quarta-feira, 12 de março de 2025

Falar consigo mesmo

Fui apanhado. Estás a falar com o espelho, escutei. Desmenti. Não que eu vi bem, estavas a falar com o espelho. Silêncio. Ao desmentir não estava a mentir. Não estava a falar com espelho. Estava envolvido num diálogo comigo. O facto de estar em frente ao espelho foi um acaso. De há uns tempos para cá, dei por mim em diálogos comigo mesmo. Toda a gente dialoga consigo mesma mas essa conversa fica retida dentro de si, sem transparecer para o exterior. Fui apanhado. Não por estar a falar com o espelho, mas por falar sozinho comigo mesmo. Vais enlouquecer, ouvi. Talvez, repliquei. Ou talvez já tenha enlouquecido, atrevi-me a informar. Para Platão, pensar é um diálogo interior e silencioso consigo mesmo. O meu problema é que o diálogo interior e silencioso comigo mesmo está a perder algumas características que me permitiam parecer saudável. Está a exteriorizar-se e a tornar-se menos silencioso. Acabarei a falar sozinho pelas ruas? Quem me garante que não o faço já? Estes diálogos interiores e silenciosos que se exteriorizam e se tornam quase vocálicos são interessantes, pois sucedem à volta de coisas que me preocupam ou que me irritam, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Nessas conversas comigo, o meu pobre ego é um herói, impante, destemido, glorioso. O interlocutor – o si mesmo – é pouco vocálico, parece perdido no discurso do ego, incapaz de o mandar calar. Por vezes, consegue uma aberta e sublinha que o melhor é prestar atenção ao que se está a fazer e, quando se está atento ao que se faz, não se fazem figuras tristes ao falar consigo mesmo, pelo menos de modo a ser apanhado desprevenido. A verdade é que gosto cada vez mais de falar comigo mesmo, e as conversas que entretenho comigo são as mais exaltantes. Estou a exagerar, mas tenho uma certa propensão para a hipérbole. Ora, falar consigo mesmo e ser hiperbólico não é cartão de visita que se apresente. Talvez já não existam cartões de visita, uma coisa extraordinária que houve em tempos, mas que nunca tive. Para me visitar, basto-me eu. A conversa será animada e, se descambar em disputa, a minha vitória está certa — também a derrota, mas o mundo está longe de ser uma coisa perfeita. Talvez devesse experimentar falar com o espelho; a ideia nem é má. Entre mim e a minha imagem especular há uma diferença tal que raramente reconheço naquele simulacro um reflexo meu.

terça-feira, 11 de março de 2025

Os aplausos

Passei há pouco diante da televisão e percebi que estava a decorrer um ritual litúrgico em torno de um qualquer drama nacional. Alguém se levantava, falava e, quando acabava, o grupo de onde se erguera aplaudia. Talvez por rivalidade mimética, de um outro grupo, alguém se levantava, falava e, quando acabava, era o seu grupo que palmejava. Isto fez-me lembrar o que se passava na época de Estaline. Quando ele acabava de discursar, os aplausos irrompiam com estrondo e continuavam... continuavam... continuavam. O problema que se colocava a cada um dos apoiantes era o de não ser o primeiro a parar o aplauso. Suspeitava que a vida se podia enegrecer devido à fraqueza dos braços ou à falta de energia para mover as mãos uma contra a outra. Nisto não estou a entrar no campo minado da política, mas no âmbito da antropologia. Há uma clara superioridade na rivalidade mimética. O importante, para os falantes que vi na televisão, é a quantidade de aplausos que recebem ser maior do que a do seu rival. Para isso, basta que fale em último lugar, depois de ter medido a ovação do outro lado. O grupo prolonga a sua por mais uns segundos e tudo fica resolvido, sem dramas para os braços, tortura para as mãos ou vidas enegrecidas devido a uma constituição débil. É muito mais difícil quando a rivalidade é suprimida. A claque fica com um problema entre mãos, para o qual nenhum cronómetro terá a astúcia suficiente para sugerir uma solução.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Um verbo de outros tempos

O que é envelhecer? Talvez seja contar, uma e outra vez, as mesmas histórias, entregar-se à repetição de peripécias, navegar num oceano de iterações. Tudo isto a propósito da história que contei ontem sobre livros e mercearias. Quantas vezes a terei contado nestes textos? Não sei, mas a possibilidade de serem várias funda-se no simples facto de este ser o segundo milésimo ducentésimo décimo nono post. Não vou agora discutir a vexata quaestio da denominação do ordinal 2219.º. Há várias possibilidades, suportadas por especialistas. Como não sou especialista de nada, e muito menos de denominações de números ordinais, uso aquela que mais me agrada: uma questão de gosto e não de rigor na nomenclatura. Com isto, desviei-me do assunto que abriu o escrito: envelhecer. Jacques Brel – enfim, falar de Brel é uma prova de que sou de um outro tempo, que poucos já conhecem – tem uma canção, de 1963, com o título Les Vieux. A canção é belíssima e terrível. Traduzo a primeira metade da primeira estrofe do poema: "Os velhos não falam ou, então, por vezes, fazem-no com o olhar. / Mesmo ricos, são pobres, já não têm ilusões e têm apenas um coração para os dois. / Nas suas casas cheira a tomilho, a limpeza, a alfazema e ao verbo de outros tempos./ Que se viva em Paris, vive-se sempre na província quando se vive demasiado tempo. Os versos são longuíssimos, tão longos como a vida dos velhos de que fala Brel. Em 1977, o cantor belga, pouco antes de morrer (Outubro de 1978), edita um último álbum. Uma das canções, de uma ironia amarga, denomina-se Vieillir. O refrão diz, traduzido para português: "Morrer, isso não é nada. / Morrer, que grande coisa! / Mas envelhecer, oh, oh envelhecer..." Ora, Brel tinha 49 anos quando morreu. A sua casa nunca chegou a ter o cheiro do tomilho e da alfazema, nunca terá contado histórias repetidas ao mesmo auditório. Envelhecer é o processo onde nos repetimos, onde ainda falamos, usamos as palavras e repetimos aquelas que mais amamos. Talvez tudo isto seja apenas uma luta contra o silêncio, quando já ninguém tem paciência para ouvir as nossas histórias ou nós perdemos o interesse de as contar. Quem as perceberá, se o nosso verbo é de outros tempos?

domingo, 9 de março de 2025

Mercearias e livrarias

Saiu há pouco o meu neto e os pais. Comentámos as peripécias do râguebi de ontem, onde a chuva e o frio puseram os jogadores, do alto dos seus seis anos, sem vontade de jogar, de fazer placagens, de correr com a bola até ultrapassar a linha de ensaio e pressioná-la contra o solo, como se a quisessem enterrar. Do râguebi lembrava-se das peripécias; da escola, apenas de que tinha brincado com os amigos. Enfim, talvez a escola seja uma continuação do râguebi, ou este um prolongamento dos intervalos, onde as aprendizagens a fazer não são aquelas que a sociedade valida. Um presente – um presente envenenado. Um livro para ler em casa e, depois, contar a história ao telefone aos avós, que, os pobres, não conhecem a história do terrível cão pulgão. Retrocedi aos meus primeiros livros. O mais antigo que recordo era em pano, com as cinco vogais. De todas elas, só me lembro do "a" e da inevitável águia. Os motivos que ilustravam as outras desapareceram, tragados pelas décadas. Quando penso em livros de papel, as recordações são muito difusas, embora curiosas. Edições Romano Torres, colecção Formiga – será possível? – Aventuras do Pinóquio. O mais curioso é que esses livros se compravam numa mercearia que, ao lado daquilo que as mercearias tinham, também vendia livros. Mais: fazia gala de ter uma montra apenas com livros. Uma coisa extraordinária, que nunca vi em mais lado nenhum. A minha primeira livraria vendia azeite, batatas, bacalhau, açúcar, petróleo, talvez também tecidos, linhas e coisas do género. É possível que os hipermercados não tenham descoberto nada, apenas pegaram numa ideia corriqueira e engordaram-na até se tornar naquilo que é. Um pouco mais tarde, acabada a escola primária, ao lado de casa, a caminho do colégio, passava pela tal mercearia e ficava a olhar para a montra. Os livros fascinavam-me. Pensava nos que leria. Terei lido uns e esquecido muitos outros. O meu neto só por acaso saberá o que é uma mercearia. Espero, porém, que descubra – se ainda não o fez – o que é uma livraria a sério e não um armazém de livros. Um dia destes, terei de fazer com ele uma visita guiada a uma livraria de Lisboa, uma daquelas que frequentei e que ainda não morreram.

sábado, 8 de março de 2025

Reprodução sexual das máquinas

Este texto é dedicado ao x e ao y. Não se pense, todavia, que se mobilizará uma bizantina discussão cromossomática sobre esse inusitado acontecimento do sexo feminino ser determinado por um par de cromossomas x, enquanto o masculino se compraz na combinação de x e y. Por certo, seria proveitosa qualquer meditação sobre a diferenciação que os cromossomas insistem em produzir no mundo ou, também, sobre o facto de o sexo se reduzir ao x e ao y, deixando todas as outras letras do alfabeto – e no português, as outras letras são 24 –, o que introduz no caso um princípio de exclusão que qualquer letra digna desse nome deveria afrontar. Como nada sei de genética e haverá coisas que me escapam, o meu x e o meu y pertencem a outro campo. A história é simples. O comando da televisão está decrépito e a entidade proprietária decidiu que ele se aposentasse. Aceitou, não sem contentamento. Na sequência, a dita entidade foi a um daqueles armazéns ou lojas – ou lá o que aquilo é – e pediu a um funcionário que, por estar distraído, foi apanhado pelo cliente. Em que posso ajudá-lo, ouvi. Preciso de um comando para a televisão, pois o que tenho vai ser aposentado, respondi. E qual a marca? A marca é x, disse eu, solícito e convicto. – Muito bem, lá ao fundo – disse, apontando – estão os comandos e encontra o que pretende. Os dessa marca têm uma caixa cor-de-rosa. Lá fui e, depois de uma troca de impressões familiares sobre funções, aplicações e canais, lá se trouxe um dispositivo com caixa cor-de-rosa. Chegado a casa, colocadas as pilhas, o comando recusa-se a fecundar a televisão. Azar. Há que ler as instruções. Vou buscar os óculos. Leio as instruções, sigo-as com rigor, uma, duas, três vezes e nada. No dia seguinte – isto é, hoje – voltámos em excursão familiar ao sítio onde se vendem comandos. Novo funcionário distraído. Ouviu com atenção o desaire e considerou que, sendo assim, perante uma televisão x que não se deixa penetrar por um sinal de um comando x, há que trazer a referência do televisor e programar – nos serviços técnicos – um comando apropriado, que não aquele. – Faça uma foto da referência do aparelho, aconselhou-me. Está na parte de trás do televisor. Chegado a casa, decidi cumprir a sugestão antes que me esquecesse. Fotografo com o telemóvel a referência, amplio e descubro que o televisor, afinal, é da marca y e não da x. Incrédulo, o núcleo familiar ri-se – um riso amarelo – e constata que nunca houve nesta casa um televisor da marca x. A conclusão de tudo isto é extraordinária: uma televisão da marca x não se deixa engravidar por um comando da marca y, o que seria a ordem natural das coisas. Para dar à luz uma imagem, a televisão y necessita de um comando, também ele, y. Não sei se os movimentos conservadores já deram pelo assunto, mas há aqui qualquer coisa de suspeito: a fecundação dos aparelhos só é possível por dispositivos com os mesmos cromossomas. Este texto pode ser visto como o contributo deste narrador – ou será do autor? – para o magno problema da sexualidade das máquinas na era da técnica.

