quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Uma vantagem

Abro ao acaso uma revista, a última Electra, e deparo-me com uma fotografia de Martin Heidegger. Está à janela da famosa cabana de Todtnauberg, na Floresta Negra. Mais do que o eventual génio, vejo ali a aproximação dos oitenta anos. Olha para os caminhos que levam a lado nenhum, vestido com um pulôver, entre o cinzento e o azul, sobre uma camisa branca com gravata cor de vinho. No pulso esquerdo, sob a manga da camisa, desponta um relógio, mas é impossível ver as horas. Não consigo perceber se a luz que ilumina a cena é natural ou a de um flash da máquina fotográfica. Dos olhos não vem sombra de pensamento profundo e no modo como pousa a mão no parapeito de madeira não se vê vestígio do triste discurso do reitorado. Estávamos em 1968, um ano de grandes convulsões, mas atrás do filósofo só se vê escuridão. Um dia também estive junto daquela cabana. Levou-me lá não a prestação de um tributo a um mestre, pois não faz parte das minhas afinidades electivas, mas porque Schwarzwald, Floresta Negra, me tocava a imaginação. Exceptuando a cabana, onde ainda havia, e presumo que haja, reuniões para discutir a obra do antigo proprietário, não vi outros sinais do filósofo. É possível que não os tenha procurado, que me tenha desviado por aqueles caminhos que, segundo ele, levam a lado nenhum, ou, para ser mais exacto, ao não trilhado. Isto, porém, é ficção minha. Todos os caminhos que percorri tinham já sido trilhados vezes sem conta, pois a minha natureza não é a de um inovador ou a de um explorador, mas apenas a de um homem da tradição, embora sem o zelo necessário para cuidar dela. Anoitece, Heidegger continua a sorrir-me na sua fotografia de 1968, sem saber que eu tenho uma vantagem sobre ele. Sei quem ele é, mas ele nunca saberá quem eu sou.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Rolar a pedra

Continuo preso ao breviário dos pequenos afazeres. Repetem-se e repetem-se sem parar, sem que se vislumbre a promessa de um fim, a não ser aquele de que não há retorno. Isso transporta-me para o destino de Sísifo. Rolar a pedra até ao cimo da montanha sem nunca lá chegar, para, a cada insucesso, tornar a tentar. Há uma fascinação humana pelo eterno retorno do mesmo. Construir hábitos é uma forma de solidificar em nós essa estrutura de retorno, para que pensemos que, ao fazer uma certa coisa idêntica à que fizemos ontem, pensemos que também nos mantemos idênticos. O hábito, como expressão do eterno retorno do mesmo, é um truque que me permite dizer que eu sou eu, que o nome ao qual respondo assegura que aquele que responde é sempre o mesmo. Eis, porém, um problema que aqui não tenho. O anonimato evita-me essa ilusão, o que também pode ser o indício de que estou destituído de hábitos e, muito plausivelmente, aquele que escreve estes textos nunca é o mesmo. Este vazio de denominação tem a vantagem de poder ser preenchido por qualquer nome, mesmo por aqueles que me seriam os mais repugnantes. Não me apetece, por hoje, falar de repugnância. Chove, a tarde refastelou-se na cinza-chumbo de nuvens iradas como quem descansa numa chaise-longue, e eu, na minha faceta de Sísifo, tenho de continuar a rolar a pedra até ao cume da montanha, mas, já o sei, faltar-me-ão as forças para lá chegar. Amanhã serei outro. Outro Sísifo, entenda-se.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Da invasão da noite

