso deve-se apenas à habituação do olhar. De tanto vermos uma coisa, pensamos que a conhecemos. Isso, porém, é uma armadilha que as coisas lançam e nós caímos nela. Elas querem repousar descansadas, temerosas das nossas indagações, então deixam que criemos ilusões sobre o nosso conhecimento. Quando estamos distraídos riem-se de nós. Se ficamos atentos, fingem-se de mortas, o que é sempre uma boa solução.

domingo, 28 de maio de 2023

Da estupidez

O último ensaio do livro Ensaios, de Robert Musil, não é bem um ensaio, mas o texto de uma conferência proferida em Viena, no dia 11 de Março de 1937, com o título Über die Dummheit, Da estupidez, na tradução portuguesa. Eis um tema sobre o qual sou versado e sou-o de uma forma decisiva, isto é, de uma forma prática. Não se pense, porém, que me reconheço como estúpido. Impossível. A prática vem de pensar muito no assunto, como se verá na sequência. Todos nós, seres humanos, estamos convencidos de que estamos rodeados pela estupidez, mas pela estupidez dos outros. Se se fizer um inquérito, por maior que seja a amostra, não se encontrará um caso que seja de alguém que se reconheça como estúpido. Isto conduz-nos a uma primeira conclusão, a estupidez é sempre um problema dos outros. Nenhum eu tomará a palavra e dirá: eu sou estúpido. Se o bom senso, no dizer de Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que tem, a estupidez, pelo contrário, é a coisa que mais está em falta nesse mesmo mundo, pois não há ninguém que não reconheça estar desapossado dela, de ser um miserável no que toca à estupidez. Portanto, a estupidez é um problema dos outros pronomes pessoais. É um problema do tu, do ele e do ela, do vós e do eles e do elas. Só as primeiras pessoas, do singular ou do plural, não são estúpidas. Se o fossem como poderiam ser primeiras pessoas? É sabido que aquilo que faz com que uma primeira pessoa seja primeira, mesmo na região etérea da gramática, é a ausência de estupidez. Alguém poderia objectar que não é certo que um nós não contenha um conjunto de estúpidos. Um nós resulta da junção de vários eus. Ora, se não há nenhum eu que seja estúpido, aonde é que um conjunto de eus iria buscar a estupidez? A nenhures. Um problema prático. Muitas almas cheias de boa-vontade costumam perguntar sobre como erradicar do mundo a estupidez, coisa de estão desprovidas, mas que sabem existir ao seu redor. Eu tenho uma solução, embora desconfie que quem me poderia auxiliar nessa gesta gloriosa não esteja disposto a fazê-lo. Bastaria reduzir os pronomes pessoais às primeiras pessoas do singular e do plural. Não havendo nem tu, nem ele, nem ela, nem vós, nem eles, nem elas, também não haveria estupidez. Haverá, porém, algum gramático com alma de redentor do mundo disposto a abolir esses malfadados pronomes pessoais? Desconfio que não, ou não fora ele um estúpido ele.

sábado, 27 de maio de 2023

Mar da vulgaridade

A manhã passada em trivialidades, daquelas que compõem a vida e que sem elas, esta não seria possível. Imagino que o programa existencial produzido para gerir a vida humana ache relevante que a maior parte da curta existência que cabe a cada um seja gasta em banalidades. Talvez não suportássemos ter sido feitos de outra forma. Não conseguiríamos viver, ou mesmo sobreviver, num mundo onde a vida fosse composta por singularidades, extravagâncias e originalidades. Cairíamos por terra logo ao segundo assalto. Vistas assim as coisas, faz sentido que mergulhemos no mar da vulgaridade e orientemos o frívolo barco da nossa existência por essas ninharias que compõem o quotidiano. Comprar pão, beber café, mandar lavar o carro, comprar peúgas ou uma caixa de cerejas, com a qual se foi trivialmente enganado. Caixas de diversos preços e calibres. Compra-se uma de maior calibre, paga-se mais. A realidade, todavia, é que estamos em Portugal, e o calibre que justificava o preço só tinha tocado as cerejas de cima. As de baixo eram miseravelmente pequenas e, para azedar o ânimo, sensaboronas, ao contrário das outras. Julgo que isto fará também parte da trivial arte de ser português. A música corre por aqui, vai variando, de Satie a Messiaen, embora o que me vai na alma seja o desejo de dormir uma sesta, como se fosse espanhol, o que, manifestamente, não sou, nem tenho nostalgia de uma unidade ibérica. Tenho muitas coisas para fazer, mas o melhor é ir dormir.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Do sólido ao gasoso

Uma visita ao registo civil. Eis um belo título para uma novela de suspense. Por aqui, o registo civil mudou, há dias, das antigas instalações para umas modernas. Uma pessoa chega, um segurança levanta-se da secretária e, depois de questionar a finalidade da visita, dá instruções sobre o modus operandi. Retirada a senha de uma máquina que tem por função dar senhas a quem as pede, as pessoas sentam-se e aguardam que num monitor surja o número da sua e a indicação do balcão a que deve dirigir-se. Sentei-me e aguardei, isto é, fui aguardando, pois estamos num território onde o tempo é vagaroso. Quando estava a chegar a vez da minha senha, a senhora evaporou-se do balcão. Passado um espaço de tempo apreciável, vejo-a aproximar-se do lugar, senti que tinha chegado a minha hora, mas sem que eu desse por isso tornou a evaporar-se. Estou num mundo onde as coordenadas físicas são diferentes das habituais, pensei. Passado mais um intervalo generoso, a senhora que tem um talento especial para viajar entre os estados sólido e o gasoso, lá se solidificou na cadeira e, como na lotaria, saiu o número da minha cautela. A senhora foi amável, talvez não muito segura, mas enfim. A certa altura confessou sabe, este processo é um pouco moroso e nós somos apenas três e uma das minhas colegas, por problemas pessoais, teve de faltar, são coisas que acontecem. Pois são, anuí.  E continuou a confissão o melhor é mesmo fazer uma marcação para outro dia, onde estejamos todas e assim haverá mais tempo, a senhora conservadora pode dar uma ajuda. Fazemos assim, fica aqui marcado na agenda (uma agenda em papel), o senhor tira a senha na mesma, mas dirige-se logo ao balcão, diz que tem uma marcação. Encolhi os ombros e disse que sim, que faria isso. Tenho esperança de que a colega resolva os problemas e volte ao serviço, não vá ser precisa outra marcação. A burocracia nacional é uma instituição. Em tempos havia uma coisa extraordinária, que, entretanto, caiu em desuso, julgo. Era a certidão de nascimento. Para as coisas mais estapafúrdias não bastava a presença da pessoa e o bilhete de identidade. Sem a certidão de nascimento, a burocracia nacional não tinha a certeza de que aquela pessoa que estava ali tinha de facto nascido. Imagine-se que um não nascido chegava e queria tratar do casamento ou do divórcio, ou sabe-se lá o quê, o que um não nascido pode querer fazer neste mundo, neste universo onde há pessoas que passam, com facilidade desusada, do estado sólido ao gasoso, embora tenham mais dificuldade em voltar a solidificar-se.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Magnanimidades

Maio escoa-se. Da rua vêm barulhos que me incomodam. Talvez ande a dormir pouco e de dia não tenha paciência para o que perturba uma atmosfera pacífica e silenciosa. Acabei de ler o romance Devorar o Céu, de Paolo Giordano, autor de A Solidão dos Números Primos, que nunca li. Na contracapa de Devorar o Céu estão impressas várias opiniões sobre a obra. Um romance magnânimo, segundo o The New York Times Book Review. Fico perplexo. Será a magnanimidade uma categoria literária ou de crítica literária? Não consegui encontrar o texto onde a obra terá sido assim sentenciada. Faz-me lembrar um dito de Roland Barthes sobre o adjectivo agradável, um dito que talvez seja apócrifo. Diz-se que uma coisa é agradável quando nada se tem a dizer sobre ela. Depois de um convite, profere-se, como agradecimento, foi uma noite agradável, muito agradável. É possível que Barthes nunca tenha dito ou escrito nada de parecido, mas seja ou não ele o autor, o dito capta a coisa. Ora, um romance magnânimo pode estar longe de ser um romance magnífico. É verdade que existe alguma magnanimidade, talvez excessiva, para coisas que o romance manifesta, mas o adjectivo magnânimo soou-me a agradável. Contudo, o romance não é agradável, no sentido do dito de Barthes, mas um romance que merece ser lido e que capta o ethos de uma geração que me é estranha. Quando se fala no ethos de uma geração, faz-se uma generalização imprópria. As gerações têm múltiplos ethos. Uns diferentes, outros antagónicos. O do romance é o dos activistas climáticos radicais e do niilismo que se esconde em todo o agir que, ultrapassando a justa medida, se torna hiperbólico. Acabado o romance, tenho um problema para resolver. Qual será o próximo? Depois penso numa coisa que terei lido já não sei bem onde. Na hora da morte, ou depois dela, o Supremo Juiz perguntar-te-á o que fizeste e não o que leste. Essa frase perturbou-me em tempos. Havia nela uma estranha semelhança com a 11ª tese de Marx ad Feuerbach: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Ora, sempre preferi a interpretação à transformação, sempre dei mais importância ao ler do que ao fazer. Quanto mais se faz, pior se torna a realidade. Exagero, mas talvez esteja hoje dedicado à hipérbole. Maio aproxima-se do fim, mas isso não é um alívio.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Défice hermenêutico