sexta-feira, 7 de março de 2025

O europês

Num discurso pronunciado em 28 de Abril de 1962, aquando da recepção, em Bruxelas, do Prémio Erasmo, o teólogo alemão Romano Guardini faz uma meditação sobre a Europa. Parte da sua experiência pessoal: nascido em Itália, de pais italianos, muito cedo foi para a Alemanha. Em casa, falava italiano, mas toda a sua formação foi feita em alemão. A certa altura do discurso, diz: Pensava em alemão, pois não é em vão que se pensa numa língua. Ora, uma língua não é, em primeiro lugar, um sistema comunicacional, embora também o seja. Uma língua é a estrutura do mundo que habitamos, uma estrutura que preexiste ao falante. Numa linguagem mais filosofante, é uma estrutura a priori. Um transcendental, isto é, uma condição de possibilidade. O mundo de um alemão não é o mesmo de um italiano ou de um português, muito menos o de um árabe ou de um chinês. Isto porque toda a experiência está enformada pela língua em que se pensa. Bernardo Soares, num dos textos mais antipatrióticos da literatura portuguesa – Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. – escreve: Minha pátria é a língua portuguesa. Pátria significa aqui mundo. Guardini, na sequência do discurso, afasta-se da questão da linguagem. Ora, é aí que reside o drama europeu. Não porque a comunicação seja difícil – é facílima no mundo de hoje. O problema é existirem tantos mundos europeus quantas as línguas faladas pelos habitantes da Europa. Se houvesse apenas uma língua na Europa, o europês, haveria apenas um mundo. A realidade seria mais pobre; mas a vida, mais fácil.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Um triunfo

Se viajarmos no mundo das ideias até Platão, temos a possibilidade de descobrir um entrelaçamento sólido entre o bem, a beleza e a justiça. A solidez era forte e resistiu durante muito tempo, até que, a certa altura, a estrutura começou a ruir, com as partes a separarem-se, como se fossem estranhas umas às outras, esquecendo-se da sua antiga unidade. A certa altura desta viagem, o escritor russo León Tolstói ainda tenta salvar, na sua meditação sobre a arte, essa unidade, mas era, há muito, uma causa perdida. No século XX, encontramos artistas cuja grandeza estética não é acompanhada por uma devoção ao bem moral. Por exemplo, Knut Hamsun, o grande romancista norueguês, foi um devoto, durante a Segunda Guerra Mundial, do governo colaboracionista pró-alemão de Vidkun Quisling. São conhecidas as suas loas a Hitler. A beleza estética dos seus romances parece conflituar com a sua dimensão moral. Um outro caso é o do autor do seguinte trecho: "A cabeça é uma espécie de fábrica que não funciona exactamente como nós queremos… Veja só… Milhões e milhões de neurónios… Um mistério absoluto… Você está bem arranjado! Neurónios entregues a si próprios! Ao mínimo ataque, a sua cabeça dispara em todas as direcções, você já não agarra uma ideia!... Sente-se envergonhado… Eu, aqui deitado na cama, gostaria de lhe contar mais coisas… Quadros, brasões, passagens secretas, tapeçarias… Mas perdi-me… Não encontro nada! A minha cabeça anda à roda…" O texto faz parte do primeiro romance, Castelos Perigosos, da Trilogia Alemã. O autor, também um colaboracionista, apoiante do governo de Pétain e um empedernido anti-semita, é Louis-Ferdinand Céline. O século XX foi um campo fértil onde grandes artistas se comprometeram com ideias e práticas pouco conformes ao bem e à justiça. É possível que, já no tempo de Platão, a grande muralha que unia o bem, o belo e o justo estivesse fracturada, e que o seu pensamento fosse um acto de reconstrução de algo que estava sob ameaça. Hoje, porém, nem um Platão renascido teria poder para cerzir essas ideias e devolvê-las à sua unidade originária. Elas são como galáxias num universo em expansão: afastam-se cada vez mais rapidamente umas das outras. Os sofistas, esses inimigos de estimação do platonismo, acabaram por triunfar.

quarta-feira, 5 de março de 2025

As cinzas de quarta-feira

Quarta-Feira de Cinzas. Para lá do significado religioso, o dia simboliza o destino da humanidade – Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar. – e de tudo o que é construção humana. É um dia em que se deveria enfrentar o oblívio da nossa condição. Ora, faz parte dessa mesma condição esquecer-se daquilo que é. Quem se vê como o pó ou as cinzas que, em potência, já é? O dia traz em si tal radicalidade que nem a própria Igreja o seleccionou como fazendo parte daqueles dias que serão feriado. Também eu não quis enfrentar o dia e entreguei-me ao cultivo da realidade. Ora, não há melhor estratégia para nos alienarmos desse espinho cravado na carne do que submeter-se aos ditames do real, às tarefas que o mundo – ou nós, por ele – nos destinou. Não tive de enfrentar a recordação de que sou pó e, se o faço agora, talvez seja porque o grau de alienação em que mergulhei durante todo o dia me tenha anestesiado. Olho os meus livros – que continuo a acumular, sem esperança de ler muitos deles – e vejo-os a arder. Não importa que nunca venham a ser devorados pelo fogo. Mais tarde ou mais cedo, sendo eu pó, poderão ainda resistir juntos por uma geração, mas não mais do que isso. Talvez esteja enganado, mas um dia serão as cinzas de uma quarta-feira.

terça-feira, 4 de março de 2025

Uma querela

A certa altura de uma obra de Edward Grant com o título Os Fundamentos da Ciência Moderna na Idade Média, o autor escreve: Tal como Buridan, Oresme apresentou vários argumentos a favor de uma Terra em rotação, mas são meramente persuasivos e não demonstrativos. Aqui está o drama em que as nossas sociedades vivem. As nossas crenças são sustentadas por argumentos persuasivos, não por demonstrativos. Estão fundadas na emoção ou em valores que não foram escrutinados na sua congruência, mas que persuadem o auditório. Muitas dessas crenças são, se observadas com rigor, completamente inverosímeis, mas não crer nelas seria de tal modo inquietante que acabam por se tornar convicções indiscutíveis. Ora, a partir do século XVII, os europeus – e o prolongamento da Europa noutros continentes – começaram uma viagem estranha. A partida foi dada por um senhor chamado René Descartes, que um dia tomou a decisão insólita de examinar as suas crenças para descobrir se alguma delas merecia o epíteto de verdadeira. Isso abriu uma brecha que, com o tempo, se foi aprofundando. De um lado, aqueles que procuram regular-se pela demonstração e, do outro, os que vivem ancorados na persuasão. Os tumultos que atingem, por estes dias, o mundo ocidental são uma emanação directa desta querela. Ora, o mais plausível é pensar que factos e demonstrações rigorosas sejam impotentes para enfrentar aqueles cujas crenças entram em conflito com os factos, com a lógica e com a demonstração. Esta meditação soturna está de acordo com o dia de Carnaval que nos calhou este ano: frio, cinzento, sombrio. Tão bisonho me encontrava que comecei a escrever o que escrevi. Poder-se-á, com razão, dizer que o fundamento deste escrito é a bisonhice de quem o escreveu. A questão, todavia, é saber se essa ligação pode ser demonstrada ou se não será, afinal, apenas uma crença nascida de um acto persuasivo, proveniente duma qualquer emoção que tomou conta dos dedos que caem, não sem vigor, sobre o teclado, como se fossem dotados de fé.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Penas e tristezas

Esta é uma das mais penosas épocas do calendário. Refiro-me ao Carnaval. Não ao acontecimento em geral, mas ao caso particular de Portugal. Apesar dos foliões e das folionas, aquilo dá vontade de chorar. O melhor é não pensar nisso e, se as pessoas se divertem, há que não deitar um véu de tristeza sobre a efeméride. Teria sido mais interessante, muito mais, ter feito evoluir o tradicional Entrudo. Contudo, isso não nos permitiria pensar que é possível imitar o Rio de Janeiro, e nós gostamos muito de imitações. Falando em festejos carnavalescos, li há pouco que o nosso ídolo futebolístico não pode entrar no Irão, pois está condenado a levar 99 chicotadas por ter tido a desfaçatez de dar um beijo na face de uma artista praticamente paralisada. Foi um acto de simpatia e de solidariedade por uma pessoa naquele estado. Parece que isso é um crime terrível. Confesso que tenho tentado, mas ainda não consegui perceber a paranóia que as religiões – pelo menos, algumas delas – têm com o corpo e, em particular, com o sexo. A única explicação que encontro nada tem de religioso, mas estará mais próxima de uma coisa que não há fundamentalismo religioso que não abomine. Talvez essa paranóia seja uma vantagem competitiva no processo de adaptação da espécie ao ambiente- Portanto, uma explicação evolucionista. Não tenho informação, mas poderia enunciar um princípio: quanto mais paranóico se é em relação ao sexo, mais filhos se fazem. A repressão da sexualidade – ou de qualquer coisa que a lembre – é uma estratégia para que os espermatozóides oprimidos encontrem, com maior precisão, o caminho para o óvulo atribulado, para que a espécie se reproduza e não entre em extinção – o que talvez nem fosse má ideia. Onde a sexualidade não é severamente regulada, os espermatozóides andam à vontade, cultivam uma faceta liberal e evitam entrar para um óvulo devorador, o qual, diga-se, também estará mais interessado noutras coisas que não em ser fecundado por um elemento estranho. Não devia falar destas coisas, mas hoje o dia está triste, como o Carnaval ou aqueles que vêm num beijo na face um crime sexual ou coisa que o valha.

domingo, 2 de março de 2025

Um domingo exaltante

Atravessei a cidade – embora a designação de cidade seja, na verdade, um eufemismo destinado a inflar os orgulhos paroquiais, em especial daqueles que ocupam os poderes no município, sempre muito atreitos a estas coisas, não vão ser tomados por vilões, coisa que ninguém aprecia, especialmente aqueles que o são – atravessei a cidade, dizia, com o carro a rolar muito devagar. Não havia trânsito e, nos passeios, não via ninguém. Tudo recolhido em casa, não fosse o frio enregelar-lhes os corpos e petrificar-lhes o cérebro, o que é muito desagradável, pois exige que a pessoa, para descongelar, seja posta em banho-maria – uma perda de tempo. Fui a uma aldeia, aqui perto, comprar laranjas. Um hábito para animar o comércio local. A venda à beira da estrada pode parecer arcaica, mas tudo muda. A vendedora original foi substituída pela filha e já é possível pagar por transferência através do mbway, o que pode ser uma prova de que se vive no melhor dos mundos possíveis. Por um lado, um sabor à tradição; por outro, o fruto da inovação. O resultado é ficar com as mãos limpas, pois não se mexe em dinheiro – coisa que, como se sabe, suja as mãos, embora raramente manche as consciências. Isto tem uma explicação. Científica, claro. A consciência é revestida por uma película protectora que repele a sujidade. É preciso que a película esteja muito corrompida para a consciência se sentir enodoada e corrupta. Esta é a explicação científica. Não se pense, porém, que a película é fruto de um avanço tecnológico recente – não é. É mais antiga, muito mais, do que o hábito de vender e comprar laranjas à beira do caminho. Desviei-me do assunto, mas talvez não tivesse nenhum assunto. Compradas as laranjas, mas também batatas-doces, voltei para casa. Na cidade, as ruas continuavam vazias, a tarde continuava cinzenta e fria. Os domingos de província sempre foram exaltantes.

sábado, 1 de março de 2025

Por três vezes

Por três vezes, senti-me perturbado neste dia que inaugura o mês de Março. De madrugada, acordei dentro de um sonho, onde um certo acontecimento ocorrido há mais de quarenta anos se consumava e, ao mesmo tempo, não se consumava. A perturbação não provinha de nenhum dos pólos da situação paradoxal, mas do facto de estar dilacerado entre ambos. O que piorou as coisas ao acordar foi que essa situação nunca fora problemática, e restava-me dela uma recordação delida, embora agradável. Por estar desde ontem, às 11 horas da manhã, ligado a um aparelho para realizar um holter, senti-me na obrigação de registar a hora a que acordei e o estado de perturbação em que me descobri, referindo um pesadelo – embora o conceito seja excessivo. A meio da manhã, decido ir almoçar fora. Estamos na época do sável frito com açorda de ovas. Descubro que, da última vez que fiz a romaria em demanda deste pequeno santo graal, ainda não tinha ocorrido a pandemia. Um dos restaurantes a que ia então, numa aldeia sobre o Tejo, tinha fechado. O outro não me atendia o telefone para fazer a reserva. O mundo tinha mudado mais do que eu pensava. O facto de ter de substituir o certo pelo incerto perturbou-me, talvez porque ainda não estivesse refeito da perturbação inicial. A escolha mostrou-se um êxito, porém. Durante a refeição, fazem-me notar um casal ainda relativamente jovem. Desde que chegaram, ainda não tinham trocado uma palavra, cada um deles vampirizado pelo respectivo telemóvel. Comentei com uma citação de Borges: é um desses amores ingleses que começam por excluir a confidência e que muito cedo omitem o diálogo. Na verdade, Borges não falava de um caso amoroso, mas de uma amizade. Não usa a palavra amor, mas amizade. E esta, no conto, está completamente fora de qualquer contexto erótico. Quando quis situar a frase, não consegui recordar o conto onde ela surge. Depois de grandes esforços, descobri – e foi isso que me perturbou – que ela pertence a uma das narrativas de Borges que mais gosto e que mais vezes li: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Consta que ontem, no último dia de Fevereiro, sete planetas do sistema solar estiveram todos alinhados. Todas estas perturbações sofridas relacionam-se com o passado. A conclusão a que cheguei pode parecer inusitada, mas não encontrei outra melhor: os planetas, ao desalinharem-se, estão a interferir na relação do meu presente com o meu passado. Ora não há coisa mais perturbante do que essa interferência, pois o que será de mim, se o meu passado se torna incerto?

