terça-feira, 2 de março de 2021

Vai por aqui um arraial

Pela praceta vai um arraial. Não, não se trata de uma festa ao gosto popular por ocasião de alguma romaria, nem um acampamento de tropas inimigas que venha pôr cerco ao castelo. É apenas um grupo de crianças trazidas pelas mães para gastarem as energias físicas e exercitarem a sonoridade da voz em hipérboles estridentes. Bem as percebo, às mães. Terem filhos pequenos todo o dia em casa está muito para além da capacidade de os gerar. Entre o prazer da concepção, se o houve, e as dores do parto, a vida está suspensa. O pior é o crescimento das crias, as metamorfoses do corpo e as mudanças de humor, tudo em territórios exíguos, mesmo que os apartamentos tenham excelente dimensão. Os corpos pequenos precisam de grandes espaços, onde possam crescer e bolsar pelas cordas vogais o espanto pela existência. Ouve-se, agora, a voz cava de um pai. Parece que veio trazer um princípio de ordem. A algaraviada continua, enquanto a tarde se desfaz em neblina e, a coberto das nuvens, se prepara para se deixar cair nos braços da noite. Calma, calma, diz a voz de baixo do pai ordenador. Um rapaz grita que é bola ao ar. Talvez seja. Quando a vida se interrompe também se há-de mandar a bola ao ar, para que ela retome o seu andamento, até que um apito assinale um fora-de-jogo ou o fim da partida.

segunda-feira, 1 de março de 2021

O dever de anotar

É difícil uma pessoa adaptar-se às novas circunstâncias. Julga que vive como há vinte ou trinta anos, mas a realidade é tão crua que não se faz rogada em desmentir a presunção. Ao marcar um exame médico, deram-me uma série de indicações para cumprir no dia anterior. Nem as escrevi, convicto de que me lembraria delas. Agora que o dia se aproxima dei por mim sem saber o que fazer e a ter de ligar para a clínica, com papel e caneta para escrever aquilo que devia ter escrito. As faculdades, pensei, vão se apagando uma a uma. A natureza não é destituída de sabedoria. Olhei pela janela, o telhado branco do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido pelo primeiro sol de Março. Senti uma súbita vontade de ir ver o mar, de me sentar numa esplanada e assistir ao infinito jogo das ondas, à passagem dos barcos, ao voo das gaivotas. A praia que me repele no Verão chama-me no Inverno. Ali posso escutar o murmúrio de tudo o que é, deixar-me prender ao ir e vir das águas para tocar naquilo que se esconde para lá da cortina preta das coisas visíveis. Anoto que a partir de agora tenho o dever de tudo anotar. Talvez estes textos sejam anotações daquilo que tenho o dever de anotar.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Uma peça de má qualidade

Suspeito que seja um acontecimento trivial e não há quem não o tenha experimentado. Sentei-me e fui abalroado – não encontro outro modo de o dizer – por três palavras que emergiram nem sei de onde. Em mim ouvi dizer cães de caça. Se há ocupação humana que me é estranha é a caça. Os seus rituais de perseguição e morte, o companheirismo das suas relações sociais, o prazer dos troféus e os perigos imaginários corridos, nem posso dizer que me são indiferentes, pois desconheço-os por completo. Também cães são animais com os quais não tenho qualquer relação. Não me são antipáticos, mas sempre estiveram fora do meu horizonte de interesses. O mesmo não se passa com os gatos, apesar de não ter nenhum. Por que razão cães de caça decidiu visitar-me? Talvez exista em mim um fundo de onde emanam aliterações e que estas, conforme percorrem o longo caminho que vai do inconsciente até à consciência, comecem a procurar materiais vocabulares para se realizarem, para encarnarem. Esta aliteração terá a certa altura encontrado cães de caça e foi assim que me visitou, para minha surpresa. Em tudo o que disse há uma estranha teoria sobre os recursos estilísticos. Estes não são aprendidos, mas existem no mais fundo do nosso inconsciente, tal como as ideias inatas cartesianas habitam a razão dos homens, e, por vezes, decidem, os recursos estilísticos, manifestar-se, do modo mais inesperado que se possa pensar. A isto chamaram inspiração. Ninguém há-de crer na minha teoria, nem eu, mas talvez não seja pior do que qualquer outra. Cuidado com o relativismo, ladra feroz a cadela da razão. Logo, a gata da imaginação se contorce e, ronronando, mia que o melhor do mundo é a sua relatividade. Eu fico estupefacto com o que se passa em mim, desconfiado de que a minha mente não passa de um teatro onde se desenrola uma peça, de má qualidade, a que assisto como se não tivesse mais nada para fazer. Logo hoje que é domingo e o último dia de Fevereiro.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

A porta da realidade

A manhã de sábado tomada por ocupações profissionais. O que vale, porém, é que agora a realidade se transferiu para uma dimensão fantasmática a que se dá o nome de mundo virtual. Tem algumas vantagens inegáveis. Pessoas que eram desconhecidas continuarão a ser desconhecidas e se, por um acaso, se cruzarem fora da virtualidade permanecerão nesse estado de desconhecimento, que omite os rituais de sociabilidade e dispensa mesmo a troca de palavras. Não se fala com desconhecidos, um imperativo que se aprende desde muito cedo. Não poderia acontecer um daqueles encontros decisivos que muda o destino de uma pessoa? Sejamos práticos, se é para ter um encontro decisivo, a realidade acabará por chamar, sem se saber muito bem como, aqueles a quem quer mudar o destino e pô-los um diante do outro. Ora como a generalidade dos encontros não servem para mudar destinos, o melhor é que se tornem virtuais, pois já o eram antes de a tecnologia lhes ter dado esse nome e essa aparência. A verdade é que a ocupação matinal não me fez lá muito bem, caso contrário não estaria com estes pensamentos sem nexo. Agora, vou sair e ver o meu neto, que não vejo, a não ser virtualmente, há mais de dois meses. Vou entrar pela porta da realidade.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

O golo e a garganta

Fevereiro está por um fio. Já nem três dias lhe sobram, o melhor será rezar-lhe por alma, ainda em vida. Indiferente ao meu interesse mórbido pelo calendário, uma família, uma mãe e três rapazes ainda sem idade escolar, desconfina na praceta entre prédios. Uma bola parece ser a fonte do alvoroço. As vozes elevam-se para se perderem na abstracção em que a vida se tornou. Estou a especular, a mergulhar num território para o qual não tenho qualquer prova. Por vezes, oiço a exuberância da palavra golo. Há um secreto pacto entre as gargantas dos rapazes e esse anglicismo há muito nacionalizado. Quando delas sai, vem esfusiante, prolongando-se no tempo, como se aspirasse à eternidade. Também eu a terei gritado assim e sinto alguma nostalgia de um tempo em que acreditava nos golos e nos penalties. Perdi a fé. Tornei-me ateu. Já nenhum golo é manifestação de um deus, nenhum penalty, promessa ou perigo. Talvez fosse isto que Nietzsche antecipou ao falar da morte de Deus, ou Max Weber, em desencantamento do mundo. Dei uma vista de olhos pelos jornais online. Parece haver um novo jogo. Quem descobrirá a data do desconfinamento? A imprensa sempre fez parte do meu mundo, mas há nela, mesmo na mais séria, uma superficialidade insuperável. Talvez retrate a vida como ela é. Superficial, inócua, frívola, fútil e leviana. O que me vale é que não me faltam adjectivos, cuja exuberância é prova de escrita incapaz. De facto, Fevereiro está mesmo com más cores. Cinzento violáceo. Não lhe dou muito tempo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Habituamo-nos, é tudo

Há quase um ano, na verdade há mais, que estamos metidos neste sarilho da pandemia. Pensava nisto, enquanto contemplava a Sá Carneiro, agora pouco povoada, com cafés e bares fechados e transeuntes vagarosos, arrastando a vida e a idade atrás deles. Os mais velhos desabituaram-se de andar, os mais novos rasgam o ar com exuberância, para mostrar que são novos e que nada lhes resiste. Pergunto-me o que penso sobre a situação e dou por mim a soletrar os versos de uma canção de Jacques Brel. On n'oublie rien de rien / On s'habitue c'est tout. Não esquecemos nada. Habituamo-nos e isso é tudo o que me ocorre. Habituei-me ao ritmo da pandemia, ao confina, desconfina e volta a confinar. Habituei-me às reuniões online, à videoconferência, a usar máscara, aos rituais pandémicos. On s’habitue c’est tout. Foi com Jacques Brel que me tornei um apreciador da música francesa, apesar de ele ser belga. Lembro-me da sua morte em 1978, pouco tempo depois de eu ter comprado o último álbum que editou. Foi um ano que me ficou na memória, pois morreram também os poetas Ruy Belo e Jorge de Sena. Nenhum destes homens era velho. Sena tinha 58 anos. Brel, 49. Ruy Belo, 45. A medicina, se comparada com a de hoje, era muito incipiente. O dia acinzentou-se, as acácias continuam despidas, embora o bosque de cedros, ciprestes e pinheiros esteja exuberante nas várias tonalidades de verde. Ando muito memorioso, digo para mim mesmo, embora seja possível que os pássaros meus vizinhos tenham escutado. Ainda se hão-de rir por me verem a falar sozinho. On n'oublie rien de rien.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Das coisas em que não acreditamos

Nos tempos de faculdade, por vezes ia a um café na Avenida da República que tinha a peculiaridade de só servir café de saco. Não sei se ainda haverá casos desses. O estabelecimento era muito acolhedor e tinha um certo tipo de clientela interessada em coisas do mundo e da cultura. Mais de uma vez vi por lá David Mourão-Ferreira. Lembrei-me disto porque ele faria hoje anos, noventa e quatro. Nasceu no mesmo ano do meu pai. Nunca falei com ele, mas recordo-o da televisão, dos programas que fazia, num mundo em que havia apenas um ou dois canais televisivos, a preto e branco, e em que a palavra canal não se referia a esgoto, como acontece agora, quando se fala de um canal televisivo. Não estou a protestar com a televisão dos dias de hoje, as coisas são o que são e, de certa maneira, se as televisões são assim foi porque as pessoas o quiseram. Voltando ao café da Avenida da República, recordo o prazer de lá estar a ler o jornal, um vespertino, num tempo em que em Lisboa ainda existiam três jornais da tarde, que foram morrendo por falta de leitores. Bebia café, lia o jornal e fumava, como acontecia num tempo em que se fumava em todo o lado. Incluindo nas aulas. Os jornais morreram, o café morreu, David Mourão-Ferreira morreu, o meu pai morreu. Talvez já ninguém beba café de saco. Quando se envelhece a vida é um acumular de destroços e de perda de referências. Isso, porém, era uma coisa que eu não sabia. Ouvia dizer, mas não acreditava.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Em louvor da malva

Ao longe, descortino o que parecem ser três árvores cobertas por um véu cor de malva. Não imagino que árvores serão aquelas que florescem tão cedo e nessa cor incerta. Se se fizer uma pesquisa sobre a cor malva, encontram-se matizes tão diversificados que apetece de imediato mandar o mostruário às malvas. Há um filme de que muito gosto, embora não seja obra marcante da história do cinema, que tem um nome que vem mesmo a propósito para este texto. Um Táxi Cor de Malva (Un Taxi Mauve), de Yves Boisset, onde contracenam um contido Philippe Noiret, uma provocadora Charlotte Rampling, um exuberante Peter Ustinov e um simpático e humano Fred Astaire, o médico Dr. Seamus Scully, que se desloca no seu táxi cor de malva. Por que razão gosto tanto desse filme, nem eu o sei. De vez em quanto, procuro o DVD e fico a vê-lo, a olhar as paisagens da Irlanda do Sul, os dramas existenciais das personagens. Há uns tempo comprei o romance que deu origem ao filme, de Michel Déon, publicado pela Gallimard em 1973 e traduzido, em 1975, para português e editado pela Bertrand. Ainda não o li. Temo que o espírito do filme e o do romance não coincidam. Não conheço o autor, isto é, nunca li nada dele, mas Un Taxi Mauve foi galardoado com o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Será virtuoso, mas não sei se arrisco, apesar de Déon ter sido eleito para essa Academia em 1978. O Sol deu um ar da sua graça, ao longe às árvores cor de malva fulguram, incrustadas numa paisagem verde, que se diferencia em múltiplos matizes, desde aqueles mais abertos a lembrar uma alface alourada até aos verdes carregados, quase lutosos das colinas que encerram o meu horizonte.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Questões tribais

