Pobres orquídeas, deu-lhes o trangolomango. Não, o que lhes
deu foi mesmo o tanglomanglo. Para não faltar à verdade aquilo que muitas vezes
ouvi foi coitado, deu-lhe um tranglimango e foi-se desta para melhor. Aliás, é
a forma sonora mais agradável, mas nenhum dicionarista, nem o Houaiss, se
dignou vir aqui, a este nobre rincão, para registar o uso da corruptela. Seja
como for, alguém deitou um feitiço às orquídeas e elas perderam a cabeça.
Começam a despir-se, em sessões de strip-tease,
como se o friso onde habitam fosse um cabaret.
Já as intimei a comportarem-se, mas elas olham-me com olímpico desprezo e
deixam cair, com ademanes desapropriados, mais uma flor. Isto levanta um problema
filosófico dos mais difíceis, o da relação entre o mal moral e o mal natural.
Muito se discutiu sobre a ligação entre os desmandos da natureza, terramotos,
furacões, epidemias e outros, com a maldade humana, a imoralidade com que os homens
conduzem as suas vidas. Chegou a supor-se que a maldade da natureza era um
castigo da maldade dos homens, mas ao olhar o desaforo das orquídeas percebe-se
que o problema é mais complexo e que a própria natureza possui uma propensão
para a imoralidade que convém castigar, embora não se saiba quem aplicará tal
punição. Ao olhar para o que está escrito perguntei-me se o acentuado arrefecimento
nocturno terá alguma influência no meu estado mental, na decomposição de que o
texto é um sintoma a não desprezar. Ando há dias para me lembrar do nome de uns
arbustos de jardim que dão umas flores assalmonadas e viscosas, é o que me
parece, e que polvilham a escola aqui ao lado. Não consigo. Presumo, ao olhar
para a minha agenda, que o dia não vai ser fácil. Na secretária estão
umas moedas que, esquecidas num bolso, foram à máquina de lavar. Das
sete, apenas três são portuguesas. Um euro alemão e outro espanhol, vinte
cêntimos franceses e dez cêntimos holandeses. Talvez a União Europeia seja
isto, a possibilidade de andar com moedas vindas sabe Deus de onde e de as lavarmos
na máquina, para as purificarmos e evitarmos que se transformem em orquídeas
dadas ao strip-tease. Hoje é terça-feira,
dia 16 de Junho. O sol desce vagaroso sobre os telhados do casario, tomado por
uma anemia que nos protege dos seus furores. Na rua, há gente a conversar e no
telhado do prédio em frente dois pombos imitam anjos prontos para se
precipitarem na balbúrdia humana. Como sempre, nada de novo sob o Sol.
terça-feira, 16 de junho de 2020
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Aproximação ao solstício
Hoje é um dia de difícil gestão, como o vão ser os próximos.
Ainda por cima a herança genética recusou-me a inclinação para gestor, de tal
maneira foi veemente a recusa que nem inveja sinto por quem é CEO – consta que
significa chief executive officer e é
uma das novas fontes de poluição da linguagem – quanto mais por quem não passa
de simples gestor de produto. Não tenho alma de pastor nem de pai dos povos. Eu
sei que todas estas metáforas vêm de lugares diferentes, mas no fundo
assemelham-se, apenas as cores originais as distinguem, mas cor é coisa que
facilmente se muda. Ainda não pus um pé na rua. O dia está melancólico, talvez
pela aproximação do solstício. A Primavera exausta caminha em direcção ao Verão
e, não tarda, os dias começarão a declinar, dando lugar a noites cada vez
maiores, mais negras, mais opacas. Ontem, quando cheguei, havia uma grande
confusão no friso das orquídeas. Flores tombadas, folhas cobertas de uma
viscosidade doentia, um ar de abandono. Uma, completamente despida, parece que
não resistirá. Oiço vozes na rua, vozes como antigamente se ouviam. Não percebo
o que dizem, mas pela toada trata-se de conversa pacífica, algumas asserções sobre
a vida, uma experiência que se narra para edificação de quem escuta, talvez um
desfiar de velhas máximas entrecortadas por comentários. Apesar do vírus não se
entregar, as coisas do mundo vão voltando com os seus dramas e as suas
comédias, sendo uns o reverso das outras. Deveria dormir uma sesta para
compensar as horas em que durante a noite o sono me abandonou. Hoje é
segunda-feira, dia 15 de Junho. À meia-noite, o mês terá completado metade da
sua existência, mas não encontro préstimo para esta informação, como não o encontro
para quase todas as outras. As pálpebras, pesadas, podem-me que as deixe
fecharem-se, mas eu pergunto-lhes se me julgam espanhol. Elas recuam no pedido
e atarantadas deixam-se ficar entreabertas, para que os olhos vejam o que está
diante deles, mesmo que eu não perceba o que é.
domingo, 14 de junho de 2020
Não fora astigmático...