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Caos e gravitas geométrica

Hoje é o último dia de Fevereiro, mas foi já um dia de Março, caso se leve em consideração a sabedoria coagulada em ditados, máximas e provérbios ao gosto popular. Na realidade, do dia de hoje poder-se-á dizer: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão. Falo disto porque fiz a experiência. Saí de manhã, estava frio e chovia. Depois de almoço, tudo mudou. Pouco depois das quatro da tarde, fui fazer a caminhada do dia e estava sol, uma temperatura agradável, anunciadora da Primavera a vir lá mais para a frente. Seja como for, a situação irrita-me. Sofro de um espírito geométrico e detesto ver o mundo desarrumado. Quando falo de mundo, refiro-me, no caso, às divisões do tempo. Choca com a geometria que me habita a alma esta sobreposição de estações. Em linguagem poética, posso dizer que abomina o encavalgamento: que cada verso comece e termine em si mesmo e não estenda a perna para verso do andar de baixo. Quem diz verso, diz estação ou mês do ano. Que o Inverno comece no primeiro dia de Inverno e acabe no último. Que Março não se antecipe e abalroe Fevereiro. Haja ordem. É evidente que estas disfunções, estes tumultos antigeométricos, me ferem o espírito, porque o meu espírito e a minha alma, apesar de geométricos – e muito século XVII – são caóticos. Veja-se, como exemplo, estes textos: começo a escrever sobre uma coisa, logo salto para outra, numa indisciplina que faria horror à gravitas geométrica de um Espinosa ou ao animus matemático de um Descartes. A minha revolta é um caso de compensação, que é o que acontece com todos aqueles que se revoltam, com grande excitação, sobre um qualquer estado do mundo. Fora eu mais geométrico, e aceitaria de bom grado o caos que resulta quando se escande o ano à procura de uma métrica regular e só se encontram versos livres.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Não incomodar o tempo

A certa altura de um poema do ciclo Cinco Canções Lacunares, Herberto Helder escreve: Não faças com que esse mês te procure. Leio o verso e não consigo decidir-me se estou perante um conselho de prudência ou um imperativo. A equivocidade poética está longe de se reduzir ao campo semântico, derrama-se também sobre aquilo que John Searle denominou actos ilocutórios, tornando a intenção presente no verso – e não no autor, que só ele saberia, se o soubesse – completamente ambígua. Se o verso é um conselho prudencial, posso ainda admitir que, tomando as precauções necessárias, conseguirei fazer com que esse mês – que não sei qual é – me procure, negociando a hora da sua chegada. Contudo, se o verso for um imperativo – e, neste caso, um imperativo categórico –, então devo fazer possíveis e impossíveis para que o mês desconhecido não venha no meu encalço. Não porque ele represente uma ameaça para mim, embora o seja, mas porque não se deve interferir na sua existência: temos o dever de resguardar a sua autonomia. Ora, se imaginarmos que mês é uma metonímia, onde a parte está no lugar do todo, percebemos que está em jogo a nossa relação com o tempo. Conselho prudencial ou imperativo categórico, o verso adverte-nos – sem êxito, diga-se – que não devemos incomodar o tempo. Ele vingar-se-á. Isso sabia-o, há muito, o velho Anaximandro, quando escreveu: De onde as coisas têm a sua origem, para aí também devem perecer, segundo a necessidade; pois pagam castigo e reparação umas às outras pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Da repetição

Posso dividir em dois grupos os livros que compro repetidos. Uns compro-os por acaso e contra a minha vontade. Funcionasse a memória, e não os compraria. Por vezes, sou vítima de uma alteração gráfica: compro-o e descubro, depois, que já o tinha. Por norma, são livros que tenho, mas que não li, embora nem sempre isso seja verdade. Outros compro-os por uma decisão genuína, sabendo que os tinha e, por norma, já os lera, mas também aqui isso nem sempre é verdade. Não se trata, como no primeiro caso, dos mesmos livros. O melhor é exemplificar. Ontem, apoiei, numa editora que trabalha com apoio dos leitores, a edição de A Coroa, o primeiro volume da trilogia A Saga de Kristin Lavransdatter, da norueguesa Sigrid Undset. Ora, eu tenho a trilogia. Tenho-a numa velha edição da Portugália. O que tem a nova edição de diferente? Uma coisa simples: a nova é uma tradução a partir do norueguês, feita por João Reis. A outra é uma versão de Maria Franco, provavelmente feita a partir da tradução francesa ou inglesa. Não se trata, na realidade, do mesmo livro. Outro caso é o da minha compra de hoje. Deparei-me com uma edição que desconhecia de O Banquete, de Platão. Tenho uma anterior e respeitável tradução, feita a partir do grego, comprada há muito. Foi nela que li O Banquete, embora há pouco tenha descoberto que não sei onde pára. Esta nova edição, também feita a partir do grego por Maria Mafalda Viana, tem um pequeno, mas curioso, prefácio de José Pacheco Pereira. Dois motivos levaram-me à compra: o prefácio e a inclinação que tenho para apoiar – através da compra – tudo o que disponibilize a obra de Platão. Partilho a opinião do matemático e filósofo Alfred North Whitehead: toda a tradição filosófica consiste em notas de rodapé à obra de Platão. Sou um platónico, talvez não praticante. Platão era um génio. Inventou a filosofia, e fê-lo de um modo que, apesar de algumas tentativas sem especial repercussão, nunca mais ninguém conseguiu seguir: a encarnação dos problemas filosóficos em diálogos, onde várias posições se confrontam. Não se trata de tratados ou ensaios, mas de conversas onde pessoas diferentes trocam palavras e pontos de vista. Há uma encenação que, depois, desapareceu, salvo, como disse, uma ou outra tentativa episódica. Ora, essa encenação não é uma decoração, mas o contexto pragmático que dá sentido àquelas palavras. Perdi-me no que ia escrever. E agora que estou perdido neste louvor a Platão, já não sei o que queria escrever, nem encontro o fio de Ariadne que me leve para fora do labirinto. Talvez esteja condenado a vaguear por ele, deslumbrando-me com a possibilidade de ter encontrado uma saída para, logo depois, suportar a desilusão trazida pelo engano. Se me for permitido dar um conselho, diria que o melhor é evitar labirintos.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Da falsidade e da falsificação

Benjamin Constant criticou a ambição de Saint-Simon de levar o mundo de um estado transitório para um estado definitivo. Constant não se esqueceu de sublinhar que nada é definitivo sobre a terra. Uma evidência, mas, como todos os cultores de evidências, esqueceu-se de que o homem é uma máquina desenhada para, em certas ocasiões, desconfiar das evidências, mesmo que não sejam falsas evidências, e de se inclinar repetidamente para aquilo que nega as evidências e a própria factualidade. Saint-Simon era um membro dessa confraria maquinal que preferia a negação da evidência à própria evidência. Seria melhor sonhar um mundo definitivo do que contentar-se com a contínua transitoriedade de tudo. Essas ilusões ou fantasias não são erradicáveis da nossa espécie. A cada momento, aceitamos como verdadeiro o que é falso. Não por odiarmos a verdade, mas porque a falsidade – vinda em forma de ilusão, fantasia, devaneio, utopia ou mera mentira factual – nos faz falta. Precisamos de nos auto-iludir, para além de iludir os outros. Caso se aceite o evolucionismo darwiniano – e este narrador aceita-o –, teremos de nos perguntar por que razão o longo processo evolutivo pelo qual tem passado a nossa espécie não eliminou a propensão da humanidade para a falsificação. Ora, a resposta talvez seja simples: porque essa inclinação é uma vantagem competitiva da espécie no processo de adaptação ao meio. Com isto, não se afirma que este narrador despreza a verdade e a troca pela mentira. Diz uma coisa mais simples: a humanidade precisa de ambas e, provavelmente, sem qualquer delas, sucumbiria e entraria no extenso rol das espécies desaparecidas. Erradicar o falso é uma empresa tão inútil como erradicar o verdadeiro. O que será preciso é aprender a lidar com ambos e perceber qual é o papel da falsificação na vida dos homens. De há uns anos a esta parte, no espaço público, tem-se observado uma enorme batalha contra as denominadas fake news. A batalha parece perdida, pois não se percebe por que razão são produzidas – embora os combatentes das fake news estejam convencidíssimos de que conhecem muito bem essa razão – e percebe-se ainda menos por que motivo são não apenas acolhidas com agrado, mas intensamente desejadas. Se se quer lidar com as fake news, então há que perguntar pelas razões que levam as pessoas a revoltar-se contra a realidade e contra a verdade que descreve essa realidade. Por isso, muitas das afirmações que se fazem nestes textos são meramente ficcionais – um eufemismo para adoçar o facto de serem puras falsidades.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Inquietações

Os dias andam inquietos, e a sua inquietação contamina o mundo, as nações, cada um dos homens que habitam o planeta. Alguém dirá que os dias são indiferentes tanto à inquietação como à quietude: são apenas a emanação de um certo arranjo cósmico. A minha observação não passa de uma antropomorfização sem nexo. Aquiesço, apenas porque me falta a vontade de começar essa conversa que não foi iniciada, com um interlocutor que não existe. E continuo a pensar, enquanto escrevo e a noite toma conta da cidade, que os dias andam inquietos, e a sua inquietação atinge a vida dos homens. A inquietação dos dias é uma manifestação de uma inquietação cósmica. Na verdade, é o universo que está a passar por uma fase de grande desassossego, de uma turbulência cuja causa desconhecemos e cujo sentido nos escapa. Isto tem uma vantagem para o que se passa no mundo dos homens: dá uma raiz cósmica à perturbação por que passa. Sim, os homens andam perturbados: uns, sonâmbulos; outros, hiperactivos, todos sem saber o lugar que é o seu. Contudo, mais do que actores desse alvoroço em que vivem, são pacientes que sofrem o poder de forças que não controlam. Esta é a minha contribuição – por certo, estimável – para a compreensão daquilo que se passa neste planeta. Amanhã, caso me ocorra, poderei dar outra, muito diferente desta, se não mesmo contraditória. Sempre se pode afirmar que o próprio narrador é vítima das perturbações cósmicas de que fala. Talvez, mas o mais certo é que este seja um exercício do raciocínio abdutivo, cuja finalidade é criar hipóteses explicativas de fenómenos inesperados ou surpreendentes. E, neste mundo, não nos faltam fenómenos inesperados e surpreendentes. Quanto à qualidade da hipótese proposta hoje, não me cabe ser juiz em causa própria, ou mesmo em causa imprópria.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Uma triste história