Chove e troveja, o sopro do vento empurra a ramagem das árvores, não avisto ninguém na rua, mas um gato esconde-se debaixo de um carro, espreguiça-se, bem o vejo, mas logo se senta como só os gatos se sabem sentar. Olho os céus à procura de sinais, mas não existem, ou se existem não consigo descortiná-los. Talvez seja melhor assim, pois se os visse não haveria de saber interpretá-los. Apesar da pequena intempérie, os pássaros meus vizinhos continuam a entregar-se a estranhas conversas. Presumo que sejam estranhas, pois também não consigo decifrá-las. Os meus poderes hermenêuticos andam por baixo. Hoje, ao passar pela avenida marginal duas coisas chamaram-me a atenção. A primeira foi os castanheiros. Todos os anos, a época em que florescem é para mim um grande prazer. Este ano, contudo, a floração foi miserável, senão pindérica. Eis outro sinal que não consigo interpretar. A segunda coisa que me chamou a atenção foi o anúncio das festas da aldeia – sim, eu sou um aldeão – onde aterrei neste planeta. Não tenho grande experiência dessas efemérides, mas continuam a ser para mim um mistério. Via as pessoas muito envolvidas, exuberantes, orgulhosas, um entusiasmo transbordante, para não falar em rivalidades, mas nunca consegui encontrar o que motivava tais estados de alma. Aquilo não era mais decepcionante do que a generalidade das coisas humanas, mas não deixava de o ser. Talvez a grandeza da festividade resida na sua pequenez, mas hoje não é o melhor dia para fazer interpretações. As minhas relações com Hermes estão tensas. Numa plataforma que agrega notícias e pseudonotícias vejo anunciar um artigo em que me revelará quais são os três signos mais poderosos do zodíaco. Decido ver. O meu não está lá. Bem me parecia que era um falhado. Contudo, segundo me disseram em tempos tenho o ascendente e a Lua num daqueles que se encontra no top três dos mais fortes. Em resumo, não me saiu a sorte grande, mas tenho a terminação. Há muito que não ouvia esta expressão. Seja como for, não sei como empregar a força que impregna o meu ascendente e a minha lua, se é que possuo um ascendente (sobre quem?) e uma lua. Talvez por isso não passe de um miserável narrador. Parou de chover.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Uma teoria da loucura

Um alarme, presumo que de um carro, esteve mais de um quarto de hora a tocar. Estava a começar a enlouquecer quando alguém o parou. Foi uma sensação de alívio. Não nego a utilidade do dispositivo, mas tem efeitos colaterais desagradáveis, pois parecem ter sido concebidos para afastar ladrões e espalhar loucura no mundo. As pessoas começam a ouvir o ruído, nasce de imediato a esperança de que o proprietário acorrerá para calar a coisa. O proprietário, porém, não reconhece o som ou finge que não está a ouvir. A cabeça começa a ficar em água. Nesse ambiente húmido introduzem-se os primeiros germes da loucura. Quanto maior a humidade, mais depressa os germes se multiplicam. A norma, representada pela curva de Gauss, mostra que geralmente o som é desligado antes que os processos de enlouquecimento se tornem irreversíveis, mas, posso afirmá-lo, nem sempre isso acontece. Então, as pessoas entram no túnel na loucura, com os germes desta a turbilhonar por dentro do cérebro, de onde começa a sair uma água suja e malcheirosa. Nesse momento, incomodado com o aroma, alguém se apieda da vítima e chama uma ambulância. Chegada esta, saem dela polícias que tomam conta da ocorrência e transportam o novo louco para o lar dos loucos, onde a maior parte está ali devido a alarmes que não são desligados a tempo. Escapei por pouco.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Da menoridade

Hoje, as promessas foram cumpridas e choveu por aqui com alguma abundância. Isto salva a face da meteorologia como ciência profética. Por vezes, acertam nas previsões, coisa que mais raramente acontece na Economia. Mesmo depois de tudo consumado os augúrios sobre o crescimento do PIB mostram-se, muitas vezes, incapazes de oferecer um palpite que não seja depois corrigido. Quando era muito novo, ainda pensei em aderir à seita económica, mas o destino, na prudência que o caracteriza, resguardou-me de dar esse passo no mundo das trevas, que mais parece uma casa de apostas do que o lugar onde existe e se pratica uma ciência. Ontem, talvez por ser dia de descanso, vi alguns vídeos antigos com o antropólogo René Girard, que morreu em 2015. Não é desinteressante a tese sobre a origem da violência na sociedade. Trata-se de uma consequência da rivalidade mimética. Os seres humanos desejam aquilo que o outro deseja. Se A deseja x, então B também deseja x, não pelo valor deste, mas porque A o deseja. A imitação do desejo instaura a rivalidade e esta conduz à violência. Toda a sociedade se estrutura a partir deste modelo, seja a política, a economia, a universidade, o futebol. Aceitando a tese como boa, não podemos deixar de nos espantar de que a espécie humana nunca saia da sua menoridade, pois essa rivalidade é aquela que atira irmão contra irmão pela disputa da fatia de bolo. A causa da menoridade da espécie não seria então, como pensava Kant, a falta de coragem para usar o seu próprio entendimento, mas o fascínio pelo pedaço de bolo que o irmão irá comer. Não é um problema do uso da razão, mas da orientação do desejo. Deixar de desejar o desejo do outro e descobrir o objecto do seu próprio desejo, isso seria tornar-se adulto. Quando me sentei aqui, depois da azáfama do dia, para escrever, não imaginava que a conversa se desviasse para estes assuntos. É possível que me faltassem outros mais sérios, agora que a chuva parou.

domingo, 21 de maio de 2023

Uma sugestão

Parece que tudo se conjuga. A terra está a pedir chuva, os sites meteorológicos prometem-na com grau elevado de probabilidade. Esta conjugação deveria permitir-me, quando olhasse através dos vidros da janela, ver a água cair dos céus. Ora, o que se prova é que mesmo quando tudo se conjuga para que algo aconteça isso não significa que aconteça. Não chove, está um céu esbranquiçado, uma luz anémica. S. Pedro, o grande regulador dos estados anímicos do clima, não está pelos ajustes e diverte-se com as expectativas frustradas. Está na altura, parece-me, de ele ceder a função a um outro santo mais jovem, com menos problemas auditivos e com a visão mais acurada. Poder-se-ia dar o título de meteorologista emérito a S. Pedro, enviá-lo de férias, enquanto o novo titular punha ordem na casa, isto é, no clima da Terra. Caso escolhido com critério, o novo detentor do posto poderia ser capaz de resolver o problema das alterações climáticas, coisa que o actual incumbente parece não ter a força suficiente ou a paciência para fazer. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, este narrador é um poço sem fundo de óptimas sugestões para a resolução dos problemas do mundo, mas a que ninguém dá ouvidos. É uma pena, pois se os seus sábios conselhos fossem seguidos, tudo andaria pelo melhor. Sendo assim, quando é preciso chuva, não chove. Quando ela não é necessária, há-de cair a cântaros, com inundações a lembrar o dilúvio, e nós sem um Noé que construa uma arca. As acácias da praceta estão a cobrir-se de folhas, mas ainda se vêem os ramos, como se fossem braços esguios dirigidos ao céu em oração peticionária, mas o Santo, quase cego e quase surdo, não dá por nada, entretido a cismar, a falar com os seus botões, cansado da função. Como eu o compreendo.

