segunda-feira, 11 de abril de 2022

Causas e motivos

A fragilidade da condição humana. Foi esta frase que, há pouco, me veio ao pensamento, mas já não consigo saber o que a terá motivado, que estímulo a desencadeou. Estamos habituados a que não existam efeitos sem causas e repugna-nos que uma frase dance na nossa consciência sem um motivo. Quando este não é aparente, existe um truque. Diz-se que foi uma motivação inconsciente. Não a conhecemos, mas ela existe escondida no mais recôndito do nosso ser. Assim como, na sequência de Aristóteles, os escolásticos afirmaram que a natureza tem horror ao vácuo, também nós temos horror ao imotivado e, ainda mais, ao incausado. Se um pensamento sem motivo nos perturba, muito mais perturbará um acontecimento sem causa. E se tudo fosse imotivado e incausado? Se motivos e causas fossem apenas grelhas de leitura que o nosso cérebro estabelece para podermos viver do modo mais sereno possível? Por exemplo, o cansaço que, neste momento sinto, seria muito mais perturbador se eu achasse que não tinha qualquer causa. Encontrar para ele uma causa permite-me descansar sobre o assunto. Está um dia de autêntica semana-santa. As minhas netas parecem agitadas. O cão com que foram presenteadas parece ser a causa desse estado febril. Ele, porém, é um cultor exímio da serenidade. De preferência, evita mexer-se e não me parece ser adepto da agitação com que elas o envolvem. Imagino que ele prefira meditar sobre a ausência de motivos e causas do que ser motivo ou causa de tanto alvoroço. Se a condição do homem é frágil, o que se há-de dizer da condição canina às mãos de uma humanidade frágil? Um sol triste ilumina uns adolescentes que correm atrás de uma bola nos campos de jogos da escola aqui ao lado. Ela foge-lhes e eles correm atrás dela sem se interrogarem por motivos e causas. O importante é marcar golos.

domingo, 10 de abril de 2022

Amêndoas e laranjas

Chegado ao Domingo de Ramos, Abril completou um terço da sua existência. Em vez de meditar sobre a velocidade de Cronos, talvez deva falar de amêndoas. Refiro-me às da Páscoa. Não aquelas envoltas em açúcar empedernido, mas umas cobertas de chocolate e polvilhadas de canela. São essas que conspiram contra mim. Perante o perigo iminente, reajo e como-as. Não devia, mas as coisas são o que são, e a vontade é fraca. Quanto à amêndoa propriamente dita, essa nunca me convenceu. Quando o chocolate chega ao fim e apenas sobra o fruto, sinto uma decepção. Assim como há café sem cafeína e cerveja sem álcool, também deveriam existir amêndoas pascais sem amêndoa. Talvez existam, mas se já experimentei, não me lembro. Por aqui, estou certo, não as há. Acabei de chegar de uma visita à aldeia onde se vendem laranjas à beira da estrada. Talvez as minhas netas cheguem hoje e gostam daquelas laranjas. Os dias começaram a aquecer. Não tarda e o inferno transfere-se para aqui ou, talvez seja mais apropriada, reabre uma delegação. Entrego a tarde à escuta da música da violoncelista clássica alemã Anja Lechner e do pianista francês de jazz François Couturier, um duo que a grande criatividade da ECM records nos dá a conhecer. A generalidade do catálogo desta editora alemã é recomendável. O meu telemóvel informa que me faltam 25 pontos cardio para perfazer os 150 semanais recomendados pela OMS. Parece que tenho de me pôr a andar.

sábado, 9 de abril de 2022

Maldita homofonia

Meu Deus! Ontem, passado umas horas de o ter publicado, reli o post e descobri, de imediato, um terrível erro, onde confundia um monge com uma munição. Não é de bom tom trocar um projéctil cuja função é matar com um religioso que dedica a sua existência à silenciosa salvação da alma e à redenção do mundo, caso este tenha redenção. A causa do erro era fácil de descortinar, a maldita homofonia que ataranta os escreventes pouco cuidadosos e os faz cair no pecado de tomar a absoluta identidade sonora como razão para uma absoluta identidade ortográfica. Em síntese, e para abreviar razões, em vez de escrever cartucho escrevi cartuxo. Quanto aos cartuchos munições não tenho qualquer experiência deles, mas lembro-me bem de outros cartuchos onde se embrulhavam mercearias. Eram de papel e, em nome do progresso infinito em direcção futuro, foram substituídos por sacos de plástico. Contudo, os cartuchos mais extraordinários são os que os vendedores de castanhas fazem com folhas de papel de jornal. Julgo que fazem, pois há muito que não compro castanhas assadas. Nem sei a razão. Talvez por já não haver por aqui quem as venda. Esses vendedores não são bons apenas a fazer cartuchos cónicos de papel. Castanhas assadas? Só as deles. O resto não passa de pobres arremedos de diletantes da assadura da castanha. Não compreendo por que razão a Câmara daqui contrata empresas para tratar dos jardins e espaços verdes sem que lhes imponha uma cláusula que as impeça de trabalhar aos fins-de-semana e feriados. Há não sei quantas horas que oiço o trabalhar dos corta-relvas. Uma tortura para um sábado de manhã. Nem a chuva os dissuade. Deveria cair um aguaceiro dos antigos. Mesmo que eu quisesse tornar-me um cartuxo e dedicar-me ao silêncio, não podia.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Guerra com a semântica

Talvez hoje seja sexta-feira e eu nem tenha dado pelo passar dos dias, apesar de eles serem pesados como chumbo. Isto prova que o chumbo tem o poder de se deslocar rapidamente. Por isso, imagino, é usado nos cartuchos para caçadeiras. Outros metais mais nobres teriam menos propensão para a velocidade. Apertado o gatilho, a prata ainda haveria de correr, mas devagar, o ouro iria em passo lento, embora majestático, e a platina nem se dignaria começar a movimentar-se. Ficaria onde estivesse, afirmando que o estar imóvel é a antecâmara da eternidade. Devido a estas propriedades do chumbo, não há estátuas desse veloz metal. Uma estátua deve ser imóvel. Por isso, recorre ao bronze que, apesar de não ser majestático, não tem propensão para se deslocar. Talvez sofra de preguiça. Como eu. Chego às tardes de sexta-feira e acomete-me uma ignávia acintosa. Há dias em que tenho inveja dos poetas surrealistas, de poder escrever o dorso de cabedal da minha carteira voa para pousar sobre o diamante do meio-dia, desfraldado na acrópole das tuas mãos. Um floco de azeviche cai da asa de um anjo embebido em terbentina, feita do sangue derramado pela árvore do entardecer. Não sou, todavia, nem poeta nem surrealista. Acho mesmo o surrealismo uma ameaça. Já o realismo e a realidade são corveias tão pesadas, quanto mais um sobrerrealismo que, por certo, há-de esconder no invólucro azul dos seus princípios uma sobrerrealidade, pesada como o diabo que a carregue. Mais pesada que o chumbo, mais pesada que a velocidade dos dias da semana. Mais pesada que a minha incapacidade para escrever alguma coisa que faça sentido. Estou em guerra com a semântica. Só isso. Sim, hoje é sexta-feira.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Mitos

Não sei se os dias devoram a vida das pessoas ou se é a vida destas que devora os dias. Os mitos têm uma exactidão que a razão não consegue ultrapassar ou, tão pouco, igualar. O mito de cronos devorador dos filhos possui um rigor insuperável na descrição daquilo que o tempo faz aos seres. Trá-los à existência e devora-os sem piedade. O facto de Zeus, devido à astúcia da mãe, ter sido subtraído à fome ou ao temor cruel do pai torna manifesto que a luta entre o tempo e o ser acaba por ser favorável a este, mesmo que o tempo vá devorando cada um dos seres que vêm à existência. Também o mito bíblico da Queda parece mais útil para a compreensão dos homens que as diversas teorias racionais sobre a nossa espécie. As teorias racionais têm o condão de escavar na realidade para encontrar explicações que, talvez, se vão aproximando da verdade. A verdade do mito, porém, é de outra ordem. Não nos contam factos, não são teorias que descrevam ou expliquem a realidade. São formas de compreender a situação existencial do homem no mundo. Neles, a imaginação mostra-nos o que é, para nós, a realidade e o que somos. O tempo que me trouxe devorar-me-á. A minha finitude – é isso que a queda adâmica torna manifesto – mostra-me como sou falível. Procuro, agora, a razão por que, a esta hora do dia, fui levado a escrever sobre os mitos. Não a encontro dentro de mim, apesar do escrutínio a que me entrego, não a encontro fora de mim. Tudo o que vejo e oiço é meramente prosaico, e estamos convencidos de que os mitos emanam de um fazer poético inimigo feroz da prosa. Talvez esse convencimento seja fruto de um engano, e os mitos nasçam daquilo que há de mais trivial na vida. Olho para a rua lateral e dou-me conta da existência insólita de um sinal de trânsito de sentido obrigatório. A rua tem dois sentidos e o sinal serve apenas para quem sai de uma garagem de um dos prédios vizinhos. Parece pretender impedir que quem dali saia volte à direita, o que é manifestamente absurdo, pois a rua permite esse sentido e essa decisão não trazer qualquer risco. Pelo contrário. Imagino que alguém se enganou ou que o sinal estava ali antes dos prédios serem contruídos e se esqueceram dele. Um dia, transformar-se-á em mito, onde se narrará a nossa condição de seres submetidos a ordens absurdas.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Maus sinais

Os sinais não são os melhores. Acabei agora uma longa conversa telefónica com um velho amigo dos tempos de faculdade. Foi, literal e metaforicamente, uma conversa de velhos. Aferimos as ameaças que se erguem no horizonte, a forma como o mundo parece estar a enlouquecer, o modo como os loucos, com ideias de grandeza, em vez de serem internados em hospícios, são eleitos para condutores de povos, como uma certa visão do mundo civilizada está a dar lugar a coisas insistentemente perigosas, a delírios que se não conduzissem a tragédias inomináveis seriam motivo de umas boas gargalhadas. A verdade, dizia-me ele, é que nunca estamos predispostos a admitir que gente enlouquecida pode chegar ao poder. Uma ingenuidade. Nessa altura lembrei-me de um dito de uma pessoa com quem trabalhei há umas décadas. Ingenuidade depois dos quarenta não é ingenuidade, é burrice. É isso que sinto. Fui demasiado burro ao crer que as coisas no mundo sempre se podem compor. Não podem. Uma conversa de velhos. O pior foi, porém, outra coisa. Quando fui à cozinha dei com uma chávena de café cheia ao lado da respectiva máquina. O café estava frio. Comecei a tentar perceber quem se teria esquecido de tomar café depois de almoço. Terei sido eu, perguntava-me, mas não sabia. Há pouco fui informado de que o esquecimento era da minha autoria, aquele café era meu. Não faço ideia por que razão o deixei ali. Hoje esqueci-me de tomar um café já tirado. Não tarda e esqueço que bebo café. Os tempos andam interessantes e isso está longe, muito longe, de ser uma boa notícia.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Um pouco de hipocrisia

O que vou escrever a seguir, note-se, não é uma incursão na política. Longe de mim emitir opinião nesse campo tão minado. Parece que o ministro irlandês das Finanças e presidente do Eurogrupo, quando esteve a última vez em Lisboa, foi levado pelo incumbente português da altura a visitar um museu. Achou o simpático irlandês que era o de Fernando Pessoa e que nele tinha conhecido a viúva do poeta, um notório não casado, nem, quanto se sabe, amancebado, nem com inclinação para conúbio com alguém que se pudesse tornar viúva dele. Na minha opinião, vale o que vale, o pobre do ministro teve pouca sorte. Tivesse ido numa outra altura e teria conhecido várias viúvas. Imaginemos que a cada heterónimo, semi-heterónimo, pseudónimo ou alcunha pessoanos correspondia uma viúva, não faltariam viúvas para conhecer. Calhou-lhe só lá estar a do ortónimo. Azar. Provavelmente, a viúva seria a de Saramago e este, tanto quanto se sabe, não era um heterónimo de Pessoa, mas não juro. O mundo não está para graças, mas não deixa de ter a sua graça. Estas gentilezas para fazer sala têm sempre os seus inconvenientes. Há uns anos, num município das redondezas, o então presidente da Câmara disse-me, com amável sinceridade, que continuava a gostar imenso dos artigos que eu escrevia num jornal daqui. Agradeci e omiti a informação de que já não escrevia há bastante tempo. Temos aqui matéria para um debate senão teológico, pelo menos moral. O que é pior, a gentil mentira do presidente ou minha não menos gentil omissão da verdade? Talvez eu me tenha, do ponto de vista moral, portado pior. Do ponto de vista civilizacional, porém, ambos nos portámos muito bem. Não há nada como um pouco de hipocrisia para tornar a vida mais saudável.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Um dia quaresmal