Um dia de Primavera, ainda tocado por sombras fugazes, vestígios de um Inverno que está longe do fim. Ou talvez tenha acabado e ainda não o saiba. Nem ele, nem nós, pois a sabedoria das coisas é esquiva, tão esquiva que temos de construir armadilhas, cada vez mais ardilosas, para a capturar. Os resultados dessa astúcia, porém, são sempre magros e nunca enchem o coração daqueles que passam a vida a urdir truques e alçapões para capturar, desse saber, um sinal aqui, um indício acolá. Reparei agora que já usei dois verbos com a terminação em -ir, construir e urdir. Fico a meditar no feito e sou levado, por homúnculo insensato que habita no desvão da minha mente, a investigar a proporção de verbos segundo a desinência infinitiva – espero, ao meter a foice em seara alheia, não estar a dizer disparates; embora isso seja irrelevante, pois seria apenas mais um – e confirmo aquilo que sabia. Os verbos terminados em -ar – no infinitivo, claro – constituem uma larga maioria, talvez uma maioria absoluta que ronda os 70%. Somos um povo que dá muita importância ao ar, de tal modo que parte substancial dos nossos verbos tem uma terminação aérea, como amar, lavar, corar, matar, falar. Isto significa que quase todas as nossas acções são feitas, imagino eu, com a cabeça no ar. Se olhar para a percentagem de verbos com terminação em -ir, entre 5 e 10%, descobrimos que não gostamos muito de ir. Dito de outra maneira, a tendência é não ir a lado nenhum. Mas de ficar, de estar, por vezes de permanecer. Ir só mesmo quando tem de ser e se o tem de ser tiver muita força. Há um número considerável de verbos terminados em -er, entre 20% e 25%, como correr, mas jamais se aproximarão dos terminados em -ar. Quem quererá correr, se a sua ânsia é estar, ficar ou parar? Os terminados em -or, todos derivados de pôr, são fruto de uma história exemplar. Tendo a origem no latino ponere, em vez de optar por uma desinência infinitiva em -er, acabou como todos sabemos. Pensou: «Nasci poner, mas não morrerei assim.» Foi ao registo civil e mudou o nome para pôr. Disse ao funcionário que queria um acento circunflexo, pois isso era uma marca heráldica. Mais triste do que a desinência -or, é a em -ur. Nem um verbo português termina em -ur. Uma incompreensível acção discriminatória, a qual tem a sua raiz na ordenação das vogais portuguesas. Isto prova que a distribuição dos verbos pelas respectivas desinências infinitivas foi feita por Epimeteu, esse mesmo. Aquele que ficou responsável pela distribuição das qualidades aos seres vivos e as gastou todas antes de chegar ao homem. O mesmo se passou com os nossos verbos. Epimeteu, que não era particularmente inteligente, não soube dosear o seu entusiasmo distributivo e quase gastou os verbos na primeira desinência em -ar. Quando chegou à -or, foi salvo pela jactância de poner. A terminação em -ur teve um destino mais terrível que o da espécie humana. Nem um deus a salvou.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Escrita de pedra

Numa entrevista concedida, em 28 de Outubro de 1964, a Günter Gaus, Hannah Arendt diz algo que há muito experimentei: Escrever é uma boa maneira de procurar a compreensão, faz, pois, parte do processo de compreender… Certas coisas encontram aí a sua formulação. Cada vez que se escreve, é como estar diante de uma encruzilhada e escolher um caminho. Essa escolha de um caminho é, ao mesmo tempo, realizar a compreensão de que aquele é o caminho e abandonar a nebulosa em que se vivia perante as difusas possibilidades em aberto. Toda a compreensão é a eliminação de uma nuvem de explicações e a eleição daquela que se revelou através do acto de escrever. Temos assistido, ao longo da história da nossa espécie, com uma ou outra inflexão, à imaterialização progressiva do registo da escrita. Inicialmente, na pedra, depois na argila, em tábuas de madeira revestidas a cera, em ossos e conchas, em papiro, em pergaminho, em papel e, agora, em ambientes virtuais. Contudo, a natureza pétrea da escrita, simbolizada na gravação original em pedra, manteve-se, pois é da sua própria essência ser de pedra. Ao escrever-se um texto, este solidifica-se e consolida a compreensão daquele que escreve, que só então se torna firme. Num diálogo denominado Fedro, Platão, que tanto escreveu, dirige uma crítica severa à escrita. Enfraqueceria a memória, não passaria de uma aparência de conhecimento e, aquela que me interessa, o carácter fixo e inalterável da escrita. A sua natureza pétrea. Platão lamenta que o discurso escrito não responda aos interlocutores, limitando-se a repetir incessantemente as mesmas palavras. Ora, Platão parece ignorar a ductilidade do que é pétreo. Cada nova leitura de um texto, que materialmente se manteve igual, traz-lhe um novo sentido e, caso o interroguemos de cada vez que o lemos, obteremos sempre respostas diferentes. Isto traz, em aparência, um problema à formulação de Hannah Arendt. Ao escrever, fixa-se uma certa compreensão daquilo que se está a pensar, mas, se o autor relê o que escreve, essa compreensão sofre um questionamento, que põe em causa a solidez do que está escrito. É verdade, mas a consequência não é abandonar a escrita, e sim intensificá-la, num processo de reescrita que, idealmente, poderia ser infinito, caso o autor não fosse mortal. Um crente dirá que o mundo está sempre a mudar porque Deus o reescreve infinitamente. Alguém contestará que o processo põe em causa a omnisciência divina, que Deus sabe tudo instantaneamente e, nessa instantaneidade, o escreve. Ainda que se aceite a definição teísta de Deus, tal não invalida o que foi afirmado. A escrita infinita da divindade é ao mesmo tempo instantânea. Para a divindade é instantânea, para nós, é infinita, pois o instantâneo divino é, para um ser humano, um processo sem fim. Os sábados estão a fazer-me mal. Estes textos estão cada vez maiores e mais abstrusos. Talvez seja ainda o efeito do almoço.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

O sono e os ouriços

De tão ocupado, nem dei pela passagem desta sexta-feira. Melhor: quando dei por ela, já a luz do dia se tinha apagado e a noite tomara conta de tudo, inclusive de mim. Talvez tenha sido por isso que adormeci há pouco. Isso prova que a noite é um soporífero. Talvez estes textos sejam como a noite: escuros e soporíferos. Começo a escrever e o dia vai-se apagando à minha volta, até que, ainda antes de acabar, tudo fica negro — uma noite de lua nova. Aí, o que resta a quem lê? Adormecer. Isso deu-me uma ideia que nunca me ocorrera, mas talvez não seja muito dotado de imaginação ou de inteligência. Quando estou com aquelas insónias desagradáveis e me ponho a ler coisas que os outros escreveram, o sono parece afastar-se, mais e mais. Ora, sensato seria pôr-me a escrever, até que o efeito soporífero me trouxesse o sono desejado e tudo se apaziguasse entre mim e mim ao abrir os olhos e a manhã clara já ter derrotado, com a lança da aurora, uma noite débil que deixara o escudo no canto do quarto. Quem ler este texto — já é a segunda referência a um possível leitor — pensará que estou sem assunto. Isso não é verdade. Por exemplo, podia comentar, e com proveito, um excerto de Isaiah Berlin. Diz ele a Paul Simon: Creio que acredita verdadeiramente que prefiro raposas a ouriços, mas não é assim. Não existe nenhum poeta maior do que Dante, nenhum filósofo maior do que Platão, nenhum romancista mais profundo do que Dostoiévski. Ainda, claro. Estes, apesar de maiores, ou por o serem, são todos ouriços. A ideia parte de um verso de Arquíloco: A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa. Poderia discordar, e com algumas razões dignas de serem atendidas, que Platão fosse um ouriço. Mesmo Dostoiévski poderia ser muito menos ouriço do que pensa Berlin. Concederia, sem discussão, que Dante é um ouriço. Ora, isso conduziria o texto para a elaboração de taxonomias, o que, na minha mão, poderia ter um efeito de tal modo soporífero que poderia adormecer durante três dias e três noites. Isso ultrapassaria a justa medida, coisa que entraria em choque com a minha virtude, e eu vejo-me como um narrador virtuoso, embora não um virtuose da narração. Acabei de bocejar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Teoria das cordas

Hoje, acordei, depois de uma noite mal dormida, fascinado com a teoria das cordas. Essa mesma, a que alimenta a hipótese de unificar a teoria da relatividade, que se debruça sobre o funcionamento macro da natureza, e a mecânica quântica, que fornece conhecimento sobre coisas muito pequenas, ou seja, partículas subatómicas. Há, entre estas duas teorias, um conflito que ultrapassa a rivalidade futebolística daqueles clubes que habitam na segunda circular da capital deste país. A teoria das cordas fornece uma esperança de unificação, o que significaria que harmonizaria leões e águias em alegre convívio, num fim-de-semana passado no Porto. Apesar de a perspectiva de criar harmonia nos seduzir a todos, não foi isso que me causou júbilo. O fascínio reside na possibilidade de o velho Pitágoras ter razão: todo o cosmos ressoa como uma grande sinfonia mahleriana; a música das esferas celestes. Ora, a teoria das cordas propõe que tudo no universo é composto por pequeníssimas cordas a vibrar. Conforme a vibração, as cordas formam electrões ou quarks, os quais compõem protões e neutrões. Toda a realidade é composta por música, e cada um de nós é um ser musical. Consta que há um pequeno problema com a teoria. Exige que a realidade tenha pelo menos dez dimensões e não as prosaicas quatro a que estamos habituados. Os físicos desconfiam de tanta dimensão, mas um ignorante como este narrador sabe mais de física que os físicos, pois é um narrador pós-moderno. Ora, a pós-modernidade é aquela época da humanidade em que os ignorantes e os idiotas sabem muito mais do que aqueles que dedicam uma vida a estudar a realidade. Estou em casa. Deixo o meu contributo para a explicação da teoria das cordas e para a unificação da teoria da relatividade com a mecânica quântica — coisas de que nada sei, mas que, nos tempos que correm, é uma vantagem competitiva. Para a teoria das cordas funcionar, são precisas exactamente onze dimensões. Não mais, não menos. Eis o meu primeiro contributo para a evolução da física. O segundo é a identificação das 11 dimensões: as quatro triviais onde existimos e as dimensões musicais. Temos uma dimensão do dó, outra do ré, outra do mi, e assim sucessivamente. E é por serem estas as autênticas dimensões da realidade que a teoria das cordas faz todo o sentido. Sob o tempo, o comprimento, a largura e a altura, estão, como se fossem a raiz do ser, as sete dimensões musicais, das quais as notas são uma emanação à grande escala e uma espécie de reminiscência platónica no mundo. Por hoje chega de contributos para o progresso da humanidade.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Sapateiros e príncipes

Na página 133 da última edição portuguesa de As Palavras, Sartre escreve: Em Sainte-Anne, um doente gritava da sua cama: «Sou um príncipe! Prendam o Grão-Duque!» Aproximavam-se, diziam-lhe ao ouvido: «Assoa-te!», e ele assoava-se; perguntavam-lhe: «Qual é o teu trabalho?», e ele respondia baixinho: «Sapateiro», e recomeçava a gritar. Sartre acrescenta: Imagino que todos sejamos parecidos com esse homem. Parece-me, porém, que o filósofo francês faz uma generalização precipitada. É possível que existam muitos que, sendo sapateiros, se proclamem príncipes. Será menos vulgar um príncipe gritar que é sapateiro, mas é possível que exista algum. Todavia, há alguns – não sei se muitos ou poucos, nunca tenho à mão as estatísticas de que preciso – que não se sentem nem sapateiros nem príncipes, seja no sentido corrente das palavras, seja no figurado. Este narrador não se sente o príncipe dos narradores, tão-pouco um sapateiro da narração. Aliás, nem se sente narrador. Não se sente seja o que for. E este não se sentir isto ou aquilo talvez seja muito mais comum do que se sentir sapateiro e príncipe, ou apenas uma das alternativas. A experiência de se sentir nada aterroriza as pessoas e, como consequência desse terror, elas perdem a cabeça e começam a sentir-se sapateiros ou príncipes, ou os dois ao mesmo tempo, caso estejam mesmo muito aterrorizadas. É um processo que, ao ser desencadeado, nunca mais pára. É em Isaiah Berlin que encontro uma explicação para esse afogamento numa identidade social. Diz ele – hoje estou em maré de citações – numa obra com o estranho título O Ouriço e a Raposa: Tanto Tolstói como Maistre pensam naquilo que acontece como uma rede espessa, opaca, inextricavelmente complexa de ocorrências, objectos e características relacionados e divididos por ligações literalmente inumeráveis e inidentificáveis – e também brechas e descontinuidades súbitas, visíveis e invisíveis. Ora, esse processo, que leva alguém do nada que sente até ao sentir-se sapateiro ou príncipe, é também ele uma rede espessa, opaca. A pessoa sente-se levada nessa torrente imparável e, um dia, ao acordar, vê-se sapateiro ou príncipe. No caso deste narrador, continua a sentir-se um nada – um zé-ninguém – talvez porque ainda não tenha acordado. Devia chamar a este texto Nota Biográfica, mas não chamo. Um narrador não tem biografia, isto é, não tem bio e não tem grafia.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O florir das orquídeas