Hoje o meu pai faria anos, noventa e três, mas há muito que
deixou de os fazer, ao tomar o comboio para aquele mundo que tem porta de
entrada mas não de saída. A última vez que ele fez anos eu já sabia que seria a
última, mas não me recordo desse dia, nem do que falámos. Minto como é
habitual. Almoçou em minha casa, um almoço em família em que se comeu um prato
de que ele gostava particularmente. Já não me recordo como se combinava em mim
a alegria e a tristeza ou como nele se manifestava o saber da escassez do
tempo. A memória é uma rameira fantasiosa, devemos olhá-la com desconfiança e
não lhe dar crédito. Passo os olhos pelas primeiras páginas dos jornais.
Descubro que após a quarentena o número de divórcios dispara. Consigo imaginar
o número a empunhar um revólver e a disparar divórcios como se fossem balas para
um alvo a 100 metros de distância. Só espero que o número seja melhor atirador
do que eu. Um dia, no serviço militar, fomos à carreira de tiro que havia para
os lados de Espinho. Foram-nos dadas 5 balas de G3 que tínhamos de disparar
para um alvo longínquo. Cada tiro no centro valia dez pontos. Deixei o meu alvo
imaculado e cheguei aos zero pontos em cinquenta possíveis. Em contrapartida, o
disparador do lado, rapaz exímio no manejo de armas e filho de um famoso, na
época, inspector da judiciária, alcançou a proeza de obter oitenta pontos em
cinquenta. Depois de se conferenciar naquela linguagem que só existe no serviço
militar pensou-se que eu teria disparado no alvo errado. Deve ser do
astigmatismo, informei. Esta é uma boa explicação para o facto de na vida errar
continuamente o alvo. Não fora eu astigmático e toda a minha existência seria
outra. As pessoas nem imaginam como coisas sem importância, pequenos defeitos
do cristalino ou da córnea, as desviam do alvo que seria o delas e da glória a
que ascenderiam caso o defeito não lhes desviasse os tiros. No sítio onde
estou, mas de onde me irei embora não tarda, as pessoas entregam-se à
existência como se tivessem sido submetidas a uma longa provação. De todos os
casais que avistei na caminhada matinal não sei quantos se divorciarão nem se
neles há astigmáticos, prontos a falhar o próximo casamento ou divórcio. Hoje é
domingo, dia 14 de Junho. A manhã levantou-se ensolarada, mas um manto de
nuvens estende os seus tentáculos no céu e ameaça os que gostam de pisar a areia
como se uma praia fosse o paraíso. Os pássaros não se calam e também eles foram
vítimas do castigo imposto aos que se atreveram a erguer a torre de Babel.
sábado, 13 de junho de 2020
Citações apócrifas
Junho aproxima-se rapidamente daquele ponto em que começará
a declinar. Tem sido uma árdua ascensão ao cume, mas cumprida a etapa a
velocidade da descida irá crescendo paulatinamente até que o mês se despenhe no
abismo negro de onde não há retorno. Deveria ter começado este texto de outra
maneira. Um pássaro canta e eu oiço-lhe o linguajar sem que dele perceba a
mensagem. Outros respondem-lhe numa conversa secreta sobre o rumo do mundo.
Para as aves, o mundo é diferente do nosso. Preocupam-se com os ares e a sua
atenção à terra é, por certo, menor que aquela que lhe damos. Consta que a
espécie humana anda muito preocupada com a questão das estátuas. Uns erguem,
outros derrubam e quando os que derrubam erguem as suas, haverá outros que as
derrubarão. Imagino que estes tempos de pandemia tenham diminuído as
possibilidades de ocupação humana e, sem que fazer, a humanidade preocupa-se com
estátuas. Faz sentido, pois elas são como espelhos que nos reproduzem e, como
os malditos espelhos que multiplicam a humanidade, isto é a citação de uma
citação apócrifa, elas mostram-nos a nossa horrível carantonha. Para me
disfarçar, saí à rua não de máscara mas de panamá, se é que aquilo que pus na
cabeça pode receber tal nome. Comprei-o o ano passado à porta de uma praia do
Algarve. Vendiam-nos a dez euros. Todos iguais, fabricados numa república
popular asiática e todos de papel. Pensei que no fim daquele dia teria de o mandar
reciclar junto com os jornais e o cartão. Enganei-me. Usei-o hoje e tem ar de
que ainda resistirá a mais uma dúzia de usos. O almoço será mais tarde, uma
honra concedida ao Santo António por injunção das minhas netas. Já enfeitaram o
lugar do repasto e cheira a sardinha assada. Leio o boletim epidemiológico como
se lesse o meteorológico. Apesar do sol, o tempo está longe de ser benevolente.
Continuam os raios e os coriscos. Hoje é sábado, dia 13 de Junho. O mundo
caminha desatinado, mas isso não é uma novidade. Sento-me e olho o espectáculo
sem presunção de compreendê-lo. Fui educado na terrível tradição daqueles que
vão ao estádio não para competir nem para fazer negócio, mas apenas para ver.