Está uma segunda-feira quaresmal. Um sol raquítico, algum vento quase frio, um sentimento de tristeza pelas ruas, as gentes sem ânimo a caminhar pelos passeios. O processador de texto onde escrevo insiste que devo grafar o nome dos meses com inicial minúscula. Sempre que opto pela maiúscula, ele, sem que eu lhe peça opinião, coloca um traço azul sob a palavra e dá a sugestão em letra minúscula. Ora, não me apetece segui-lhe a orientação. Os meses são entes importantes e, caso olhemos para uma vida, mesmo longa, não são coisas que abundem como grãos de areia. São sempre poucos e, por isso, preciosos. Logo, devemos dar-lhe um tratamento diferenciado, caso tomemos por comparação os dias da semana. Um carro azul flamejante passa devagar na rua, depois fica um vazio que demora a ser preenchido. Não há outros carros, nem bicicletas, nem pessoas, nem animais. Passados longos instantes, uma ambulância do 112 ocupa a estrada, vai vagarosa, mas também ela é engolida por aquilo que não vejo. De dentro de um carro cinzento, sai um homem. Devia ali estar há muito. Talvez a enviar mensagens no telemóvel. Sai e com passo decidido desaparece. A rua de que falo é uma lateral pouco concorrida da avenida. Num dos passeios erguem-se quatro acácias, ainda de ramos despidos. Não se ouve ninguém. Não haverá nada para ouvir, imagino.

domingo, 3 de abril de 2022

Luzes que não iluminam

O argumento não me parece muito bom, mas compreendo, respondi ao padre Lodovico, na longa conversa que tivemos esta manhã. Está muito abalado pelos acontecimentos na Ucrânia. Se queremos uma prova sobre a verdade de facto, e não meramente simbólica, da queda adâmica, basta olhar para o que se passa naquela terra, argumentou ele, quase irado. Disse-lhe que essa interpretação não se coaduna com a tradição iluminista da sua família e dele próprio. Ao diabo o Iluminismo, respondeu. Ele agora não serve de nada, quando as forças da escuridão avançam, As Luzes não deitam luz nenhuma sobre as trevas. Nem a (palavrão não publicável) de um raio. Respondi-lhe que talvez ele estivesse a blasfemar sem ter consciência disso. Por certo que um historiador como Tom Holland não deixaria de ver As Luzes, apesar das tropelias de um Voltaire, como uma consequência do cristianismo. Talvez mesmo um reflexo da abertura do evangelho de João, atrevi-me. Ele riu-se, imagino que se tenha persignado ao ouvir o nome de Voltaire, e mudou de assunto. Começou a contar-me a última consulta médica, por causa do coração, e enumerou as drogas (sic) que lhe são impingidas diariamente. Isto de uma pessoa se manter viva exige uma autêntica ascese, comentou. Por causa disso, confessou, depois de dizer a Missa do meio-dia, vou almoçar com uns amigos e enumerou-os. Gente que não se coíbe de não respeitar o jejum da Quaresma, disse-lhe eu. Claro, mas já basta a tristeza do mundo e o domingo está, em Lisboa, com uma luz esplendorosa, que merece o sacrifício de um pecadilho. Uma ascese ao contrário, comentei. Isso, respondeu e despediu-se. Ao contrário do padre Lodo, eu vou entregar-me, neste domingo, à frugalidade. Já bastou o jantar de família ontem, no qual talvez não me tenha portado lá muito bem. Continuo a ouvir música da Renascença, de várias origens nacionais. Penso na alegoria de Abel e Caim. O mundo nunca terá descanso. Não haverá Renascimento nem Iluminismo que nos valha. O projecto de Paz Perpétua de Kant há-de sempre esbarrar no Caim que cada um traz dentro de si. Uns mais que outros, acrescento.

sábado, 2 de abril de 2022

Chocolate picante

Até que enfim. Após uma longa ausência – porventura, desde antes do início da pandemia – um dos meus chocolates preferidos, tornou a aparecer por aqui. Trata-se de um chocolate preto com piripíri, de uma conhecida marca austríaca, cujo nome omito, não se vá pensar que estou a soldo de alguma multinacional. Também existe um chocolate semelhante de uma marca nacional, mas, tal como o austríaco, levou sumiço das prateleiras da superfície comercial onde me abasteço. Durante este tempo e sempre que ia demanda, sempre frustrada, do santo Graal, considerava que, sendo esta uma cidadezinha provinciana, não haveria mercado para essa combinação entre o chocolate e o picante. Hoje reconciliei-me com o mercado, com a cidadezinha e com a própria superfície comercial.  Seja como for, este meu gosto por chocolate preto, aliado ao prazer que tenho no sumo de toranja e no café sem açúcar, segundo alguns estudos, indicia uma personalidade psicopata. Parece que não é bom sinal preferir alimentos e bebidas agrestes, embora nunca tenha detectado em mim tendência para a psicopatia. Não serei das pessoas mais sociáveis ao cimo da terra, mas mantenho relações de cordialidade com toda a gente que me rodeia. Não desistirei nem do chocolate negro, se for picante, melhor, nem do café sem açúcar. O sumo de toranja, porém, é um prazer que me foi vedado devido a uma incompatibilidade extrema com a medicação que me coube em sorte. A partir de certa altura da existência, os pequenos e os grandes prazeres começam a sofrer uma censura atroz. Hoje é sábado, tenho muito para fazer, mas troco os deveres por ficar a ouvir música para alaúde de um compositor do século XVI, John Dowland. Gosto bastante da sonoridade do alaúde. Talvez isso prove que, apesar dos meus gostos gastronómicos, não serei um psicopata, mas ninguém é bom juiz em causa própria.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Do tempo do yé-yé

Acabou. Refiro-me não ao mês de Março, mas ao ensaio da banda – do conjunto pop/rock – da escola aqui ao lado. Pelo tipo de música que me chega aos ouvidos, caso o vento esteja favorável, presumo que não deve haver alunos entre os instrumentistas. As canções são ainda aquelas que animavam os bailes de finalistas na década de setenta, logo os músicos deviam ser alunos por esses anos. Tudo isto é presunção minha, embora fundada em alguma evidência. O vocalista foi meu colega, em certa altura do percurso escolar. Os outros membros da banda não sei quem são. O facto de estar a falar disto a uma sexta-feira prende-se com uma alteração radical nos hábitos trazida pela pandemia. Os ensaios, bem me lembro, eram às quartas-feiras, à tarde. Depois, veio o silêncio pandémico. Cansados da pandemia, os músicos voltaram aos anos setenta, mas à sexta-feira. Fazem parte de uma onda revivalista que grassa por aí. Costumo encontrar, num certo restaurante a que me afeiçoei, um outro vocalista. Um rapaz mais velho do que eu uns dez anos. Fazia parte de um conjunto musical aqui da zona, no tempo do yé-yé. Presumo que fosse um yé-yé tardio, mas animava as pessoas e parecia trazer um ar de modernidade e cosmopolitismo a uma província enterrada num país periférico, fechado ao mundo e mergulhado numa guerra. Contou-me ele há tempos que retomaram – os que estavam vivos – o grupo e que ensaiam todas as semanas. Serve para descansar dos negócios, disse-me. Foi na voz dele que ouvi pela primeira vez um tema pouco Yé-yé, Guantanamera. Nunca esqueci o facto e, confesso, continuo a gostar dessa bela cançoneta latina. Tudo o que escrevi hoje é a mais pura verdade. Recuso-me às mentiras de 1 de Abril. Estas, contudo, eram um motivo de animação social ao lado do Festival da Canção e dos jogos de futebol ao domingo, pelas três da tarde. As pessoas entretinham-se em descobrir qual a mentira contada pelo seu jornal, caso tivessem um. Vivia-se então numa grande mentira anual disfarçada numa mentirinha de primeiro de Abril. Isto, porém, são considerações que o autor não me permite explorar, pois proibiu-me, literalmente, qualquer comentário político. Obedeço.

quinta-feira, 31 de março de 2022

Eros, esse deus itinerante

A compra de livros usados não é interessante apenas por se poder adquirir autores que deixaram de ser publicados. Um outro atractivo é descobrir aquilo que os seus compradores originais lá deixaram escrito. Diante de mim, dois romances da mesma autora. Num deles, está grafado: Para ti minha jóia preta, com a dedicação do teu (segue-se assinatura legível). Isto passou-se no mês de Maio do ano de 1954. No outro, diz-se mais prosaicamente: Com um grande abraço da tua mulher que te ama (segue-se rúbrica ilegível). A data é de Dezembro de 1972. Imagino, assim, que os anos cinquenta do século passado seriam mais inclinados às declarações românticas, fundadas na metaforização, do que os anos setenta, mais dados à linguagem corrente. É uma hipótese, embora possam existir outras. A relação entre o autor da assinatura e a sua jóia preta estaria ainda num tempo em que tudo parece digno de valor, em que até os defeitos e vícios da coisa amada são vistos como verdadeiras virtudes, únicas ao cimo da terra. Por outro lado, o casamento, como toda a gente sabe, tem um poder extraordinário para transformar as alianças de ouro, que selaram o amor eterno, em pechisbeque do mais trivial que exista. Já não há motivação para mais do que um grande abraço, isto é, a declaração de amizade, de onde Eros, esse deus itinerante, foi expulso. Não deixa de ser curioso o lugar onde se encontra a dedicatória, mesmo ao lado do título, que em letras garrafais diz: Desejar Não é Amar. A autora da dedicatória confessa que ama o marido, mas não o deseja. Isto acontece a muito boa gente, que vive em dissociação cognitiva. Quanto à autora do romance, Carmen Figueiredo, hoje praticamente desconhecida, recebeu os elogios da crítica do seu tempo, algumas das suas obras foram apreendidas pela PIDE, sempre zeladora dos bons costumes e da moral pátria, e recebeu o Prémio Ricardo Malheiros, pelo romance Criminosa. Continuo a comprar coisas inverosímeis. Como por exemplo, a novela naturista (assim mesmo), publicada em 1916, com o título Regresso à Felicidade, de Sousa Costa, um autor tradicionalista e ruralista, casado com Emília Sousa Costa, também ela escritora, dedicada à literatura infantil e à ficção regionalista. Assim se chega ao fim de Março.

quarta-feira, 30 de março de 2022

Enganos do tempo

“Estamos em face de uma organização de romancista como poucos temos em Portugal”. “Caminhada é, sem dúvida, um dos melhores romances do nosso tempo”. “Leão Penedo tem o seu lugar entre os melhores romancistas portugueses”. “Um dos maiores romances de autores da nova geração”. Encontramos tudo isto e muito mais na contracapa do romance A Raiz e o Vento, do escritor algarvio Leão Penedo. Não se pense que este tipo de comentários surge na imprensa de província. Pelo contrário, as citações pertencem a jornais e revistas de âmbito nacional. Não me foi possível saber a data de publicação do romance, mas presumo, com alguns dados a que tive acesso, que terá sido nos anos quarenta do século passado. A questão que se coloca não é se alguém ainda lê um romance do autor, mas se alguém sabe que terá existido um escritor chamado Leão Penedo. Ao ler a contracapa – de natureza publicitária, mas, como ainda hoje acontece, mobilizando aquilo que foi dito por autoridades com algum reconhecimento no mundo da literatura – pensamos estar perante um autor decisivo no panorama da literatura nacional. A história não o mostra assim. Não faço ideia se as avaliações referidas são justas, pois ainda não li o livro que me chegou hoje às mãos, mas talvez se deva considerar que os críticos literários daqueles tempos estavam longe de possuir instrumentos analíticos actualizados para avaliar as obras que liam. Faltava-lhes, por certo, um saber universitário adequado e sobrava-lhes a veia jornalística. Perguntar-se-á por que razão escrevi tudo isto. A resposta é simples. Para não falar do tempo, do vento frio, de Março a deslizar para a caverna de Abril. Águas mil.