Os dias cresceram a olhos vistos. Há qualquer coisa estranha na expressão a olhos vistos. Os olhos para verem não precisam de ser vistos. É uma locução adverbial, hão-de sossegar-me os gramáticos ou talvez os linguistas, duas tribos que não sei distinguir lá muito bem. Isto fez-me pensar noutro assunto. Está muito na moda verberar a tribalização da vida social que, segundo as mais recentes crónicas do planeta Terra, está a acontecer um pouco por todo o lado, uma tribalização universal. As pessoas devem gostar de pertencer a uma tribo – ou, mesmo, a várias – e com isso encontrarem um lugar no mundo e um chefe que mande nelas, pois não há tribo sem chefe. Eu próprio me tornei chefe de uma tribo. É composta por uma única pessoa, que é ao mesmo tempo súbdito e chefe, isto é, eu. Sou a única pessoa que me obedece. Tudo isto para confessar que também sou um tribalista. Quase que me esquecia do que me trouxe aqui. Os dias estão maiores, a luz demora-se cada vez mais, abandona aquela mania de se deslocar a trezentos mil quilómetros por segundo, e vai mais devagar. Esta é a verdadeira explicação do crescimento dos dias. Quanto maiores são os dias, mais devagar se desloca a luz. A certa altura, chega a parar a meio do caminho, e o dia prolonga-se, prolonga-se. Prolonga-se a olhos vistos, diria um gramático amante de locuções adverbiais. Ou um linguista. Einstein não haveria de concordar com a explicação, mas ele pertencia à tribo dos físicos, o que não era nem será um ponto a seu favor. Por que razão escreves coisas tão parvas, perguntam-me. Está-me na massa do sangue, respondo.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Não tarda, a Primavera

Já falta menos de um mês – e um mês amputado dos dias a que Fevereiro não teve direito – para que chegue a Primavera. O dia de hoje parece anunciá-la. O sol deu um ar da sua graça, embora de forma muito comedida. Ora brilha, para que árvores e vidros resplandeçam, ora se recolhe por detrás das nuvens, para que a luz se derrame difusa, com um tom de melancolia, que não deixa de lhe ficar bem. Na rua ouvem-se vozes de criança e, nos parapeitos das janelas, os pássaros conversam entre si, enquanto tomam um banho solar. Num vídeo acabado de receber, o meu neto dá saltos em cima de uma cama e parece exultante. Julgo que não haverá criança que não goste de pular em cima de uma cama. A minha neta mais velha, contam-me, entrou no clube das mulheres. Apareceram-lhe as regras, com se dizia antigamente, embora a linguagem usada na comunicação tivesse sido mais moderna. O tempo desliza demasiado depressa e ela já não virá para o meu escritório com a irmã brincar aos colégios, às professoras e alunas, às inscrições e faltas às aulas a serem reguladas com severidade com alguma mãe distraída. Com os saltos de um, as regras de outra, a expectativa da que ainda não se regulou, vou sendo empurrado para fora do mundo. O pior é o confinamento. Sem ele, talvez hoje estivessem aqui a almoçar, e o deslizar em direcção à grande e eterna noite fosse mais aprazível, pois haveria de esquecer, ao vê-los e ao ouvi-los, que o tempo é um príncipe inexorável na sua justiça. Um pássaro canta, a escola ao lado recorda um filme distópico, onde tudo foi abandonado. É domingo, e essa é a única coisa que me ocorre de momento.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Falar do tempo

O Inverno resiste aos avanços da Primavera. Finca-se nas patas traseiras e faz força para que o tempo não deslize rapidamente para os dias ensolarados. Chove e um vento frio sopra de Sul, mas não vai a galope. Deixa-se ir em passo vagaroso, nove metros por segundo. Sou informado de que por aqui se está em alerta laranja, não vá o mafarrico tecê-las. Continuo com acentuada inclinação para ser boletim meteorológico. De que hão-de as pessoas falar, quando não têm nada para dizer? Do tempo. Um homem convida uma mulher para sair, mas sofre de uma acentuada falta de assunto. Então, ocorre-lhe falar do estado do tempo. Informa-a das temperaturas máximas e mínimas, se chove ou faz sol, se troveja. Emocionante é o momento em que fala da velocidade do vento e põe a mão sobre a dela. Ela, perplexa e perdida na carta meteorológica, não sabe se há-de ou não tirar a mão. E se estiver um vendaval? E se chove a potes? E ali fica indecisa, tira ou não tira, enquanto ele avança por ciclones e tsunamis, deambula pelas tempestades tropicais. Chega a ser convincente no que diz sobre tempestades de granizo e as grandes nevascas que podem acontecer no próximo século. O tempo é um assunto inesgotável, e, caso fosse cultivado com esmero, muitos divórcios seriam evitados.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Cultivar um jardim

Os dias continuam desagradáveis. Um vento frio sopra de Sul e daqui a pouco há-de chover. Enganei-me. Já está a chover, e chove apenas para confirmar a precisão do prognóstico meteorológico lido num dos sites que se dedica a presumir como o clima se comportará. Nunca deixa de me fascinar a atracção humana pelo futuro, tão forte quanto a que existe pelo passado. Daqui não será completamente estulto concluir que o pior sítio para se viver é o presente. Deverá ser tão doloroso que a mente humana ou se volta em ânsia para o que há-de ser ou se recolhe na melancolia do que foi. Talvez a vida não seja outra coisa senão um conflito com o presente, uma descoincidência contínua com o que ocorre a cada instante. Uma pedra ou um rio coincidem plenamente com o momento, por isso não têm uma consciência infeliz. Talvez estes pensamentos sejam motivados pelo confinamento, o qual torna as pessoas meditabundas e as leva a pensar coisas que um saudável bom-senso manda não pensar. Há pouco contei as orquídeas floridas. Já são seis e as outras prometem abrir-se em esplendor para que possam ser contempladas. Um filósofo alemão de origem coreana escreveu um livro em que reflectiu sobre o tempo que dedicou ao seu jardim. Tenho pena de não ter uma vocação de jardineiro, pois essa seria a mais bela e produtiva das ocupações. Fazer crescer a beleza pelo prazer de a contemplar.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Mundos possíveis

Um dia desabrido, o de do hoje. Suspeito que terá acordado indisposto, lacrimoso, talvez a sofrer de algum desgosto de amor, se ainda os há, ou de um estado depressivo. Outra hipótese é de se estar na Quaresma e o dia entregar-se aos ritos penitenciais, ao exercício do arrependimento e, por isso, chove como se chorasse, tomado por súbitos ataques de mágoa e melancolia, em que uma água gélida se derrama de nuvens cinzentas. Daqui a pouco terei de sair, atravessar a cidade de lés-a-lés. Olho para a rua e pergunto-me se esta Terra é uma excepção num universo sem medida ou se é apenas um dos mundos que por ali existem. Caso seja apenas um dos mundos habitados, será ela o melhor dos mundos possíveis? Muitas são as coisas estranhas que há universo fora, mas talvez as mais estranhas sejam a existência de mundos habitados e de neles haver seres que pensem que há mundo habitados. A chuva persiste na queda, os carros passam devagar, são quatro da tarde, mas podiam ser seis ou mesmo duas. Este confinamento é muito diferente do anterior, é o que me ocorre.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Metafísica de alfurja

Por vezes sou assaltado por pensamentos que ninguém no seu perfeito juízo deveria ter. Por exemplo, há pouco sofri a distracção imposta pelo pensamento de que toda a busca pela origem das coisas, seja das espécies, do universo, ou de qualquer outra existência, será apenas fruto de uma forma de pensar errada. O facto de perguntarmos pela origem não significa que exista uma origem. Este computador não teria origem, aquele carro que passa na avenida não teria origem, eu não teria origem, o universo haveria de passar bem sem origem. Talvez seja tudo um borbulhar eterno sem princípio e sem fim. Depois considerei estes pensamentos e julguei-os inúteis até para uma Quarta-Feira de Cinzas. Fui espreitar o trânsito da avenida, mas fiquei a olhar para o friso das orquídeas. Todas dão sinais de que irão florescer, cada flor terá a sua origem num botão, que terá a sua origem em qualquer outra coisa que os meus conhecimentos botânicos não alcançam. Então sempre existe origem das coisas, dir-se-á. Eu responderei que sim, mas que talvez isso não passe de uma manifestação da preguiça que me invade a mente. Olho de novo para a rua e vejo borbulhas por todo o lado, bolhas que aparecem e desaparecem, sem causa nem destino. Acho que vou passar pelas brasas, talvez esta metafísica de alfurja se remeta à sua origem.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Uma Terça-Feira de Cinzas

Enquanto olho o mundo através de uma janela, vou bebendo café. Se não há qualquer ligação significativa entre beber café e olhar através da janela, é plausível que possa haver uma relação directa entre o dia triste e cinzento, com uma luz baça e fria, e um ânimo pouco animado. Os seres humanos dependem mais do cosmos do que aquilo que eles gostam de reconhecer. Acontece que certos actos ou estados de alma podem ser o resultado de causas exteriores. Um certo tipo de luz, a forma como corre o vento, algum aguaceiro despropositado, uma vaga de calor. Todas estas coisas influem sobre o espírito, assim como sobre os ossos. Esta Terça-Feira de Carnaval mais parece uma Quarta-Feira de Cinzas, oiço dizer. Contudo, os pássaros meus vizinhos parecem animados. Conversam, cantam, voam, talvez pensem que estão já na Primavera. Presumo que não se mascarem no dia de hoje, mas a ornitologia não é o meu forte. Sei, por exemplo, que os anjos se disfarçam de pombos, mas não sei se os pombos se disfarçam de alguma coisa. O mundo está cheio de mistérios e mesmo onde eles não existem, os seres humanos inventam-nos. Umas vezes para continuar uma conversa, outras para sonhar, outras ainda para escreverem qualquer coisa. Não é amor à mentira, nem tão pouco uma inclinação para o mito, mas apenas a necessidade de continuar a usar a linguagem, cujo mistério não é dos menores.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Deixar de ter opinião

Apesar dos esforços e dos afazeres timbrados com o selo do calendário, o tempo persiste a desdiferenciar-se, a perder as qualidades com que longas tradições o investiram. Talvez todas as coisas tendam, apesar dos esforços em contrário, para a igualdade, para se mesclarem no magma da existência, perdendo qualidades. Não sei se pensar nestas coisas me dá sono ou se as penso porque estou com sono. A vida arrasta-se ao sabor das notícias, como se arrastam os carros pela avenida movidos pelas necessidades da existência. Solicitam-me uma opinião, logo a mim que faço os possíveis por evitar esse dano que é ter opiniões. Quando era novo tinha muitas opiniões, à medida que o tempo foi passando fui-me despindo delas. Quando menos se percebe o mundo mais opiniões se tem, quanto mais opiniões se tem menos se percebe o mundo. Depois, sem se saber muito bem a razão, começa-se a perder a vontade em sustentar as presunções pessoais. O silêncio então cresce. Torna-se possível ficar a olhar para o que se passa e daí evitar qualquer ilação. Talvez todas estas ideias sejam condenáveis, mas não me ocorreram outras.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Descrições do mundo