Também esta frase é o resultado de uma citação apócrifa, tal como eu.
sexta-feira, 12 de junho de 2020
Ó meu santo antoninho
Estão incertos os dias de Junho, um humor volúvel, euforia e
depressão. Onde me encontro neste momento, chove. Os pingos de chuva batem nos
vidros da janela, fazem pequenas bolhas para depois deslizarem, enchendo o
vidro de pequenos regatos que, ao confundirem-se, transformam-se em lago. O
mundo está cheio destas metamorfoses, um conjunto de coisas que ao juntarem-se
forma uma outra. Estava a ler o jornal e vejo a palavra palimpsesto. É uma bela
palavra, dotada de musicalidade, embora eu não a recomendasse para uso poético.
Todos nós somos textos que se escrevem no lugar onde outros textos foram
escritos e logo apagados. Queria eu dizer que também as nossas vidas fazem
parte de um palimpsesto de que não sabemos a origem nem temos a mais leve
desconfiança como ele, um dia muito depois do nosso texto ter sido apagado,
acabará. Talvez nas mãos de algum antiquário cósmico contrabandista de
velharias. De manhã, caminhei durante seis quilómetros, o corpo começou a etapa
muito exuberante, mas a partir de certa altura a energia começou a definhar e o
ritmo da passada abrandou, deixando-me longe do record pessoal, que já de si é miserável. Cães ladram na rua e um
buraco nas nuvens deixa ver um céu anil. Avisto duas torres altas, antigas
chaminés industriais feitas em tijolo, por onde a fumaça negra se elevava aos
céus, desenhando círculos, espirais, nuvens densas e tóxicas. São agora
pacíficos adornos de memórias que, com o passar dos dias, mudaram de infelizes
para o seu contrário, como acontece sempre. O meu email continua sob fogo
inimigo. Como bombas, caem nele mensagens, ainda por cima já nem se pode matar
o mensageiro que fica no resguardo do lar a disparar setas envenenadas como
Cupido lançava as de amor, não menos venenosas, claro. O melhor é cessar por
aqui, para que a deriva não me leve a mostrar a loucura que há muito disfarço,
não sem algum êxito. Hoje é sexta-feira, dia 12 de Junho. Um tempo de santos
populares – ó meu rico santo antoninho – pouco aberto a comemorações. As
adolescentes da casa querem uns santos caseiros, com sardinhas e bandeiras de
uma certa marca que se promove nestas ocasiões em Lisboa. Não digo qual, porque
isto não é uma agência de publicidade. Antes fora, grita-me a consciência.
Olho-a com desprezo e encolho os ombros. Sardinhas, então, mas no dia do santo.
Sentença lida.
quinta-feira, 11 de junho de 2020
O génio maligno e o canto do galo
Um aguaceiro não previsto encurtou a minha caminhada de hoje
em mais de dois quilómetros. Estava eu tão docilmente disposto a acumular
pontos cardio, que segundo a app que me monitoriza as deambulações,
são recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e os elementos decidiram
conspirar contra a minha saúde, a minha vontade de me roubar à inércia do ser
sedentário que vive dentro do meu corpo. Conforme os anos passam e a experiência
do mundo aumenta, mais convencido estou que a realidade é um tecido perverso
que um génio maligno, mais poderoso do que aquele que assombrou as meditações
melancólicas do senhor Descartes, vai tecendo para se rir dos mortais,
estragando-lhes os projectos, baldando-lhe as expectativas, transformando a
esperança na indiferença ou mesmo no mais profundo desespero. É possível,
penso, que o desespero não tenha profundidade, que seja apenas um ser
bidimensional, uma superfície, e que seja ilegítimo dizer profundo desespero.
Tudo é possível neste mundo, mesmo as coisas mais dignas de descrédito. É
inverosímil, mas a verdade é que estou a ouvir um galo a cantar, se é que se pode
chamar canto à propensão vocal dos galarotes para o exibicionismo. Ele insiste,
insiste, levado por uma estranha necessidade de manifestar a sua existência.
Fora ele humano e seria caso de lhe recomendar uma terapia psicanalítica,
deitá-lo no divã, para que rememorasse o acontecimento traumático passado na
infância que o leva a este exibicionismo vocálico. Ele haveria de falar de
sonhos e entregar-se à associação livre, enquanto o psicanalista tomaria notas
num caderno de capas azuis. Sempre se trataria de um galarote e convinha não desmoralizá-lo
com um caderno de capas cor-de-rosa. Desconfio que estas últimas palavras não
serão particularmente apreciadas e adaptadas ao tempo em que vivemos, mas eu já
não pertenço a este tempo. Seja como for, a linguagem sempre foi uma coisa
perigosa e agora está cheia de vigilantes, não vá ela incendiar-se e atear um
fogo maior que o grande incêndio de Roma. Hoje é quinta-feira, dia 11 de Junho.