terça-feira, 29 de março de 2022

Mudanças

O mundo mudou, comentou ontem um amigo cujo nome não vem ao caso. O problema do mundo, respondi, é mesmo esse. Estar sempre a mudar, tomado por uma volubilidade doentia. Não se trata disso, mas de uma mudança benéfica, uma luta contra o castigo imposto pela tentativa de construir a Torre de Babel. Os tradutores automáticos, continuou, são uma bênção. Pode-se ler com razoável fiabilidade coisas escritas em algumas línguas que não se conhecem. Tive de concordar. Habituei-me a usar esse truque com textos escritos em alemão ou nas línguas nórdicas. As traduções automáticas colocam-nos num francês ou num inglês bastante aceitáveis. É possível mesmo ler com razoável precisão prosa de ficção, isto para não falar da técnico-científica.  O mundo, de facto, mudou. No entanto, isto não significa que estejamos mais próximos uns dos outros. Esta aproximação linguística talvez nos esteja a afastar ainda mais. A nossa esperança já não está em aprender uma língua, mas em haver um tradutor automático que coloque na nossa, ou numa que compreendamos, aquilo que queremos ler e está escrito em língua inacessível. Por outro lado, há uma desumanização da linguagem. É possível imaginar que, não tarda, as traduções automáticas serão muito mais exactas do que as de um bom tradutor, que conseguirão mesmo captar as inflexões literárias, as derivas estilísticas individuais, tudo aquilo que torna um texto único. A inteligência artificial aprende muito depressa. Isto piora a situação da humanidade ao cimo deste planeta. Enquanto esta se entretém em guerras e outras actividades do mesmo calibre moral, os seres de silício encarregam-se de tornar manifesto que a nossa espécie está obsoleta. Obsoleta e uma péssima companhia neste mundo, o tal que mudou.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Dia de aluamento

Enquanto muitos outros povos cultivam o dia após o domingo como um tempo de aluamento, os portugueses referem-no como o segundo dia de férias. Veja-se, por exemplo, Lunes, Lundi, Luni, Luns, Lunedi ou Monday, Montag, Maandag, Mandag, etc. Em todas estas designações encontramos a Lua como fonte de inspiração. Conseguimos a proeza de resistir aos encantos da Lua, de ficarmos aluados, mas a verdade é que atribuímos, a cada dia útil da semana, a designação de um dia de férias, enquanto para os tradicionais dias de descanso adoptamos uma estratégia diferente, que agora não vem ao caso. De tudo isto podemos extrair a conclusão de que os portugueses não vivem na Lua, mas o seu ambiente natural são as férias. Mesmo quanto a malevolente realidade os obriga a trabalhar, eles fazem-no em plenas férias. Não vou daqui retirar qualquer justificação para a baixa produtividade nacional, nem fazer considerações da resistência lusitana à ideologia do capitalismo e ao seu acordo tácito com Paul Lafargue, esse genro suicida de Karl Marx, que ficou para a história com a obra imortal, não poupemos nos adjectivos, O Direito à Preguiça. Um escrito pouco alinhado com o sogro. Sublinho apenas que as línguas reflectem, de forma secreta, o inconsciente colectivo dos povos, dizem, com as suas palavras, aquilo que lhes vai na profundeza das almas. Uns sonham com a Lua outros com umas férias eternas apenas interrompidas pelo descanso de sábado e pelas festas dominicais. Eu, esclareça-se, não sou de andar na Lua. Sou português e isso explica tudo.

domingo, 27 de março de 2022

Deixem as horas em paz

Chegámos ao último domingo de Março. O mês galopou pela planície do ano e prepara-se para acabar. A vida dos homens é assim, um galope desenfreado entre dois abismos. Como todos os abismos, estes são secretos e nunca se sabe o que está neles. De um sai-se puro, inocente e ingénuo. No outro cai-se, embora as virtudes com que se tinha nascido tenham sido exauridas no trajecto, e vai-se para o abismo final com pouca pureza, inocência e ingenuidade. As mudanças horárias perturbam-me sempre. Já era tempo de acabarem com esta arbitrariedade, com este tira hora, põe hora. Se eu fosse dado à iniciativa, um empreendedor, na linguagem de hoje, haveria de criar um movimento, talvez uma organização não governamental, para exigir que deixem as horas em paz. O que me vale é que não sou dado a iniciativas e, apesar de resmungar com a desfaçatez da gestão política das horas, acomodo-me, resigno-me a este domingo triste e de hora roubada. O dia está macambúzio. Eis uma palavra que não tenho o hábito de usar. Poderia ter escrito soturno, triste, taciturno. Poderia mesmo escrever que o dia está sorumbático, mas não. Escrevi macambúzio. Não faço ideia a onde se terá ido buscar tal palavra. Seja como for, é assim que o dia está. E eu, se não me acautelo, fico como ele. Tudo isto porque me roubaram uma hora ao domingo, que eventualmente será devolvida lá mais para a frente, mas ninguém paga juros de mora. A Quaresma avança e, não tarda, chega ao porto sereno da Páscoa.

sábado, 26 de março de 2022

Sombras

Perante a desmedida fúria de Ajax, enraivecido pela facto de os chefes aqueus terem dado a Ulisses a armadura e as armas de Aquiles, tenta matar os comandantes do exército grego e torturar Ulisses. Intervém, porém, a sábia deusa Palas Atena, criando no agastado herói uma ilusão que o leva a confundir um rebanho de ovelhas com seres humanos. Ajax entrega-se a uma carnificina inominável. Pensa ter assassinado Agamémnon e Menelau e ter em seu poder o astuto Ulisses. Este, perante o espectáculo da fúria fantasiosa do seu rival, diz, não sem piedade: vejo que, nesta vida, não passamos de fantasmas ou de sombras vãs. Certamente, a intelectualidade grega daqueles tempos estaria muito perturbada com o nosso estatuto, com a terrível pergunta: quem somos nós? Platão, tempos depois, conta-nos uma história que a posteridade conhece com a Alegoria da Caverna, na qual os homens não passam de prisioneiros que apenas vêem sombras. Talvez esta preocupação com as sombras derive toda ela de um verso de Píndaro de uma Ode Pítica: O homem é o sonho de uma sombra. Nesta viagem pelo mundo das sombras, há um lento deslizar para a carnalidade. Em Píndaro o homem é apenas o sonho de uma sombra. Nem sombra chega a ser. Em Sófocles, no julgamento piedoso de Ulisses, o homem é já uma sombra, embora vã. Em Platão, o homem não é filho de sombra, nem sombra, é um ser de carne que vê sombras e para o qual há a esperança de, caso se decida a isso, de ver a luz e a própria realidade. Quase que podemos dizer que a fúria de Ajax foi o caminho que conduziu o homem de filho onírico das sombras ao ser que pode ver a luz. Não sei, se estes pensamentos que me ocorreram nesta manhã de sábado se adequam à natureza deste dia de descanso e ócio. Os antigos gregos, porém, acreditavam que o amor à sabedoria nasce precisamente do ócio. Estou com saudades de ver o mar. Não há ócio melhor do que escutar a voz rumorosa do oceano.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Poeiras agarenas

As poeiras do deserto tornaram a visitar-nos. Ontem tinha o carro tão lavado, graças à chuva dos últimos dias, e hoje, quando cheguei perto dele, constatei estar literalmente empoeirado. Parece que agora entre a península e o deserto se estabeleceu um protocolo de intercâmbio. O deserto envia as poeiras em excesso e a península há-de enviar-lhe qualquer coisa de que não precise, embora eu não saiba bem o quê. Para além da vexata quaestio das poeiras, há outro problema que me atormenta, o do nome do deserto. Não sei bem porquê, habituei-me a grafá-lo com um h entre dois aa, Sahara. O dicionário que uso economiza um pouco e elimina o h, talvez por ser cronicamente mudo. Por outro lado, o jornal de que sou assinante, no seu livro de estilo, optou ainda por uma ainda maior economia e escreve o deserto do Sara. Ora, isto parece-me uma incongruência. Aliás, uma dupla incongruência. A primeira incongruência tem a ver com Sara. Ora deveríamos dizer que as poeiras vieram do deserta da Sara. É sempre possível imaginar que uma antiga e muito poderosa matriarca fosse a proprietária de tal deserto. A segunda incongruência é que a mulher que foi para o deserto não foi Sara, mas Agar. Como todos sabemos, Sara era estéril e Abraão teve de recorrer aos serviços de uma escrava egípcia, uma barriga de aluguer na época, Agar, para se tornar pai. A coisa correu bem, nasceu Ismael, mas depois as sortes mudaram. Não vou aqui contar a história, que não é particularmente edificante. O que quero afirmar é que se era para dar um nome de mulher a um deserto, deveria ter sido o de Agar. Se fosse esse o caso, hoje estaríamos a receber poeiras agarenas na Península e a protestar contra a mãe da moirama, dos agarenos ou ismaelitas. Isto lembrou-me um exercício com que me entretinha nos finais da escola primária. Contar as designações dadas, nos manuais adoptados, aos povos do Islão. Mouros, árabes, infiéis, muçulmanos, maometanos e sarracenos. Claro que poderia ter acrescentado, sem grave prejuízo, as designações de agarenos e ismaelitas. Um pouco mais tarde entretive-me a contabilizar as designações dos que nascem em Lisboa. Para além de alfacinhas, eles são lisboetas, lisboeses, lisboninos, lisbonenses, lisboenses, lisboanos. Isto tudo, para além de olisiponenses, lisboetas com inclinação para os estudos clássicos. Foi a partir da multiplicidade das designações possíveis dos naturais de Lisboa que eu compreendi por que razão aquela cidade é a capital de Portugal. Hoje é sexta-feira, como se nota pelo escrito. Agora, vou fazer umas compras para o jantar, segundo fui informado. Ao menos podia chover para me lavar o carro das poeiras agarenas.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Ninguém

As coisas conspiram para me levarem a falar do tempo. A barra de ferramentas do Windows mostra-me um guarda-chuva azul aberto. Segue-se-lhe a seguinte informação: Chuva em breve. Por mais que eu a queira evitar, a questão persegue-me. No entanto, eu não sei se a informação é uma descrição de um estado real do mundo, embora futuro, ou apenas a manifestação de um desejo por parte do software que gere estas coisas. Se for uma descrição do estado do mundo, preocupa-me a imprecisão do ‘em breve’. Quantos minutos ou horas representará? Mudando de assunto. Tenho aberto à minha frente um livro de Herberto Helder. O poema começa assim: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Ao ler isto, estremeci. Descobri que chego a esquecer-me do que vou dizer quando falo com alguém. Uma frase que deveria ser dita daí a uns segundos – em breve – desaparece-me da mente. Talvez eu não devesse dizer mente, mas consciência. Mente tem uma tonalidade anglo-saxónica. Por lá, eles têm mentes. Na Europa continental, temos consciência. Portanto, as frases que se me varrem, varrem-se-me da consciência e não da mente. Isto significa que estou com contínua propensão para a perda de consciência. O poema de que falei, depois de se expandir, como um exército invasor, por quatro páginas e meia acaba com o seguinte verso: A sonhar. Ocorreu-me que poderíamos elidir todos os outros versos e ficar apenas com o primeiro e o último: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. / A sonhar. Esta nova composição dá-me outra perspectiva do meu estado. É a sonhar que a minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Talvez tudo isto não passe um devaneio onírico, ou talvez esteja a falar de esquecimento porque hoje fui visitar alguém que se esqueceu de que sou o seu próprio filho e me perguntou várias quem sou. Suspeito que estou já reduzido à condição do Romeiro, do Frei Luís de Sousa. Sou ninguém, embora isso não seja compatível com o ensinamento cartesiano de que sou uma coisa pensante, uma alma. Talvez uma coisa pensante seja um ninguém, um sujeito despido de biografia. Um ser de papel. Agora vou videoconferenciar.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Falar do tempo