sábado, 20 de maio de 2023

Teoria da conspiração

O dia declina lentamente, enquanto o telemóvel não pára de me enviar sinais. Vivemos mergulhados num mundo de mensagens. Com o passar do tempo, começamos a desconfiar que o excesso de mensagens é uma espécie de conspiração. Não que eu acredite que por detrás do que se passa no mundo existem sociedades secretas que fazem acontecer aquilo que acontece. As conspirações em que acredito são muito mais radicais, pois são conspirações sem conspiradores. O efeito combinado de múltiplas decisões e acções não conspirativas – decisões e acções que, na sua singularidade, são razoáveis e senão transparentes, pelo menos, translúcidas – torna-se completamente obscuro e decididamente conspirativo. Conspira para trazer o que virá, embora não haja qualquer conspirador que produza a conspiração. Numa linguagem um pouco esotérica, poder-se-ia dizer que é uma acção sem agente. Durante muito tempo, e mesmo agora, a ausência de agente era preenchida segundo um modelo teológico. Se a conspiração trazia efeitos maléficos para os homens, o agente era o demónio. Caso contrário, era Deus. Talvez precisemos sempre de um conspirador para explicar aquilo que acontece, pois o que acontece não deixa de nos maravilhar ou de aterrorizar, e se os acontecimentos têm esse poder, então o coração humano exige um sobrepoder oculto que os faça acontecer. E essa exigência não á apenas psicológica, também é estética. Quem quer saber de narrativas que contam histórias onde não existem protagonistas? 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Imagens, palavras e dores de garganta

Uma dor forte na garganta e um estado de ânimo prostrado foi condição suficiente para que não fizesse a caminhada matinal que a sexta-feira me permite. Não evitou, porém, que participasse numa reunião, pois o admirável mundo novo trazido pelas videochamadas impede que eventuais vírus se transmitam pelas ondas do éter. Lá chegaremos, mas a tecnologia disponível ainda não foi tão longe que permita o teletransporte de seres minúsculos como o são os vírus. Se um vírus me atacou, caso ainda por provar, os outros participantes não me poderão acusar de ser um contaminador implacável. Por outro lado, pelo mesmo motivo, já faltei a um compromisso presencial e irei faltar a outro mais logo. Tendo jurado não sair de casa, entre tarefas resolúveis no lar, tenho dedicado algum tempo a uma revista de que já falei por aqui. A do número de Verão, de 2023, da Electra. A reprodução de pinturas de Albert Oehlen é um momento alto deste número. Talvez esteja com pouca disposição para mergulhar nos artigos que ainda não li e fico a contemplar as imagens. E isto fez-me lembrar uma expressão que abomino, uma imagem vale mil palavras. A abominação vem de isso ser um lugar-comum assente no desconhecimento do que é uma palavra. Já se imaginou quantos milhões, milhares de milhões de imagens se escondem por dentro de uma palavra tão trivial como cadeira. As palavras vivem ajoujadas com o peso das imagens que têm dentro delas. Nenhuma imagem vale uma palavra. Cada imagem vale por si mesma e quando começa a valer por outra coisa, então deixa de ser imagem. Uma imagem não é uma nota de banco. Nada disto obsta a que a garganta não tenha sinais de infecção, mas ajuda a conviver com eles.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

A espiga

Poderia começar citando Camões e confirmar que Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e por aí fora. Ora, o que mudou mesmo foi a idade. Estou a falar por enigmas e isto não é bom para a comunicação. A coisa não tem segredo. Por aqui, é feriado municipal. Este é um dos muitos concelhos que escolheu a Quinta-Feira de Ascensão para dia de guarda concelhio. Várias vezes, aproveitando aquela ideia de fazer uma ponte e mergulhar numas miniférias, saía de casa na quarta-feira, pela hora do lanche, e só parava em Sevilha, para deambular por aquele ambiente que parece vindo de uma outra galáxia. Agora, qual Sevilha. Uma viagem até junto do mar, para ir almoçar a S. Pedro de Moel, apreciar as águas escuras, a brisa marítima, os céus nublados, pensar nas praias da Normandia, e voltar para casa, antes que se faça tarde. Não foi o tempo, nem a vontade que mudaram, nem tão pouco o ser. O que mudou foi a confiança, as centenas de quilómetros foram trocadas por algumas, poucas, dezenas. Houve uma coisa, porém, que me espantou neste dia e não foi um ramalhete rubro de papoulas. Quando se sai de S. Pedro em direcção a Vieira de Leiria, numa curva apertada, há uma entrada para o Pinhal de Leiria. Como de outras vezes não hesitei em entrar por ali. Deparei-me, porém, com um espectáculo que não imaginara. Por todo lado havia aglomerações de pessoas e carros, gente que, em grupo, se entregava a enormes, pelo menos no número de comensais, banquetes. Descobri que também na Marinha Grande é feriado e, por abdução, inferi que aquela seria a forma de irem apanhar a espiga num sítio onde não as há. Eu nunca fui apanhar a espiga, coisa que por aqui se fazia, mas posso estar esquecido. Talvez tenha ido uma vez. Imagino que na altura achasse que era uma espiga ir apanhar a espiga. Devia ter ido para Sevilha.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Um livrinho sossegadinho

Ocorreu-me, passe a presunção, que estes textos poderiam constituir o meu Livro do Desassossego. Não que entre este narrador e aquele que fala no livro original exista comensurabilidade de génio e experiência literária. Não seria bem um Livro do Desassossego, mas um Livrinho do Desassossego. A cada um o que lhe é devido. Enquanto o de Fernando Pessoa vive num limbo de propriedade – será que o autor é o Bernardo Soares ou o Vicente Guedes, ou mesmo os dois? – este não teria nome de autor e, por isso, não constituiria propriedade de ninguém. A única objecção plausível que encontro para essa hipótese é que o livro que destes bilhetes postais se viesse a produzir nunca poderia ser um livro do desassossego, mas um livrinho do sossego, como quem diz um livrinho sossegadinho. Este narrador não é habitado por inquietações metafísicas, nem por desassossegos em voga naqueles anos em que o Soares ou o Guedes laboraram. Não conviveu com a prosápia modernista e há muito que deixou de achar graça ao Manifesto Anti-Dantas. O que é que o Almada tem que ver com o facto de o Dantas fazer sonetos com ligas de duquesas? Cada um faz sonetos com o que pode, e se o Dantas podia fazê-los com ligas de duquesas, tanto melhor para ele, para as duquesas e para as ligas, que também são parte interessada. Aqui advoga-se o marasmo mais completo, sem a gritaria das odes modernistas a acompanhar o trabalho de amanuense. Aqui não há vivas nem morras, mas o deixar que o tempo passe, esperando que não faça muito calor, e se fizer que seja propício a uma boa sesta, ou então a uns sonetos, mas não sobre ligas de duquesas, pois este narrador não conhece duquesas e, por isso, não pode escrever sobre as ligas que elas, talvez por serem duquesas, ainda continuam a usar, à espera de um Dantas que delas faça um soneto, um recatado soneto.

terça-feira, 16 de maio de 2023

A ética do narrador

Na postagem de ontem, descobri há pouco, que tinha um á no lugar de um à. Ora, a orientação do acento não é coisa de pouca importância, ainda por cima numa época em que se cultiva tudo o que é orientação, mesmo aquilo que resulta da desorientação, pois esta ainda é uma orientação, embora falhada. Não fora eu um narrador apolítico e esta conversa teria o aroma sulfuroso da política, isto é, das políticas de orientação. Embora não me seja permitido, e ainda bem, falar de política por aqui, possa recordar que ela, a política, é um caminho curto para o inferno. Isto no dizer de Maquiavel. Quem não quer condenar-se à perdição eterna o melhor é não se meter nesses caminhos e quem aspirar à glória dos altares deve abster-se de possuir qualquer opinião sobre o assunto. Aqui pode surgir um estranho equívoco. Será que este narrador aspirar à santidade, a ser venerado por fiéis com velas de cera e orações? Não. A razão é muito simples. Um narrador pertence a uma classe de seres para a qual não estão disponíveis as possibilidades de perdição ou de salvação. Tal como as pedras, os vírus e as poeiras cósmicas, também os narradores estão condenados ao desaparecimento sem castigo ou recompensa num além, ou mesmo num aquém. Isso não faz de nós, narradores, mesmo dos omniscientes, irresponsáveis. Pautamo-nos não pelo medo da perdição ou pelo desejo da salvação, mas por uma ética que nos ordena ao escrúpulo narrativo, o que não nos inibe de evitar a verdade e cultivar a mentira, que para nós tem o nome de ficção.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Duplicações