O domingo desliza sorrateiro em direcção ao meio-dia. Na rua, andam famílias em fuga ao confinamento. Trazem crianças pela mão e deixam-nas correr nas pracetas envolventes. Numa delas, um pai joga à bola com dois filhos pequenos. Tudo de máscara, exceptuando a bola. O parque infantil, porém, está vazio, interdito pelas autoridades, apesar de não haver autoridade por perto e os sinais de interdição se terem desvanecido. Um periquito poisou numa das varandas. Passa longo tempo a apanhar sol e a contemplar o abismo. Por mim, sinto uma vertigem, como se fora eu a olhar para o precipício, mas eu não sou pássaro e o meu elemento é a terra. Ontem, caminhei longamente por fora da cidade. O pior é o declive, as subidas às quais o corpo se desabituara. A vantagem está na rápida acumulação de pontos cardio, segundo uma aplicação do telemóvel que me vigia os minutos activos e talvez muitas outras coisas que nem imagino. Oiço as vozes lá em baixo, o Sol deixou-se cobrir por um véu ligeiro de nuvens esbranquiçadas e a luz perdeu a reverberação de há pouco, parecendo sofrer de súbita anemia. Consta que é dia de S. Valentim, mas esse é um santo estranho a qualquer devoção por aqui. Mais uns dias e começa a Quaresma, coisa que já não comove ninguém. Não é fácil manter um diário quando não se tem nada para dizer.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Meditação solar

Volto ao registo meteorológico. O sábado começou imerso em neblinas matinais. Prolongaram-se pela manhã dentro, mas a partir de certa altura o Sol subjugou os inimigos e coroou-se como um rei esplendoroso. Reverbera ainda, mas nesta exibição do seu poder, como em todas as exibições de poder, esconde-se uma ameaça. Virão dias em que o seu brilho será insuportável e o calor, mortal. Deflagrarão incêndios e toda uma tragédia tórrida emanará do seu brilho desmedido. Isso, porém, será lá mais para a frente. Agora, a sua vinda merece celebração. Depois do meio-dia fui às compras. As ruas quase pareciam as de um sábado desconfinado, com muitos carros a circularem. Na superfície comercial – nem sei como conseguem inventar estas designações – não havia muita gente. A aproximação da hora de almoço retrai a vontade de fazer compras, pensei. Agora, preparo-me para ir fazer uma caminhada. É um exercício para me imaginar uma pessoa livre, que não está em prisão domiciliária. Espero que os caminhos que irei eleger estejam sem gente e que possa desmascarar-me e sorver o ar, como se tudo estivesse como imaginávamos que estava há um ano, embora já não o estivesse. A vida está cheia de ilusões e armadilhas.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Tempo de Carnaval

Está um tempo de Carnaval. Olho para a frase e não posso deixar de me rir. Se estivesse a chover, também poderia dizer que estava um dia de Carnaval. Dito de outra maneira, qualquer tempo é tempo de Carnaval. Este ano não haverá corso, o país será poupado àqueles desfiles constrangedores, à pobre alegria dos foliões, às raparigas cheias de frio a abanarem-se como se estivessem no Rio de Janeiro, à falsificação que tudo aquilo representa. Certamente, haverá um psicólogo caridoso que virá explicar que essa terrível ausência dos festejos terá um impacto na saúde mental dos portugueses, que ficarão mais ansiosos e deprimidos, a sonhar com ansiolíticos e antidepressivos. Como observador longínquo do fenómeno, sempre achei que era uma manifestação depressiva de uma doença mental que ataca os portugueses entre o Natal e a Páscoa. Com um dia tão primaveril, nem consigo compreender o motivo por que me pus com esta diatribe contra tão preclara instituição. Eu que me mascaro para ir à rua e mal chego a casa tiro a máscara que usei e fico com aquela com que nasci e foi envelhecendo. Os dias já são maiores, crescem languidamente e, não tarda, hão-de precipitar-se para o solstício de Verão. Depois, começarão a encolher. Não há nada de novo sob o Sol. Talvez tenha dormido mal.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Da necessidade

De manhã, tornei à farmácia. O médico decidiu inovar e introduziu uma nova substância na ementa, a qual não apresenta opções, apenas preceitos a cumprir. Muito gostamos de pensar que a vida está cheia de possibilidades alternativas, mas começo a desconfiar que sob essa capa se esconde um feroz preceituário de regras a que não nos podemos furtar. A terrível necessidade dos gregos antigos. Estes diziam tudo com uma beleza de que perdemos a capacidade de imitar. Ananke era a deusa da inevitabilidade e mãe das Moiras. Eram sensatos, os gregos, ao prestar-lhe culto. Nunca se sabe se o inevitável não pode ser evitado. Haverá uma inevitabilidade na chuva que cai, pergunto-me. Talvez lhe seja possível não se precipitar e apenas o faça por um exercício de liberdade da vontade, o desejo de ajudar os homens e, ao mesmo tempo, de os aborrecer. Reparo que a minha inclinação para o registo meteorológico continua activa. Na verdade, sou um narrador sem narrativa, sem nada para contar e sem nada para dizer. Uma camada mais escura e baixa de nuvens parece deslocar-se a grande velocidade, ao contrário da camada superior, estática e sem vontade de se dar a grandes viagens. Também é plausível que seja uma ilusão, e que não existam nuvens, nem movimento, nem chuva e tudo o que vejo se passe na minha mente, que de tão ociosa se põe a imaginar um mundo fora dela, como se isso fosse possível.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Esculápios, profetas e sibilas

A manhã apresentava um sol esplendoroso, que logo se retraiu e agora o céu é um oceano de cinza e chumbo. Temo que estes textos se confinem e não sejam mais que um registo do estado do tempo. Nunca pensei entregar-me com tanta devoção à meteorologia. Quando era criança achava estranho, embora não me deixasse de fascinar, a devoção dos mais velhos, a geração dos meus avós, pelo boletim meteorológico. Não sei se os impelia um interesse genuíno pela meteorologia ou se era um resquício de um culto arcaico dos poderes divinatórios, de reverência por profetas e sibilas. Antes registo meteorológico do que contabilidade pandémica, pensei. Olho para as estantes que me envolvem e confirmo a necessidade de comprar mais alguns módulos. É preciso evitar que o caos se instale e, neste momento, são já demasiados livros sem poiso certo, uns sem-abrigo que estão por aqui ao deus-dará. Daqui a pouco terei de ir fazer uma visita ao cardiologista. Espero que não tenha ideia de me pôr a fazer exames, pois ainda há umas semanas os fiz, mas nunca se sabe o que atravessa a mente de um médico, uma espécie que também reivindica a posse de poderes xamânicos. Esculápios vindos sabe-se lá de onde, olham para uns papéis e põem-se a conjecturar sobre o futuro, quando não sobre o passado, o que é ainda mais difícil. Talvez chova, quando tiver de sair de casa. A profecia não é o meu forte.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Uma saída ao mundo real

Depois de tantos dias de reclusão, saí para ir à farmácia. O mal é começar a frequentá-las, pensei ao entrar. Não que as pessoas sejam desagradáveis. Pelo contrário, são muito afáveis e têm o poder de fazer esquecer que o que leva ali os clientes é uma qualquer dependência vital. Fui abastecer-me de algumas drogas de que dependo, talvez menos moderadamente do que imagino. Se as deixasse de tomar, os efeitos a curto prazo seriam invisíveis, mas desconfio que a médio prazo poderiam ser muito pouco recomendáveis. As farmácias são uma prova do triunfo da química. Talvez seja possível imaginar um mundo onde a terapia química seja substituída pela genética. Talvez, mas é um assunto do qual nada sei. Aproveitei para caminhar pelas ruas. Estavam vazias e tristes, as árvores despidas, e nem a aberta que permitiu que um sol invernoso brilhasse chamou as gentes à rua. Depois, peguei no carro e fui dar uma volta para lhe alimentar o ego e a bateria. O último confinamento custou-me uma bateria. Não há como uma vida na província, onde nada se passa e nesse nada está toda a sua glória. Os dias já cresceram um bom bocado, constato agora ao olhar pela janela.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Incertezas do dia

Um dia incerto, mais um. O sol já brilhou cheio de promessas, depois o céu cobriu-se de nuvens e, agora, chove. Uma chuva fina, pulverizada, que o vento arrasta em turbilhões. A manhã foi intensamente ocupada e a tarde não será muito diferente. A pandemia trouxe uma nova apreciação sobre o que deve ser uma conduta eticamente permissível. O próximo deve estar menos próximo e há uma justa distância a cultivar. No espaço, mas também na expressão dos afectos. As culturas do Sul vinham abolindo as distâncias, cultivava-se a proximidade até à intromissão, mas isso já não é virtuoso, se é que alguma vez o foi. Pensei em tudo isto enquanto olhava para a avenida quase deserta, um peão passava na passadeira, outro ia pela calçada do lado de lá. Faltava-lhes ânimo nos passos, como se não soubessem o que fazer numa hora como esta. Talvez não saibam. Sento-me e não quero pensar em nada, a não ser nas tarefas a realizar. Tirando isso, também eu não sei o que fazer, embora não sofra de falta de ânimo. Pelo menos é o que soletro para mim mesmo. Oiço um álbum chamado From Gagarin’s Point of View, de Esbjörn Svennson Trio. Esbjörn Svennson não teve sorte, apesar do talento até para encontrar títulos para os álbuns do seu trio. Tudo é incerto como o dia de hoje. O Sol voltou a brilhar. Por quanto tempo?

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Imaginação narrativa

Numa das varandas da casa tem-se uma vista directa para a Sá Carneiro. Fui lá. Fiquei a olhar o trânsito. Os carros não paravam de passar, nos dois sentidos, movidos por uma necessidade de circulação de tal modo constrangedora que lhes foi impossível ficarem parados nas garagens ou nos lugares de estacionamento das ruas. Uns iam de faróis apagados, outros exibiam as luzes com que se anunciavam. O dia talvez esteja menos frio que o de ontem. Alguém vai pelo passeio do outro lado. Caminha sem pressa, por vezes os passos parecem hesitar. Passou diante de um friso de lojas vazias, que em tempos foram dependências bancárias. Então, imaginei um narrador que relatasse as acções daquela pessoa. Não um narrador que da sua omnisciência desse a conhecer uma história em volta de uma intriga para a qual o leitor esperaria um desenlace, mas de um outro tipo de narrador que descrevesse cada gesto, cada palavra, cada som escutado, cada cambiante da paisagem, cada mudança da configuração das pedras do passeio, a cor de cada carro que passa pela pessoa. Um narrador que fosse como uma câmara de filmar, uma câmara exaustiva, que na sua ânsia de tudo registar e contar mostrasse uma nova omnisciência. Depois, recolhi-me e disse que não devia pensar em coisas daquelas, pois hoje é domingo, dia de descanso e até a imaginação precisa de descansar. Calculo o tempo que falta para o almoço e sento-me.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Sábado tardio