Muitos destes escritos contêm anotações meteorológicas, como se eu fora um velho agricultor preocupado com o destino das sementeiras, das searas, das colheitas. Não sou, mas é possível que todos tenhamos não uma alma agrícola, mas algum gene que, vindo do passado, se manifeste nesta preocupação com o estado do tempo. Uma outra teoria também é plausível. Quando as pessoas se encontravam e nada tinham em comum, nada tinham para dizer umas às outras, o estado do tempo era salvífico. É isso que pode acontecer comigo. A falta de assunto. Podia discorrer sobre a justiça no mundo. Não faltariam casos exemplares para mostrar que ser injusto tem bom rendimento e, por isso, os que o podem ser não hesitam em espalhar o sentimento de injustiça entre as suas vítimas. Têm sempre a esperança de que a força os livrará de algum percalço. Esta esperança, contudo, assenta numa aposta. Se se olhar para a história dos homens, não faltam casos de gente militantemente malévola que morreu sem que sobre ela o destino fizesse cair mão pesada. No entanto, não são poucos os casos que exemplificam o contrário e que corroboram o ditado popular cá se fazem, cá se pagam. Tudo isto daria lugar a interessantes discussões sobre o mal no mundo e o papel da Providência divina na atribulada história dos homens, a qual nunca se cansa de sangue. Um dos argumentos mais poderosos contra a existência de Deus prende-se com isto mesmo. Se Deus é sumamente bom, misericordioso, omnisciente e omnipotente, então o mal não poderia existir. Porquê? Porque Deus saberia da sua existência, devido à omnisciência, e, porque é sumamente bondoso e misericordioso, não o permitiria, pois, sendo omnipotente, teria poder para tal. Como o mal existe no mundo, como se vê a cada momento, Deus não poderia ter pelo menos uma daquelas características. Não seria bondoso e misericordioso, caso fosse omnisciente e omnipotente. Ou, então, se fosse omnisciente, bondoso e misericordioso, não seria omnipotente. Há várias tentativas de responder a este argumento, mas a mais interessante é a dos teístas cépticos. Confessam a sua crença em Deus, mas reconhecem-se impotentes para compreender as suas razões e porque permite o mal no mundo. Talvez seja esta incompreensão das razões divinas que permite que refinados filhos da mãe sejam ao mesmo tempo crentes e completamente malévolos, apostando em espalhar a crença à força do sangue dos outros. Têm esperança – ou apostam – que o mal que fazem se encontre justificado por alguma razão divina que desconhecemos. São também cobardes. Ao menos Maquiavel foi claro. Quem quiser exercer e segurar o poder não pode aspirar a outra coisa senão ao inferno. Ora, esta gente quer tudo. Quer criar um inferno para os outros e reservar um lugarzinho catita no céu para eles. Talvez seja melhor falar no tempo.

terça-feira, 22 de março de 2022

Metáforas dispensáveis

Está um início de Primavera incerto. S. Pedro, depois de muito instado, lá se comoveu um pouco e começou a deixar cair alguma chuva, mas longe da exuberância que a secura vivida até agora exige. Talvez o santo esteja surdo e não oiça as preces. Talvez as orações saiam de vozes impotentes para se fazerem ouvir. Num caso como este, seria aconselhável usar vozes de soprano e deixar os barítonos e os baixos de folga. Depois de almoço, dei uma vista de olhos pela imprensa. A realidade continua a cheirar mal, e isto é um eufemismo. Nada que incomode, todavia, o bando de adolescentes que espera a hora de entrada no centro de línguas aqui ao lado. Protegem-se da chuva debaixo de uma varanda e para eles não há realidade, nem dor, nem ideias loucas, nem sequer tempo. Vivem na eternidade, na deflagração hormonal, no vozear dos sentimentos que os atravessam. Quando o sol encontra uma camada mais fina de nuvens, deixa cair sobre a cidade uma luz irreal. Na avenida, passam pessoas com chapéus de chuva na mão. Imagino-os a rodar a grande velocidade, como se fossem hélices, erguendo os donos aos céus. O pior, porém, é a gravidade que insiste em não suspender a sua lei de ferro, condenando aqueles pobres transeuntes a deslocarem-se a pé, roubando-lhes a oportunidade de ver o seu mundo um pouco mais de cima. Fui consultar a minha aplicação meteorológica para nela ler a vontade de S. Pedro. Parece que vai haver chuva nos próximos tempos. Terá ouvido as preces. Imagino que lhe tenham oferecido um aparelho auditivo. Só uma última recomendação ao santo padroeiro da meteorologia. Quando nós, pobres mortais, pedimos chuva, a expressão é para se ser entendida de forma literal. Chuva mesmo, água a cair dos céus. Não estamos a pedir chuva em sentido figurado, bombas a cair do empíreo. Neste caso, as metáforas são dispensáveis.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Perplexidade

Só hoje dei conta da morte, no passado domingo, de Gastão Cruz, um dos poetas portugueses mais significativos da segunda metade do século XX. Um breve poema de Escarpas (2010): Como é possível que o silêncio pare / e o som não regresse? É o segundo oxímoro para uma ausência. Muitas vezes, a poesia é um campo de batalha onde se defrontam os que defendem ser ela puro ritmo, quase música, e os que vincam o sentido que emerge da versificação. Entre os dois bandos existem outros intermédios. Não vou tomar partido na querela, mas sublinhar uma outra coisa que o dístico de Gastão Cruz revela, e que não é ritmo nem sentido, mas a ausência, essa coisa que o poema descobre entre som e silêncio. Essa coisa inominável confronta-nos, presos que estamos aos pares de opostos e às gradações entre os dois pólos, algo já presente no pitagorismo, com um mundo que não se adequa à nossa capacidade de descrição. O sublinhar dessa ausência é um modo de confrontar os limites do entendimento e manifestar que há mais coisas do que aquelas que pensamos existirem ou que haverá outros limites que nãos os da experiência possível. A ausência é a manifestação de uma presença, da presença daquilo que não conseguimos nomear, que não é som, nem silêncio, e que se manifesta na perplexidade poética sublinhada pela interrogativa. Esta perplexidade não é outra senão aquela que emerge perante uma hierofania. Penso que o almoço não me terá feito bem. Não devia escrever coisas como as que acabo de escrever. A consciência, porém, gritou-me que se o fiz, foi porque não tinha outro assunto. Talvez ela tenha razão, mas a crermos na lição do dr. Freud, todas as razões conscientes não passam de distorções de motivações inconsciente e, porventura, inconfessáveis. Não é que este narrador creia na narrativa do velho Sigmund, mas o mais sensato é não descartar nenhuma hipótese. Vou espreitar o friso das orquídeas.

domingo, 20 de março de 2022

Tempo de Papagenos

Começou maldisposta a Primavera. Há pouco fui a uma aldeia aqui perto comprar laranjas. Por vezes, tenho umas quedas no bucolismo e imagino que, consumindo produtos da zona, estarei a animar a economia local. Pura fantasia. Comentei que o céu estava muito escuro e recebi como resposta da vendedora de que iria chover lá para as cinco horas. É o que dizem, acrescentou, não fosse eu pensar que ela era uma profetiza de outros tempos. Profetiza ou não, a realidade é que chove e estamos em cima das cinco da tarde. A indisposição da Primavera, tema inicial do escrito, talvez se deva a ela rejeitar a realidade de já ter nascido, de estar numa atitude de negação. Imagino que preferisse ficar onde estava por mais uns dias, até para ver como param as modas por estes lugares. O pior foi o Inverno ter-se recusado a continuar em funções e, para não haver um vácuo estacional, a Primavera lá chegou, mas tristonha, zangada, sem aquela exuberância que toca nos corações para os incendiar, para que os Papagenos deste mundo encontrem as suas Papagenas e, sobre a Terra, existam muitos Papageninhos e Papageninhas, uma grande família de passarinheiros que trabalhem nas florestas da Rainha da Noite, essa malvada. Escuto um Stabat Mater Dolorosa, de Orlando de Lassus, interpretado pelo The Hilliard Ensemble. Acho estas peças da Renascença mais adequadas ao dia de hoje do que a maçónica Flauta Mágica, de Mozart, de onde veio a família dos Papagenos. O domingo entardece. Quando dei a volta pela cidade, quase não se via ninguém, tudo recolhido ou, o mais certo, eu vivo numa cidade fantasma, de onde os habitantes foram evacuados, mesmo sem qualquer ameaça de guerra. Talvez por precaução, pois nunca se sabe do que é capaz a Rainha da Noite.

sábado, 19 de março de 2022

Carbonária da língua

Descobri há dias onde, no Word, se selecciona a forma como a correcção ortográfica pode ser verificada. Como vivemos numa sociedade marcada pela liberdade de escolha, são oferecidas três possibilidades de correcção – em honra de Milton Friedman, imagino eu – para o cliente português escolher como quer ver corrigida a sua ortografia. Temos uma versão pré-acordo, uma versão pós-acordo e, para os indecisos, uma versão que é, ao mesmo tempo, pré e pós. Em tudo o que é sério ou que me dá algum prazer, uso a versão pré-acordo. Nos usos triviais marcados pela necessidade, uso o pós-acordo, adoptado por quem ordena as coisas que não devia ordenar. A partir dessa descoberta, não há dia em que não saltite entre pré e pós. Não uso a possibilidade dupla, porque se deve evitar a promiscuidade. Esta não é apenas responsável pelo alastrar de doenças sexualmente transmissíveis, mas também de formas ortográficas hilariantes, em que o pobre escrevedor tanto escreve concepção como conceção, numa algaraviada destituída de sentido. Neste momento, como estou a usar a versão pré, o Word assinala, e muito bem, conceção como erro. Caso mude para a versão pós, a língua também muda. Passa a ser erro concepção. Em tempos desenvolvi uma teoria extraordinária contra o acordo ortográfico. Embora ninguém a tivesse levado em consideração, penso que fornece, através de um poderoso argumento por analogia, razões suficientes para pôr fim ao desvario do pós-acordo. Explicava eu que, por exemplo, as consoantes mudas são os vestígios do passado da nossa língua. Ora, também os castelos, as ruínas romanas, os mosteiros onde não há monges, etc. são vestígios da nossa história. Apagar as consoantes mudas é tão criminoso, como destruir o castelo de Guimarães ou de S. Jorge, Conímbriga ou o mosteiro da Batalha. Ninguém me deu ouvidos e agora anda por aí um linguajar que perdeu o vínculo à história da nossa língua. A culpa de tudo isto começou há muito, quando, no furor da República, uns carbonários da língua decidiram bombardear a presença grega na ortografia portuguesa. Aviso aos mais novos: os carbonários portugueses, incluindo os da língua, não o eram porque gostassem particularmente de esparguete à carbonara, embora as duas palavras, nascidas em Itália, tenham a mesma origem, o carvão.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Ginástica