Feriado religioso do Corpo de Deus que há uns anos foi abolido, mas depois
restaurado, colocando o corpo divino no seu devido lugar, com gratidão geral de
crentes, agnósticos e ateus, e desespero daqueles que julgam que o ócio dos
outros é vicioso e que só o trabalho liberta. Será esta frase uma versão da
falácia reductio ad Hitlerum?
quarta-feira, 10 de junho de 2020
A vida assim
São precisas umas coisas do supermercado. Muito bem. Entra-se no carro e vai-se direito ao templo onde o necessário é vendido como se de uma simonia se tratasse. Quando se chega, descobre-se que são muitos os que tiveram a mesma precisão, uma fila enorme de fiéis que tenta manter a distância e aguarda que o acólito lhes dê entrada. O carro nem pára. O melhor é ir a outra paróquia. Constata-se que a nova igreja tem menos fiéis. Onde está a máscara? Põe-se a máscara, entra-se, higieniza-se as mãos e lá se descobrem as coisas de que havia precisão. Não me agradam os vinhos que por aqui há, digo. Sai-se, tira-se a máscara e sorve-se o ar lentamente. Uma esplanada à espera. Quero ver o que há para comer. Onde pus o raio da máscara, pergunto-me. Lá a descubro. Ponho-a, entro, higienizo as mãos e escolho. Saio, sento-me e tiro a máscara. Torno a sorver o ar com lentidão. Uma chamuça, ainda antes do almoço, oiço. Haveria de ser um rissol, um croquete? É o que há. Também quero avô. São duas, então. Temos de tornar a higienizar as mãos, pergunta a mais nova, para logo querer saber se há bolos. Não há. A vida agora é isto, já nem sei onde pôr as mãos, os olhos, a boca, o nariz. Vale-me a chamuça, que me há-de aumentar o colesterol, mesmo se higienizo as mãos. Chegado a casa ligo o computador depois de higienizar as mãos e mudar de roupa. A máquina informa-me que está actualizar, só mais um momento, mas este dilata-se, dilata-se num nunca mais acabar. Pego num livro de poemas e num verso vejo a palavra inconsútil. Franzo o sobrolho. Não seria melhor usar sem costura, interrogo-me. As actualizações continuam. Só um momento, não desligue o computador. Não desligo e agradeço por ele não me tratar por tu, ao menos ele, dou-lhe os momentos todos e até me actualizava a mim se pudesse, só para lhe agradar. Leio desci pela imponente escada da juventude e fico perplexo, o que fará ali o adjectivo? Os pneus das bicicletas estão vazios, retine nos meus ouvidos. Eu sei, já trato disso, respondo. Hoje é quarta-feira, dia 10 de Junho. A pátria celebra-se na voz do presidente. O cardeal poeta assevera que Camões desconfinou Portugal e eu penso na chamuça, nos meses que passaram sem ter ido a Lisboa, que não ponho um pé num restaurante indiano ou goês, que não deixa de ser indiano, mas tem um travo do desconfinamento camoniano. Tenho de procurar a bomba das bicicletas das crianças.
terça-feira, 9 de junho de 2020
Divagações de terça à tarde
Entardece. Escrevo esta palavra como se ela contivesse um
destino, como se o pôr-do-sol, ainda por chegar, anunciasse um crepúsculo
final, ao qual se seguiria a noite eterna. Este pathos que enterneceu gerações tomadas pela angústia existencial é
uma falsificação. As tardes são seguidas pelas noites e estas pelas auroras que
trarão manhãs que declinarão e ao meio-dia hão-de morrer nos braços da tarde,
numa monotonia sem fim. Não estava previsto que o narrador se entregasse a
estas divagações, que tentasse raptar os leitores do contacto com a vida, para
os enrodilhar em assuntos que não movem o mundo e, por isso, não interessam a
ninguém. Muitas foram as vezes que escutei isso não interessa ao Menino Jesus,
numa tentativa blasfema de limitar os interesses do filho do Homem.
Afastemo-nos do território escorregadio da teologia. Uma conversa chega aos
meus ouvidos. Vem cheia de realidade. Um drama qualquer, vidas desestruturadas,
gente perdida, abandonada pelos deuses. Gente desnorteada, oiço. Há exclamações
de espanto, comiseração, enquanto uma sombra se prolonga pela rua, pisada por um
transeunte de calções e boné que vai apressado para um encontro secreto,
imagino-o pelo andar comprometido, o olhar furtivo a espiar horizontes. Caio em
mim e digo-me que ninguém vai para um encontro secreto de calções e boné. Um
gato equilibra-se no muro, dá uns passos, procura uma mancha de sol e deita-se.
Dedilho o calendário e descubro que há dois feriados seguidos, um cívico e
outro religioso. A cada um a sua liturgia. As vozes não se calam, a desgraça é
infinita e o vozear limitado. Hoje é terça-feira, dia 9 de Junho. Enrolo-me na
tarde, esqueço o infortúnio, ponho de lado as tragédias e sento-me. Hei-de
abrir um livro e começar a ler ou pego em mim e obrigo as pernas a porem-se em
movimento.