Eram quase quatro da tarde quando tomei consciência de que hoje é sábado. Vale mais tarde do que nunca, dir-se-á. Comecei cedo a trabalhar e quando acabei, já a manhã tinha ido para aquela pátria de onde nunca se volta. O almoço foi tardio e, depois dele, fui à varanda do escritório olhar a rua. Vi um casal atravessar uma passadeira, ele com máscara, ela de rosto aberto para quem a quisesse olhar. Imaginei-a uma bela mulher, mas, dada a distância, não o pude confirmar. De uma chaminé saía fumo. Pela quantidade presumi ser de uma lareira. Olhei demoradamente as acácias, agora completamente despidas, mas não consegui formular nenhum pensamento sobre elas. Talvez, penso-o agora, as árvores falem entre si, troquem informações e produzam mesmo pensamentos complexos, uma literatura articulada pelo movimento dos ramos. De imediato, o olhar é capturado pelo bosque da escola aqui ao lado e sinto que os cedros falam com os pinheiros e os ciprestes. Tento escutar a conversa, mas a janela fechada não deixa que som algum chegue até mim. Depois, olho paras as oliveiras e sinto a sua solidão, a tristeza que as habita. Todos estes terrenos formavam um extenso olival, para onde vinham ranchos de homens e mulheres varejar a azeitona e apanhá-la. As que restam são tratadas como peças de museu e isso deixa-as inconsoláveis. Há muito que não há um dia de sol, um daqueles dias frios e luminosos, onde apetece vestir um sobretudo e caminhar pela rua. Hoje é sábado, as pessoas não podem viajar entre concelhos, o vento norte sopra com muita moderação, o céu está nublado, mas não chove. Não tarda, e a noite cairá.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Um analógico no mundo digital

Uma viagem à varanda faz-me descobrir que o dia está frio. Depois, pensei sobre essa constatação e fiquei decepcionado pela minha subjugação ao mundo analógico. Fosse eu um digital nato, teria de imediato aberto a aplicação meteorológica e verificado a temperatura fria que ali consta. Qual a diferença entre um digital e um analógico? O analógico depende da realidade, um digital dispensa-a, basta-lhe consultar o telemóvel para aceder ao conhecimento. Qualquer analógico, como este infeliz narrador, está submetido à canga do real, à necessidade da verificação empírica. Desconfio que, por mais reuniões e encontros em plataformas digitais que faça, nunca conseguirei que me seja concedida cidadania nessa pátria feita de 0 e1. Por outro lado, há que ter em conta uma certa inclinação do narrador para a hipérbole. O dia não apenas está frio como chove. Vejo-o pela janela, confirmo-o no telemóvel. Depois de uma manhã passada numa reunião online, aguarda-me uma tarde numa reunião online. Só espero que jantar não seja virtual, que o tinto não resulte de uvas digitais e que a serenidade da noite seja a serenidade da noite e não uma imagem da serenidade da noite projectada do computador.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Literatura de viagens

Fazer parte do batalhão do confinamento é uma tarefa que exige um rigoroso planeamento militar, do qual a logística e o regimento de disciplina não serão o que menos importância tem. Há pouco, foi hora de exercício. Nestas alturas, sinto uma estranha afinidade com o jovem oficial herói desse espantoso romance que dá pelo título de Viagem à Volta do meu Quarto, de Xavier de Maistre. Detido durante seis semanas em casa, descreve as deambulações no quarto como se o assunto fosse a literatura de viagens. Também eu deveria começar a descrever as estantes do escritório como grandes paisagens exóticas. Falaria do deserto que se abre na estante à minha esquerda. Faria o inventário minucioso dos acidentes orográficos através da indicação de autores e títulos. Na da direita, haveria de descobrir paisagens polares, a brancura de neves e gelos. As deslocações para os quartos ou a cozinha seriam descritas como grandes viagens transatlânticas. Na sala onde se encontra a televisão, talvez descobrisse pirâmides, múmias e o que resta da grandeza do Egipto dos faraós. Haveria de fazer anotações etnográficas, considerações políticas e meditações sobre a relatividade moral dos povos. Seria tudo mais interessante, tivera eu talento para inventar desertos de areia ou de água gelada naquilo que é apenas papel e gostasse de ser um viajante. Há pouco fiz mais uma tentativa de falar com os estorninhos, mas nem para mim olharam. Talvez estejam zangados comigo. Passei a manhã a videoconferenciar, o mais natural é que os neurónios sofram ainda as ondas de choque do acontecimento, e as sinapses sejam um pouco desconexas. Há em tudo uma sombra de tristeza, uma tonalidade melancólica.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Comprar um destino

Na contracapa de um livro de poesia – aliás, uma tradução – estão as palavras de um conhecido romancista português: Isto é Grande Poesia, sem uma baixa, uma falha, um tropeço. Os olhos não se soltam das maiúsculas de Grande Poesia. Medito nelas e quanto mais medito mais me parece que o famoso romancista se entrega ao proselitismo ou ao apostolado. Uma grande poesia não necessita da hipérbole das maiúsculas, basta-se a si mesma na sua grandeza. Depois, penso no que será uma baixa, uma falha, um tropeço em poesia, mas não sou um escritor famoso, nem sequer um escritor, e não consigo fazer ideia. Entretenho-me com minudências e escrevo sobre futilidades. Por vezes, pareço uma emissão do boletim meteorológico. Descrevo o estado do tempo, a cor do céu, a inclinação do vento. Outras vezes, sou um voyeur que espreita não amantes descuidados, mas a rua por onde passam transeuntes com destino. Fascinam-me as pessoas que possuem um destino. Gostava de lhes perguntar onde o compraram. Sabendo o sítio, haveria de ver o preço, e se fosse em conta, ainda compraria um destino. Pena é que não possa comprar, disso estou certo, um Grande Destino, cheio de maiúsculas. Contentar-me-ia com um destino pequenino.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Um diário de futilidades

Também de Fevereiro o júbilo anda arredado. Está tudo tão melancólico que a luz se some dentro de si própria, num movimento de reversão que transforma o dia em quase noite. Espreito pelas janelas, a estrada está molhada, os carros passam na avenida, um ou outro transeunte vai pelo passeio, dando ares de atleta. O esboroar da existência nem sempre se faz em festa e fogo-de-artifício. Preso ao confinamento, observo as contabilidades de cada dia, nesse balanço macabro que junta infecções e óbitos, numa economia em que a oferta da morte e da patologia excede em muito a procura. A manhã passou com um contínuo bombardeamento da caixa de correio electrónico. A existência virtual, de tão imponderável, acaba por ser bem mais adiposa que a real. À minha frente, tenho vários livros de poesia. Com os títulos compor-se-ia um poema que não haveria de desmerecer, mas o que leio, quando a virtualidade me deixa, é um romance de Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty. Em Portugal o termo alemão Angst foi traduzido por angústia, mas na edição em castelhano, por miedo. Os franceses traduzem por angoisse e em língua inglesa está vertido por anxiety, no caso do livro, mas no do filme de Wenders, por fear. Medo será mais apropriado, ou talvez nenhum guarda-redes sinta medo, angústia ou ansiedade antes do penalty. Isso, como já vi escrito, pertence ao que vai marcar e não ao que vai tentar defender. Houve um corte súbito de electricidade. A internet desapareceu e talvez alguém tenha ficado preso num dos elevadores. Apuro os ouvidos. Silêncio. A vida é feita destas minudências e aos homens cabe-lhes apenas a metafísica do penalty. Por mim, perco-me neste diário de futilidades.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Questões aladas

Os estorninhos voltaram ou talvez nunca tivessem partido. Serão residentes, mas durante os últimos tempos não se ouviam. Agora, cantam e voam, desenhando estranhos símbolos no ar, letras de um alfabeto que só os anjos decifrarão. Os pombos, pousados nos telhados, observam com desconfiança as acrobacias destes primos mais pequenos. Enumero as coisas que tenho de fazer, olho para um artigo que preciso de ler com atenção. Terá a chave para um enigma com que me deparei numa incursão por um sítio que não devia frequentar. O arvoredo dorme em profunda quietação e também em mim há sono. Pudesse e dormiria agora. Fecho os olhos, deixo-me levar por uma súbita rêverie, mas logo tomo consciência de que não me posso entregar a tais devaneios. Os estorninhos fazem-me chegar a sua voz. Deveria gravá-la e dedicar a vida a decifrar-lhes as palavras. Depois, conformo-me com a minha impotência para o fazer. Não é Champollion quem quer, e também não tenho qualquer pedra roseta.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Correlações coincidentes

O domingo começou mal. Uma chamada de um amigo ainda cedo. Estranhei, pois nunca ligaria aquela hora matinal. Olha, diz-me, uma notícia desagradável. Bastante. Alguém conhecido de ambos morrera de morte súbita. Tinha 44 anos e uma bela carreira. Conhecemo-nos todos, um grupo de quatro, há uns dez anos em circunstâncias que não vêm para o caso. O mais novo do grupo, bem mais novo que os outros, foi agora levado pela parca, sem que nada o anunciasse. Tínhamos um jantar agendado para depois da pandemia, se ela acabasse. Haveríamos de falar de vinhos, de política, do mundo. Ele emudeceu. A minha filha faz hoje anos. Não a verei. Não haverá jantar de aniversário. Apenas telefonemas, trocas de mensagens. O melhor será rasgar todas as agendas. Anda tudo fora dos eixos. Janeiro está a acabar mal. As orquídeas, porém, parecem indiferentes. Decidiram florir mais cedo que o habitual. Até a mais frágil, a que se pensa que nunca chegará ao ano seguinte, já deu sinal de vida e lançou uma haste onde se notam os botões que se abrirão em flor. A vida dos homens, com os seus dramas e tragédias é completamente indiferente à natureza, que continuará a correr para o futuro, com a sua beleza e a sua fealdade, sem que um sentimento pulse na seiva do mundo vegetal ou toque o sangue dos animais. Os domésticos não contam, pois são prolongamentos humanos. A avenida parece vazia e o céu cobre-se de um manto de cinza escura, para combinar com os tempos. Não sei se é boa ideia um mês acabar a um domingo. Se ele acabasse num outro dia, tudo talvez fosse melhor. Eu sei, é uma falácia. Post hoc, ergo propter hoc. A falácia da correlação coincidente. Anda, porém, muita gente por aí a dizer que não há coincidências. O melhor é não acreditar no que pensa muita gente, mas que as há, lá isso há. Tal como as bruxas.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Sábado sem consertos

À lateral do meu monitor tenho colado um post-it com o conjunto de arranjos do sistema eléctrico a fazer. Há meses que ali está. O electricista que prometera vir adiou a vinda uma, duas, três, sei lá quantas vezes. Constou que a vida se lhe desarranjou e com isso os arranjos que deveria fazer. Recorri a outro. Que viria hoje. Ainda não veio. Talvez a vida também se lhe tenha desconsertado. Os cabos eléctricos talvez atraiam desordens, nunca se sabe. O céu está nublado e nem sempre as notícias que recebemos são aquelas que queremos ouvir. Isto é uma banalidade, mas a vida é um conjunto de trivialidades que, por vezes, são incomodadas pelo fogo-de-artifício. Nesses instantes, enquanto olhamos para o céu de boca aberta, pensamos que a existência é pura exaltação. Não é. Felizmente. Ninguém suportaria viver nesse estado uma vida inteira. Na rua, um grupo de pessoas, adultos e crianças, cumprimenta-se, troca beijos. Há quem espreite para um carrinho de bebé. Há quem tenha máscara. Há quem não tenha. Sobre a capota do carrinho uma fralda, a fazer de pala, treme batida pelo vento. Os cães farejam-se, mas não esganiçam a voz. Sábado da parte da tarde, ainda não veio o electricista, tenho de continuar com o post-it a fazer de pendão, para que não me esqueça do que há a consertar. O grupo desfez-se, o vento açoita árvores e arbustos, enquanto luz se some como se hoje estivéssemos num sábado de Inverno. Talvez estejamos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Trocas e correspondências