Olho pela janela do escritório. Está uma tarde luminosa. O céu tem estado de um azul puríssimo. Nos campos de jogos da escola aqui ao lado, bandos de adolescentes, enfileirados, correm batendo bolas de basquetebol, é o que me parece. Sempre são uns duzentos ou trezentos metros de distância. Imagino que estarão numa aula de Educação Física. Eu sou do tempo em que não havia Educação Física. O que tínhamos era Ginástica, um eufemismo para uma coisa em que se era posto a correr à volta de um campo ou a fazer corta-mato, enquanto o professor lia o jornal ou punha a vida em ordem. Desconfio, embora sem qualquer prova, que havia, por esses tempos, um programa por cumprir, mas os professores – se o eram, pois devido à escassez eram recrutados uns curiosos que tinham sido militares ou praticado algum desporto – tinham uma grande liberdade curricular. Hoje em dia já não será assim, mas isto é apenas uma suposição. Refiro-me à província. Em Lisboa ou no Porto, nos liceus as coisas seriam diferentes. Os senhores doutores que ensinavam por lá seriam mesmo licenciados. Por aqui, muitos senhores doutores, gente com real destaque na vila provinciana e pacata, era gente com cursos por completar há muito, que tratava da vida dando umas aulas. Havia-os bastante talentosos. Tive um, um autêntico cavalheiro, que me ensinou Francês. Mais tarde descobri que era senhor doutor por ter passado por Coimbra, onde se dedicou a fazer umas gincanas e outras actividades extracurriculares, embora se tenha esquecido de estudar. Coisa que acontecia a muito boa gente. Seja como for, foi um dos melhores professores que tive. Nas aulas, fumava desalmadamente cigarros Monserrate. Era um tempo heróico. De tal maneira, que o primeiro cigarro que fumei foi na casa do director do colégio que frequentava. Era amigo de um dos filhos. Esse director, um senhor doutor a sério, era das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje, e, apesar de nunca ter sido seu aluno, foi outro dos professores que me marcou. E não por causa do tabaco, apesar de ele ser um fumador inveterado. Do que me fui lembrar.

quinta-feira, 17 de março de 2022

A rameira da realidade

O céu mudou de cor, abandonou o agoirento laranja e abraçou a cor cinza, tudo numa ordem irrepreensível. Se ontem o céu parecia em fogo, faz sentido que hoje aparente ser cinza. O que terá ardido é um mistério sem solução. A nossa espécie, por vezes, entrega-se a grandes quimeras. Crer que tudo poderá explicar recorrendo ao cérebro com que foi dotada. Ora, por mais actualizações que o software que o gere sofra, ele, esse hardware neuronal, tem limitações, as quais são inultrapassáveis, a não ser que se mude também o hardware, mas nesse momento já não seremos seres humanos, mas outra coisa qualquer. Talvez fosse nisso que estava a pensar Nietzsche quando anunciou o advento do super-homem. Com outro hardware esse ser pós-humano haveria de produzir outro tipo de software e, por isso, de valores. O século XIX foi um tempo muito propício a este tipo de ficções. Um outro autor desse século profetizou o advento, eliminada a propriedade privada, do paraíso na terra. Aquilo deveriam ser tempos terríveis, pois não havia quem não quisesse pôr-se a milhas da realidade em que vivia. Uns fugiam de si, outros da sociedade, mas acabaram todos por morrer prosaicamente no corpo que eram e no lugar em que viviam. A realidade é uma rameira com grande experiência e nunca deixa de levar a sua avante.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Invasões

Esta luz alaranjada que escorre do céu enlouquece-me. Talvez esta afirmação seja falsa. Verdadeira poderá ser outra. Vejo uma luz alaranjada a escorrer do céu porque estou louco. Também pode acontecer que eu apenas esteja numa deriva narcísica e que a cor da luminosidade nada tenha a ver comigo, mas com os próprios céus que enlouqueceram. Se assim for, adiro ao temor dos gauleses e olho constantemente para cima para me proteger caso os céus comecem a cair. Há ainda outras possibilidades. A coloração celestial ser um presságio nefasto, mas não é isso que escuto no vozear dos adolescentes que jogam à bola na praceta. Não lhes toca onda ruim de qualquer mau prenúncio, logo não se trata agoiro negativo. As forças do mal têm andado demasiado activas nestes últimos tempos para terem energia para lançar novo ataque. Pode também acontecer que alguns anjos se tenham entregado a tortuosas experiências estéticas e tenham dito: vamos lá pintar o céu de amarelo para ver o que acontece. Dito e feito, pintaram o céu de amarelo. Esta é uma boa explicação, porventura a melhor. A que me parece menos verosímil é a da história das areias do Sahara terem decidido invadir a Península Ibérica. Quem acredita em invasões?

terça-feira, 15 de março de 2022

Exaltação e exaltados

Estes são dias de exaltação. Anda tudo um bocado exaltado, até eu que já não tenho idade para isso, desabafou comigo, a meio da manhã, o padre Lodo. Respondi-lhe que sempre imaginei os Settembrini como cultores de uma exaltação de fundo disfarçada pela pose serena de quem contempla o mundo com ironia. Ele riu-se, depois lamentou os seus amigos ucranianos. Conheci vários, continuou, quando participava em reuniões ecuménicas por essa Europa fora. Não apenas sacerdotes, mas também leigos. Os religiosos de leste são diferentes dos latinos, possuem um vínculo mais sério com aquilo que a religião tem de exigente e sacrificial, enquanto os de cá parecem mais comprometidos com a vida confortável, como se fossem guiados por um ideal burguês. Eu mantive-me em silêncio, enquanto ele continuava a sua comparação. Ao perceber que eu não intervinha, disse-me: já sei o que está a pensar, que eu sou esse protótipo de sacerdote burguês. Não digo que não, mas o que hei-de fazer, um pouco de boa vida ajuda muito a uma vida boa. Quase que estive para lhe perguntar se não tinha pena de não ter filhos e netos, mas calei-me. Depois, despediu-se, informando que tinha entre mãos a correspondência, outrora secreta, entre o seu avô e o incorrigível Leo Naphta. Nem tudo o que corre por aí corresponde à verdade, mas isso passa-se com tudo, concluiu.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Múmias

Sou informado de que há oito mil anos já havia múmias no vale do Sado. Talvez, imagino, o território português seja o lugar de origem da mumificação. Esta conclusão não a retiro da notícia, mas de ver por aí tanta múmia viva. A mumificação geral da nossa sociedade alguma causa haverá de ter. Esta – a de ser uma antiquíssima tradição – parece-me a melhor explicação disponível. Antes de sermos mumificados, já somos autênticas múmias. Eu sei que há por aí muita gente que se acha o contrário de múmia, pessoas sempre em movimento, sempre com o cérebro a fervilhar de ideias, sempre prontas para lançar o caos. O lamentável é que na essência são autênticas múmias, e o que conta não é a aparência, mas a essência. Há múmias paralíticas – para citar uma séria humorística brasileira cujo nome não se mumificou na memória – e há múmias andantes, múmias de triste figura, talvez parentes, por linhagem colateral, daquele cavaleiro manchego que confundia moinhos com gigantes. As segundas-feiras não deveriam ser propícias para a exibição dos meus dotes de sociólogo, mas, à falta de assunto, não consegui evitar. Pior, seria ter dotes de economista. Punha-me aqui a fazer previsões e, como qualquer economista que se preza, não as conseguiria acertar, mesmo depois dos factos ocorridos. Em economia nem depois dos jogos é seguro fazer previsões. Amanhã, pelas doze horas, Março atingirá o meio do caminho. O tempo voa, embora não se lhe conheçam asas, nem hélices.

domingo, 13 de março de 2022

Conspiração contra o domingo

Contrariamente ao hábito, o almoço de domingo foi cedo. Talvez por isso sinta um leve desconforto. Os hábitos – os velhos hábitos – devem ser conservados e apenas, em última instância, se deve admitir uma alteração, o que não foi o caso. O problema reside no aspecto que logo o domingo toma. Comporta-se como um dia útil, o que é uma maldade para a qual não há nome. Os domingos devem ser dias inúteis. Aliás, qualquer dia que se presasse deveria ser inútil. Eu sei que não somos seres destituídos de corpo e que este nunca se cansa de nos lembrar que a carne é fraca e está submetida à tirania da estrita necessidade. Há na nossa natureza de homo sapiens sapiens, isto é, de homens que sabem que sabem, uma armadilha, a mais cruel e desassisada das armadilhas. Foi-nos dado o poder de pensar e a faculdade de imaginar, mas ao mesmo tempo, como meros animais, estamos submetidos a ter de fazer pela vida. Fôssemos saguins ou marmotas e não haveria lugar para este sentimento de desadequação entre a realidade e o que podemos pensar e imaginar. Como já aqui escrevi – e será um leitmotiv destes textos – a realidade sofre de uma deficiência ontológica estrutural. Nunca é como deveria ser. Pelo contrário, há nela um princípio conspiratório que se compraz em desdizer não só os nossos mais legítimos desejos, como desmente constantemente aquilo que pensamos. Hoje é um domingo com aspecto de dia útil, nem sequer vou ter a melancolia do domingo à tarde. O mundo já não é como era.

sábado, 12 de março de 2022

Em tom de elegia

Nem sei bem a razão, mas há pouco tomei consciência de que no ano passado morreram dois poetas importantes. Primeiro, Pedro Tamen, estava Julho a preparar-se para ceder o lugar a Agosto. Depois, Fernando Echevarría, mesmo no dia anterior à comemoração da República. É possível que tenham morrido outros poetas durante esse malfadado ano, mas disso não tenho consciência. Lembro-me bem de um ano em que a morte também decidiu, naquele arbítrio que lhe rege as escolhas, levar dois outros poetas importantes. Foi o de 1978. Quase eu não tinha idade, embora tivesse ocupado largos meses desse ano com o cumprimento dos meus deveres militares. Nesse longínquo ano, a incansável ceifeira levou Jorge de Sena e Ruy Belo. Este tinha quarenta e cinco anos e Sena ainda não chegara aos sessenta. Nesse ano, também morreu Jacques Brel. Nunca esqueci, pois faziam parte do meu mundo, isto é, do conjunto de referências que começara a construir no início da juventude, seja lá isso o que for. Não vale a pena perguntar-me a razão porque enveredei por este escrito fúnebre. Talvez porque o dia tenha estado triste, talvez porque o Andante tranquilo do primeiro Quarteto de cordas de Joly Braga Santos me tenha disposto para a elegia, talvez porque não tenha mais nada para dizer. Um anjo agastado que habita no meu escritório, não se esqueceu, agora mesmo, de me admoestar. Quem não tem nada para dizer, o melhor é calar-se. Obedeço.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Viagens musicais

Estou a ouvir a quarta sinfonia de Joly Braga Santos, dirigida pelo maestro Álvaro Cassuto. O que me terá dado para estar, numa tarde de sexta-feira, a escutar esta música? Apesar de haver muitos, há menos mistérios no mundo do que se pensa. Vinha para casa almoçar e na Antena 2 passava uma entrevista com Álvaro Cassuto, na qual ele falava das suas gravações, tendo o entrevistador salientado a excelente recepção feita pela Gramophone, uma revista especializada e muito cotada no mundo da música. Eis a razão. O maestro explicou por que motivo o alemão Klaus Heymann – o fundador da etiqueta Naxos e também da Marco Polo – apostava em música erudita pouco conhecida, como a portuguesa. A tese de Heymann mostra que ele é um verdadeiro homem de negócios. Os consumidores de música erudita não estão interessados em mais uma sinfonia de Beethoven ou numa peça de Mozart. Terão pelo menos umas cinco gravações de grande qualidade. No entanto, há no mundo um milhão de coleccionadores de música erudita que se interessam por aquela música quase desconhecida ou, então, que foi esquecida. Além de consumirem, coleccionam. Um mercado com um milhão de potenciais consumidores não é mau. Esta é a vantagem da música relativamente à literatura. As fronteiras das linguagens musicais são muito mais dúcteis do que a das línguas nacionais. Na música não há tradução e com mais facilidade se penetra em universos musicais que nos são estranhos. Por vezes, sou acometido por uma necessidade de fazer viagens musicais. A música do Japão, da Pérsia, do mundo árabe ou o canto bizantino são lugares que gosto de visitar. Não é preciso passaporte nem saber a língua. Basta deixar-se invadir por essas sonoridades estranhas. Acho que vou passar uns dias a ouvir a música de Joly Braga Santos.