Uma manhã plena de afazeres, diligências, tarefas a cumprir. A tarde irá pelo mesmo caminho. Agora, porém, descanso. Suspendo a actividade e entrego-me à pura contemplação. É uma contemplação pura pois não tem objecto que a contamine. Exerce-se sobre si mesma, é a contemplação da contemplação. Houve uma época em que estas duplicações estavam na moda, mas, como tudo o que está na moda, chegou o momento em que se tornou fora de moda. Não seria destituído de interesse falar da descrição da descrição ou da narração da narração. Podemos imaginar a Odisseia, de Homero, e a partir dela esperar uma Odisseia da Odisseia. O problema é que a estratégia tem limites. Por exemplo, diante de mim tenho o romance de Paolo Giordano, Devorar o Céu. Ora, não faz sentido falar em Devorar o Céu do Devorar o Céu. Nesta hora de contemplação poderia dedicar-me à catalogação das narrativas cujos títulos podem ser reduplicados. Seria uma tarefa ociosa, mas haverá alguma tarefa neste mundo que não seja ociosa? Também podemos pensar no ócio do ócio, mas é possível que alguém pense que quem escreve estes bilhetes postais precisa de acompanhamento psiquiátrico. Uma provocação. A realidade é que não me apetece fazer nada, nem mesmo dedicar-me ao ócio. Talvez uma sesta. Talvez, se fosse espanhol, o que não é o caso.

domingo, 14 de maio de 2023

Sonolências

Um domingo sonolento, como o são os domingos de província. Deslocam-se pesados e lânguidos pelas ruas, suspiram, sentam-se num banco de jardim, se está sol, respiram fundo e adormecem, até que um golpe de vento ou o latido de um cão os acorda, e voltam a ser domingos, com os seus fatos provincianos, as pernas bambas e um cérebro infestado de vermes, micróbios, fungos, salmonelas, vírus de vária origem. Penso em tudo isto para não pensar noutra coisa, pois existem imensas coisas para pensar, mas não me apetece, o almoço talvez se tenha tornado pesado, talvez tenha bebido um pouco, o que me dá sono, talvez nem tenha ocorrido uma e outra coisa, e eu não tenha almoçado, e sofra de fraqueza. Uma das minhas netas entrou no escritório e perguntou-me se lhe dava duas folhas brancas. Perguntei-lhe: duas folhas brancas de que cor? Olhou-me perplexa e quando ela ia pensar se o avô estaria bem, sorri-lhe e ela sorriu-me descansada. Afinal, estava a brincar comigo, terá pensado, pegou em duas folhas brancas, agradeceu e saiu. A outra, pobre dela, continua a ser submetida a exercícios de Matemática. Há pouco houve um drama qualquer acerca de coordenadas e abscissas, o eixo do xis e o eixo do ípsilon, e outras aleivosias do género. Os dias, por aqui, continuam ventosos, muito pólen pelos ares, poeiras, sabe-se lá mais o quê. Não tarda, e elas vão-se embora, para que fique um vazio pela casa, desapareçam os risos que só as raparigas conhecem o significado, e o domingo ainda se torne mais domingo e mais provinciano.

sábado, 13 de maio de 2023

Superposição de estados

Hoje de manhã, ao parar o carro para ir à padaria, deparei-me com um gato em cima de um muro. Ao vê-lo naquele estado em que, havendo sol, os gatos parecem suspender a existência, pensei: é o gato de Schrödinger. Está vivo e está morto, ao mesmo tempo. Depois, retrocedi no pensamento. Não pode ser o gato de Schrödinger, estando eu a observá-lo, necessariamente que o seu estado estará definido. Ou está vivo ou está morto. Não há lugar para uma superposição de estados. Isso perturbou-me no caminho até ao sítio onde, para além do pão, se vendem uns bolos que, decididamente, não são maus e bons ao mesmo tempo, mas apenas muito bons. Excelentes. A causa da perturbação reside em que se tudo o que há estivesse num estado de superposição, mesmo quando observado, a realidade seria mais rica, pois estava sempre num estado potencial. Abríamos a caixa e o gato continuava morto e vivo, pois tinha e não tinha sido envenenado, coisa que causaria repulsa à nossa razão, a qual, como se sabe, abespinha-se facilmente e mal pressente o aroma da contradição – por exemplo, num mero oximoro – começa a sentir-se mal, a pedir que lhe tragam os sais, senão desmaia, e não há espectáculo mais triste do que ver uma razão que perdeu os sentidos, espalhada pelo chão. A conclusão de toda esta aventura é a seguinte: não se deve ir à padaria, mas se se for, convém não encontrar um gato em cima do muro. Caso isso tenha de acontecer, não olhar para ele, se não se conseguir evitar o relancear dos olhos pelo bichano, não fazer associações idiotas. Se mesmo isso, porém, não for possível, o mais indicado é comer um bolo que a padeira, uma rapariga nova e engraçada e que, presumo, não seja de Aljubarrota, venderá de bom grado. As minhas pobres netas não estão preocupadas com o gato do senhor Erwin, mas com umas fórmulas de matemática, cada uma com as suas. Vou levar-lhes um bolo que não esteja num estado de superposição quântica, ou seja lá o que isso é.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Redundância

Também as aves se entregarão à redundância? Um dos pássaros meus vizinhos – presumo que seja um – está há largos minutos a repetir o mesmo som. Terá medo que a mensagem não seja compreendida, que o destinatário sofra de problemas de audição ou tenha uma inteligência lenta, demasiado lenta, para decifrar de imediato o que ele quer comunicar? Podia irritar-me com esta vizinhança dada à iteração, mas não tenho o direito de o fazer, pois também sou vocacionado para a redundância. Repetir-me está a tornar-se um modo de ser. Dou comigo a contar a mesma história pela enésima vez. Isto não é completamente verdade. Estou em registo hiperbólico. A maior parte das vezes dou por aquilo que tenta a minha mente e consigo conter-me antes que a redundância se torne pública. Sei, porém, que chegará o dia em que a censura não funcionará. Nessa hora, o eu redundante que sou manifestar-se-á na sua plenitude. Julgo que o destinatário da mensagem do meu plúmeo vizinho a terá compreendido, pois este calou-se. Talvez tenha desistido de se fazer compreender, sopra alguém dentro da minha mente. Eu sorrio e digo alto, embora ninguém esteja por perto, que a minha mente é muito mal frequentada. Gente dada ao sarcasmo, por exemplo. Devia lavá-la, mas ainda não encontrei um produto que sirva para branquear as mentes. Mais logo, chegam as minhas netas. Oiço uma gargalhada, e uma voz troveja: as netas não são tuas, idiota. Não passas de um narrador. São minhas, eu é que sou o autor e tenho netos. Vou jantar fora com elas, enquanto tu ficas no limbo daquilo que existe apenas na consciência, mas não na realidade. Amanhã, continuou, talvez te tire por uns minutos do pardieiro onde vives. Ou será de uma enxovia? Calou-se e foi-se embora.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Do desejo

Julgo que hoje fui acometido por uma doença denominada wishful thinking, que se me perdoe o uso de uma expressão em língua bárbara. Dou comigo a pensar que é sexta-feira, apesar de saber perfeitamente que não o é, mas um desejo secreto encobre o conhecimento e sopra-me na mente essa impressão de que o fim-de-semana está mesmo ali à porta, é só bater e entrar. O sábio arquitecto que ordenou as coisas do mundo e os poderes do homem, por ser sábio, determinou que as coisas não fossem como as desejamos, mas como são apesar do que nos vai na alma. Isto, contudo, não se deve a uma maldade dele, mas à sua prevenção e capacidade de cálculo. Com a sua omnisciência avaliou que mundo haveria se cada homem tivesse o poder de fazer com que a realidade se adequasse aos seus desejos. Transformou os desejos em quantidades, desenhou um algoritmo adequado ao cálculo, colocou tudo num supercomputador e, para surpresa sua, viu que o resultado da operação era igual a zero. Este cálculo não aconteceu agora, mas naquele tempo em que o tempo não existia, e o arquitecto empenhava-se em conceber um mundo que fosse o melhor de todos os mundos possíveis. Então, iluminou-se, literalmente, e percebeu que nesse mundo, o melhor de todos os possíveis, o melhor, o mais sensato e previdente, seria limitar o poder do desejo humano. Não é que a decisão tenha sido drástica. O arquitecto não é um radical. Concebeu que seres como os homens, por vezes, podem realizar um ou outro desejo, mas de modo muito moderado, para que o edifício sabiamente arquitectado não desapareça na tormenta desejosa dos homens. Por isso, pela sua sábia decisão, vejo-me frustrado. Desejo que hoje seja sexta-feira, mas tenho de me contentar com a quinta-feira. O meu desejo introduziria uma fissura no tempo, um buraco pelo qual tudo poderia desaparecer. Acho que me constipei.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Nulidade