Talvez hoje seja sexta-feira. Já não tenho a certeza, agora que os dias se tornaram a indiferenciar. Em vez de tornaram tinha escrito tronaram. Uma troca risível faz toda a diferença. Os dias não são reis para ocuparem um trono ou, tão pouco, soam como trovões. Esta incerteza perante o calendário deixa-me perplexo. Os motivos bem os sei, mas não os digo. Os campos de jogos da escola ao lado estão vazios, como se as pessoas tivessem abandonado a cidade e vivêssemos num tempo distópico. Árvores e arbustos, porém, estão vigorosos, mesmo aqueles que se despiram para hibernar, e deles se desprende uma exuberância que não chega ao mais alto dos céus, porque uma densa cortina de nuvens cinzentas a tudo cobre. Tenho de pôr o telemóvel a carregar e de ler os emails que me enviaram. Correspondemo-nos por tudo e por nada e com isso a correspondência perdeu valor. Outrora, trocar cartas era um exercício sério, exigia ponderação, letra adequada aos olhos do leitor, espírito crítico. Se era uma daquelas cartas decisivas, havia o ritual de a escrever múltiplas vezes, deixando pelo chão um rasto de folhas rasgadas. Isto, caso fosse um filme. Na vida real, não faço ideia, pois nunca escrevi cartas decisivas. Imagino-me a escrevê-las, mas não sei o que se possa escrever de decisivo. Lembro-me de na adolescência haver um enorme catálogo disponível de envelopes para envolver os suspiros desses adolescentes ou mesmo de outros menos adolescentes. Nunca usei, talvez não fosse dado à epistolografia ou aos suspiros. Não faço ideia.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Nada de literalidades

Depois de quase uma semana sem sair de casa, há pouco pus-me na rua e caminhei durante meia-hora. Não foi muito. Se continuar a não andar, acabarei por me esquecer de como se anda, pensei.  A avenida não estava despovoada como acontecia no primeiro confinamento, mas também não estava fervilhante como nos dias normais. Era uma espécie de limbo habitado por almas inocentes, mas que não foram mergulhadas a tempo na água lustral. Devia evitar analogias, não vá alguém levar as minhas palavras a sério. Ainda há pouco, numa daquelas videoconferências que se tornaram a realidade que existe, tive de esclarecer que as minhas palavras eram uma ironia. Eu estava a significar o contrário do que estava a dizer. Talvez as pessoas sejam habitadas por uma ânsia de literalidade. Pão, pão; queijo, queijo. Faz-se disto a expressão do bom carácter, de quem diz o que tem a dizer, com todas as letras, não lhes vá faltar alguma. Nada de eufemismos, ironias. Abula-se a retórica. O pior é que a própria realidade é retórica, como me disse hoje de manhã ao telefone o padre Lodo. Há muito que não conversávamos. Estou cansado da pandemia, disse-me. Estou cansado destes exercícios de estilo com que a realidade nos envolve, continuou. Depois, lembrando-se da sua condição de sacerdote, acrescentou há que ter paciência e decifrar com humildade os sinais com que Deus decide marcar o nosso caminho. Tentei perguntar-lhe se ele achava então que o vírus era castigo divino, mas ele não me deixou formular a questão e disse já sei, já sei, mas não vou entrar em discussões teológicas a esta hora da manhã. Nada de interpretações literais. A letra mata, o espírito vivifica, disse e riu-se com a sua gargalhada exuberante de italiano. A tarde avança decidida para o seu encontro com a noite e eu tenho de voltar para os meus afazeres, literalmente.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Efeitos colaterais

Quando me sentei para tomar o pequeno-almoço, dirigi, como o faço sempre, o olhar para a rua. Os olhos procuram de imediato duas colunas de fumo que, numa aldeia ao longe, se erguem aos céus ou, caso esteja vento, correm paralelas à terra. Imagino que são dois fornos onde se há-de cozer pão e ali haverá gente preocupada com a temperatura, se o pão não sai queimado, se já estará na hora para o retirar do forno e o pôr à venda. Imagino, mas não sei o que são, não sei de onde vem aquele fumo. Imagino, e isso é tudo. Hoje, porém, senti uma imediata irritação. Eu queria procurar as colunas de fumo, mas os olhos pareciam cravados num enorme letreiro em forma hambúrguer. Desviava-os e eles logo voltavam para lá. Fiquei a calcular quantos anos o bosque da escola ao lado levaria a cobrir aquela visão. Os cedros estão a crescer a um ritmo promissor, já os pinheiros parecem mais lentos. Ontem a minha neta mais nova fez dez anos. Não a vi, a não ser via WhatsApp. É a primeira vez que não estou presencialmente nos seus anos. Não tarda e será o dia de aniversário da minha filha e também ela estará longe, como se todos aqueles que me são próximos se tivessem exilado num país inacessível e estivessem proibidos de entrar na pátria. Terá de ser assim, eu sei, mas custa-me saber do meu neto, agora a meia dúzia de quilómetros de distância, e não poder brincar com ele, que já começou a falar, cheio daquela graça que só existe quando se tem dois anos. Não sei o que me deu para tamanha patetice. Não há contabilista que adoce as contas da pandemia.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Da cobiça e da entrega

Confinado, fui à varanda do escritório desconfinar. Na praceta, em baixo, um cão, um Basset, levava à trela a dona, vestida de preto, com ténis brancos. Iam devagar, ele farejava a relva e ela, arrastada, olhava o horizonte. Não faço ideia se era um Basset, mas passa a ser. O dia está cinzento, o ambiente anda tenso, as pessoas levam-se a si e às suas convicções demasiado a sério. A realidade, todavia, não deixa de conter muitas ironias. Aliás, ela é um manto onde a tragédia e a comédia se entrelaçam sem parar. Olho para mim e não posso deixar de me rir. Talvez porque seja velho e tenha perdido a vergonha. Se observo as minhas crenças com um pouco mais de cuidado, então tenho motivo para belas gargalhadas. Não porque as crenças dos outros sejam mais dignas do que as minhas, não o são, mas porque todas elas são humanas, demasiado humanas, marcadas pelo ferrão da finitude. Eu sei que todos queremos possuir a verdade, mas esta é uma mulher virtuosa, como só as havia noutros tempo – o que me irá acontecer por ter escrito isto? - e deixa-se cobiçar por todos, mas não se entrega a ninguém. Se cada um se risse de si e daquilo em que acredita, talvez o mundo fosse um sítio mais aprazível. Ainda há pouco estive a falar com uns estorninhos que andam por aqui. Para dizer a verdade, não percebi nada do que eles disseram, mas entendemo-nos perfeitamente. Gosto mais de falar com eles do que com os pombos. O Basset há muito que foi engolido pela esquina do prédio e eu vou fazer aquilo que me espera. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Uma bola de obsidiana negra

O dia passou sem eu dar por ele. Constou-me que esteve chuvoso, mas isso foi um vago rumor, cujo fundamento nem procurei averiguar. Tudo o que fiz foi insignificante. Quero dizer, foi de nula importância e de ainda menor significado. Acabei de ler um romance, onde personagens obsessivas caminham na vida sonâmbulas. Quando fechei o livro, pensei que muita gente vive mergulhada em obsessões. Procuro as minhas, mas sou cego e talvez sonâmbulo. No friso das orquídeas, começam a abrir-se os botões. Quanto tempo demorará a beleza, pergunto-me. Sem perceber a razão, na mente formou-se a palavra obsidiana e logo uma certa decepção se abriu no espírito. Quem me dera ter-me entregado a longas taxionomias de rochas, árvores e pássaros. Saber-lhes os nomes, as cores. Agora é tarde. Estão-me vedadas a mineralogia, a botânica e a ornitologia. Em tudo isso há mais sabedoria do que nas vãs teorias com que entretenho a passagem por este mundo. Vejo uma belíssima esfera de obsidiana negra, talvez do tamanho de uma bola de andebol. Nela se pode espelhar o mundo. Está à venda por dez euros. Ou a oferta é muita ou a procura é pouca, pensei. Depois, ri-me com esta consideração económica e cheguei ao fim do que tinha para dizer. Nada, claro. 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Domingo de eleição

Fui à varanda do escritório. De lá poderia ver a mesa onde votei, não fosse o caso de os pavilhões gimnodesportivos terem paredes. A rua, uma perpendicular à Sá Carneiro, por norma sem movimento, está concorrida. Não há aglomerações, pois as pessoas, espontaneamente, decidiram distribuir, ao longo do dia, o momento de votar. Estes rituais cívicos são interessantes e corroboram a ideia de que a vida necessita de uma certa ritualização. Isso parece engrandecê-la e dar-lhe sentido. Olho para a janela e vejo um casal que vem de votar. Ela leva um filho pela mão, ele empurra um carrinho de bebé. O dia está tristonho, mas tem evitado a queda de água. As pessoas caminham cautelosas e, apesar do que se passa, deixam transparecer o orgulho de terem ido às urnas. Oiço o arrulhar dos pombos, o ladrar de um cão. Da minha janela avisto, não sem surpresa, o letreiro, por certo luminoso, de uma multinacional dos hambúrgueres, a qual acabou de se instalar mesmo em frente de uma outra multinacional do mesmo ramo. A isto chamam concorrência. Aumentou a liberdade de as pessoas se empanturrarem de hambúrgueres. Podem ir comer um num estabelecimento, saem a correr e vão comer outro, no da frente. A sua felicidade há-de, assim que a pandemia o permitir, expandir-se e de tão felizes os corpos hão-de também entrar em expansão. Um dia, um franciscano que foi meu professor, contou que estivera um ano nos Estados Unidos e que lá as Igrejas tinham sempre diferentes tipos de vinho para a consagração. Era uma forma de assegurar a liberdade de escolha, acrescentou não sem ironia. O pior, pensei, é se o padre é muito indeciso e tem de as experimentar todas e várias vezes. O que seria ainda uma escolha livre.

sábado, 23 de janeiro de 2021

A cor da podridão

Quando, depois de almoço, assomei à varanda do escritório, pensei que Deus era, além do Grande Arquitecto, o Grande Lavrador. Tinha ligado a rega por aspersão e, das nuvens cinza pálida que O velavam ao nosso olhar, enviava uma chuva finíssima regar, não sem extremo cuidado, o mundo, preocupado com as suas culturas, muito dadas ao míldio e à botrytis cirenea. Que elas, tão propensas à murchidão e à morte prematura, não murchassem e as coisas não se tornassem mais dramáticas do que são. Foi este, juro-o, o pensamento que perpassou na divina mente.  Se me perguntarem, espero que não o façam, o que é a botrytis cirenea, eu responderei que é a podridão cinzenta. Todos sabemos que cada coisa apodrece na sua própria cor. Umas apodrecem em vermelho, outras em amarelo. Há as que apodrecem em negro e outras, as mais ousadas, fazem-no em branco. Apesar de ser sábado, passei a manhã em meditação conjunta, embora à distância, sobre a vexata quaestio da moralidade, ou ausência dela, do aborto. Não me perguntem a que conclusões cheguei, pois recuso-me a partilhar o que aflorou à minha mente, que não é divina. Ainda hei-de meditar sobre a eutanásia e, pasme-se, sobre a moralidade da pornografia. Aquilo para que uma pessoa está guardada. No entanto, posso informar, estas meditações não conduzem os meditantes ao nirvana, nem a experiências místicas e ajudam, a quem a elas se entrega, a ficar com mais dúvidas do que aquelas que tinha, se é que as tinha. Uma coisa, talvez a única, vale a pena meditar. Se as alfaces podem apodrecer com botrytis cirenea, qual a cor em que pode apodrecer quem se entrega a pornografia?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Uma nova página na odisseia