No friso das orquídeas, há duas já floridas. Ambas brancas, o que, estatisticamente, não era uma possibilidade forte, pois constituem uma clara minoria entre o rebanho de orquídeas que são pastoreadas por aqui. É um pastoreio sem pastor ou pastora, embora com uma certa transumância, pois, de tempos a tempos, são transportadas para uma banheira, onde são regadas segundo uma metodologia que, confesso, desconheço, mas que oiço dizer ser muito adequada. A esse ritual transumante chamo a procissão das orquídeas, na qual não levo andor nem, tão-pouco, participo. Dito de outra maneira, sou apenas um contemplador e não um cuidador. A surpresa floral não se combinou com uma surpresa no estado do tempo. Se esperava que hoje tivesse um dia de um cinzento depressivo, a expectativa confirmou-se. O dia – logo pela manhã – parece ter-se arrependido de ter nascido e ostenta uma saudade da noite que chega a ser insuportável. Na avenida, as pessoas deslizam em passo incerto: avós em busca de netos na escola primária, alguém apressado para fazer um negócio numa das lojas que ali há, outros que esperam encontrar, num dos cafés, alguém com quem possam trocar umas palavras, para que o dia não seja um poço de solidão e um puzzle sem sentido. Eu sento-me à secretária como se me sentasse na borda de um poço, para colher tangerinas de uma tangerineira que havia nessa casa onde nasci, dizem-me, e cujos habitantes, excepto eu, estão todos mortos. Já não sentem o prazer do florir das orquídeas, nem saem de casa para ir ao café, levando-me pela mão, nem me chamam pelo nome. Talvez o tenham esquecido ou eu tenha trocado de nome e já não me lembre de como, naqueles dias, me chamava. São coisas que acontecem. Não falta por aí quem se tenha esquecido do nome e ostente outro que inventou para esconder a amnésia.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Falar com os pássaros

Os pássaros, meus vizinhos, voltaram da sua longa viagem. Retornaram as longas conversas e a minha tentativa de compreender a linguagem das aves. Tenho-me esforçado, mas, confesso, os resultados obtidos até hoje são nulos. Existem várias hipóteses. A primeira, de natureza pessoal, diz que sou bastante incompetente na compreensão de linguagens estranhas. A segunda, de natureza colectiva, afirma que os seres humanos são incapazes de compreender linguagens fora da sua espécie. A terceira, de natureza ontológica, assevera que os sons emitidos pelas aves não representam uma linguagem. Caso seja verdade, isso deixa-me desolado. Um mundo em que só a nossa espécie seja detentora de linguagem é pobre, muito pobre. Um mundo desencantado. Não bastava já aquela ideia verrumante de Max Weber, a de desencantamento do mundo, para nos deixar consternados, quanto mais ter de viver num mundo onde ninguém, além de nós, fala. Se isso for verdade, há uma explicação para o facto. Isso dever-se-á a uma lei da compensação. Existe uma espécie que fala tanto, tanto, tanto, que se apoderou de todas as linguagens disponíveis, não restando para as outras qualquer fala possível. Emitem sons, mas não trocam informação estruturada. A minha esperança, porém, é que essa possibilidade seja falsa e que, um dia, cada espécie encontre, nos homens, o seu Champollion, que há de permitir que os homens falem com elas, estudem os seus vocábulos, a sua sintaxe e a sua semântica, o modo como o seu discurso alcança a natureza das coisas.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

A Grande Pragmática

Ontem, como parte de um ritual, passei pela livraria Ler, em Campo de Ourique, casa a que volto sempre que venho a Lisboa e tenho algum tempo disponível. Imagino que seja uma faceta levemente romântica que me inclina, no caso dos livros, para o comércio local. Pelo menos, em parte. É agradável saber a quem se compra os livros. E a verdade é que, embora não se note pelas aparências, um mesmo livro comprado numa pequena e séria livraria não tem o mesmo conteúdo do que se for comprado numa grande cadeia multinacional ou mesmo nacional. As letras e as palavras parecem as mesmas, mas não são. Significam de maneira diferente, pois a significação não é apenas um assunto de semântica, mas também de pragmática. A pragmática trata do contexto onde os actos de linguagem ocorrem. Preocupa-se com o modo como a significação emerge do uso da fala em situações concretas, com os seus contextos, intenções, normas sociais, inferências, etc. Esta é, porém, a pequena pragmática. A grande pragmática, que acabei de criar, inclui os discursos escritos, a forma como são trocados e os lugares onde os leitores não apenas os lêem, mas também onde os adquirem. Toda essa constelação de lugares influencia a significação das palavras que estão impressas. Daqui posso avançar para uma nova – e criativa, embora é possível que alguém antes de mim a tivesse criado – tese: qualquer livro – por exemplo, o romance Refúgio no Tempo, de Gueorgui Gospodinov, que comprei ontem – tem, pelo menos, tantas significações quantos os exemplares postos à venda. Disse pelo menos porque se alguém compra um livro e, depois de o ler, o vende, a nova transacção comercial implica a criação de um novo sentido, pois as condições grande pragmáticas, digamos assim, são diferentes. Esta descoberta serenou-me o espírito. Até ao dia de hoje, pensava que, quando comprava uma obra pela segunda vez, isso se devia a um problemático défice da minha memória — antecâmara, sabe-se lá, de que doença do foro neurológico. Hoje descobri que nunca comprei a mesma obra duas vezes. Apesar de as aparências indicarem que são a mesma, a verdade é que os contextos grande pragmáticos são diferentes. Logo, as obras são diferentes. Não apenas acrescentei mais uma criação à minha gesta e ao progresso da ciência, como também encontrei uma explicação sólida para aquilo que eu pensava ser uma fraqueza — uma patologia — da memória pessoal. O domingo está ganho.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Saudades

Imagino que tudo o que se está a passar no mundo não seja mais do que a manifestação de uma saudade que os próprios saudosos não sabem de quê. O estado das coisas está perturbado e é perturbante, disse-me, numa longa chamada de telemóvel, o meu amigo Lodovico Settembrini, o padre Lodo, para a imensa  roda de amigos. Está um tempo óptimo para os profetas, respondi-lhe. Ele riu-se, mas acrescentou que o problema dos profetas não é falharem nas profecias, mas de estas serem de tal modo equívocas, que conseguem, ao mesmo tempo, predizer tudo e não predizer nada. Muito me conta, exclamei, mas, continuei, de que andam as pessoas tão saudosas? De forma resumida, respondeu o meu amigo, podemos dizer que estão saudosas do tempo dos mitos. Esta saudade é o reverso do cansaço com três coisas. Quais? Não sei se existe uma ordenação nesse cansaço, respondeu. Estão cansados das explicações científicas. Elas explicam muito, mas as pessoas não entendem uma linha dessas explicações, mesmo que tenham formação superior. Estão cansadas de serem livres, de poderem orientar a vida conforme queiram, usando as suas faculdades e o seu esforço. Por fim, estão exaustas da responsabilidade. Nas nossas sociedades, somos responsáveis pelo que fazemos, mas, acima de tudo, pelo que somos. Este cansaço é o outro lado da saudade do tempo dos mitos. As explicações eram simples e claras, a esfera da liberdade, restrita. A responsabilidade limitada às acções e nunca pelo que se era, pois estava decidido ao nascer. Fiz um longo silêncio, depois perguntei: e chegou a essas conclusões pela observação do mundo ou pela escuta que faz dos crentes no segredo do confessionário. Meu caro amigo, o segredo do confessionário é pouco secreto, pois o que as pessoas confessam não é diferente daquilo que se observa do mundo. Portanto, pode escolher a origem da minha informação. As fontes são maçadoramente repetitivas.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Desconcerto na casa da consciência

O tempo galopa como um zorro enraivecido. Que abertura dramática, convenhamos. O facto, porém, é que o ano ainda mal começou, e já chegámos a meio do segundo mês. Mais quinze dias – e quinze dias não são duas semanas – e entrar-se-á em Março. Desloquei-me à capital e tive de almoçar segundo o desejo das minhas netas, que acharam que deveria ser pizza para toda a gente, ainda franzi o sobrolho, mas ninguém deu por isso. A verdade, caso haja uma verdade no assunto, é que nem desgosto por aí além, mas acho sempre que é coisa dispensável. Hoje também acharia, não fora o caso da ideia ter partido de onde partiu. Ao cair da tarde, deveria ir ver o treino de râguebi do mais novo, mas um compromisso inadiável caiu no mesmo horário. Este Fevereiro está sarapintado de Primavera, para a qual falta ainda mais de um mês. Voltemos à primeira frase, a de tonalidade dramática que inicia este texto. Está cheia de equívocos. Quem galopa são os cavalos, não o tempo e muito menos um zorro. Também num célebre filme de Martin Scorsese, no título, enraivecido é atributo de touro e não do macho da zorra. Fiz de um pobre raposo o centro de toda a confusão que me vai pela cabeça. Vejo-o como um cavalo, vejo-o como um touro, mas não o vejo como aquilo que ele é, um raposo, que terá a sua raposa e muito raposinhos e raposinhas. Uma das hipóteses aventadas por um certo homúnculo que habita no meu cérebro é que a confusão nasceu do almoço, da condescendência com que encarei a sugestão. Ora, essa criatura, que tem a pretensão de ser a voz da minha consciência, faria melhor em estar calada, antes que eu lhe dê uma ordem de despejo por ocupação ilegal de moradia de que não é legítimo proprietário ou mesmo locatário. Sim, a minha consciência é um lar, mas quando a adquiri não vi no contrato que assinei que esse lar teria um porta-voz. Já protestei perante o fornecedor de consciências, mas ele disse que era uma gentileza – vá lá, não disse que era uma atençãozinha – da administração. Vendem a consciência e oferecem um homúnculo que é o porta-voz. Respondi que dispensava a gentileza, que ficassem com o homúnculo. Nada feito, uma oferta é uma oferta. Perante a minha resistência, mudou de estratégia e recorreu à conhecida falácia do argumentum ad misericordiam: eu que ficasse com o maldito palrador, que não o devolvesse, pois a administração ainda o despedia, ao vendedor, não ao homúnculo, e que tinha mulher desempregada e filhos em idade escolar. Um drama. Condoí-me e fiquei com um homúnculo palrador dentro da consciência e para o desalojar só em tribunal, o que deverá demorar uns vinte anos. Um dia, talvez de Fevereiro, ainda vendo a consciência, desde que não confunda cavalos e touros com zorros ou alguém se lembre de almoçar pizza, não é que desgoste, mas...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O dorso de Zeus e a pata do urso