O que queremos dizer quando dizemos que não temos nada dentro da cabeça? A asserção não é factual, pois caso fosse verdadeira, não poderíamos dizê-la. Aliás, não poderíamos rigorosamente nada, pois não existiríamos. Só podemos afirmar que não temos nada dentro da cabeça porque temos alguma coisa dentro da cabeça. O que me apetece, todavia, dizer é que não tenho nada dentro da cabeça. Devo fazê-lo? Devo faltar à verdade pare descrever uma sensação realmente sentida, mas que sei ser falsa? Quando se chega a esta altura do dia e a única coisa que os dedos conseguem fazer surgir no monitor são estas interrogações idiotas sobre um assunto insignificante, no sentido radical da palavra, então é porque o dia foi gloriosamente perdido na nulidade. Talvez o niilismo seja a perda de cada um na pura nulidade. Ora, a nulidade é um oceano pacífico e profundo, onde se mergulha e se flutua à tona de água até se adormecer. Depois, é uma questão de sorte. Uns afogam-se, outros são devorados por tubarões, outros são arrastados pela corrente para a areia, talvez de uma ilha deserta, ou quase, se nela habitar uma princesa adormecida. O problema destas princesas adormecidas que habitam em ilhas quase desertas é que aqueles que nelas encontram a salvação estão longe de serem príncipes encantados, e mesmo que cheguem ao momento em que dão o beijo na bela adormecida e esta acorde, eles transformam-se em rãs e a princesa pensa que foi mordida por um batráquio. Mais valia continuar a dormir. O niilismo que habita a minha cabeça não dá para mais. Uma princesa bela e adormecida foi mordida por uma rã, a pobre. Uma comoção.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Atrasos e extravios

Uma citação de Camões – O que é Deus, ninguém o entende – em epígrafe, da terceira elegia recolhida em Labareda, uma colectânea de poemas de Alberto Lacerda, anuncia o poema que começa assim: O mergulho abrupto de certas horas / No relógio lento do coração. E aqui eu imagino que ninguém entende o ser de Deus porque o coração, o coração de cada um, é um relógio lento. Essa lentidão conduz ao atraso e quando alguém tem um encontro marcado com Deus, acaba sempre por chegar atrasado. A hora da audiência já tinha passado, o ser da divindade recolhera-se em si mesmo e ocultara-se ao entendimento de um coração destituído de ardor ou, para ser mais exacto, de ímpeto. É possível que a elegia de Alberto Lacerda siga outra vias, mas este texto segue o seu próprio rumo, no jardim dos caminhos que se bifurcam. Daqui a pouco terei de rumar a um certo destino, onde me esperam, mas não corro o risco de que a minha falta de ímpeto tenha como consequência o sumiço de quem me aguarda. A única coisa que temo é que o caminho se comece a bifurcar e eu me extravie. Ainda mais.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Segunda-feira

Fui pôr o carro na oficina. Alguém lhe deu um toque, e um dos faróis dianteiros ficou a dançar no abismo hiante onde se acolhe. Os suportes estavam partidos. Isto já deve ter acontecido há uns dias, talvez há mais de uma semana. Não tinha dado por nada, mas lembro-me de, por vezes, ouvir uns barulhos anormais, mas depois calavam-se e como a minha relação com automóveis é desastrosa não dava mais atenção ao assunto. Hoje, quando vou pegar no carro, achei qualquer coisa estranha no farol, um pouco saído. Foi então que descobri o drama que lhe tinha acontecido. Agora, vai descansar na oficina, enquanto se submete ao tratamento, e eu aproveito e descanso dele. Para falar de aproveitamentos, aproveitei deixar o carro na oficina para regressar a casa a pé, acumular pontos cardio e observar como estavam as ruas por onde ia passando. Nada de notável, a não ser uma buganvília cuja cor me pareceu ser fúcsia, embora não queira abusar da palavra. Uma orquídea fúcsia, agora a buganvília. A minha cultura floral é diminuta, mas palavras houve que me obrigaram a olhar para o referente. Buganvília, com a sua musicalidade, foi uma delas. Outra, de um registo sonoro muito diferente, foi aspidistra. Outra palavra de que gosto. Razões, desconheço-as. Com o passar dos anos, o reino vegetal vem-me parecendo muito mais interessante do que o animal. Este é uma triste história de luta pela comida e pela reprodução. A evolução podia ter ficado pelas plantas, seria tudo mais sério e profundo. Não estaríamos cá nós, seres humanos, dir-se-á. É verdade, mas perder-se-ia alguma coisa?

domingo, 7 de maio de 2023

Quase um esquecimento

Quase me esquecia de vir aqui, tão imerso estava numa daquelas actividades absolutamente necessárias, mas que não servem rigorosamente para nada. A imersão era tal que poderia ter-me afogado. Salvou-me o telefonema de um amigo, que me trouxe para fora de água, isto é, do mar de inutilidades em que mergulhara desde manhã. O dia declina, a luz já perdeu o vigor, embaciou, o que anuncia o crepúsculo. Antes de jantar, que será uma pequena refeição tardia, terei de caminhar um pouco. Não posso passar em branco essa tarefa. O encontro matinal com a balança assim mo recomenda. Ainda olhei para ela com olhar de desaprovação, mas ela manteve-se esfíngica. Fiz promessas, mas logo de seguida entretive-me em não as cumprir. Imagino que esta seja a melhor hora para andar por aí. Toda a gente em casa, entregue aos rituais da alimentação, as ruas vazias, menos carros, tudo vantagem para um passeante solitário. Basta, a rua espera-me.

sábado, 6 de maio de 2023

Conjecturas

Tinha pensado em ir almoçar ao bar do outro lado da rua. Quando me preparava para sair, já de chaves na mão, desatou a chover. Mudei de ideias. A razão não foi a chuva, mas o guarda-chuva. Pensei que se o levasse, como tinha de o fazer, iria esquecer-me dele, pois o aguaceiro teria passado e não mais me lembraria que o levara. Almocei em casa, cedo e sem necessidade de andar de guarda-chuva e pôr à prova a minha memória. Como não tenho outra aventura para acrescentar à gesta, passo a falar do estado do tempo. Não chove, céu parcialmente nublado, mas com abertas, pelas quais o sol brilha e faz deslizar uma cintilação esquiva no verde das folhas de árvores e arbustos. Posso também falar de orquídeas. Expandiram-se. Havia um friso. Agora há um friso e um canto. Ao todo, são 18, mas três ainda não floriram. São mais lentas do que as outras, mas parece que irão chegar ao dia em que se abrirão floridas para os olhos de quem as contempla. Para dizer a verdade, a minha relação é instrumental. Não mexo um dedo por elas, mas gosto do espectáculo que oferecem, comento-o com regularidade, talvez um dia chegue a teorizar sobre o assunto, mas, por enquanto, não ultrapasso a dimensão narrativa. Toda a ciência começa com a narrativa. A partir das narrativas passa-se à fase das taxionomias e, depois, entra-se no processo da conjectura e validação, embora, para certo filósofo, não seja possível validar nenhuma conjectura, apenas refutá-la. Os pássaros meus vizinhos não se calam. Grandes debates devem travar. Imagino que estejam a discutir o orçamento do bando ou alguma reforma que todos acham necessária, mas que ninguém quer. Nisto, os pássaros assemelham-se mais aos humanos do que aos anjos. Esta semelhança é corroborada pelo facto de os anjos se organizarem em hierarquias, enquanto os homens só estão felizes quando se dividem, como as aves, em bandos. Acho que vou dormir uns minutos, até que o pescoço me doa. Devia ir escrever o final de um relatório onde faço um conjunto de recomendações necessárias, mas que ninguém desejará ouvir. Sendo assim, mais vale dormir.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Anonimato

Não sei a razão, ou talvez saiba, mas hoje, por várias vezes, dei comigo a olhar para o dia e achar que era sábado. Em resumo, na minha mente, caso tenha uma, esta sexta-feira não passa de um sábado disfarçado. Se nós, seres humanos, nos disfarçamos, por que estranha razão os dias não o poderão fazer? Aqui, por exemplo, o narrador esconde-se no disfarce do anonimato, o que acontece com muitos narradores, embora menos com os autores, mas não é a circunstância presente. Tão anónimo é o autor quanto o narrador. As coisas têm explicações simples. O autor não conseguiu encontrar um nome adequado para o narrador e preferiu a omissão. Quanto ao nome do próprio autor, este achou que o cansava e proibiu qualquer revelação. Há pessoas que se cansam de si próprias, outras cansam-se do seu nome. Há uma razão funda para alguém se cansar do nome, embora pouca gente pense no assunto. O nome que se tem, aquele que dizemos este é o meu nome resultou de uma atribuição para a qual o portador não deu qualquer contributo. Toda a vida transportamos como nossa uma coisa que nos foi imposta. Segundo sei, e um narrador sabe muitas coisas, o autor nada tem contra o seu nome, o qual se integra na onomástica nacional, sem excessos para cima ou para baixo. Um nome normal, cairá dentro da curva de Gauss. Contudo, para certos efeitos, o autor cansou-se dele e decidiu-se pela ocultação. Poderia ter mudado de nome, mas achou que tão pesado será o nome que nos deram como aquele que escolhemos. Sem nome, fica mais leve e o que mais se precisa neste tempo de calor é de leveza. A sexta-feira continua com cara de sábado.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Kitsch e ideias feitas