Tendo almoçado, fui à varanda do escritório desconfinar e fumar um cigarro. Não se pense que sou um fumador. Não sou. Por vezes, fumo um cigarro – na verdade fumo entre 1/4 e 1/3 de cigarro – e passo dias, semanas, meses sem tocar no tabaco. Enquanto o fumo subia aos céus em volutas, nestas ocasiões o fumo sobe sempre em volutas, ia vendo como o país confinado andava pela rua. Avistei dois anjos e meti conversa com eles. Responderam-me que não fosse idiota, que não eram anjos, mas pombos. Que não tornasse a dirigir-lhes palavra, pois não voltariam a responder-me. Encolhi os ombros resignado. Animou-me a visão do que se passava do outro lado da avenida.  Uma gata no telhado daquilo que já foi um banco e agora é uma dependência vazia. Uma gata? Como é que sabes? Um dia contaram-me, e eu acreditei, que os gatos não têm mais de duas cores. Ora, aquele bicho tinha pelagem branca, preta e amarela. Portanto, tricolor. Logo, uma gata. Caminhou com cuidado e deitou-se a apanhar uma réstia de sol. Na calçada, havia quem passeasse cães invisíveis, enquanto na estrada os carros passavam, vagarosos, uns a seguir aos outros. Voltei para dentro e sentei-me a escrever mais este capítulo que há-de fazer de mim um Ulisses dos tempos modernos, um herói que vai à varanda e logo volta para dentro para perguntar qualquer coisa à Penélope, que lhe há-de dizer que fumar cigarros, no plural, não faz parte da qualquer odisseia digna desse nome. A mania dos pormenores. Uma das minhas netas está em isolamento profiláctico, pois um colega testou positivo à COVID-19. As sextas-feiras são sempre dias exaltantes.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Sobre os milagres

Cheguei à noite de hoje cansado e parece-me que já não sei que hoje é quinta-feira. O dia esteve feio, chuvoso, desabrido, como aquelas pessoas que vivem descontentes com tudo e com todos. Constou-me que os portugueses se têm de recolher, uns mais que outros, mas a vida é sempre assim. Tem nela um princípio de desigualdade que se entretém a diferenciar a realidade. A uns faz formigas, a outros dá-lhes o ceptro do leão. Talvez a vida, por andar desocupada e cultivar o ócio, se divirta com estas distribuições de poderes e disposições. Confesso que não faço ideia do que estou a falar. Há pessoas que não acreditam em milagres, mas fazem mal. Eu fui miraculado ainda hoje. Nem sei como consegui fazer, num tão curto espaço de tempo, uma daquelas tarefas que por vezes se têm de fazer e que demoram, demoram, demoram. Quando a acabei, pensei que tinha sido um milagre. Como eu não sou santo milagreiro nem dos outros, tenho de concluir que não fui que fiz aquilo que fiz. É muito triste uma pessoa pôr-se a escrever e não ter nada para dizer. Está na hora de jantar.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sem GPS

Um dia feio este vigésimo do primeiro mês do ano da graça de 2021. Neste momento, a chuva entrega-se à torrencialidade, como se fosse alguém dado a uma loquacidade imparável. Estas comparações são exercícios de quem lhe falta talento para uma boa metáfora. Ainda por cima nem são assim tão verdade. A chuva já abrandou, mas a feiura do dia mantém-se. Consta que a beleza é uma coisa passageira, o mesmo já não acontece com a feiura. É, como os diamantes, eterna. Esta comparação, recebo a notificação do homúnculo interior, é uma coisa dispensável. Que trivialidade. Bem sei, respondo-lhe, mas cultivo a trivialidade e faço do banal a casa onde habito. Os dias não têm estado simpáticos e as pessoas estão a perder-se um pouco na compreensão do que se está a passar. Também eu ando perdido, mas isso não é de agora. É a minha própria natureza. Perco-me com facilidade. Consigo inclusive perder-me no sítio onde vivo há tanto tempo. Chego a pensar que o melhor, mesmo para as viagens mais habituais, seria andar sempre com o gps ligado, embora isso seria presumir que me saberia orientar por ele. Quando chove de forma abrupta, recordo-me do pobre do Noé a andar por aí à deriva, encafuado numa arca com aquela bicharada toda. Então, temo que venha outro dilúvio, outra arca e outro Noé, mas nessa altura não estarei cá para fazer o relato fidedigno. Há coisas que me esperam.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Nos recantos da existência

Os dias devoram-se uns aos outros, presos a um canibalismo ancestral e azedo. Dois terços de Janeiro já quase cumpridos e o pequeno mundo onde levo a minha pequena vida não deixou de ser um pequeno mundo onde levo uma pequena vida. Pareceu-me, ao observar de longe, que há mais recolhimento, mas talvez seja tudo por culpa do Sol e da depressão Gaetan, que estará a bater à porta, com as facécias habituais de todas as depressões. Ainda há quem vá por aí, corajoso, a dar o peito às balas, para depois contar, não sem vanglória, que sim, que vírus como este até os come ao pequeno-almoço, que é aquela expressão litúrgica que usam todos os corajosos do país que possui o QI médio mais baixo da Europa Ocidental. Basta ir comprar caramelos a Badajoz e logo se convive com uma população com um QI superior três ou quatro pontos. É o azar da geografia. Não devia escrever estas coisas, pois podem julgar que não contribuo para o nível da coisa. Claro que contribuo. Não me coube o dom da inteligência e lá tenho de arrastar a minha estupidez natural pelos recantos da existência. Na rua, há uma estranha luminosidade, esbranquiçada, como se nós estivéssemos no Inverno e o país sob o ataque de uma pandemia. Tudo falsificações da realidade, o Inverno é uma convenção demasiado humano, e a pandemia, um exercício distraído da natureza. Isto da pandemia ouvi-o há pouco e registei-o no livro imaginário onde guardo grandes frases para citar, caso se apresente a oportunidade. Quem não produz grandes frases, ao menos que cite as dos outros. Não tarda terei de ir alimentar espíritos, embora os espíritos não se alimentem, pois não têm corpo. Há que ocupar o tempo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

As coisas são como são, ou não

A calamidade entranhou-se nos tecidos adiposos do país. Habituámo-nos a ela como nos habituamos a tudo. Está diante dos olhos, mas não a conseguimos ver. O hábito torna as coisas invisíveis. Foi o que me ocorreu ao olhar para os sites noticiosos. Também eu me tornei invisível para mim mesmo, de tão habituado que estou a ter de viver comigo. Talvez fosse isso que levou H. G. Wells a criar a personagem do homem invisível, apesar da motivação aparente ser de natureza científica. Nunca se sabe o que os artistas pensam e aquilo que lhes vai na cabeça quando criam as suas obras, inventam personagens e enredos. Na Sá Carneiro, os carros passam, passam, passam, enquanto avós mascaradas levam pela mão netos sem máscara, caminhando vagarosamente, tomadas pelo frio do entardecer, conformadas com o novo tempo. O crepúsculo galopa pela planície do dia, mas hoje não haverá fogo-de-artifício, nem horizontes de resplendor avermelhado, nem nada na paisagem fará lembrar o grande astro a mergulhar nas águas frias do oceano. Se ao menos houvesse por aqui uma tabacaria, e o Esteves estivesse à porta, então a vida pareceria normal. Assim, transeuntes visíveis passeiam cães invisíveis e as coisas são como são, ou são como parecem, ou não são uma nem outra coisa. As segundas-feiras nunca são fáceis, tornei a confirmar.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Um Sol pouco cooperante

O Sol decidiu não cooperar com o confinamento. Agora que era preciso que se resguardasse e desse à palidez, decidiu tornar-se um belo sol de Inverno, quente, mas não excessivo, afável, sorridente, disponível para acolher sob o seu manto todos aqueles que não têm disposição para estar em casa. Os ditames da natureza e as necessidades dos humanos raramente se acordam sem atrito. Os cafés estão fechados, as pessoas parecem cautelosas, mas o Sol sorri provocante. O domingo corre manso, certo que chegará ao fim. É como um daqueles velhos rios que nunca se apressam para chegar à foz. Comecei a ler um romance de um autor que nunca lera, Hermann Ungar. A obra tem por título Os Mutilados. Foi publicada em 1923 e tem um universo não menos fechado do que os desenhados por Franz Kafka. Aliás, ambos partilham a condição de serem judeus checoslovacos e de escreverem em alemão. Enquanto ia lendo o livro, terei chegado a ¼, pensava que a mutilação será a condição da humanidade moderna. Todos os seres humanos terão sido amputados, não de uma perna ou de um braço, mas de qualquer coisa mais essencial, embora não saiba bem do quê. Não quero dizer que antes era melhor. Não era, tinha os seus próprios males. Oiço lá em baixo uma bola a bater, um pai e um filho dão chutos, entre exclamações e incentivos. Não aparentam qualquer mutilação, mas por certo ela estará dentro de cada um, tornando-os homens modernos. Das arcaicas colunas da aparelhagem, vem o som de um álbum de Bugge Wesseltoft, Everybody Loves Angels. Levanto-me e vou à janela. Eles lá estão nos telhados, os anjos. Disfarçados de pombos, olham com atenção para a cidade. Preocupa-os a inconsciência dos homens. Por vezes, juntam-se, conferenciam e partem em missão. A certa altura, bem o vi, tiram o disfarce e voam como só os anjos sabem voar.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Efeitos do estupor

O facto de ser sábado tem-me trazido, nos últimos tempos, uma novidade, cada vez menos nova, saliente-se. Acordo com estupor e nem os rituais que se seguem fazem com que deixe de estar estuporado durante longo tempo. Sento-me, paralisado, e fico a olhar para nenhures. Isto trouxe-me à lembrança os velhos da aldeia onde nasci que se sentavam ao sol no largo da Igreja e ficavam ali, presos no estupor, a cismar, como quem acerta contas com a vida. Esses velhos já não cismarão há muito, pois quando o faziam eu era criança e agora sou quase tão velho quanto eles o eram. Terá chegado a minha vez de cismar. Apesar desses velhos serem exímios cismadores, não há como os gatos para o fazer. Ficam de olhos semicerrados, imóveis, talvez com pena de não serem esfinges egípcias, enquanto o tempo passa e eles meditam. Alguns, posso assegurar, atingem então o nirvana reservado aos felinos e transformam-se em budas. Nada disso, porém, acontecia com os velhos da minha aldeia. Nunca se tornaram budas. O que será também o meu destino, pois nasci na sua aldeia e talvez sejamos das mesmas famílias, nem que seja lá muito atrás. Ainda não espreitei a Sá Carneiro para descortinar a intensidade com que os meus conterrâneos estão a confinar. Julgo que terei de ir fazer compras, mas o que me apetece mesmo é ficar o dia a olhar para lado nenhum, como se fosse uma esfinge ou um gato, a cismar sobre o mundo e a vida, ou sobre coisa nenhuma que ainda é o melhor que há para cismar. Tudo isto por causa do estupor.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Boinas bascas e soluções hidroalcoólicas