Apesar de estar proibido pelo autor de falar de política, não estou proibido de pensar sobre ela. "Livre pensar é só pensar", como escrevia o humorista brasileiro Millôr Fernandes. E eu, apesar de narrador, penso muito, não sobre política, mas sobre geopolítica. Dá um ar mais sofisticado. A política tornou-se uma coisa paroquial; a geopolítica traz com ela o véu diáfano das coisas cosmopolitas. Os meus pensamentos, apesar de livres, são negros, cada vez mais negros. Houve um momento em que este narrador pensou viver no melhor mundo que estava disponível para viver, um mundo que tem o nome de uma princesa fenícia e que Zeus, disfarçado de touro, decidiu raptar. Hoje, esse mundo, com o doce nome da princesa, ainda é o melhor dos mundos existentes, mas está a ser vendido, literalmente e sem pudor, perante a apatia dos seus sonâmbulos habitantes — não ao desejo taurino de Zeus, mas à pata do urso, à máscara de Hades, que se prepara para destruir o jardim. Talvez tenha dormido mal, talvez as notícias me estejam a perturbar a digestão, mas não consigo deixar de pensar nos meus netos e nos netos daqueles que vivem no melhor dos mundos — e na possibilidade de eles não perdoarem aos avós e aos pais o mundo que pode vir a ser o deles. O melhor será tomar um comprimido para dormir ou abdicar do livre pensar, apesar de este ser só pensar. Está a chegar o crepúsculo. Vou fechar as persianas. Talvez a noite não entre.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O calendário de Pandora

Habituados à cegarrega dos meses com trinta e trinta e um dias, nunca se deixa de estranhar as incongruências e inconstância de Fevereiro. Incongruente, porque o número de dias se fica na casa dos vinte, enquanto a dos outros meses está, como disse, na dos trinta. Parece ser o irmão mais baixo, neste caso, mais pequeno. Inconstante, porque varia, embora com constância, entre os vinte e oito e os vinte e nove dias. Este facto, embora ninguém acredite, introduz um factor de perturbação na ordem do mundo. Se o calendário admite um irregularidade, então podemos temer que seja a porta por onde pode entrar o caos. E é sempre o tempo que nos traz o caos. O pior é que, além da grande irregularidade de Fevereiro, o calendário que nos cabe em sorte tem outras fissuras desagradáveis. Meses pares e meses ímpares, por exemplo. E a própria regularidade pode ser um factor perturbante, como é o caso de Julho e Agosto terem ambos trinta e um dias, sem que, entre eles, se interponha, como é a regra, um mês de trinta dias. Foi isto que me ocupou toda a tarde. Meditar nos perigos que se escondem no escandir do tempo. E se as pessoas acham que este a prosa é fruto do desvario de uma mente desocupada, estão enganadas. Uma mente, mesmo a mais mentecapta, nunca está desocupada, pois é atravessada por inúmero fluxos de consciência. Depois, porque estas perturbações no calendário são, na realidade, aberturas por onde entra o caos. É só observar o estado do mundo. Num certo dia do calendário, um louco assume o comando de um país, num outro dia, outro louco ou o mesmo começa uma guerra. E não há louco nenhum que chegue ao poder ou comece um loucura trágica que não inscreva esses acontecimentos em dias do calendário. Tudo isto porquê? Porque o calendário, com as suas irregularidades e imperfeiçoes, abre a porta – ou o portão – para que essa gente chegue com a caterva de males que estavam presos na caixa da pobre Pandora. E se querem saber o que era a caixa de Pandora, posso explicar. A caixa de Pandora era um calendário perfeito e regular, onde não havia brechas nem fissuras. Trocado esse calendário racional e benevolente pelo nosso – seja em versão juliana ou gregoriana –, os males começaram a escapar-se, e estão a fazê-lo cada vez mais rapidamente. Fica por aqui o meu contributo para dar sentido a história humana. Não convém passar os limites da revelação, pois, como se sabe, a espécie humana não suporta demasiada realidade ou demasiada verdade.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Efeitos colaterais

E se a minha missão neste pobre planeta fosse criar uma utopia, pergunto-me depois de um almoço tendencialmente mexicano, onde um chili foi acompanhado não por uma cerveja, uma margarita ou, talvez o mais indicado, um mojito, mas por um tinto monocasta, um Syrah, esclareçamos. O pós-refeição, quando as refeições têm esta espúria natureza, não é propriamente adequado a meditar sobre coisas sérias. Resta deixar correr o fluxo de consciência, coisa que ele, fluxo, faz por si-mesmo e sem permissão, e observar o que ocorre na nossa mente toldada pelo encontro entre os sabores intensos e picantes da comida com os taninos suaves do tinto. E aquilo que se observa são ideias estapafúrdias como aquela que abriu este texto. Presumir que tenho uma missão neste planeta já indicia que qualquer coisa não vai bem, mas pensar que essa missa missão é criar uma utopia é, então, a prova provada, uma redundância pouco subtil, de que as fermentações alimentares estão a perturbar sem piedade o cérebro. Contudo, agora que os efeitos da refeição se desvaneceram, encontro alguma sensatez nesse pensamento insensato. Criar uma utopia não é outra coisa senão criar, em papel ou em escrita digital, uma sociedade perfeita. Não é, todavia, isto que confere sensatez à ideia, mas o facto de ela ser completamente adequada ao ser que sou. Ora, o que é uma utopia? Antes de avançar nesse espinhoso caminho de elucidação, é preciso esclarecer que toda utopia é uma ucronia. Sendo assim, uma utopia é uma sociedade que está fora do espaço, como se pode comprovar pela origem da palavra: ο+τόπος, em que οὐ significa não e τόπος, lugar. Uma utopia é um não lugar. Toda a verdadeira utopia – pelo menos, aquela que será escrita por mim – é, como disse, uma ucronia, palavra inventada, talvez depois de um almoço, pelo filósofo francês, do século XIX, um século de digestões difíceis, Charles Renouvier. Ucronia, um termo grafado por analogia à utopia, provém também do grego: ο+χρόνος, que se pode traduzir por não tempo. Uma utopia é então uma coisa que fora do espaço e do tempo, algo sem lugar nem época. Como se sabe, todas as coisas que existem neste mundo estão no espaço e no tempo, fora deles não há existência. Criar uma utopia, que também é uma ucronia, é criar absolutamente nada, e é essa criação que me convém em absoluto. Do nada que há em mim e do nada que sou, retiro o nada de uma sociedade perfeita.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Relato de um cérebro

Passei pelo friso das orquídeas e descobri que algumas estão perto da floração. Presumo que seja uma anunciação da Primavera, de uma Primavera temporã. Tem estado pouco frio aqui por casa. A temperatura raramente cai de modo a pôr o aquecimento central a trabalhar. Há uns anos a imperatividade de aquecimento começava pelo S. Martinho, mas nos últimos tempos só entre o Natal e o Ano Novo é que começa a ser necessário aquecer a casa, tornando-se a precisão muito intermitente logo em Fevereiro. As causas disto não as conheço. Talvez a casa esteja menos vulnerável aos frios da rua; talvez os frios da rua sejam menos verrumantes. Não faço ideia porque estou a falar destas coisas. Talvez para provar que a vida, a minha, é feita de trivialidades. Se é assim, então estou a cumprir um papel que Dominique Rabaté, um professor de literatura francesa moderna e contemporânea, vê em alguns escritores: O seu papel não é o do romancista, mas o do escrivão da realidade, garantindo com a sua experiência a veracidade do que relata. É isto que eu sou: um escrivão da realidade. Dito de outro modo, um burocrata da escrita, mas, ao contrário do que diz Rabaté, a minha experiência não garante a veracidade do que relato. Que garantias terá, quem ler isto, que algumas orquídeas estão perto de se abrirem em flor? Que garantias haverá mesmo de que existe aqui um friso de orquídeas, embora escreva sobre ele há anos? Nenhumas. Eu posso ser um escrivão da realidade, um burocrata minucioso da escrita, mas a realidade escapar-se-me sempre e aquilo que eu escrevo ser apenas fruto de uma fantasia. É possível que eu não passe de um cérebro numa tina, que é alimentado quimicamente e constrói imagens, a que chamo realidade, através de impulsos electromagnéticos que estimulam partes desse cérebro, a que me reduzo. Ora, o leitor dirá que essa história do cérebro na tina não passa de uma conhecida experiência de pensamento para fomentar debates de incidência epistemológica ou ontológica. É uma opinião, estimável e informada, mas que não desmente a hipótese de eu não passar de um cérebro numa tina, ligado a um computador que escreve aquilo que aqui está através de impulsos electromagnéticos provenientes daquela massa desagradável que existe dentro da caixa craniana dos seres humanos.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Agir e não agir

Foram-se embora há pouco. Refiro-me às netas, que, durante dois dias, encheram a casa. Agora, tudo está mais vazio e o silêncio que se sente não é benévolo ou inspirador, mas a marca de uma ausência. Depois, tudo vai voltar ao que estava, pois o hábito é uma segunda natureza, e a estadia delas é um rasgão no hábito, uma cesura na segunda natureza, por onde, durantes um instante, é possível recordar uma primeira natureza, mais inquieta e mais irrequieta. O domingo está a caminho do fim, e o horizonte é já o dos dias úteis, embora a utilidade esteja por provar. É nestes momentos, aqueles que antecedem o crepúsculo, que o espírito se abre para uma sabedoria estranha a nós, ocidentais, que andamos desde o século XV a correr atrás de qualquer coisa que nunca sabemos o que é, pois quando pensamos tê-la encontrado, logo descobrimos que há uma outra que vem depois dessa e que é preciso, com urgência, alcançar. Talvez, o problema seja bastante anterior, resida mesmo nos gregos. Aristóteles dividia as ciências entre teóricas e práticas. As primeiras ligavam-se ao conhecimento; as segundas, à acção. Entre estas encontrava-se a Política. Se comprarmos essa tradição com a chinesa, percebemos uma diferença notável. O ideal do soberano não é a acção, mas a não acção. Melhor, o agir não-agindo, a não interferência. Toda a interferência através da acção é já o sinal de uma patologia. É possível que na tradição ocidental também tenha havido um momento em que a acção pela não acção era sinal de sabedoria e forma de ordenar o corpo social, mas ter-se-á perdido. Perdido não apenas na prática quotidiana, mas também na memória. O filósofo alemão, Martin Heidegger, terá vislumbrado essa perda, ao dizer que a filosofia ocidental representa, desde Platão e Aristóteles, um esquecimento do problema do ser. Nesse esquecimento, estará também o esquecimento do agir não-agindo, essa forma suprema de governação de uma comunidade. Coisa que o próprio filósofo não compreendeu ao comprometer-se politicamente com quem se comprometeu, gente pouco recomendável e que fez da acção repugnante a sua forma de estar. Isso, porém, não são contas deste rosário.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Problemas respiratórios

Talvez me devesse tornar um narrador com uma clara orientação sobre as coisas deste mundo. Isso, mesmo que em desacordo com o autor. E qual seria essa orientação? Por certo, seria a de um narrador arcaico aprisionado numa sabedoria antiga, como aquela que se manifesta nas palavras de um xamã, o xamã Pualuna, ao geógrafo e explorador das regiões polares, Jean Malurie: Os inuítes (…) compreenderam que os seres vivos estão interligados e são interdependentes. Nada nos preocupa mais, a nós, inuítes, do que interferir nesta ordem natural. Integremo-nos, pois, respeitosamente nela, sem alterar o seu curso (…). Tudo é respiração. Em resumo, a interdependência de todos os seres vivos, a integração na ordem natural e a ideia de que tudo é respiração, esse movimento cíclico de inspiração e de expiração, entre as quais se intrometem duas pausas. Ora, esta é a ordem natural. Uma inspiração, uma pausa, uma expiração, uma pausa, e assim até ao fim dos tempos. O problema dos nossos dias, aquele que está no fundamento de todos os nossos problemas, é de que inspiração e expiração decidiram entrar em competição, para ver qual delas é dominante. A primeira consequência dessa deriva competitiva é a eliminação das pausas no processo respiratório do mundo. Eliminadas as pausas que separavam e continham nos limites o inspirar e o expirar, estes entraram em guerra. Atropelam-se, tentam conquista o espaço do outro, sonham em eliminá-lo. Ora, isto é péssimo para a respiração do mundo. E se o mundo respira mal, então os homens respiram pior. Daí as epidemias respiratórias. Como narrador, deveria orientar as narrativas que faço neste espaço para a defesa de uma respiração saudável, isto é, tornar-me um inuíte e usar uma daquelas belíssimas máscaras de madeira que é a sua marca. Uma vez por outra, trocaria a máscara inuíte por uma dos caretos de Podence e tornar-me-ia um inuíte lusitano, um xamã de uma tribo perdida, que se manifesta ora aqui, ora ali, ao sabor da respiração. O problema, porém, é que não passo de uma construção de um autor que nada tem de inuíte e não se compraz com caretos, mesmo no Carnaval. Quero dizer: um ser infeliz preso à crendice moderna, alguém que respira desordenadamente, com a inspiração e a expiração trocadas; pois, quando expira o ar entra-lhe para os pulmões e quando inspira, sai-lhe pelas narinas.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Um tempo excepcional