quinta-feira, 10 de março de 2022

No manicómio

A certa altura, no romance Solaris, Stanislaw Lem escreve: Naturalmente, podemos sempre fugir, nem que seja para o Satelóide, e daí enviar um SOS. Mas vão-nos tratar, obviamente, como loucos. Fecham-nos num hospício na Terra até ao dia em que retirarmos tudo o que dissemos. Excertos como este ajudam-nos a compreender a situação em que estamos. Teremos perdido a memória, mas parece óbvio que já devemos ter vivido noutro lugar e, na altura, não soubemos manter a boca fechada. Dissemos o que não devíamos ou o que alguém não queria ouvir, o que, na prática, é a mesma coisa. Resultado, fomos encerrados na Terra, a qual, como facilmente se pode comprovar, não passa de um manicómio. Mesmo que fôssemos sãos de espírito, o facto de aqui estarmos e disto ser um manicómio tem um efeito na sanidade mental da espécie. Em Roma, somos sempre romanos. Logo, num manicómio só nos resta ser loucos. Ora, há certos movimentos que andam à procura da palavra perdida, para nos podermos retractar. Que palavra será essa? Ninguém sabe. Este texto, por exemplo, é uma evidência do estado de insanidade mental da espécie humana. A princípio atribuí-o a ter estado todo o dia a trabalhar num documento cuja utilidade é nula, embora seja fundamental. Na Terra em geral e nesta em particular, só o inútil é fundamental. Agora que citei o Lem, tomei consciência de que a insanidade textual se deve à tal palavra que foi dita fora da Terra e que nos condenou a vir para aqui, pois, confidenciou-me quem sabe do assunto, o planeta Terra é um dos vários manicómios existentes na nossa galáxia, para onde são enviados aqueles que são tidos por loucos. Garantiram-me, também, que a regra diz que depois de curados da loucura, voltam para o lugar de onde foram exilados, mas não há memória de alguém que tenha sido dado por curado. Apanhei a realidade em flagrante delito, a mentir em acto. Enquanto a minha aplicação meteorológica me informa que não chove, nem há previsão para que isso aconteça hoje, os meus olhos vêem chuva a cair sobre ruas e prédios. A realidade é uma mentirosa ou, então, os meus olhos são enganadores.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Apetites

Não tarda e estará cumprido o primeiro terço de Março. Nestes últimos dias, tem sido fiel à sua natureza de mês invernoso. Chuva, vento, algum frio, manhãs de Inverno, tardes de Verão. Depois de almoço, sentei-me em frente ao computador, deixando Março na rua, apostado em adiantar alguns assuntos que tenho entre mãos. O resultado não foi brilhante. Adormeci. Agora dói-me o pescoço. Fui acordado por uma chamada. Alguém precisava de uma informação e fez-me o favor de interromper o meu sono, acordando-me para a miserável realidade. Passei os olhos pela informação. O mundo continua a ser mundo, um sítio onde o deplorável acontece com demasiada facilidade. Leio que descobriram uma nova variante do vírus que nos preocupava antes da guerra ter renascido na Europa. Resulta do casamento das variantes Delta e Ómicron e foi baptizada como Deltacron. Esta é uma excelente ideia para dar nomes aos filhos. Imaginemos que um João casa com uma Maria. O filho seria Jomar. Caso fosse uma filha, Marjo seria o ideal. Isto enriqueceria a nossa onomástica e dispensava inclusive a criatividade dos nossos irmãos brasileiros. Agora, vou dedicar-me aos assuntos a que me deveria ter dedicado quando adormeci. O que me apetecia mesmo era ir dormir, mas há que dominar os nossos apetites.

terça-feira, 8 de março de 2022

Problemas de orgulho

Hoje o tempo conseguiu estar de acordo com a previsão meteorológica da aplicação que uso no telemóvel. Choveu, como tinha sido predito. Agora, porém, o céu está mesclado de azul e vários tons de cinzento. Não chove e um sol sem convicção derrama-se sobre as ruas da cidade. Na praceta aqui em baixo, um pai e um filho jogam à bola. O pai tenta industriar a criança nas artes do drible e do pontapé. Ela, embevecida perante o seu herói, imita o modelo. É assim que se produz a aprendizagem, por imitação de modelos, o que tem as suas vantagens, mas grandes desvantagens, caso os modelos sejam maus. E não faltam por aí maus modelos, como se pode verificar pelo estado em que se encontra o mundo. Por vezes, muito mais vezes do que seria admissível, entrego-me a ociosidades completamente dispensáveis. Por exemplo, à leitura de certos livros repletos de coisas que não sei classificar. Um deles explica-me que há proposições que não sendo verdadeiras também não são falsas. Nem todas as proposições não verdadeiras são falsas, enfatiza a prosa. Há umas que se limitam a ser não verdadeiras. Depois, adianta um exemplo: ‘O André é mais alto do que…’. Argui o autor que esta proposição não é verdadeira nem falsa, é apenas não verdadeira por ser incompleta. Ora, se é incompleta, não é sequer é uma proposição e logo a questão da verdade e da falsidade não se coloca. Como se pode ver, estou, mais uma vez, sem assunto. Isto é terrível, pois o mundo borbulha de assuntos. Por exemplo, leio que, segundo o Patriarca Ortodoxo da Rússia, Cirilo I, a culpa da guerra na Ucrânia é do orgulho gay. Até que enfim que encontro uma explicação plausível para o acontecimento. Como se pode perceber, isto tem implicações extraordinárias sobre aqueles que parece terem orgulho em invadir um país mais pequeno e menos armado, que sentem prazer em bater nos fracos. Gostava de saber o que anda esta gente a fumar lá para os lados de Moscovo. Ao menos podiam ler livros sobre proposições que não são verdadeiras nem falsas, isso não mata ninguém e, que eu saiba, não é razão de orgulho gay, o que poderia descansar o patriarca.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Percussão

A manhã de trabalho em casa. Coisas urgentes entre mãos, necessidade de silêncio e concentração. O mundo, porém, insiste em mostrar o seu desconserto. Num dos apartamentos contíguos, alguém decidiu testar a capacidade de as paredes percutirem o som dos martelos. Entrega-se com denodo à tarefa. Por vezes, pára, parece faltar-lhe energia, mas logo recupera e continua a testar a capacidade percutora das paredes. Estas respondem com prontidão, o pior são os meus ouvidos. Também é verdade que poderiam ter melhor qualidade e, em casos como este, fazerem orelhas moucas. Isto lembrou-me o antigo adágio ao gosto popular, que por aqui corria: mulher séria tem orelhas moucas. Não é fácil ligar a seriedade à surdez, mas a sabedoria popular não seria propriamente igualitária e estaria longe de se preocupar em justificar aquilo que lhe ia no ânimo. A percussão continua, mas agora em harmonia com uns guinchos vindos da rua, onde um pequeno bando de adolescentes sofre o peso das hormonas, tudo acompanhado pelo ronronar irritante de um camião, cujo motorista se esqueceu de desligar o motor. A minha aplicação meteorológica informa-me que hoje há 94% de possibilidades de chover, embora de momento não exista precipitação. O vento sopra de sudoeste a 4 km/h. Não tem pressa de chegar, tal como o vizinho percutidor não tem pressa de acabar o concerto. Imagino que tenha vocação de baterista.

domingo, 6 de março de 2022

Endomingamento

Por aqui, as promessas de chuva dissolveram-se. Se nem São Pedro se mantém fiel à sua palavra, o que poderemos esperar dos outros homens que nem santos são? Está um domingo rumoroso de Primavera. Dei uma volta pela cidade, as pessoas dividiam-se entre as compras e o endomingamento, embora hoje se endomingue muito menos que outrora, ou, antes, se endomingue de forma diferente, descuidada. Neste tempo sem graça, toda a gente faz gala em vestir-se de forma leve, desportiva, casual (em inglês, claro), como se estivesse enfastiada do dress code que é obrigada durante a semana, embora a maior parte não esteja sujeito a qualquer código de vestuário. Ora, a questão é outra. No tempo em que o domingo era um dia de festa, uma festa solene, cujo centro era a missa, as pessoas vestiam-se de forma cerimoniosa, pois tinham de participar numa cerimónia. Agora, o domingo é apenas um dia de ócio, um retemperar forças para os dias de negócio. Creio que a dessacralização do domingo teve um enorme incremento com a possibilidade de a Eucaristia semanal ser ao sábado. Ofereceu-se uma alternativa, mas as pessoas e optaram pela terceira via. Nem sábado, nem domingo. Nunca. Estas últimas reflexões sobre a missa não me pertencem, mas ao padre Lodovico, que desabafou comigo, ainda há pouco, numa longa conversa telefónica. Veio dar-me a novidade de que esteve em casa retido devido ao vírus. O que vale, informou-me, é que não teve sintomas, a não ser um certo anasalamento da voz. Depois, entrou no assunto da Ucrânia, de como o coração se lhe partia, o medo pelos amigos que por lá tinha. Hoje, porém, evitou a escatologia e não referiu o Anticristo. A COVID retemperou-lhe a veia racionalista, marca essencial da família Settembrini, a que ele, apesar de jesuíta, não deixou de pertencer. A escatologia pertence mais à família dos Naphta, mas esse é outro assunto que não vem ao caso. Como é habitual, ao domingo almoço mais tarde. Enquanto escrevo, vou espreitando a rua e ouvindo um disco de Jazz com o título Copal, do Eurico Costa Trio. Uma descoberta recente e interessante. O pior é mesmo a falta de chuva.

sábado, 5 de março de 2022

Conspiração contra as famílias

Acabei de fazer uma ronda electrónica pelos covidados da família. O curioso é que a origem não é a mesma. Há três focos diferentes de contaminação. Isto faz suspeitar que os números de novas infecções que são adiantados nos últimos dias estão longe da realidade. Deve haver muita gente que não é detectada. Agora, oiço uma voz perguntar avó, posso fazer um intervalo? A vida é dura. As pobres pequenas vieram para cá quatro dias para trabalhar. Nem houve oportunidade para ir dar um passeio. Desde o tempo em que entrei na escola primária, e isso foi há muitas décadas, que acho que tudo isto não passa de uma conspiração contra a felicidade geral das famílias. Introduz uma angústia pior que a do guarda-redes no momento do penalty. Claro que não advogo a ignorância nem o analfabetismo, apenas quero salientar que a espécie poderia ter sido melhor fabricada. Deveria aprender Matemática, Física, Química, Gramática, História ou Filosofia do mesmo modo que aprende a andar ou a falar, mas não, alguém – por certo, um deus distraído – fez com que tudo tivesse de ser adquirido de modo penoso, com esforço, exigindo aquilo que os latinos designavam por conatus. Isso se exceptuarmos alguns felizardos que, não se sabe bem a razão, não foram apanhados pela distracção do deus e acham-se como peixe na águaa quando o assunto é aprender. Ainda não saí de casa, mas já percorri as varandas para observar o mundo. Aquilo que vi não é particularmente exaltante, mas o melhor de tudo é mesmo isso, não haver coisas exaltantes, pois estas, por norma, são acompanhadas de verdadeiras tragédias, como se está a ver. As acácias da praceta estão completamente despidas, os ramos nus fazem lembrar dedos apontados ao céu, numa acusação silenciosa. A minha aplicação meteorológica informa-me que há 79% de probabilidade de chover. Repare-se como estas coisas são feitas. Não se comprometem. Se não chover e forem postas perante o falhanço da previsão, argumentarão que havia 21% de probabilidade de não chover, o que significa que jamais falham uma previsão, a não ser que arrisquem os 100% ou o 0%. Os dias já estão muito maiores. Não tarda, chegará a hora de almoço. Depois, elas, as pobres pequenas, vão-se embora.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Nada