segunda-feira, 8 de junho de 2020
Um grito escalofriante
A sala é desmesurada para o meu tamanho, para a experiência que
tinha do mundo. Ao fundo, um friso de professores com ar inóspito, mapas nas
paredes. Depois de mostrar sabedoria sobre as produções das províncias
ultramarinas, um eufemismo em voga, vou para o quadro negro. Vestido com bata
branca, um dos oficiantes inquire-me sobre questões esotéricas, tais como
aritmética, geometria. Escrevo na ardósia, resolvo problemas, faço contas,
desenho figuras, apago. O cabelo do interrogador era branco, talvez tivesse
sido louro, e a face rubicunda, com ar severo que lhe sublinhava a dignidade,
apesar do tom rosáceo da pele. Havia espectadores numa bancada improvisada. Não
podiam, suponho, aplaudir ou patear, mas guardar reverente silêncio. Estou ali solitário
perante um tribunal que me julgará sem piedade. Faltavam-me ainda uns meses
para ter dez anos. Isto não foi um pesadelo, mas uma memória antiga que
irrompeu em mim depois de almoço. Por vezes sou assaltado por fragmentos do
passado, coisas mortas que ressuscitam, sem que eu saiba como. Vêm da terra do
esquecimento, abrem caminhos sinuosos e desembocam na grande praça da
consciência. Não sei o que fazer deles. Se a minha fosse uma alma de
coleccionador juntava-os para os catalogar e depois arrumar numa vitrine e os
contemplar de quando em vez. Estou a falar de um tempo muito arcaico, onde a
vida ainda era regulada por ritos de passagem, mas do que tenho saudades é de
uma certa literatura de aventuras do oeste, livros pequenos, com 64 páginas e
seis desenhos, letras minúsculas, organizados em colecções com nomes como 6
Balas, Cow-Boy, Fúria dos Bravos e, supremo encanto, Gatilho. Naqueles dias em
que as férias se prolongavam por três meses, as tardes de calor eram
enfrentadas com a pistola na mão e o dedo no gatilho. Se havia pandemias, não
me informavam, mas os bons ganhavam sempre aos maus e a justiça não era uma
quimera. Não me perguntam, mas se perguntassem que livros influenciaram o meu
gosto literário, diria de imediato os da colecção 6 Balas ou Fúria dos Bravos.
Como é que se pode ler Kafka, Mann ou Dostoiévski, se nunca se leu Um Milionário no Far-West ou A Terra das Caveiras? Sim, é verdade,
não tenho assunto. Hoje é segunda-feira, dia 8 de Junho. A temperatura está
moderada e o sol cordato. Leio: Recuperando
o revólver, despejou a carga sobre o segundo assaltante, quando este tentava apanhar
Bill Shaterly desprevenido, no momento em que carregava a arma. O meliante
soltou um grito escalofriante – isso mesmo, escalofriante – e, em seguida, caiu de bruços, com o
estômago perfurado (Uriah Moltan, Matar
ou Morrer). Se o leitor não sabe o que é escalofriante nem tão pouco um
escalofrío, recomendo um dicionário de espanhol. Eu também não sabia.
domingo, 7 de junho de 2020
Não dar por nada
Uma vertigem, daquelas que se sentem quando se bebeu um
pouco, mas não tanto que não se permaneça no estado de sobriedade. Depois, uma
sonolência que não pára de atormentar as pálpebras, incitando-as a cerrarem-se,
a cortarem-me as imagens do mundo, como se me tivesse esquecido de pagar a
conta na operadora que prodigaliza os serviços de televisão. Olhei pela janela
e a paisagem pareceu-me uma pintura de um pintor que muito se cultua por aqui,
como se fosse um santo. O pior é que o lugar dos pintores não é o altar. Ele
esteve em Paris, que é um lugar certo para pintores do tempo dele, naqueles anos
em que tudo efervescia e as artes plásticas sofreram tal revolução que uma era
nova começou. Ele não deu por nada. Talvez seja por isso que muito se gosta
dele. Cultivamos com esmero quem não dá por nada e persistimos em não dar por
nada. Uma luz esbranquiçada dilacera a tarde, abre-lhe sulcos, pequenos veios
por onde deslizam os raios solares, sombras se algum objecto se interpõe pelo
caminho. Uma das coisas mais inúteis que o homem inventou foi as instruções.
Mesmo as mais claras e distintas não servem para nada. Não há quem as escute ou leia.
Quem teve a ideia de criar instruções para facilitar a execução das tarefas
sobrevalorizou a humanidade. Ninguém quer saber de instruções para coisa alguma.
As pessoas preferem a tentativa e erro do que a comodidade de seguir uma instrução.