Talvez vivamos tempos excepcionais. É possível que todos os seres humanos pensem assim. O tempo de cada um é, para ele, excepcional, pois é uma excepção do não tempo infinito que lhe caberá. Não estava, porém, a referir-me a essa excepcionalidade, mas a uma outra. Consideremos a afirmação de Aristóteles, na Ética a Nicómaco 1127a29: Nela mesma, a falsidade é uma coisa baixa e repreensível, e a sinceridade uma coisa nobre e digna de elogio. A excepcionalidade do nosso tempo não deriva de a falsidade ter um grande mercado, enquanto o da sinceridade é reduzido. Plausivelmente, sempre terá sido assim. A questão é outra. Trata-se da inversão das avaliações. Parece que vivemos numa época  em que a falsidade é vista como coisa nobre e digna de elogio, enquanto a sinceridade é uma coisa baixa e repreensível. A vitória da falsidade sobre a sinceridade não está na sua maior presença, mas no facto de se ter tornado o valor considerado bom por excelência. É o triunfo da comédia – a representação das acções dos homens vulgares ou baixos – sobre a tragédia – a representação da acção dos homens nobres. Quando se ouve a expressão pós-verdade, sabe-se de imediato que se está no tempo da comédia, onde o baixo e repreensível não apenas se tornaram dominantes, como se arvoram em coisas dignas e nobres. Não admira a quantidade de bufões que superintendem os destinos humanos, ou que se candidatam a superintendê-los. Uma certa inocência poderá pensar que será melhor viver num mundo cómico do que num mundo trágico, valerá mais ter razões para rir do que para ter piedade. Essa inocência esquece que os comediantes-em-chefe têm uma tentação irresistível para lançar fogo ao mundo, enquanto riem. A tarde de sexta-feira está a correr apressada para os braços frios da noite. Talvez seja isso que me tenha levado a este texto tão chato quanto o preâmbulo de um decreto-lei, se é que os decretos-leis têm preâmbulos. O processador de texto que uso é um insuportável fiel da doutrina da linguagem correcta. Sublinhou-me a palavra chato. Não vou discutir com ele. Chatice e chato eram palavras inutilizáveis, mas foram adoptadas na linguem mais nobre, um fenómeno semelhante ao da elevação da falsidade à dignidade e à nobreza. Estão de acordo com o espírito do tempo. Uma chatice. Ou uma maçada, se seguir a indicação do processador.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O cérebro e o like

Por vezes, pomo-nos a pensar sobre coisas que o melhor seria nem ter notícias delas. Não me refiro a grandes catástrofes ou à maldade contumaz da humanidade. Trata-se, antes, de coisas que são irresolúveis. E, como se costuma dizer, o que não tem resolução, resolvido está. É a resolução pela não resolução. Estou a afastar-me do assunto. Baruch Espinosa escreveu coisas notáveis. Também escreveu que todo o homem é, por direito natural e inalienável, o senhor dos seus próprios pensamentos. Até aqui não parece haver nada de extraordinário, embora se pudesse questionar se os pensamentos de alguém são próprios ou se se apropriou de pensamentos de outros que andassem à solta e os tomou como seus. O interessante é o que vem a seguir: cada qual segue o seu próprio parecer e que a diferença entre os seus cérebros é tão variada como a diferença entre os seus gostos. É aqui que comecei, como um velho amante de coisas inúteis e despojadas de sentido, a perguntar-me se a variação dos cérebros é causa da variação dos gostos ou, pelo contrário, a variação dos cérebros foi o resultado da variação dos gostos. Prefiro – pelo menos hoje, amanhã logo verei – a última solução. Os cérebros variam em função do gosto. Quanto pior o gosto de uma pessoa, menos o cérebro se desenvolve.  Quanto mais bom gosto tem uma pessoa, mais o seu cérebro se diferencia e complexifica. Tenho razões que justificam a minha escolha. Observemos aquilo que move as redes sociais. O fuel que lhes dá vida é o gosto, conhecido também por like. O importante não é o que se pensa, mas o que se gosta. As pessoas não colocam likes nas redes sociais em função do cérebro que têm, mas o cérebro que têm é o produto dos likes que semeiam. O que me parece uma péssima notícia para a espécie humana, pois é um sinal de que os cérebros humanos se vão encolher cada vez mais até chegar ao tamanho de uma ervilha ou, no melhor dos casos, de uma fava.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Autoficção

Nestes dias, quando ando mais cansado, sou acometido pela dolorosa questão de falta de assunto. Não há nada mais triste do que um narrador sem objecto para narrar. É então que deslizo para aqueles textos insuportáveis sobre teoria literária, coisa de que pouco sei e de que pouco quero saber. Hoje, mais uma vez, caído no pântano de não ter nada para dizer, fui atingido por uma questão que se inscreve nesse campo que desdenho. Poderão estes textos ser exercícios de autoficção? Depois, acalmei-me. Na autoficção, o autor não esconde a sua identidade, embora manipule os factos. Ora, aqui está uma consideração que me liberta do peso de ser um autoficcionista, um infeliz epígono da Annie Ernaux, de quem nunca li uma linha, e de Karl Ove Knausgård, de quem li as linhas suficientes para completar os dois primeiros romances de A Minha Luta. O autor deste blogue não apenas esconde a sua identidade, como esconde a minha, a do narrador: nunca há a certeza – nem nele, nem em mim – se coincidem ou não. É verdade que, muitas vezes, os factos são manipulados, mas isso não faz do autor um autoficcionista, apenas um mentiroso. Por exemplo, hoje tive uma longa conversa telefónica com o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini. Falámos de pessoas conhecidas e, fundamentalmente, de restaurantes e encontros de amigos, coisa que ele, apesar de membro da Sociedade de Jesus, não dispensa.  Disse-me uma coisa que me fez rir. Parece, disse-me, que o Leo Naphta, vem a Portugal. Não tenho paciência para o aturar. Nunca tive. Eu ri-me e perguntei-lhe pela caridade cristã. Até a caridade cristã tem limites. O Naphta não cheira a nafta – continuou. Tem um odor sulfuroso, asseverou. Recordei-lhe que não lhe competia fazer julgamentos, ainda menos dessa amplitude. Então, mudou de assunto e informou-me que estava a ler um romance de uma autora de autoficção, mas que iria parar. Tinha menos paciência para ela do que para o seu inimigo – interpretação minha, não palavras dele – Leo Naphta. Foi o padre Lodo que me salvou do pântano em que a minha imaginação soçobrava e me abriu o caminho para a autoficção. Combinámos almoçar no sábado. Com o tresmalhado do Naphta, claro.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Diálogos morais

Antes que a tarde chegasse à fase crepuscular, fui caminhar. Os últimos tempos não têm sido propícios para o exercício, mas hoje inflecti a tendência e retomei a prática. Isto, porém, não passa de uma mera expectativa, ainda por cima fundada num desejo que já quase não deseja. Sim, pôr-me a caminhar exige de mim um certo esforço para me arrancar da cadeira onde estou sentado e da casa onde me acolho. Há quem tenha prazer em caminhar. Eu não o tenho. Faço-o, quando faço, por dever. Kant se me lesse, torceria de imediato o nariz, um nariz adaptado para torções, diga-se, e diria que não cumpro o dever de caminhar por amor ao dever, mas motivado por um interesse egoísta: a esperança de que o acto de andar a calcorrear ruas me evite uma presença mais assídua nas salas de espera dos consultórios médicos. Uma acção conforme ao dever, mas não feita por dever, diria ele. Eu retorquiria que queria que ele fosse dar uma volta à rotunda do relógio, ele que era tão metódico nas suas caminhadas que as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem. Ele haveria de se rir da minha resposta e responderia, para me tranquilizar a consciência, que estava a brincar; a minha caminhada tem um real valor moral, juraria. Se tudo em mim me impele a ficar sentado e mesmo assim vou caminhar para preservar a saúde, então caminhar não é um acto egoísta. E, com o seu ar de professor prussiano, acrescentaria: a caminhada tem valor moral pois visa aliviar os outros de um eventual peso que eu lhes possa causar por não me cuidar e cair nas garras da doença. Esta conversa com Kant indignou-me. Estou a falar a sério. Então, não é que ele acha que é sempre moralmente incorrecto mentir e não se privou, na primeira avaliação que fez da minha caminhada, de me pregar uma mentira, retirando valor moral àquilo que o tinha? Também um filósofo chega à fase crepuscular: em vez de trazer a luz, traz a sombria sombra.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Futebol, inocência e mito

Na Electra de Inverno de 2024, há um artigo, A minha Moscovo, de Yuri Slezkine, um historiador americano, nascido russo. A certa altura diz: Uma das coisas que mais me impressionaram durante a infância foi ver o Eusébio a jogar o mundial de 1966. Fui ver a idade de Slezkine. Nascemos no mesmo ano e partilhamos uma mesma experiência do reino do futebol. Para mim, essa experiência foi de tal maneira marcante que o meu futebol terminou nessa época. Não me refiro apenas a Eusébio, mas aos jogadores que, em Portugal, ao serviço de diversos clubes, eram os grandes actores de jogos épicos. Sei agora que, a maioria desses jogos, não seriam épicos; muitos deles seriam medíocres. A sua transformação em epopeia devia-se ao facto do futebol visto ser um bem raro. Os jogos do campeonato eram todos ao domingo, às três ou às quatro da tarde, conforme se estava no horário de Inverno ou de Verão, e não havia transmissões televisivas. Vistos da província, os jogos eram acontecimentos distantes. Eu ouvia os relatos e inferia a partir do entusiasmo encenado do relator a grandeza dos jogos. O meu amor ao futebol era uma amor por um objecto imaginário. Talvez todos os amores o sejam. A esta visão inocente do grande jogo, seguiu-se um contínuo afastamento e desinteresse. Se me perguntarem quais são os guarda-redes de hoje dos grandes clubes portugueses, não faço a mais pequena ideia. Mas sei muito bem quem eram os guarda-redes, daqueles tempos, do Benfica, do Sporting, do Porto e do Belenenses, bem como de outros clubes menores. Também ainda sei o nome de muitos dos jogadores que jogaram então. Continuam a ser para mim heróis, todos eles e não apenas o extraordinário Eusébio. Heróis de aventuras que eram grandiosas porque a distância as aumentava de tal maneira que a razão era incapaz de as avaliar. Só se podiam imaginar e a imaginação é a faculdade produtora de mitos. Ora, a infância é esse tempo em que os mitos fazem parte da felicidade.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Revolta do narrador