Hoje retomei as caminhadas. É evidente que dizer retomei significa mais a expressão de um desejo do que a expressão de uma verdade. O facto de o ter feito hoje não significa que o continue a fazer nos próximos tempos. Estava um vento norte frio, irritado e irritante. Aproveitei essa deambulação para deixar o pensamento com rédea solta. Assim, ia pensando ora nisto, ora naquilo, ora naqueloutro. Esta é a melhor forma de não pensar nada. Pelo menos para pessoas como eu que não se entregam à meditação, a qual, dizem, tem o condão de nos conduzir ao não pensamento. Não pensamento não é a mesma coisa que pensar em nada. Neste último caso, o pensamento tem por objecto o nada e sobre este há muita coisa para pensar. Consideremos, a título de exemplo, a obra de Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada. Dedica quase oitenta páginas, na tradução portuguesa, ao problema do Nada. Se alguém pensar que sobre o nada nada há a pensar, então equivoca-se. Portanto, parece-me uma conclusão lógica, não pensar e pensar em nada são coisas muito diferentes. Quantas vezes uma pessoa é apanhada a pensar em nada. Estamos muito absortos e alguém pergunta: estás a pensar em quê? Em nada, respondemos. Portanto, pensar em nada é ter aqueles pensamentos que não queremos partilhar com terceiros. Depois de ler o que escrevi até aqui, começo a desconfiar que fazer caminhadas não dá grande saúde mental. As minhas netas puseram-se a ouvir uma música própria de adolescentes. Aposto que se lhes perguntasse: o que estão as meninas a ouvir? Logo me responderiam: nada, avô. Se se pode ouvir nada, então também se pode pensar nada. O meu neto, soube-o agora, está com COVID. Para não se sentir só, também o pai, a mãe, uma tia avó e a bisavó foram apanhados pelo vírus. Este parece resolvido em baptizar todos na sua congregação viral. A noite caiu e a sexta-feira está quase acabada, quase feita em nada.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Volubilidade

Está um verdadeiro dia de Março. Cumpre à risca o ditado popular: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão. Quando, manhã cedo, espreitei para a rua, chovia. Agora, está sol. É um sol deslavado, anémico, com um brilho sem glória. Talvez a culpa seja do vento. Parece irritado. Devem ter acordado Éolo demasiado cedo, agora há que aturá-lo. Venta e bufa pelos quatro cantos. Hoje já fui fazer uma visita. Nunca é fácil visitar quem nos trouxe ao mundo e, ao chegarmos perto, perguntarem-nos quem somos. Quais serão as memórias que desaparecerão em último lugar? As dos filhos? Outras, mais arcaicas? Nestas circunstâncias sinto-me sempre na pele do Romeiro, do Frei Luís de Sousa. Sou ninguém, na verdade. Ainda há dias escrevi que os pinheiros, cedros e ciprestes da escola aqui ao lado estavam petrificados. Hirtos, incapazes de se inclinarem, estátuas vegetais erguidas aos céus.  Agora, porém, o vento fá-los rodopiar. Inclinam-se para um lado e para o outro, como se fossem pêndulos invertidos, enquanto, expulso o sol, a chuva os fustiga, não sem violência. Voltemos à sabedoria popular, já que não tenho outra mais à mão: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de rainha, noite corte que nem foicinha. Não faço a ideia do que isto quer significar, mas se o encontrei no Ciberdúvidas, então há-de querer dizer alguma coisa. A chuva já parou e o sol torna-se a rir, mas apenas um pequeno sorriso escarninho. Tenho de ir lembrar as minhas netas que chegou a hora de fazerem um intervalo no estudo. Embora tenha algumas dúvidas que estejam a estudar, mas há que fingir que assim é. Os pais do meu neto foram apanhados pelo COVID, temo que também ele o tenha sido. Voltou a chover. Que volubilidade.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Destino

Na antiguidade clássica greco-latina, dava-se uma especial atenção ao fado ou destino. Este era percebido como uma espécie de conspiração da ordem cósmica que, nos trazia, aquilo que desde sempre e necessariamente nos estava destinado. Não haverá quem não sinta, em certas circunstâncias, ser vítima desse destino. Ao vermos nas televisões e nas redes sociais aquilo que se passa na Ucrânia facilmente somos tentados a ver naquele acto incompreensível essa mão de um destino metafísico terrível. A ideia de destino nasce de uma impotência que atinge o homem e não de qualquer programação dos deuses ou da mecânica da natureza. Essa impotência – uma impotência radical – é a incapacidade de se desfazer o que foi feito, de voltar atrás e fazer outra coisa. Há uma imutabilidade nos factos. O que aconteceu não pode ser desfeito, embora, muitas vezes, pudesse não ter acontecido. É essa impotência de desfazer o feito que gera em nós uma ideia de fado ou de destino. Se o acontecido é necessariamente imutável, então as causas que lhe deram origem eram necessariamente aquelas. Isto é uma óptima justificação para qualquer tirano. A sua tirania não é responsabilidade própria, mas de um fio tecido por alguma entidade metafísica. Acho que estou a ficar perturbado. Em vez de me estar a preparar para uma daquelas videoconferências que têm a extrema utilidade de não servirem para nada, ponho-me a divagar sobre o destino e a maldade dos déspotas, infringindo inclusive a proibição do autor de tocar em assunto que tenham qualquer aroma político. Dento de mim, porém, há uma voz que sopra, num estranho vernáculo, que um tirano não é propriamente uma entidade política, mas a encarnação do destino para assediar os homens. A praceta aqui em baixo está já envolta na sombra da tarde. No parque infantil, um casal acompanha as aventuras da filha. Os carros passam langorosos na avenida, como se os seus condutores fossem eternos. As minhas netas acabaram de chegar para passar uns dias de férias. A videoconferência vai começar. O mundo está quase salvo.

terça-feira, 1 de março de 2022

Irritações

Constato que a guerra na Ucrânia libertou os portugueses da COVID-19. Depois de dois anos em que qualquer coisa relacionada com a pandemia era esticada até à exaustão, de um momento para o outro, os mortos por COVID-19, que continuam a ser muitos, passaram a nota de rodapé. O sofrimento – dos outros, claro – é sempre excitante, e aquilo que a comunicação social procura é um Viagra para as audiências. Não quero dizer que no meio de tudo isto não exista trabalho jornalístico de grande mérito. Há e muito, mas também uma exploração infernal das emoções que excede em muito o papel da informação. Parece que iniciei Março irritado com o mundo. É uma aparência falsa. O mundo é mundo, isto é, um lugar onde o mal encontra sempre lugar para se manifestar. Também permite algum bem. Mal ou bem mundanos já não têm poder de irritação sobre mim. Coisas mais triviais, porém, podem irritar-me. Por exemplo, ir a dois supermercados e já a caminho de casa ter a súbita revelação que ainda falta uma coisa indispensável, o que obrigará a pisar uma terceira superfície. Isso irrita-me, até porque poderia ter havido uma lista de compras. Esperava com ardor uma terça-feira de Carnaval com chuva, mas o destino quis que fosse cheia de sol. Agora tenho um artigo para escrever, uma súbita encomenda de dois mil e quinhentos caracteres, sem espaços. Sempre me há-de ocorrer alguma coisa sobre os males que afligem o mundo. O que me apetecia, porém, era outra coisa. Ler com tranquilidade um livro que tenho diante de mim, Libertad, Gracia y Destino, de Romano Guardini, mas parece que o destino não me destinou a graça de ter a liberdade de o fazer. De facto, podia começar melhor este mês em que o Inverno se há tornar em Primavera.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Fevereiro triste

Este Fevereiro fina-se sem brilho nem glória. Não nos livrou da peste e trouxe-nos, ao terminar, a malfadada guerra. Há meses em que não se pode confiar, mas isso só sabemos quando eles se põem a caminho. Estamos em pleno Carnaval, mas máscaras só vejo as cirúrgicas ou outras do género. Não é que a pandemia ainda ocupe as preocupações das pessoas. Estão cansadas do vírus e prontificam-se a fazer com ele negociações para um cessar-fogo e, caso seja possível, umas tréguas definitivas. Hoje, como na maior pare dos dias, só me ocorrem trivialidades. Nem as minhas deambulações pela cidade me deram motivo de acções gloriosas, cuja gesta possa vir aqui contar. Resta-me anunciar que no friso das orquídeas, expandido, entretanto, duas já floriram. Uma tem flores amarela, as da outra são fúcsia. Esta última afirmação é muito duvidosa, mas não me ocorre nada melhor, a minha paleta vocabular de cores é lamentavelmente exígua. Olho pela janela do escritório. O pequeno bosque da escola ao lado parece petrificado. Pinheiros, cedros e ciprestes não bolem. Presume que o vento tenha ido soprar para outro lado. Um casal de meia idade atravessa a praceta. Ele vai à frente, ela atrás, cada um mergulhado no seu mundo, no cansaço do outro, na melancolia que é a vida. A expressão meia idade é espantosa. Supõe que exista uma idade inteira e que, ao partir-se esta ao meio, se fica na meia idade. Tenho tentado ler aquele livro de Alberta Pimenta com letras absurdamente pequenas. Gostaria mesmo muito de o conseguir ler, mas não podemos ter na vida tudo o queremos, ou desejamos, ou gostamos, ou. Pior que isso é este Fevereiro sem chuva, encharcado de pandemia e guerra.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Lupa de leitura

Em Lisboa, um amigo insistiu, por motivos que não vêm ao caso, em emprestar-me um livro, esgotado há muito, de Alberto Pimenta, A magia que tira os pecados do mundo. Percorri as páginas e perguntei-lhe se achava que eu ia ler aquilo. De certeza, respondeu. Abri o livro e coloquei-o à frente dos olhos dele. Achas que consigo ver esta letra? Pois é, se tivesse sido editado com letra normal, o tamanho do livro disparava assim como o preço, e ninguém o comprava. Tudo bem, mas não consigo ler uma letra tão pequena. Compras uma lupa de leitura e lês. Eu ri-me e lá trouxe o livro, que jaz sossegado no lado esquerdo da minha secretária. Duvido que compre a lupa de leitura. Logo, a probabilidade de ler o livro é muito menor do que a de não o ler. Muitos livros li com este tamanho de caracteres, mas tratavam-se dos célebres livros das colecções 6 Balas, Cow-Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas pérolas literárias foram uma das minhas iniciações à literatura. Uma pessoa começa a ler as aventuras do Pinóquio, passa pelo 6 Balas, dá um salto à Enid Blyton, embrenha-se no Sherlock Holmes e, não tarda, está a ler Camus, Sófocles, Dostoievski, Thomas Mann, Broch e sei lá mais o quê. Voltando à dimensão da letra. Uma coisa é ter nove, dez ou onze anos, outra é já ter entrado na classe dos sexagenários. Lembrei-me, agora mesmo, que a minha mãe há uns anos insistiu em que eu aceitasse uma das lupas de leitura dela, o que fiz para a não contrariar. Experimentei-a no livro. De facto, os caracteres tornam-se legíveis, mas ao fim de duas páginas hei-de ficar com o braço cansado. Estou convencido de que o próprio autor, com a idade que tem, não consegue ler o seu livro. Por que razão haveria eu de o ler? Parece que estamos no Carnaval. Hoje é domingo gordo. Já era tempo de ele fazer dieta. O Carnaval, assim como o circo, é uma coisa que nunca deixa de me encher de uma certa tristeza, uma pena metafísica pelos pobres foliões. Mais valia que tentassem ler um livro com letra mínima, nem que tivessem de comprar uma lupa de leitura.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Um mau conselheiro