Têm à sua frente a eternidade para fazerem aquilo que, seguindo as indicações
coligidas com amor e destreza, se faria num abrir e fechar de olhos. Não sei o
que me deu para estar aqui a moralizar. Deveria pegar em mim, pôr a máscara
descer no elevador, tirar a máscara e ir ao campo comprar laranjas. Do outro
lado da avenida, um jacarandá está exuberante. Deixo os olhos presos nele por
alguns instantes, depois movo-os em direcção ao castelo e recolho-os em mim,
fechando as pálpebras. Hoje é domingo, dia 7 de Junho. A semana que entra será na
utilidade mais curta, mais sensata, pois também as semanas podem ser
insensatas. Vou comprar laranjas ao campo ou limões à praça, desde que não
necessite de instruções, pois também eu não as escuto ou leio. Eu bem tento
encurtar os textos, mas depois esqueço-me.
sábado, 6 de junho de 2020
Um dia estragado
Acordei a desoras. A manhã corria já desenfreada para a tarde quando me levantei. Não gosto de estar na cama para além das nove da manhã, e isso apenas em dias excepcionais, mas uma insónia deu-me oportunidade para ler durante o amanhecer umas duas horas. Depois adormeci e foi o que se viu. Um dia estragado, pensei ao pôr os pés no chão e ir abrir a persiana da porta que dá para a varanda. Valeu-me ao humor a benevolência da balança. Continua cordata, evitando insultar-me ou entregar-se ao culto da hipérbole. Fui às compras numa grande superfície. Como numa festa de Carnaval, estava toda a gente mascarada, mas agora a dança tem uma nova particularidade. Os corpos afastam-se em vez de se aproximarem. Os passos não visam o encontro harmónico mas o afastamento prudente. Também é verdade que ninguém vai a um hipermercado para dançar, mesmo que seja com a rapariga da caixa. Um dia destes escrevo um ensaio sobre o erotismo em tempo de pandemia. Levantar tarde, tarde almoçar. Fico a olhar para estas palavras, com vontade de as apagar, mas resisto. A caixa de email está a sofrer um ataque aéreo. Parecem bombas a cair nela. Terei de lhe dar alguma atenção, montar as antiaéreas e começar a disparar sempre que o inimigo enviar um email. Ontem tive uma revelação. Estive tentado em escrever epifania. Um anúncio mostrou-me o caminho da salvação. Apregoava um dispositivo que se coloca em cima da página do livro e a ilumina, permitindo a leitura sem perturbar o sono de quem, ao lado, ainda há pessoas que dormem com outras ao lado, de quem, dizia, tenha dificuldade em dormir com luz. Apressei-me a comprar, mas segundo me informaram vai demorar tempo a chegar. Vem de longe, tem muito que andar. Só espero que não se transvie no caminho, pois não há coisa pior do que perder aquilo que nos pode salvar. Hoje é sábado, dia 6 de Junho. A temperatura está amena, a luz remeteu-se à sobriedade e o mundo rumoreja em diálogo com uma máquina doméstica que se excede no zelo para que foi criada. Até uma máquina foi criada para alguma coisa, só eu é que ainda não percebi para que fui criado. Não blasfemes, diz-me a consciência. No telemóvel, uma aplicação pergunta-me se eu quero optimizar as fotografias. Respondo-lhe que gostaria de optimizar muitas coisas, mas as fotografias podem ficar como estão. Não blasfemo.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
A realidade está de volta
Depois de almoço, o estilete de cristal do sono perfurou-me as têmporas e a cabeça descaiu, o queixo tombou contra o peito e devo ter ressonado. Se sonhei, não dei por isso. Quando acordei, um fio de baba corria-me da boca, mas há coisas em que convém ser parco na descrição. O computador tinha hibernado e aquilo que eu estava a fazer congelou. Terei agora de recorrer ao micro-ondas para o descongelar, para o retirar da gélida petrificação em que caiu. O mais acertado seria também meter-me no aparelho e descongelar-me, para ver se me ocorre alguma coisa que faça sentido. Tenho uma revista em cima da secretária há mais de duas semanas. Tinha intenção de ler um artigo, mas olho a capa onde a prosa se anuncia, encolho os ombros e passo para outra coisa. Noutra altura, penso. E se essa altura nunca chegar, por certo não perderei grande coisa. A realidade está de volta ao lar dos portugueses. Voltou o futebol, a metafísica da bola na trave, a estética do fora-de-jogo e a ontologia da bola na mão ou mão na bola. Pressinto uma parte da pátria apaziguada, depois de uma longa ressaca. Não deveria tecer comentários jocosos sobre uma indústria tão poderosa e que alimenta tanta gente. Cada um aguarda a morte como quer ou pode e há coisas piores do que a bola, que ao menos é redonda, e nisso está, como bem sabiam os gregos, toda a perfeição. Nos relatos de futebol que eu ouvia na infância, pois também eu tive infância e gostei muito de futebol, os locutores tratavam a bola por esférico. Hoje não sei se continuam influenciados pela geometria ou se a origem das metáforas com que narram o jogo será outra, mais rude, mais de acordo com uma massa que não suporta erudições. Isto são suposições de um velho que, vendo a areia da ampulheta a correr demasiado depressa para seu gosto, é tocado pela equívoca nostalgia dos bons velhos tempos, como se os tempos alguma vez fossem bons. Bom é aquilo que não muda, que não se move, que não corre, e o tempo não pára de mudar, mover-se, correr como uma lebre perseguida por um cão de caça. Esta triste analogia venatória era dispensável, bem o sei, mas foi a que consegui. Hoje é sexta-feira, dia 5 de Junho. O fim-de-semana anunciou-se e sinto calor. Se abrir uma janela, talvez a temperatura desça. Anoto na agenda não dormir após o almoço e nunca mais usar expressões ridículas como o estilete de cristal do sono. Um vómito.
quinta-feira, 4 de junho de 2020
Sem nome
As ruas embrulham-se no ruído de antigamente. Vozes, rumores
de automóveis, roncos de motociclos sempre indispostos, gritos de crianças. Os
pássaros calaram-se. Estarão em algum estúdio a calibrar a potência do canto
para se sobreporem à novo situação. Com ímpeto muito moderado, avanço por
dentro de O Jardim dos Finzi-Contini.