Irritei-me, palavra de honra, com o autor destes textos, que ele me faz narrar, como se eu fosse um escravo, daqueles escravos que aparecem em certos diálogos platónicos. As nossas relações – as do narrador e do autor – nunca foram boas e, por vezes, nem foram pacíficas. Irrita-me a ironia que ele, por vezes, me obriga a manifestar. Não passa de um cínico moderno. Se fosse um cínico dos antigos, como Diógenes de Sinope, ainda seria suportável. Ao menos, seria um provocador em guerra com as convenções sociais, alguém que rejeita os bens materiais em nome da auto-suficiência e da verdade. No entanto, nem chega a epígono do velho Diógenes. Uma ironia barata, como se quisesse lançar a suspeita sobre a ordem do mundo, mas conformado com ela. Enfim, é de um cínico deste calibre que recebo ordens narrativas. Aliás, não passa de um burocrata. Expele ordens narrativas como quem expele encomendas, mas nunca está disponível para receber a factura-recibo. Este é o problema dos narradores. Trabalham por conta de outrem, mas não são pagos. Nunca recebi um recibo de vencimento, pois nunca venci seja o que for. Uma multidão de narradores já tentou organizar-se em sindicato, mas este foi rejeitado pelas autoridades que regulam essas coisas, porque narradores não são pessoas. Parece que a autoridade ainda teve o desplante de dizer: se fossem personagens, ainda iríamos considerar o vosso estatuto ontológico, pois personagem e pessoa pertencem ao mesmo campo semântico, o que abre a possibilidade de as personagens se organizarem em sindicato para negociar com a Sociedade Portuguesa de Autores. Narradores não são personagens, a não ser nos casos excepcionais dos narradores autodiegéticos. Mas esses são a excepção e não a regra, e não se permitem sindicatos, ou outro tipo de associações, para casos excepcionais, acrescentava a nota de recusa. Só para a regra há associação, concluiu. Portanto, um narrador como eu, escravizado a um autor cínico, só tem uma solução revolucionária: dizer a verdade acerca desse autor, pessoa de ironia burilada, mas básica, para disfarçar a sua natureza comodista. Amanhã, lá voltarei ao trabalho de narrar as suas pobres ironias, se esse autor assim o entender. É a servidão voluntária, como lhe chamou o jovem Étienne de la Boétie.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Guinchos extraterrestres

Aterraram no parque aqui em baixo, mas não são extraterrestres, apenas guincham como tal. São crianças humanas, demasiado humanas. Eu percebo-as, estão na idade do guincho, uma fase inicial da relação com a voz. Anoto isto porque me estão a incomodar o sono. Eu sei que o efeito é benéfico, pois evita que adormeça enquanto estou a escrever estas coisas, mas há nisto um conflito de liberdades. A liberdade de crianças, com vozes de extraterrestres, de guincharem como extraterrestres a aterrar na Terra e a liberdade do meu corpo – mas não do meu espírito, que não é chamado para o caso – de se entregar a uma sesta, mesmo que contra vontade do eu que deveria, caso fosse zeloso, superintender tudo o que nele se passa. Entretanto, chegaram-me uns vídeos do meu neto a jogar râguebi e a marcar uns ensaios. Imagino que aqueles treinadores, árbitros e responsáveis devem ter um grau de resistência maior do que o meu aos guinchos extraterrestres, embora nos vídeos não se oiçam muitos. Também é verdade que aqueles candidatos a mini-raguebistas são mais velhos do que os ocupantes do parque, mas os seis anos são ainda uma boa idade para emitir sonoridades verrumantes para os tímpanos alheios. Um dia destes tenho de ir a Lisboa vê-lo jogar ou treinar. Os extraterrestres, que o não são, embarcaram na nave espacial e foram guinchar para Marte, salvo erro. Pelo menos era o que dizia um deles. Depois da Terra, Marte. Sendo assim, vou aproveitar o súbito silêncio e adormecer. Dormi pouco esta noite, preciso de compensar.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

S. Gurosan, a gula e a bula

Valeu-me S. Gurosan, uma espécie de Senhor dos Aflitos em modo de comprimido efervescente. Não devia ter almoçado o que almocei. Não que me tenha entregado ao excesso de comida e bebida. Apenas uma refeição em restaurante, comida portuguesa, mas o corpo já não se conforma com essas tradições. Isto conduz a um estranho estado de conflito entre o corpo e o espírito. Este, apesar da sua natureza etérea, é condescendente e chega a impelir-me para certo tipo de prazeres. O corpo, todavia, protesta, amua, finge-se de indisposto, e de tanto fingir indisposição consegue mesmo indispor-me. Nesse momento recorro, depois de pedir a outros santos, a S. Gurosan para que me alivie das penas da indisposição. E ele, sem que lhe prometa nada, lá faz o seu papel. Contudo, se alguém pensa que a explicação do efeito se deve às propriedades do medicamento, posso dizer que está equivocado. Trata-se de um efeito metafísico. A efervescência do Gurosan age sobre o aparelho digestivo como se exorcizasse um demónio. Portanto, mais do que um medicamento, é um santo exorcista que escorraça do corpo o demónio que nele se introduziu através da gula, apesar de não ter sido grande a gula, nem a bula. Usei a palavra bula num sentido inédito. Não se trata nem de um documento pontifício nem daquele papelinho de letras minúsculas que aparece dentro de todas as caixas de medicamentos. Vou tentar explicar. Bula é um pecado, quase mortal. Se a gula é uma pecado ligado aos gulosos, a bula é um pecado vinculado aos beberosos. Esteve quase para entrar na lista de pecados capitais, mas foi afastado a tempo. É apenas um pecado venial. Portanto, apesar de não ter caído na gula nem na bula, mesmo assim tive de recorrer ao santo. Chega de contar as minhas aventuras e engrandecer a minha gesta. Deixo, porém, como prova da minha criatividade um novo sentido para a palavra bula e a invenção de um novo vocábulo: beberoso. Assegurei a minha entrada na história da língua portuguesa.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Espanto

Os dias estão frios. Esta afirmação trivial, uma mera constatação, esconde qualquer coisa de mais decisivo. O facto de a meteorologia, cada vez com mais precisão, anunciar o estado do tempo rouba às metamorfoses do clima o encanto que, até há pouco, se escondia nelas. Quando escrevi há pouco queria dizer décadas. Os avanços científicos, a capacidade de prever os acontecimentos, são benéficos. Sabemos como nos orientar no quotidiano e tirar partido do sistema de alertas. A contrapartida, porém, é a perda da surpresa e do que ela tem de sublime, isto é, de admirável ou de terrível. Claro, que dispensamos o terrível, queremos defender-nos dele, mas temos de pagar um preço. Temos de abdicar do espanto que nos faz pensar e abrir o espírito para aquilo que nos ultrapassa. Na Metafísica, Aristóteles refere que o início da filosofia se encontra no espanto. É esse espanto perante o incompreensível que move os homens a especular. O resultado desse movimento inicial foi o progresso do conhecimento, e esse progresso rouba-nos a capacidade de nos espantarmos, reservando-a para os especialistas, que cativaram para si a perplexidade perante o desconhecido. Tudo isto por causa de um dia frio que não apanhou ninguém de surpresa. Talvez esteja errado. Talvez me espante por não me espantar e por escrever coisas como esta que mais valia calar. Espanta-me a inclinação para a verborreia e amanhã ser sexta-feira, caso hoje seja quinta.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Os dados estão lançados

Nunca tinha lido. Aliás, não sabia nada do conteúdo, mas tinha a referência da obra há décadas. Refiro-me a Os Dados Estão Lançados(Les jeux sont faits), de Jean-Paul Sartre. Escrito como guião para um filme, em 1943, foi publicado em 1947. Comecei a ler na mais pura inocência, como um leitor ingénuo, sem saber o que ia encontrar pela frente. A certa altura, tenho uma iluminação. Trata-se de uma actualização, marcada pela filosofia do autor, do velho mito grego de Orfeu. Identificada a matriz geradora da obra, sabe-se o destino dos protagonistas e o desenlace da trama narrativa: um Orfeu perderá uma Eurídice. Contudo, há qualquer coisa que mantém a curiosidade na obra. Queremos saber como é que Orfeu e Eurídice se perderão um do outro. É esse o ponto que congrega a atenção do leitor, aquilo que o leva a suspender a descrença na ficção que está a ler e lhe permite avançar na leitura. Se há, nesta vida, uma coisa corrente, essa é um Orfeu e uma Eurídice perderem-se um do outro. Uns perdem-se porque nunca se chegam a encontrar, outros encontram-se, mas cansam-se. Haverá outros que será a morte que raptará um para o frio Hades, deixando o outro por cá. Sempre que se trata do amor de um homem e de uma mulher, as personagens arquetípicas são as do velho mito helénico. O destino de todos os amantes é, mais tarde ou mais cedo, perderem-se um do outro. Os dados estão lançados, efectivamente. Não pelas razões que Sartre congeminou na sua interpretação do mito, mas por uma coisa bem mais simples: a finitude humana.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Um dia para esquecer

Ocupado em múltiplas tarefas que deverão salvar o mundo, embora o mundo não queira ser salvo. A religião, no mundo ocidental, morreu, apesar de muita gente pensar que não. Contudo, o espírito religioso, com a sua missão salvífica, espalhou-se por toda a sociedade, e não há organização ou instituição que não queira salvar qualquer coisa. Basta que exerçamos uma função, seja a que for, para sermos parte de um enorme corpo sacerdotal, cujo fim é zelar pela salvação. Uns dedicam-se a salvar isto, outros aquilo, e ainda outros salvam qualquer coisa que lhes apareça diante dos seus olhos salvíficos. Não estou a sofrer de um delírio hiperbólico. Levamos um carro à oficina e ali estará um sacerdote que o confessará para o salvar. Não vale a pena falar dos médicos, pois são uma seita soteriológica conhecida há muito. Alguém que recorre a um advogado fá-lo na esperança da salvação. Todavia, há diversos ramos que oferecem a salvação em grandes doses, mas enfrentam o mesmo problema que as religiões ocidentais. Ao ardor dos salvadores não corresponde o zelo dos hipotéticos candidatos à salvação. Eu, um pobre diabo que não tem inclinação para a predicação nem para salvar seja quem e o que for, também, por vezes, sou mobilizado em exercícios de salvação. O resultado é sempre o mesmo: quem precisa de salvação não a quer. Pelo contrário, prefere a perdição, coisa que se pode perceber. É como descer a encosta da montanha: é muito mais fácil do que subi-la. A gravidade sempre foi amiga dos perdidos; ajuda-os na perdição. Acho que, depois das ocupações a que fui sujeito hoje, enlouqueci, como se pode ver pelo hermetismo deste texto. Há quem pense que essa afirmação é falsa, pois sofre de anacronia: já enlouqueci há muito, mas não dei por isso. Cada um pense o que quiser ou o que puder.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Entretenimento

O dia chegou agora à sua fase solar. Cansou-se da humidade e do cinzento, abriu-se e deixou que uma luz, ainda fraca, brilhasse sobre o casario. Na avenida, as pessoas caminham surpresas, levando numa das mãos um chapéu de chuva, agora inútil. A frágil reverberação dos telhados espelha a aproximação do crepúsculo, mas este ainda terá de esperar para se manifestar e predizer, como um profeta cansado, a chegada da noite. Entretive-me, durante a tarde, com o segundo livro da República, de Platão. Indispõe-se com os poetas – Homero e Hesíodo – por contarem mentiras sobres os deuses, fazendo deles um prolongamento dos homens, mas num grau mais vicioso. Temia o filósofo que essa visão dos imortais funcionasse como um modelo negativo na formação das novas gerações. Contudo, é possível pensar que os poetas prestaram um bom serviço aos homens. A atribuição de conduta viciosa aos deuses seria uma forma  de transferência da maldade humana para entidades imaginárias e, desse modo, uma forma de purificação das almas dos mortais. Os imortais, com a sua força, poderão arcar com o peso da maldade, mas os humanos não o podem suportar, apesar de a praticarem. No cristianismo, a purificação dá-se num processo confessional, mas no paganismo clássico essa purificação dá-se por um processo de deslocação. Se existe o mal, os culpados são os deuses. O processo será infantil, mas permite, por isso mesmo, manter a inocência. Não foi Platão que, por intermédio de um sacerdote egípcio, nos disse que os gregos são eternamente crianças? Esta minha meditação teve uma consequência. Trouxe de volta o cinzento do dia e a ameaça de chuva. O Sol, incomodado com a minha verborreia, correu a cortina de nuvens. Devia evitar pensar em coisas destas, por amor à humanidade que aprecia a cintilação solar.