Duas belas edições chegaram-me hoje através dessa empresa elusiva que dá pelo nome de CTT, que tantas coisas boas, ao longo de décadas, me tem trazido. Na caixa do correio, encontrei, ao chegar a casa, o número 20 da revista Electra. Textos e imagens combinam-se num produto sumptuoso e de preço irrisório. Deveria ter evitado a adjectivação. É de mau gosto, talvez um exemplo do Kitsch, usar palavras como sumptuoso e irrisório. Ora, o assunto nuclear da revista é, neste número primaveril, o gosto, e há um artigo de António Guerreiro com o título de O Kitsch e outras declinações do mau gosto. A outra edição não a encontrei na caixa do correio, mas tive de ir por ela a um balcão dos CTT. Trata-se do volume I de Gargântua & Pantagruel, uma tradução do poeta Manuel de Freitas, com as inevitáveis ilustrações de Gustave Doré. A obra é publicada pela E-Primatur, uma editora que funciona através de projectos que são apoiados pelo público. Tinha dado apoio à publicação desta tradução, mas depois apaguei o facto da memória ou entreguei-o ao reino sombrio do esquecimento. Insisto no kitsch. Agora, recebi-o, não sem antes ter recebido um email que me avivou a memória e me retirou do abismo do olvido. A Electra termina com uma entrada, ou verbete, “Nómada” (mais honestamente, NÓ ● MA ● DA), da autoria de Daniel Jonas, do Dicionário das Ideias Feitas. Ora, aqui está uma coisa à minha dimensão, para além do kitsch, as ideias feitas. Nem sequer posso dizer que essas ideias feitas foram compradas. Umas foram herdadas, outras tomei-as de empréstimo, outras tê-las-ei roubado nem sei onde, e outras haverá que achei, pobrezinhas, pois andavam por aí ao deus-dará e recolhi-as. Por outro lado, e há sempre um outro lado, apesar da diversidade da sua origem, elas não são muitas. Além de feitas, as minhas ideias são escassas. Pertenço a um tempo de escassez e até nas ideias sou frugal, para evitar que me provoquem colesterol, uma coisa horrível como prova a origem grega da palavra, que deriva de Kholé (bílis) e steréos (sólido), ao que se adiciona, como se fosse sal, o sufixo -ol. Tudo informação gratuita da Porto Editora, passe a publicidade.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O mesmo e o outro

Num livro lido há muito encontrei múltiplas passagens sublinhadas a lápis. Por curiosidade, fui passando as páginas e lendo os sublinhados. Seria muito cómodo afirmar que, se lesse esse livro de novo e em estado imaculado, sublinharia as mesmas coisas. Com isso daria a prova de ser sólido, imutável, um carácter nada volúvel. Seria comovente, mas falso. Em primeiro lugar, é pouco provável que me pusesse a ler aquele livro. Depois, entre mim e aquele que, com a minha mão, sublinhou o livro há uma distância que não me parece pequena. O sublinhador tornou-se-me estranho, se não estrangeiro. Um dia, alguém me disse que permanecemos sempre o mesmo, que, na verdade, nunca mudamos. Não foi bem a mim, mas aos alunos que assistiam a uma amena aula, que decorria na Faculdade de Letras, talvez numa tarde já quente. Imaginei que seria uma afirmação de Parménides contra Heraclito, mas achei-a estranha. Talvez a experiência do confessionário, pensei, lhe tenha ensinado a imutabilidade do carácter humano, pois a afirmação veio de um padre. Contudo, ela trazia uma negação terrível da própria função sacerdotal. Se permanecemos sempre os mesmos, que sentido fará tentar salvar as almas da perdição? Se eu permanecesse o mesmo, reconhecer-me-ia nos sublinhados feitos há décadas, mas não me reconheço. Logo, não sou o mesmo que era nesses dias. Também é possível que o outro e o mesmo sejam distinções sem sentido, fruto de uma fantasia de distinção, isto é, um jogo da imaginação. Está uma tarde sem sol, mas abafada. Uma luz de cinza esbranquiçada cai em borbotões sobre a praça. Os ramos das acácias e das tílias vergam-se ao peso dessa luz, inclinando-se para a terra, como se ela fosse a sua casa.

terça-feira, 2 de maio de 2023

Contaminações

Respiro fundo ao sentar-me na minha cadeira. Ela, a pobre cadeira, é um dos lugares do mundo de que mais gosto. Por vezes, arrasta-me para o território da sonolência, mas tem-me sido fiel como um cão e prestável como um serviçal. Imagino que as analogias usadas sejam reprováveis. Não cairá bem aos representantes dos cães que os seus representados sejam retratados por uma característica que lhes anule a autonomia e os aprecie como instrumentos ao serviço de uma outra espécie. Também passou o tempo dos serviçais, pois todos nos tornámos membros de um exército de serviçais, cada um com a sua patente. Ora se todos somos serviçais, é como se ninguém o fosse. E daquilo que não é não se deve falar. Isto é o que me ocorre, agora que estou refastelado na cadeira, deixando a tarde deslizar em direcção à foz, deixando as vozes da rua ecoarem até que o silêncio as devora e tudo se torna mais nítido, mais transparente. Sim, é verdade, o ruído é uma fonte de deformação da visão, impede-nos de ver claro, de apreciar a forma das coisas, os seus contornos. Este efeito não é estranho e muito menos único. Também os maus aromas impedem o gosto de saborear com adequação. Os sentidos contaminam-se uns aos outros, para contaminarem, depois, a razão, a imaginação, a memória. Cada ser humano é o produto mil contaminações, que um esforço absurdo tenta desfazer, para que tudo se torne puro e independente. Tempo perdido.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Um país de solucionadores

Hoje, 31 graus. Amanhã, 36. Eis um dos meus temas preferidos, as desventuras do calor. Outra coisa que me impressiona é a grande capacidade de os portugueses encontrarem soluções para problemas que, além de os desconhecerem, não têm qualquer possibilidade de executarem a solução que propõem. Estava eu à espera de outra pessoa, quando alguém me interpela por causa do calor e do calor saltou de imediato para a falta de água. Um deserto é para onde caminhamos, disse eu para não me comprometer. Deserto, não. Temos de usar água do mar, dessalinizá-la, exclamou. Não contente, afirmou que isso já acontecia há mais de 20 anos no Porto Santo ou numa outra ilha qualquer, não retive o nome. Canalizam a água como o gás. Eu que não faço ideia nenhuma do assunto, nem fiz notar que entre uma ilha minúscula e o país, apesar de pequeno, não há comparação possível. Chegou a pessoa por quem esperava e fui-me embora, deixando o solucionador de problemas a vociferar contra a burocracia, que, para além dos políticos, é sempre um útil bode expiatório para as nossas incompetências. Durante a minha vida, já longa, descobri que os portugueses são muito bons naquilo que não lhes cabe fazer. Este solucionador poder-me-ia ter dito que já estava a poupar água, que era frugal na sua utilização, que, usando a informática, tinha racionalizado o consumo em casa, sei lá, qualquer coisa que estivesse na mão dele, mas não. A solução óptima é sempre aquela que os outros têm de fazer, não a que me cabe realizar. Em tempos muito recuados da minha existência, naquela idade em que o fervor anímico é inversamente proporcional à compreensão da realidade, também cheguei a ter em carteira algumas fórmulas milagrosas, mas depressa me tornei ateu relativamente a essas divindades pagãs. Não só não lhes presto culto, como não tenho qualquer solução para seja o que for que ultrapasse os meus limitados poderes, e mesmo dentro destes, as soluções que encontro deixam sempre muito a desejar. Para dizer a verdade, nem me preocupo muito com a existência de pessoas que transbordam de soluções para os outros realizarem, desde que me sejam poupadas homilias, pregações, prédicas e sermões. Está calor e é tudo o que tenho para dizer.