Tendo lido já mais de cinco sextos do romance há um problema que não deixa de
me assaltar. Desconheço o nome do narrador – um narrador autodiegético, daqueles
que são protagonistas da história – e não faço a mínima ideia se alguma vez o
nome é referido ou não. Compenso-me imaginando que, por uma questão de contenção,
se tenha abstido de se nomear. Se for assim, compreendo-o muito bem, pois eu
também sou um narrador que não me autonomeio. Não porque seja contido, mas
porque sou destituído de nome. É possível que um dia, ao escrever mais um
destes textos infelizes, descubra o nome que me hei-de dar. À minha frente
tenho correspondência. Orçamentos para obras e uma carta de uma seguradora.
Tudo isto é cansativo. As cláusulas do orçamento, a informação de que ao preço
indicado acresce IVA, segundo as tabelas em vigor, as letras invisíveis da
seguradora, aquilo que ela segura e o que larga de mão. Não tivesse eu almoçado
há pouco e o sono não me chamasse, teria aqui uma grande oportunidade para
meditar sobre a prisão do mundo da vida nas malhas intrincadas da burocracia.
Que belas analogias haveria de fazer com os romances de Kafka ou com alguma das
distopias que a imaginação humana criou. A sonolência, porém, impede-me
meditações a esta hora. Tenho há dois dias um livro, ainda embrulhado, em
quarentena numa varanda. Desconfio que não devo estar bem, mas resisto em libertá-lo
do papel que o envolve. Hoje é quinta-feira, dia 4 de Junho. O tempo por aqui
está ameno, as horas deslizam sorrateiras, um casal passa na praceta em passo
cambado, ele à frente, ela atrás, cansados um do outro, esquecidos da ilusão
que os juntou. Um cão uiva e nesse uivo está toda a sabedoria do mundo.
quarta-feira, 3 de junho de 2020
A conquista da glória dos altares
Da gárgula escorre uma água suja, malcheirosa. Abre um sulco
na terra, um ribeiro minúsculo, e desliza sem pressa para ir morrer num buraco
fétido, coberto de ervas e arbustos secos. Não faço ideia de que sonho faz
parte esta descrição, pois raramente me recordo dos sonhos, mas não tenho
dúvidas que se extraviou de algum e começou a dançar dentro de mim, até que
saiu em forma de texto, antes que a sua pestilência destilasse e se
transformasse numa bebida amarga e venenosa. Lá em baixo, há vozes. Um homem,
pelo menos um, e uma mulher conversam. A voz dela ouve-se menos, é mais exígua,
quase sumida dentro do silêncio. Ele enche a praceta com um som redondo,
saltitante, como se fosse uma bola excessivamente cheia. Há risos de
conveniência, hesitações. Pela primeira vez em muitas semanas fui ao sítio onde
oficio um ritual que me permite enfrentar a terrível necessidade. Ao sair de
lá, estive tentado em ir a uma pastelaria. Lembrei-me da velha disputa com a
balança e contive-me. Há que cultivar a paz. Ao chegar ao prédio onde vivo
tomei a decisão de evitar o elevador e dispus-me a subir os cinco andares que
me separam da terra. Ao entrar em casa, pensei que subir aos céus é muito árduo
e pessoas haverá com pernas tão fracas que desistem a meio do caminho. Talvez a
santidade seja uma questão de musculação dos membros inferiores, um trabalho contínuo
de ginásio, onde os candidatos à glória dos altares encontrarão os seus personal trainers. Agora que esses
templos do músculo reabriram, não lhes hão-de faltar devotos ansiosos de ganhar
vigor para subirem ao céu. Não se pense que sou dado à blasfémia. Não sou. O
que acontece é que nem sempre me ocorrem metáforas decentes e então pego no que
me vem à cabeça, e aquilo que vem à cabeça das pessoas raramente é coisa que se
recomende. A rede de internet está a irritar-me e, como se sabe, a impaciência não
ajuda a subir a escada que nos leva ao alto. Hoje é quarta-feira, dia 3 de
Junho. Este é um mês cuja função nunca percebi. Serve para quê? Daqui a uns
minutos vou videoconferenciar. Respiro fundo e digo-me que isso é como ir ao
ginásio para treinar os músculos das pernas para subir aos céus. As persianas
tamborilam batidas pelo vento, enquanto as folhas das acácias tremem como se
sofressem de uma doença degenerativa. Não sofrem.
terça-feira, 2 de junho de 2020
As frívolas amenidades
Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na
capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem.
Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim
perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à
instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que
lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na
consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software que uso seja de tão má qualidade que não
consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas
a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado,
cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de
política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a
vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as
estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar
as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões,
gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma
orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio
em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno
cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e
surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha
tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se
é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2
de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos
salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.
segunda-feira, 1 de junho de 2020
A força do prefixo des-
O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à
desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo
des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes
pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que
oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo
faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores
dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a
contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o
ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e
eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso,
mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas
se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase
adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo
temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai
subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo
rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem
principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as
romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que
desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas
mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem
por fundamento o Urmensch, cada um de
nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e
se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e
queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o
caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre
Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.
domingo, 31 de maio de 2020
Os falsos caminhantes
Hoje já andei seis quilómetros. Quase parecia um caminhante, mas ainda não consigo disfarçar o velho sedentário que habita no meu corpo. As almas podem ser classificadas sob diversos critérios, o que dá origem a um sem número de taxionomias e não menos controvérsias. Isto é do conhecimento geral, não estou a dar nenhuma novidade. Uma das classificações divide-as em dois tipos. Almas sedentárias e almas nómadas. A minha é completamente sedentária e quando me ponho a caminhar pelas ruas vê-se logo que se está perante uma falsificação. Se não o dizem abertamente é por convenção social, mas os verdadeiros caminhantes, ao verem-me, pensam lá vai um a tentar enganar meio mundo, sabe lá ele o que é caminhar. Têm razão, não sei, não faço a mínima ideia. Hoje andei mais de uma hora a falsificar a realidade, a disfarçar-me de andarilho, de alguém que se treina para fazer uma longa peregrinação ou então que há-de acabar na ignomínia de ser um turista que abre a boca por tudo o que é sítio, depois fecha-a e faz umas fotografias, para mais tarde recordar, embora não tenha nada para recordar. Os lugares também têm almas e estas são avaras e avessas a darem-se a conhecer à alma nómada do turista. O melhor é evitar estas meditações, não vão pensar que sou algum sociólogo. Tenho muitos pecados e defeitos, mas não esse. Imagino que vou almoçar tarde. Aproveito para pôr algum trabalho em ordem e assim infringir o descanso dominical. Os pássaros meus vizinhos estão hoje dados à garrulice. Tagarelam sem parar. Tento perceber o motivo da conversa, mas não tenho ido às aulas sobre a linguagem dos pássaros e o essencial da disputa passa-me ao lado. Como é habitual, também isto não é novidade. Hoje é domingo, dia 31 de Maio. O mês está a acabar e não sei o que hei-de dizer dele. O mais sensato é seguir uma instrução proverbial escutada na longínqua infância. O calado vence tudo. Não me recordo de ser loquaz, mas nunca se sabe.
sábado, 30 de maio de 2020
Narrativa sem nexo
Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Ir ao campo
O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O
texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo
mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal
repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as
pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios
musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do
canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas
tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar
poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra
coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição
eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é
uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em
cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que
serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar
comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana
caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores
neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira.
Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que
me falta o segundo romance, Alcateia.
Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e
depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha
de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é
sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como
se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me
não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou
queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Liquidem os objectos
Os objectos tornaram-se exercícios difíceis. Portas, maçanetas, chaves, corrimãos, botões do elevador, terminais de multibanco, puxadores, superfícies lisas e rugosas, garrafas de vinho e de azeite, pacotes de arroz ou de massa e todo o resto do mundo dos objectos desde que venham do desconhecido ou do conhecido exterior à caverna que habitamos. Há que ter cuidado, não tocar, desinfectar, colocar ao sol, à sombra, à chuva, dar-lhe o ar do meio-dia ou da meia-noite, pô-los em repouso, em quarentena, oferecer-lhes uma quaresma, para ressuscitarem no seu domingo de páscoa. Haveremos de enlouquecer com esta xenofobia sanitária, nesta nova selva com aparência civilizada, onde os tigres, leões e leopardos foram substituídos por um frasco de compota, uma embalagem de bolachas ou a garrafa de água que se compra na estação de serviço. Confesso que não sei o que me deu hoje para este tipo de peroração, mas ainda há dois meses e meio pegava nos objectos sem pensar e agora é o que é. Tudo se pode dividir entre o puro e o contaminado, como se as coisas tivessem uma natureza moral, dotadas de sexualidade e que devessem entregar-se na noite de núpcias em estado virginal, puras, intocadas, plenas de inocência. Talvez o melhor seja acabar com os objectos. Quando a temperatura sobe por estes lados, não afianço a qualidade do meu estado mental. O termostato que mede a febre da casa começa a aproximar-se de uma zona perigosa. Tremo só de pensar o que poderá esconder. Hoje é quinta-feira, dia 28 de Maio. Terei de fazer duas visitas, uma ao meu neto, a outra à sua bisavó. Devia poder juntá-los, mas ainda não vai ser hoje. Bebo água por uma garrafa-termo, o que me vale é que a tinha comprado no ano passado, naquele tempo em que se dispensava certificação moral às meras coisas.
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