De manhã, lembrei-me de várias coisas sobre as quais viria aqui escrever. O problema reside na quantidade, pois com o passar das horas esqueci-me de quase todas elas. Sobram-me duas. Talvez toda a gente tenha tido a experiência da estranheza que sinto quando, de repente, se vê uma pessoa, que sempre se viu com máscara, sem ela. Há um desconforto, pois aquele rosto não condiz com a expectativa que se tem dele. O que me surpreendeu há dias foi, porém, outra coisa. Pessoas que se conhecem muito antes da pandemia e que se passaram a ver sempre de máscara, se a tiram acontece a mesma sensação. Aquele rosto, tão bem conhecido, tornou-se incongruente, alguma coisa não bate certo. Uma outra coisa de não menor importância está ligada à solução hidroalcoólica que comprei. Cada vez que a uso, desprende-se dela um odor a aguardente de figo, coisa que em tempos foi um dos bens mais banais que havia por estes sítios, onde não faltavam destilarias, umas mais legais, outras nem por isso e havia histórias de candonga, apreensão de alambiques, como se se estivesse nos Estados Unidos, no tempo da lei seca. São estas coisas que me ocupam o espírito. Na escola aqui ao lado, vejo passar, solitária, uma professora. Vai carregada de máscara e de pasta e leva-se resignada até ao portão por onde se há-de escapulir para entrar num carro. Na avenida, um homem de idade arrasta-se, o passo descompassado, as pernas bambas, o corpo pesado, os anos em cima dos ombros e uma boina basca na cabeça. Talvez a vida seja isto, máscaras que se ajustam ao rosto e o ocupam, álcool a cheirar a aguardente, professoras resignadas levadas pela pasta que carregam e homens de boina basca a passear ao sol. Quando cheguei a casa pensei que iria almoçar ao bar da esquina, comer alguma coisa que me fizesse mal e me soubesse bem, mas o bar está confinado. Um dia destes compro uma boina basca e vou para Bilbau.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Descontinuações

O dia esteve agradável, mas agora o frio começa a afiar a sua lâmina de aço inoxidável, pronto para traçar pequenos golpes nos corpos incautos. O magnífico sol de Inverno declina, enquanto o país resvala para um confinamento em que não se confina por aí além, como acontece na generalidade das coisas que se fazem por cá. Fazem-se, mas nada de ser fanático e levar a vida a sério. Há tempo para tudo. Não sei o que me terá dado para falar do país. No parque infantil da praceta, fechado desde Março, há uma casota de onde sai um escorrega. Dois adolescentes decidiram abrigar-se ali das intempéries, apesar do céu estar limpo. As acácias exibem os ramos despidos, enquanto a relva da escola ao lado toma, com o entardecer, uma coloração verde cinza. O Word, onde escrevo, avisa-me que tem actualizações disponíveis, mas que necessito de fechar algumas aplicações. Mais tarde hei-de aplicar-me e fecho as aplicações. Também eu preciso de actualizar o meu software, mas o representante informou-me que o hardware é obsoleto e que as actualizações para ele foram descontinuadas. A palavra descontinuado começa a irritar-me e, não tarda, gerará em mim o mesmo sentimento de repugnância que a palavra resiliência. Janeiro está a chegar a meio e ainda não percebi o que foi feito aos votos de bom Ano Novo. Foram sequestrados? O mundo não é um lugar fácil.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Um país confinado à nascença

Quando a luz começou a cair sobre a cidade, os carros estavam revestidos por uma carapaça de gelo, talvez um escudo contra um inimigo sem nome e sem rosto. Foi o que pensei ao olhar para a Sá Carneiro, ainda sem transeuntes, mas com carros a circular devagar, a tiritar de frio, enregelados no motor. Depois de me libertar do aparelho que me espiou o coração durante 24 horas, fui à frutaria, aqui mesmo ao lado, fazer um recado. Na verdade. Hesito se hei-de dizer na verdade ou em verdade, em verdade vos digo. Um dia destes tomarei uma decisão sobre o assunto. Na verdade, dizia, não passo de um moço de recados.  Para além do recado, achei por bem comprar umas clementinas. Talvez sejam marroquinas ou, mesmo, tangerinas. Não sou muito atento às classificações e depois não sei aquilo que como, pois não é a mesma coisa, presumo, comer uma tangerina, uma clementina ou uma marroquina. O melhor seria comer apenas laranjas, ao menos não havia dúvidas e evitaria que se fizessem interpretações capciosas do que escrevi. Enquanto esperava que me chamassem para me tirarem o aparelho e arrancarem os eléctrodos, vi na televisão que o país vai confinar mais uma vez. Esta conversa cansa. O país, desde que nasceu, está confinado entre o mar e Castela. O confinamento não é um acidente pandémico, mas a nossa natureza. Nascemos confinados e dessa condição não nos livramos, mesmo que comamos marroquinas e tangerinas, esses frutos que nasceram além-mar, não deixamos de ser o que somos. Não juro que o Holter, aquele aparelho que monitoriza um ECG dinâmico, não produza radiações que afectem senão o cérebro, pelo menos a mente.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Coisas do coração

Há um quarto de século que me andam a espiar o coração. Olham para ele através de um monitor, fazem umas medidas, ligam-me a umas máquinas e observam o traçado de umas linhas esotéricas. Abanam a cabeça, dizem pois, muito bem. Fazem relatórios e, por fim, exclamam está tudo bem. Não encontrámos nada. Está provado, penso, que não é no coração que estão o amor, o ódio, a indiferença. Durante 25 anos e nunca encontraram nada, nem um pequenino sentimento, é porque não há, naquele lugar inóspito, nada para encontrar. Isso reconfortou-me, pois já basta a google saber sempre por onde eu ando, seria escusado que uma máquina soubesse os meus estados de ânimo afectivos, caso os tenha. Há alturas em que me ligam a um pequeno dispositivo e ando com aquilo durante 24 horas. Consta que é para fazer registos. Também hoje, depois de me terem olhado para dentro do coração e de me terem ligado a uma máquina de fazer tracejados, me colocaram um aparelho desses. Tenho sempre a sensação de que me tornei um bombista suicida com aquela coisa pendurada no peito. Depois, a menina entregou-me uma folha de registos. Regista aqui, nesta folhinha, disse ela usando o diminutivo, e começou a enumerar. Regista isto e aquilo, refeições, tomada de medicamento, esforços físicos. Também os sinais que o coração, entretanto, se dignar dar. Pode fazer tudo, diz ela séria e sem segundas intenções, menos tomar banho, que é a coisa que faço mal me levanto. Agora ando com a folhinha atrás de mim, e isto é a gesta que me cabe. Enquanto Ulisses foi tomar Tróia, eu ando com uma maquineta pendurada ao pescoço para me espreitarem as linhas do coração durante um dia. Reparo que a folhinha também exige que registe emoções. Terão desconfiado de alguma coisa? Querem ver que é mesmo no coração que moram os sentimentos.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Mudanças e permanências

O primeiro terço de Janeiro está arrumado. Passaram-se coisas extraordinárias no mundo, mas este continua aquilo que era. Um sítio onde se passam permanentemente coisas extraordinárias. Talvez o mundo tenha sido criado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, numa sexta-feira de ócio, terá decidido trazê-lo à existência, para se distrair do spleen. Em tempos, uma frase retirada do seu célebre romance O Leopardo fascinou-me. Nessa altura não era difícil encontrar coisas fascinantes. Começo com a frase em italiano para dar ar de culto, mas a verdade é que a encontrei na internet, pois de italiano sei ainda menos do que de todo o resto. Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi. A tradução não é difícil. Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude. Talvez nesses dias me interessasse por coisas que não devia. Com o passar dos anos – isto hoje está a tomar um tom miseravelmente confessional – cheguei a outra proposição: Se queremos que tudo mude, é necessário que tudo permaneça como está. Caso me interessasse por política, daria muito mais atenção à minha proposição do que à do Lampedusa. No entanto, o autor proibiu-me de tocar assuntos desses nestes textos. Como narrador obediente, obedeço. O dia esteve esplêndido. Frio e com um sol que se desfazia em cintilantes raios luminosos. Quando atravessei a cidade, os meus olhos não viam mais nada senão o revérbero solar. Mesmo nesta hora em que o crepúsculo se aproxima, a luz ainda está viva, avermelhando-se para poente. A noite será fria anunciam os sites meteorológicos. No friso das orquídeas, a branca está a preparar-se para florir.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Dar feedback

Naquele sítio onde oficio liturgias várias para uma população de ateus, corre em abundância, por mímesis da linguagem da conferência episcopal ou do comité central, que cada um escolha o que mais lhe aprouver, um som e uns rabiscos que me querem fazer crer que são uma palavra. Trata-se de um estrangeirismo já devidamente dicionarizado, com amplas explicações. A palavra, se aquilo é uma palavra, é feedback. Sempre que a oiço apetece-me ser castelhano, coisa ainda pior do que ser espanhol. Agora é todo um ritual executado a partir de um evangelho, ou de uma resolução do comité central, para continuar a haver liberdade de escolha, cheia de feedbacks. Tenho de confessar que têm alguma razão, pois tudo aquilo não passa de um ruído sibilante produzido não por aparelhos de transmissão sonora, mas por mentes que perderam o sinal da realidade e se afundam no vazio cósmico. Dito de outra maneira, trabucada de náufragos. Não devia pensar nestas coisas ao domingo, ainda por cima este que já está submetido ao confinamento. Também a minha mente está confinada. Já não tenho idade para este tipo de pantominices, embora a pantomina se tenha tornado há muito a natureza da coisa, o que faz de mim um pantomineiro. Isto para dar feedback.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Dia da criação

Há aquele poema de Vinicius de Moraes que tem por título Dia da Criação e rodopia todo ele em torno de sábado. Foi dele que me lembrei ao visitar a balança, porque hoje é sábado. Ela agradeceu e foi simpática dando-me menos seiscentos gramas do que na visita anterior. Porque hoje é sábado. Isso animou-me e, depois de cumprir todos os rituais que cabem a quem se levanta, fui à rua. Estava um frio cortante, mas o sol caía sobre o corpo, e ambos se entregavam a um jogo agradável. Cheguei à farmácia, tive de esperar apenas uns minutos na rua, para me abastecer daqueles correctivos que contribuem para que um conjunto de valores se mantenha dentro dos parâmetros normais. Claro que, se fizesse um controlo antidoping, era logo suspenso e proibido de competir. Retiravam-me, casos as tivesse, todas as vitórias. Depois, gozando o frio e o sol, dirigi-me para uma grande superfície, para levantar uns livros numa lavandaria. Também aí, à entrada da superfície, tive de esperar numa fila ao frio e ao sol, mas tudo deslizou rapidamente. Os livros, infelizmente, não visam o prazer de ler, mas são suporte para a tortura do trabalho. Eu fui educado na tradição católica e esta, como se sabe ou deveria saber, começa logo por informar que o trabalho é o resultado de um castigo imposto a Adão e Eva e respectivos descendentes. Depois, a palavra trabalho deriva do termo latino tripalĭu, um instrumento de tortura. Que haja gente viciada em trabalho é coisa que não me admira. Fazem-me lembrar os flagelantes que na Idade Média se entregavam à autoflagelação pública. Na verdade, como a Igreja terá suspeitado, aquilo deveria dar-lhes prazer e logo foi proibido e considerado pecaminoso. Livros para castigo e tortura foi o que fui levantar, eu que não sou dado a heresias e a flagelações. Porque hoje é sábado.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Fazer resumos

Ulisses e Telémaco, foram estes nomes que ouvi. À minha neta, com os seus doze anos, foi-lhe dada a missão de resumir cada um dos capítulos da Odisseia, na versão para jovens de Frederico Lourenço. Discutia, em videoconferência, o assunto com a avó. Espreitei no computador, ela disse-me olá avô. Está quase, acrescentou, e ergueu os dedos em sinal de vitória. Temo que o feito não seja tanto o de passar a amar a literatura clássica, mas de ter despachado a provação e ver-se livre, para sempre, de tal odisseia. É um admirável mundo novo. Até eu me sinto como fazendo parte de um filme de ficção científica. Depois, fui à varanda do escritório. Estava um frio cintilante, matizado de prata e oiro, mas em poucos instantes tudo ficou mais baço, a luz esmoreceu, o frio arrefeceu e julguei que iria tiritar. Chegavam até mim os ruídos da saída das escolas. Junto a um carro, três homens trocavam impressões sobre limpa-pára-brisas. No passeio, uma mulher de chapéu e máscara apressava-se como se fugisse de um monstro. Se tiver um cão, oiço dizer à pobre resumidora de capítulos, hei-de pôr-lhe o nome de Argos. Não se perderá tudo, pensei. Ao longe, os vidros do hospital reverberam, enquanto cedros e pinheiros dançam uma valsa ao som da música do vento. Poderia ter evitado esta última frase. Acho que vou fazer um resumo, seja lá do que for.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Depois das cinco