Levantei-me tarde. Estava cansado, pois o dia de ontem teve alguma turbulência, excessiva para o meu actual modo de vida. Pelas 18 horas, lá estive na Cinemateca, a fazer parte do painel de apresentadores do livro do qual sou um dos autores. A coisa foi dramática, não porque tenha havido algum drama, mas porque os textos tinham todos mais de uma dúzia de anos e os autores envelheceram juntamente com os textos. Havia quem tivesse ultrapassado os oitenta anos, quem se aproximasse, quem excedesse os sessenta. Apenas um autor - um jovem autor - deveria aproximar-se dos cinquenta. O espaço, diga-se, é excelente. A apresentação ao ar livre soube bem, apesar de para o fim ter ficado um pouco de frio. Aquilo que eu disse não interessará a ninguém, embora tenha sido óptimo para mim, pois livrei-me de vez daquele assunto que, volta e meia, me assediava. Depois, um jovem casal veio ter comigo. Estudam na mesma faculdade em que estudei e no mesmo curso. Perguntaram-me o que era preciso fazer para ingressarem na carreira de onde anseio sair. Respondi-lhe: não pensem nisso, aproveitem o vosso curso, estudem e divirtam-se, depois terão tempo para pensar nessas coisas. Acho que nunca fui muito bom a dar conselhos.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Irritações escatológicas

O Anticristo tem muitas faces. Surge aos olhos dos incautos sempre como uma novidade, mas nunca deixa de ser o mesmo trampolineiro cruel. Ao escutar isto, respondi: nunca o ouvi falar desse modo, o que se passa consigo, padre Lodo? Não sabe o que se passa? Não ouve notícias? Parece-me que não preciso de mais explicações. Sim, eu sei o que se passa, mas nunca o padre Lodo usou esse tipo de linguagem. Muitas vezes, pensei que era um padre demasiado racional, pouco interessado nessa linguagem vinda dos recantos obscuros da teologia. Ele riu-se e eu imaginei-o a fazer uma careta ao telemóvel. Depois, continuou: não bastava a pandemia, agora uma guerra. E quando se trata de guerra sabemos quando e onde começa, mas nunca sabemos quando acaba nem se nos vem bater à porta ou não. Estou com medo, prosseguiu, não por mim, que tenho idade suficiente para ir prestar contas ao Altíssimo, mas por toda esta gente. Sim, o Cristo só tem uma face, mas o Anticristo tem muitas. Perguntei-lhe se não andava demasiado embrenhado na literatura escatológica. O diabo é que ando, retrucou. Padre, acalme-se, disse-lhe eu. No fim-de-semana, encontramo-nos em Lisboa, juntamos o grupo e vamos jantar. Haveremos de resolver os males do mundo. Neste instante, ouvi a sua voz quase irritada: quantas vezes lhe preciso de explicar que os males do mundo não têm solução. Se assim é, ripostei, o que não tem solução solucionado está. Ele não se riu. Eu também não.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Jogo da cabra-cega

Já há muito que não ouvia o telefone fixo tocar. De tal maneira que demorei alguns segundos a perceber que era ele que estava a dar sinal. Corri para o atender, mas ao levantá-lo da base, ele apagou-se, literalmente. De tanto não ser usado, presumo que decidiu entregar-se a um hara-kiri. Ao menos morro com honra, terá pensado. Fiquei sem saber quem terá ligado, mas o mais provável é que fosse um engano. As pessoas que me ligavam para o fixo já deixaram de ligar seja para onde for. A não ser que alguém tenha tido uma reminiscência e tenha decidido usar o fixo para dar vazão ao que lhe iria, na altura, na memória. Aqui que ninguém nos ouve, dispenso reminiscências. Alguém que tenha memórias, boas ou más, que as guarde para si, que é aquilo que eu faço. A memória tornou-se para este narrador sem narrativa uma questão melindrosa, pois coisas que nela deveria guardar, caso sejam recentes, nem à porta chegam. São esquecidas de imediato. Outras, com muito tempo, parecem manter-se inalteradas, depois há aquelas que jogam à cabra-cega. Imaginemos que estou a falar com alguém e quero dar a referência de um romance de que muito terei gostado. Por exemplo, Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. Pode acontecer que me ocorra o título, mas não o autor. Posso chegar a dar informações tão precisas como o ano da morte de Sena, o facto de ter vivido exilado no Brasil e na Califórnia, mas não me ocorrer o nome. Pode acontecer que não me ocorra o título e começar a contar episódios, entregando-me a um devaneio perifrástico. A isto chamo jogo da cabra-cega. Pode parecer uma analogia forçada, mas é o que sinto que a memória faz comigo. Isto pode ter terríveis implicações quanto ao estatuto de verdade das façanhas que por aqui conto. Neste momento oiço alguém dizer ó (nome da minha neta mais nova) larga os cabelos e pensa. O que ela deve pensar é um assunto de geometria. Será, porém, que isto aconteceu mesmo, que a minha pobre neta estava a segurar os cabelos em vez de pensar? Independente dos estatutos ontológico do acontecimento e epistémico da minha afirmação, o caso não deixa de levantar um problema interessante: por que motivo segurar os cabelos impede os neurónios de se entregarem apaixonadamente a amplexos sinápticos?

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Decepção

Tinha desde há dias um caixote por abrir com uns vinte livros. Comprei-os nesses leilões que existem em sites onde se vende de tudo, pelo menos é o que imagino. O alfarrabista leiloeiro nunca tem pressa. Pode estar meses sem dar sinal de vida, a não ser colocar livros na página do leilão. As pessoas fazem os lances, o tempo do leilão expira e ele nem dá sinais de que respira. Depois, inopinadamente, lembra-se de visitar o site e envia uma mensagem com o preço a pagar e um pedido de desculpas mais ou menos inverosímil. Já mudou de casa, já esteve doente várias vezes. Se ele nunca tem pressa para receber, o mesmo não se pode dizer do envio. Mal são pagos os livros, ele remete-os sem mais demoras. A princípio estranhei o modus operandi, mas depois habituei-me e agora faço palpites para saber ao fim de quantos meses ele vai tornar a contactar comigo e, presumo, com os restantes compradores. Não era disto que queria falar, mas da minha decepção ao abrir o caixote e manusear os livros. Tinha a esperança de que num ou noutro houvesse lá qualquer coisa do anterior proprietário, uma dedicatória, uma anotação, uma lista de compras esquecida, talvez uma carta de amor. Não encontrei nada, a não ser, em dois livros, o ex-libris do seu proprietário: Pelo sonho é que vamos, um verso de Sebastião da Gama. Não parece muito original. Omito o nome do suposto proprietário por uma questão de protecção de dados, embora possa confiar ao público as obras e respectivos autores. Tratam-se de Gaimirra (1946), uma recolha de contos de Antunes da Silva, e Bárbara Casanova (1954), um romance de Maria da Graça Azambuja, pseudónimo de Maria da Graça Freire, irmã da escritora Natércia Freire. Como se pode constatar, continuo a rodear-me de livros que ninguém lê. Também eu corro o risco de não os ler, mas hei-de tentar, mesmo que vá procrastinando. Agora, vou postar-me em frente da janela e ver a noite cair, apesar da iluminação pública, já acesa, me estragar o espectáculo. Sempre podia chover.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Fraternidades

O mundo está perigoso, oiço dizer ao passar perto de uma esplanada. Como estamos num Verão em pleno Inverno, as esplanadas estão cheias e as pessoas têm de dizer qualquer coisa, mesmo que não tenham nada para dizer. Talvez a tagarelice seja uma coisa boa. Se toda a gente se dedicasse a ela, é possível que o mundo fosse um lugar melhor. Enquanto falam umas com as outras sobre assuntos nenhuns, não estão a matar-se. Já as conversas sérias têm um potencial de violência que nunca se deve subestimar. Por aqui, chegou o crepúsculo. Dia e noite enfrentam-se hesitantes, a luz difusa parece dizer que nada está decidido, mas sabemos que a noite levará a palma. Por outro lado, a noite não é bem noite, toda ela pontilhada de luzes, como se o seu corpo tivesse sido atingido por milhares de pequenas setas luminosas. Hoje fui fazer uma visita, mas nem sempre visitar alguém é a melhor das coisas. Sê-lo-ia, no melhor dos mundos possíveis. Ora, este que nos cabe em sorte está muito longe de ser o melhor. Não sei ao certo a razão, mas diante dos meus olhos pairou o título de uma encíclica do actual Papa: Fratelli Tutti. Talvez ele queira tranquilizar as pessoas sublinhando que somos todos irmãos. Ora, não tenho a certeza que essa seja uma boa estratégia. Quantas pessoas conspiram para fazer mal aos irmãos. Guerras entre irmãos costumam ser tudo menos exercícios de fraternidade. Também a Revolução Francesa começou com proclamações de fraternidade e acabou a cortar pescoços. Estou a entrar por caminhos ínvios, os que são da política e da religião. O mais sensato será parar por aqui e ficar a ver a noite cair sobre o telhado das casas.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Agora, é tarde

Os livros estão mais caros. Hoje fiz uma viagem à fnaquezinha existente num centro comercial da simpática cidadezinha onde me é dado passar os meus dias. As noites, também, esclareça-se. Fui em demanda, com sucesso, dos Contos de Cantuária, de Geoffrey Chaucer, na recente tradução do poeta Daniel Jonas. É um belíssimo livro – refiro-me ao objecto e não ao conteúdo – de capa cartonada. Percebe-se o preço a rondar os trinta euros. O pior, todavia, é que os outros livros das minhas editoras de eleição decidiram encarecer. Estão bem mais caros do que eram há uns meses. Talvez as editoras estejam cansadas dos compradores e temam que o livro se torne objecto de uma plebe feia e maltrapilha que, ao comprá-lo, o desprestigiaria, ao livro, mas também às editoras e ao editor. Parece-me uma belíssima estratégia. Nada de democratizar o acesso ao livro. Isso seria dessacralizá-lo, meio caminho para andar nas bocas – ou nos olhos – do mundo. Além da obra de Chaucer, comprei Belladonna, de Dáša Drndić, uma escritora croata desaparecida em 2018, de que nunca ouvira falar. Isto faz-me lembrar que no final da semana que está a entrar terei de ir ao lançamento, em Lisboa, de um livro de que sou co-autor, para desgraça do livro e minha. Para dizer a verdade, não entendo sequer por que raio está lá o meu texto entre os de especialistas na matéria, eu que não sou especialista de nada e muito menos daquela matéria. Por vezes, caio em tentação. Aqui que ninguém me ouve, escrevi o ensaio – pois de um ensaio se trata – há tantos anos, que nem me lembro do que lá está. A minha esperança é que não esteja ninguém no lançamento, mas tenho as minhas dúvidas, considerando os restantes autores. Os amigos arrastam-nos para cada coisa. Nunca estamos dispostos a prestar ouvidos às sensatas injunções parentais, quando enviesam o olhar e exclamam vê lá com quem andas. Agora, é tarde.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

A ida ao templo

O meu dia, exceptuando os cuidados comigo mesmo, começou com uma visita a um desses templos contemporâneos, onde o ritual gira em torno da deslocação para dentro de um carro gradeado de produtos que estão tranquilos nas respectivas prateleiras. Depois, colocam-se numa passadeira para a sacerdotisa – por vezes, mas raramente, há um sacerdote – os passar por uma maquineta que devolve uma informação ao crente, dizendo-lhe o que adquiriu e o preço da aquisição. Acabada a liturgia, paga-se o ofício sacerdotal e sai-se carregado de coisas que hão-de ser consumidas, isto é, aniquiladas, reduzidas a nada. Talvez seja isto o niilismo. Outrora, não havia catedrais como aquela a que fui. Tudo se resumia a pequenas capelas e a tristes ermidas, o ritual era mais acanhado, embora não tenha a certeza que fosse mais barato. O certo é que, na pequena província, os sacerdotes desses pequenos templos acabavam por ser personagens, enquanto as vestais de hoje, as que cobram os bens e serviços, não são ninguém. Quase se pode formular uma lei. Quanto maior o templo, mais insignificante o sacerdote. Não quero dizer que, por detrás destes novos templos, não estejam cardeais poderosos. Estão, mas são invisíveis. Detestam o contacto com os fiéis, apesar de lhes deverem o cadinalato. Está um sábado ventoso, com uma luz vibrante, mas esbranquiçada. Na avenida, as pessoas ensaiam a saída da pandemia, mas fazem-no ainda com precaução. Leio que o mundo está mais perigoso, mas sobre isso estou proibido de emitir opinião, caso tenha uma.