domingo, 30 de abril de 2023

Com zelo e aptidão

O mês despede-se hoje sem honra nem glória, mas isso é o que acontece normalmente. A honra e a glória são excepções, não a norma. Há pouco, remexendo em velhos papéis, encontrei um diploma do Ministério do Exército que certifica que o titular do presente diploma desempenhou com aptidão e zelo, durante 12 (DOZE) MESES, as funções… Tal como o titular do diploma que foi apto e zeloso, mas não se distinguiu no campo de batalha, o qual nos meses referidos no diploma, esteve fechado e assim se tem mantido, e, por isso, não alcançou honra e glória, também o mesmo aconteceu com o mês que agora termina. Foi apto? Foi. Foi zeloso? Também. Preencheu todos os dias que o calendário lhe atribuiu, não lhe terá faltado com um minuto. Agora, chegada a meia-noite, entrará para a casa translúcida do nada e, exceptuando um ou outro motivo que nele se animou, fará do esquecimento o seu modo de ser. Entretanto, estava sintonizado na Antena 2 e oiço um anúncio institucional ao CD do compositor e pianista Amílcar Vasques-Dias, De Ouvido e Coração, Celebrando José Afonso. Indicava também a interpretação de uma cantora de flamenco, de um fadista e de dois cantores líricos. Acedi a uma dessas plataformas onde se aluga música e procurei o álbum. É o que estou a ouvir, enquanto não chega a hora de almoço. Estas metamorfoses musicais nem sempre correm bem, mas esta, parece-me, encontrou o ponto exacto onde estilos musicais bem distintos se podiam encontrar. Bastante interessante é a interpretação de Cantar Alentejano e Canção de Embalar pela cantora de flamenco Esther Merino. Uma descoberta no último dia de Abril, um dia solar, mas ventoso, como constatei quando fui à rua.

sábado, 29 de abril de 2023

Livros e status

Ida ao aeroporto buscar alguém, almoço em Lisboa, retorno ao lar, doce lar, à cadeira do escritório. Depois de uma semana tensa, o que me apetece mesmo é dormir. Este apetite pelo sono, todavia, não é partilhado pelo corpo, ou pelo cérebro, caso este não faça parte do corpo, pois quando chega a hora de dormir, com ela vem, velada sabe-se lá por quê, a insónia. Nessas alturas, que não são poucas, aproveito para adiantar leituras. Há pouco, em viagem, ouvi, na Antena 2, que a civilizada Coreia do Sul é um dos países do mundo onde menos se lê, apesar de ser um país tecnologicamente avançado e onde as pessoas mais usufruem das novas tecnologias. O comentador, alguém cujo nome esqueci, mas que falava em castelhano, não via no facto um problema. Não estabeleceu uma correlação entre o uso das novas tecnologias e o baixo índice de leitura. Pelo contrário, sublinhou os progressos que o país está a fazer para trazer a leitura para a vida das pessoas, dando a entender que ler não fazia – e ainda não faz – parte da cultura daquele país. Se isso se passasse em França, acrescentou, seria grave, pois era a marca de um retrocesso. Talvez nós, ocidentais, tenhamos sido vítimas de um fetichismo, o dos livros. Havendo pessoas que decoram estantes com livros, ou mesmo com simulacros de livros, movidas pelo encantamento em que caíram. O encantamento seria o de um suposto estatuto social que, contra qualquer evidência, o livro daria. Os livros nunca deram status. O que acontecia era que, em tempos, tempos longínquos, as pessoas que tinham status também tinham livros. Ora democratizar o livro não implica a democratização do status. Este, por natureza, não é democratizável, pois o seu fundamento é a diferenciação, a distinção, mesmo que esta se deva a coisas que pouco ou nenhum sentido tenham. Imaginemos uma pessoa que cria canários pelo prazer de os contemplar, de cuidar deles, de ver florescer as linhagens. Ninguém alcança status a criar canários. Quem gosta verdadeiramente de livros não é diferente de um criador diletante de canários. Gosta de os contemplar, de os ler, de ver florescer as múltiplas linguagens que ali se encerram, mas isso não acrescenta um grama ao seu status social, felizmente.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Espíritos

Um dia para esquecer. Os motivos, omito-os. Também o clima não ajudou. Quente e abafado, com o corpo a pedir chuva, literalmente, ou mesmo uma boa trovoada. Subia com a lentidão do trânsito o viaduto e ia ouvindo a Antena 2, como é hábito. Uma peça musical para oboé, salvo erro. A certa altura pensei que toda a arte é um trabalho sobre a matéria, mas não sobre a materialidade da matéria. O artista trabalha a matéria para que se revela o espírito que ali se oculta, para manifestar a espiritualidade da matéria. Esta ideia fez-me sorrir, enquanto contornava uma nova rotunda e já me encaminhava para outra. Depois, pensei em Hegel, na sua tese de que a arte é uma forma sensível de manifestar o espírito, a ideia, mas este é o pensamento de Hegel e não aquilo que eu tinha pensado. Não se trata de um espírito absoluto a caminho de si mesmo, mas de espíritos particulares que estão presentes num bloco de mármore, na combinação de uma certa tela e da tinta que a vai tingir, na conjugação de ondas sonoras, ou de corpos que lutam contra a gravidade. Ao estacionar o carro, percebi que estava perto do politeísmo ou então de uma certa forma de angelologia. No elevador, ocorreu-me que, por exemplo, num certo bloco de mármore estão contidos inumeráveis, senão infinitos, espíritos, mas a limitação da arte humana só consegue revelar um. A consequência é que toda a arte é um exercício de homicídios espirituais. Nisto é muito idêntica à reprodução sexuada. Por cada espermatozóide que atinge a meta, morrem milhões com todas as suas infinitas potencialidades. Agora que estou sentado e escrevo tudo isto, constato que o dia não está a melhorar. Daqui a pouco irei fazer a caminhada diária, mas o ar pegajoso que adivinho nas ruas deixa-me relutante.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Uma viagem em verso e meio

Quase no início da quarta elegia de Duíno, Vasco Graça Moura traduz verso e meio de Rilke assim: Não somos unos. Não nos coordenados / como aves migradoras. (…) A primeira pessoa do plural gera uma feliz ambiguidade. Quem não é uno? Quem não se coordena como as aves migradoras? Será a espécie humana o referente desse nós? É verdade que entre os homens reina sem parar a discórdia, o diferendo, a desavença, que a aliteração sublinha e intensifica, e que são o sinal da falta de coordenação e de unidade. Esse nós, todavia, pode ser um plural majestático, uma referência ao eu, a uma alma desavinda consigo. Serei eu que não sou uno, nem me coordeno como se coordenam as aves migradoras. A ambiguidade, porém, não termina aqui. Esse nós, que no original está expresso, pode ser, ao mesmo tempo, um eu e um nós. Todos os eus sofrem da falta de unidade e de coordenação consigo mesmos e por isso constituem um nós. O que introduz mais uma ambiguidade. Nós, seres humanos, estamos coordenados e unidos na falta de unidade e coordenação que cada um sofre. O que nos une é a desunião. O que nos coordena é a descoordenação. Da primeira à terceira interpretação das palavras de Rilke, ou da tradução de Graça Moura, passamos da sociologia à ontologia por intermédio da psicologia. Todo o poema – ou todo o verso – é um palimpsesto.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Do quotidiano

Os termómetros, por aqui, chegaram aos 32 graus e Maio anuncia-se com temperaturas na ordem dos 35. A rua estava insuportável, e tudo indica que este estado de coisas é irremissível. Agora, o Verão começa em Abril e prolonga-se por dentro de Outubro, até quase Novembro. A sensação que paira nos ares é de que ninguém quer saber, como se as pessoas se entregassem a uma lógica evolucionista, em que os mais aptos se adaptarão às novas circunstâncias, e não há ninguém que se sinta excluído do grupo dos mais aptos. Ou talvez se espere um milagre que resolva aquilo que parece não ter solução. Um milagre sobrenatural ou criado pela ciência. Ouvi esta conversa a alguém que se interessa pelo clima, mas não soube o que lhe dizer. Enquanto escutava, pensava em lugares frescos, paisagens de névoa e na água fresca que me apetecia beber. Coisas simples de um exilado climático. O dia prolongou-se e eu perdi-me na azáfama, sem dar conta de algum acontecimento merecedor de narração. A entrada para a auto-estrada estava cortada, o aparato policial indicava haver problema e o trânsito acumulava-se perdido na lentidão. Foi um acidente, disseram-me pouco depois. Mais tarde, encontrei outro, mas já às portas da cidade, embora esta não tenha portas. As que havia na muralha fernandina, que circundava a antiga vila, o terramoto de 1755 levou-as com a muralha. Agora, vivo numa terra desmuralhada, incapaz de opor resistência a mouros ou castelhanos. O Word não gostou de desmuralhada, sublinhou-a a vermelho e propôs emuralhada ou mesmo desmortalhada. Pensei que o processador de texto estava numa fase tétrica. Vou fechá-lo.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Modorrar