Passam das cinco da tarde. O sol ainda brilha com algum vigor. Notei, nos últimos tempos, que houve uma transformação nos dias da semana. Anteriormente, só os do fim-de-semana tinham encolhido, enquanto os da semana se dilatavam de tal maneira que era um cansaço atravessá-los. Agora, entraram em dieta e também eles minguam. Passam tão rapidamente, que temo o dia em que os próprios dias desapareçam. É da natureza humana nunca estar contente com nada. Se os dias da semana se dilatam, protesta-se. Se se amesquinham, protesta-se. Na avenida, um casal cansado atravessa lentamente o seu acasalamento. Já não protestam. Escondem a cara na respectiva máscara e marcham lado a lado como se estivessem apostados em seguir duas rectas paralelas. Nem dão pelo bando de adolescentes que por eles passam, com a efervescência do corpo e saltar-lhes da boca. Um cão, livre da trela do dono, pára e fica a olhar as cavalhadas, depois corre para o relvado, onde encontra a árvore certa para erguer a perna. Pais apressados vão buscar os filhos à escola primária, metem-nos rapidamente no carro e desaparecem. As tílias tiritam de frio, enquanto os dois jacarandás que avisto continuam envoltos num sobretudo verde outonal. Talvez este ano chova pouco, pensei. Há-de fazer falta a água. Não são poucas as coisas a precisarem de lavagem.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Há que ligar o scanner

Está consumado o Natal. Hoje é dia de Reis. Vejo-os ao longe, a descerem dos camelos que os trouxeram do Oriente, ajoelham perante o Menino e depositam com cuidado as suas oferendas. Amanhã, o presépio será desmanchado e, com os outros adereços natalícios, confinado numa arrecadação até que se inicie o próximo Advento. O dia nasceu festivo, mas tem-se toldado e agora um véu cinzento esconde o sol. Tenho mil tarefas pela frente. Olho-as com bonomia, pois um olhar menos agradável não as faria desaparecer e haveria de me tornar mais azedo. A isto chama-se aceitar o princípio de realidade, embora esteja convencido de que a própria realidade tem muitas dúvidas em aceitar-se. Não sei por onde começar, talvez por scannerizar um papel que, transubstanciado em pdf, hei-de enviar para um sítio que diz estar à espera dele, para se certificarem de que eu existo e que sou quem sou. Sorrio e digo-me que deve haver alguma fantasia literária em todo este mundo burocrático. Se nem eu tenho a certeza de ser quem sou e, ainda menos, se existo, como pode alguém ficar certo apenas porque lhe chega um arquivo digital que diz que sim, que fulano de tal existe e é quem é. Arquivos digitais qualquer um pode enviar, talvez até se possam enviar a eles mesmos, os arquivos. Tudo isto parece-me uma novela, e como sou o protagonista principal, uma novela de má qualidade. Os Reis Magos podiam ter chegado um pouco mais tarde. Afinal, o Menino ainda não tem idade para apreciar os presentes e as festas prolongavam-se mais um pouco. Há que ligar o scanner.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Devaneios de Inverno

Levantei-me ainda o dia não tinha nascido. Quando a luz caiu sobre a Sá Carneiro, mostrou os carros estacionados cobertos por um duro escudo de gelo. Pouca gente se aventurava pelos passeios. O dia, depois, cresceu em luz e alguém terá dito hoje está um belo da de Inverno. Também eu seria capaz de o dizer. Gosto desses dias em que o corpo é rasgado pela espada do frio, mas o coração consola-se com aquele pequeno calor. Como uma criança, posso entregar-me a esse jogo de quente e frio, enquanto da boca saem baforadas como se estivesse a fumar. Os Invernos daqui não são dos mais suaves. Se o céu está limpo, as temperaturas descem até se tornarem cortantes, mas depois tudo se compensa com a cintilação de uma luz vibrante, na qual quase se pode discernir ondas e corpúsculos, mas isto não deve ser acreditado, pois é apenas a minha tendência para a hipérbole. Leio que se deve renunciar ao desejo de ser outra coisa diferente daquilo que se é. Medito longamente na frase, depois encolho os ombros e não sei o que hei-de fazer com ela. Nos campos da escola ao lado, rapazes jogam com bolas e não deixo de me espantar com o poder de atracção que uma bola exerce sobre o espírito. Engana-se quem pensar que a relação com uma bola é coisa do corpo. Os antigos gregos viam na esfericidade o sinal da perfeição. Alguém deu um pontapé numa das bolas, esta elevou-se bem alto e ao cair parecia uma lua a despenhar-se na crosta da terra.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Enigmas que me atormentam

Grandes enigmas existem no mundo e não há quem se disponha a desvendá-los, pensei, enquanto olhava para as mãos e me perguntava por que motivo as unhas dos meus polegares crescem mais depressa que as outras. Temo que um dia os dedos vítimas de discriminação se revoltem. Aprecio universos coordenados, coisas que se conjugam, a harmonia com que certos utensílios devem ser dispostos, e logo me haveria de calhar uns apêndices, pálidas imagens de antiquíssimas garras, pouco dados à isometria. No sítio onde, para pagar as contas, oficio uma liturgia que não encontra fiéis, estava um frio de cortar. A certa altura, vou para uma varanda e fico ali a apanhar sol, a ver se descongelava, para que a homilia me corresse bem e os participantes fingissem um apetite que sempre lhes falta. Agora que estou descongelado olho sobranceiro para a rua e imagino o frio que deve haver por ali. Eu não devia falar nestas coisas, pois as homilias caíram em desuso e os praticantes devem ser práticos e cada um produzir a sua própria homilia, para provarem que são autónomos. Estou por tudo, embora sinta uma grande saudade do tempo de Pitágoras, em que os discípulos do venerado mestre, antes de entrarem na congregação, passavam três a cinco anos a escutar lições de um mestre que não podiam ver. Vencida a provação, passavam de acusmáticos a matemáticos. Hoje, porém, são logo matemáticos, embora ainda que não tenham escutado seja o que for. Não sei se esta história é verdadeira, mas juro que não a inventei, que a li já não sei onde. E como vinha mesmo a calhar, lembrei-me dela. O Word está a irritar-me. Solícito, sublinha oficio, não vá eu querer escrever ofício. Se ao menos me explicasse por que razão as unhas dos polegares crescem mais depressas que as dos outros dedos, ainda me apaziguaria. Para primeira segunda-feira do ano, poderia ter sido pior.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Psicologia da natureza

Sento-me e evito pensar em amanhã. Saí de casa para fazer umas compras. As esplanadas batidas de sol estavam cheias de mascarados, quase mascarados e não mascarados. As da 5 de Outubro, cobertas de sombras, dormiam vazias, sem que alguém se lembrasse de as acordar. Na avenida marginal, passeantes deslocavam-se lentamente. Os mais velhos com máscaras, ou mais novos nem por isso. Nas superfícies comerciais não há pluralismo relativamente ao uso de máscaras, o que para além de vantagens sanitárias terá outras. O dia já esteve mais luminoso. O sol terá perdido energia ou, para ser mais exacto, motivação para aquecer os pobres mortais. Os elementos da natureza também devem ser considerados na sua dimensão psicológica. Utilizar, para se lhes referir, palavras como motivação, resiliência, assertividade, e todo o conjunto de banalidades que caíram no discurso público. A lua cheia é muito assertiva, o mármore de Estremoz tem uma enorme resiliência e assim por aí fora. Só eu, que vivo num mundo de assertivos, não o sou. Nem isso, nem resiliente, nem motivado. Nem sequer inspirado. Bem tentei estabelecer um contrato com as musas. Eu cultuava-as, elas inspiravam-me. Riram-se na minha cara e voltaram-me as costas. Janeiro já vai no terceiro dia e é tudo o que há para dizer.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Exercícios triviais

O sábado já começou a descer a encosta da tarde. Nunca deixo de me admirar como os dias sobem até ao pico do meio-dia e, lá chegados, não conseguem conter-se e toca a andar por aí abaixo, com o mesmo passo que os levou a subir a outra vertente do outeiro. Outeiro e não montanha, pois, na orografia do calendário, os dias não passam de montículos, uns enrugamentos sem importância. Na avenida, ainda há pessoas que deambulam ao sol, pais com filhos, gente que aproveita o bom tempo para caminhar, carros que precisam de exercitar as rodas e evitar o colesterol do excesso de gasolina, coisa que lhes poderia provocar um acidente vascular cerebral ou outro infortúnio semelhante, pois não há mecânico que, para prevenir tais azares, receite umas estatinas. Por falar em estatinas, essas deusas benfazejas de quem tem propensão para a gordura hemática, havia na Roma antiga, uma deusa nomeada Estatina, que era invocada quando as crianças davam os primeiros passos, talvez para que caminhassem no caminho recto ou com rectidão no caminho. Talvez não seja a mesma coisa. Se eu tornasse estes textos num diário, seria um registo da minha trivialidade. Raros são os dias em que tenho alguma coisa digna de ser contada. Sendo assim, nem grandes acções nem grandes palavras tenho para partilhar. Resta-me inventar uns disparates para passar o tempo, pois não passo de um pobre narrador, manipulado por um autor que se esconde e disfarça atrás de mim. Isso, porém, é um assunto da teoria literária e não vem para o caso. Está um belo sol de Inverno, e isso é o suficiente para desculpar qualquer idiotice.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O ano começa volúvel

O ano começou sujeito ao império da volubilidade. Acordei relativamente tarde, abri a janela e recebi o cumprimento de um sol agradável e voluntarioso. Olhei o céu e descobri que a luz solar tinha aproveitado uma abertura nas nuvens para se entregar a exercícios de cintilação, uma operação circense para o dia de Ano Novo. Depois, as nuvens cansaram-se e uniram-se, formando um lençol cinzento, de múltiplos matizes. Uns mais claros, outros mais escuros. Agora, chove, mas também faz sol. Será que um ano que começa com tal instabilidade poderá ser bom? Dou uma vista de olhos pelos sites noticiosos e descubro notícias desagradáveis. Também é verdade que as coisas agradáveis raramente são notícia. Constou-me que não se pode andar pelas ruas depois das treze horas. Já falta pouco e também não tenho motivo para sair. Na Sá Carneiro, um casal caminha de mãos dadas, passa uma excursão de ciclistas, trocando chistes, e dois carros, em andamento lânguido, deixam um rasto de fumo ronronante. Não devias usar sinestesias, oiço-me dizer. Pois não, respondo, mas tenho uma vontade fraca e, ainda por cima, o odor dos raios de sol estimula-me a inclinação para a facilidade. Na minha secretária, um livro de poesia, outro de lógica e uma gramática disputam a atenção. Fecho os olhos e oiço Arve Henriksen com o Trio Medieval em St Birgitta Hymn – Rosa Rorans Bonitatem. Quero lá saber dos livros. No momento em que o defunto ano transitou para o que agora temos pela frente não me dei propósitos nem fiz pedidos. Já tenho idade suficiente para saber que qualquer ano se está nas tintas para desígnios e solicitações. A única coisa com que um ano, qualquer que ele seja, se preocupa é passar. Assim seja.