O feriado corre dolente, não há vento, as árvores parecem estátuas coloridas, petrificadas pela varinha mágica de algum deus irrequieto e desocupado. A avenida envelhece tomada pelo calor, pelo sol vigoroso de um Abril cada vez mais estival. Voltei ao tema recorrente da meteorologia, do estado do tempo, das peripécias do clima. Na minha secretária repousa o romance Sob a estrela do Outono, de Knut Hamsun. Tinha-o lido em espanhol, e agora que a Cavalo de Ferro o publicou em português vou relê-lo. Contudo, há uma coisa que me preocupa. Esta obra, de 1906, é apenas a primeira de um conjunto denominado Trilogia do Vagabundo. Ora, na edição portuguesa não vejo, em sítio algum, a referência ao facto. Temo que se esqueçam de publicar os outros dois volumes. Já os li em espanhol, mas já que comprei o primeiro em português, gostaria de completar o grupo de romances. Na contracapa do livro é citada a frase de Thomas Mann: Hamsun é o maior escritor de todos os tempos. Talvez Mann exagerasse, mas será um dos maiores, com lugar cimeiro no paraíso dos escritores, embora é possível que o não tenha no dos homens. Isso, porém, é um assunto que não cabe nestas linhas. Vou modorrar um pouco para fazer companhia à tarde, onde o tempo parece ter adormecido, mas nãos haja equívocos, mesmo a dormir o tempo continua a sua caminhada.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Citações

Tenho ideia, uma vaga memória, de que terá sido por um CD de 1994 que entrei no universo do compositor polaco Krzysztof Penderecki. Trata-se de uma recolha de peças, com destaque para Threnody to the Victims of Hiroshima, De Natura Sonoris ou Canticum Canticorum Salomonis. São peças, todas elas, de grande densidade, como se fossem o eco da tragédia que impregnou o século XX. Oiço agora esse CD e penso que, se alguém der por isso, julgará que enlouqueci. Se me acusassem de ter entontecido, eu responderia que era falso e leria alto o poema: Esclarecendo que o poema / é um duelo agudíssimo / quero eu dizer um dedo / agudíssimo claro / apontado ao coração do homem // falo / com uma agulha de sangue / a coser-me todo o corpo / à garganta // e a esta terra imóvel / onde já a minha sombra / é um traço de alarme. Depois de escrever o poema da Luiza Neto Jorge, pensei que não me livraria da acusação, que o acusador haveria de repetir que a minha sombra / é um traço de alarme. E ficaria ele mais alarmado, enquanto a trenódia – ou será tronodia? – se eleva e me toca o fundo do coração, com o qual oiço o canto lamentoso que clama na voz silenciosa dos mortos.

domingo, 23 de abril de 2023

Da posse recíproca

Não li o livro, ainda não o li, mas vejo, em pequenos episódios, o filme que adapta o romance de Octave Mirbeau, Diário de uma Criada de Quarto, com a realização de Benoît Jacquot. Existem outras adaptações, entre elas uma de Jean Renoir e outra de Luis Buñuel. Releio O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, do qual Luchino Visconti fez um grande filme. A obra de Lampedusa foi escrita entre 1954 e 57, a de Mirbeau foi publicada em 1900. De certa forma ambas têm um alvo social preciso, a burguesia. Em O Leopardo é a ironia do príncipe de Salina que pontua a ascensão da burguesia ao poder efectivo na Itália em unificação. Em O Diário de uma Criada de Quarto é o olhar penetrante de Célestine que manifesta a impiedade e corrupção moral de uma burguesia já consolidada em França. O olhar que vem de cima e o que vem de baixo encontram-se no mesmo alvo, vendo cada um deles coisas diferentes, mas que, na verdade, são complementares. O domingo progride sorrateiro, aproxima-se da hora de almoço. Já fiz uma caminhada quase matinal. Nessa viagem, não me lembrei do príncipe nem da criada, apenas de coisas que me vão preocupando, numa rememoração dos últimos dias e numa antecipação dos próximos, caso seja possível antecipar seja o que for. Imagino, neste momento em que uma nuvem cobre o sol, que num outro mundo, seria possível que Fabrizio Corbera, príncipe de Salina, e Célestine, a criada de quarto, se encontrassem como iguais. Aqui poder-se-á fazer entrar as seguintes considerações: Quanto ao comércio natural dos sexos ele tem lugar ou segundo a simples natureza animal (vaga libido, venus vulgívaga, fornicatio), ou segundo a lei. Neste caso, trata-se do casamento (matrimonium), isto é, a ligação de duas pessoas de sexo diferente, que quer, para toda a sua vida, a posse recíproca das suas faculdades sexuais. Talvez esta linguagem explique a razão pela qual Kant, o autor, nunca se casou. Os quatro artigos sobre o direito conjugal (parte da Metafísica dos Costumes – primeira parte: Doutrina do Direito) são todos eles escritos neste registo. Ora, muito mais tarde, o príncipe de Salina, depois da comunicação pelo padre Pirrone de que a sua filha Concetta estava apaixonada, pensou: Amor. Claro amor. Fogo e chamas durante um ano, cinzas durante trinta. De alguma maneira, o comentário meditativo do príncipe acaba por dar razão ao filósofo alemão. O matrimónio nada tem que ver com o amor, mas com a dura gestão das cinzas, isto é, da posse recíproca das suas faculdades sexuais até ao fim da vida. Um problema de gestão de propriedades, digamos. O que para Kant está muito acima do comércio natural dos sexos segundo a simples natureza animal.

sábado, 22 de abril de 2023

Arqueologias

Hoje desloquei-me um pouco mais para o interior, não muito, nem vinte quilómetros, mas o país já é outro. Acabei por almoçar naquele lugar, num restaurante tipicamente de interior. Nada de aparências ou comidas europeias, mas uma casa decente, empregados preocupados com o ofício – isto é, com os clientes – mesas com toalhas e guardanapos de um branco imaculado, uma boa carta de vinhos e uma comida portuguesa bem feita. Os comensais são muito distintos daqueles que se encontram nos restaurantes da moda em Lisboa, por exemplo. Uma burguesia provinciana, em que ainda se nota traços de uma vida rude, mas onde o aroma do dinheiro começa a apagar as cicatrizes dos tempos difíceis. Quanto mais se progride para o interior, maior é o número deste tipo de restaurantes, casas sólidas, de onde não se sai defraudado, pelo contrário. Isto não significa que em Lisboa ou no Porto não existam restaurantes provincianos, com a mesma cultura expressa na carta de vinhos e na qualidade da ementa. Existem e também não se sai defraudado. Contudo, a ambiência trazida pelos clientes é diferente, mais cosmopolita, com menos traços de uma vida rude, talvez por ser mais antiga. Contudo, uma saudade, que os próprios ignoram, leva àqueles lugares como peregrinos de um deus desconhecido. Enchem as mesas como resposta a um impulso arcaico ou para exercerem uma actividade de arqueólogos que, com garfo e faca, escavam memórias ancestrais desconhecidas. Para o que me havia de dar hoje.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Tempo e memória

As previsões concretizaram-se e, neste momento, chove. Uma chuva fina e persistente. A sexta-feira progride indiferente ao estado do tempo. Apesar de usarmos a palavra tempo tanto para a meteorologia como para a duração, as duas coisas ignoram-se ostensivamente, cada uma concentrada na sua sorte e nos seus afazeres. Uma empurrando o presente para o passado, outra distribuindo os estados climáticos de acordo com arcanos que um mortal não decifrará. Para acompanhar uma parte da tarde recorro a um CD duplo com o nome de uma deusa grega, Mnemosyne, de Jan Garbarek e The Hilliard Ensemble. Há muito que não o escutava e hoje caiu-me entre os dedos. Oiço a segunda faixa, O Lord in Thee is all My Trust, de Thomas Tallis. A meteorologia entrega-se a súbitas metamorfoses, mostrando um carácter volúvel. Imagino que possa existir um mundo em que a volubilidade seja uma virtude e não um vício. O título do CD e a fotografia da capa estabelecem uma estreita relação. Vê-se um céu nublado, onde existem nuvens de diversas colorações, do branco brilhante ao chumbo pesado e negro. É isso que é a memória, palavra portuguesa para mnemosyne. Para ser mais fiel, Mnemosyne é a deusa da memória. Deu à luz as musas que superintendem as diversas artes, o que não deixa de ser uma lição. A mãe de todas as artes é a memória, mas elas não se confundem com ela, assim como um filho não se confunde com a sua mãe. Tal como o cântaro vem do barro, mas é outra coisa, também a arte vem da memória, para ser outra coisa. A memória é o barro de toda a arte. Não tarda, tenho de sair e repito-me na composição de uma analogia, talvez para me convencer a mim mesmo.