Os dias continuam a decrescer. A noite invade o dia e começa a escurecê-lo por dentro, lançando rajadas de nuvens negras, erguendo cortinas espessas para que a luz seja sustida e evite que a tarde encontre um alento para resistir ao avanço do exército das trevas. Pequenos afazeres pontuam-me as horas. Recolho-os e guardo-os num caderno, como se, de súbito, nascesse em mim uma alma de botânico que me levasse a criar um herbário. Vista da janela, a esta hora, a cidade parece-me um pântano, mas há muito que deixei de confiar nos meus olhos. Vejo uma coisa, mas a coisa é outra, como se a realidade estivesse apostada em iludir-me. Nos bolsos encontro algumas moedas e fico perplexo. Interrogo-me sobre o que estarão ali a fazer, por que razão foram lá parar. Não encontro resposta. Chegará o dia em que um ser humano perguntará para que servem aqueles objectos, cujo nome desconhece. Perdida a função, a memória desaparece, penso não sem uma certa melancolia, pois sinto que também eu estou a caminho de desaparecer das memórias dos outros, agora que a minha função corre para o fim. Somos seres funcionais e perdida a função passamos à categoria de descartáveis. Não faltaram, ao longo da história, tentativas para nos resgatar da funcionalidade, para nos investir com um halo que nos assegurasse a persistência, mas tudo em vão, tantos esforços que conduziram a nada. Somos seres para o esquecimento, coisa pior do que sermos seres para a morte. Ainda bem que é assim, oiço-me dizer. Quem suportaria trazer em si a memória de todos os seus antepassados? Ninguém. O culto da genealogia parece contradizer a minha presunção, mas só na aparência. Por longe que se vá na linha dos ascendentes, será ainda uma viagem muito curta e, não poucas vezes, equívoca. Volto para a lassidão dos meus afazeres.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Publicidade

Imaginemos uma agência de viagens desejosa de atrair clientes para destinos turísticos desafiantes. Imaginemos ainda que esta semana pretende vender como destino um certo país que, por acaso, é uma ilha. Nos folhetos de promoção, pois a agência ainda opera com papel, mas também no site, o leitor encontra a seguinte descrição publicitária: Mas este país é uma ilha, a que a própria natureza impõe leis imutáveis. É a terra da verdade (um nome aliciante) rodeada de um largo e proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a ponto de derreterem, dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem jamais levar a cabo. É possível que antes de querer saber mais sobre esse país-ilha, se interrogue sobre o publicitário que escreveu o texto. Sem saber a resposta, entrega-se a um longo devaneio sobre como atravessar aquele oceano proceloso, como abrir caminho pela neblina e como evitar o gelo traiçoeiro, para não se deixar enganar por falsas terras e poder chegar são e salvo a esse país verdadeiro, onde poderá admirar a constância das leis e passar umas sossegadas férias sem temer o bulício da mudança e os alvissareiros da novidade. A sua imaginação fica presa naquelas esperanças falazes e nas aventuras que há-de querer viver, e que o publicitário, para estimular o desejo da viagem e os lucros da agência, lhe diz que nunca será capaz de levar a cabo. Pois aquilo que os homens mais amam, eis uma generalização miserável, são as coisas impossíveis, pois das possíveis depressa se cansam. Ora, é na página 257 da Crítica da Razão Pura, que Kant, o publicitário, anuncia esse país do entendimento puro, que ele terá percorrido. Aquilo que ele lá fez, omito-o aqui, mas estou certo de que qualquer viageiro inclinado para a aventura, ao ler a publicidade desse país, fica a sonhar com oceanos procelosos e aventuras de que nunca desistirá e que, pela força da sua vontade e indústria da sua inteligência, como Ulisses, há-de levar a cabo para se encontrar, nessa ilha, com a amada Penélope e matar, com o vigor do seu braço, os incautos pretendentes.

domingo, 5 de novembro de 2023

O velho château

Olho para a rua e penso que o Advento se aproxima. Falta menos de um mês. Não sei, todavia, o que na luz suspensa sobre a cidade me fez lembrar essa época do calendário religioso. Vivemos num tempo em que os calendários religiosos se tornaram assuntos privados e deixaram de regular o ritmo dos dias, dando um sentido comunitário à passagem do tempo. Talvez não seja possível ter tudo. Ganhar liberdade em relação ao peso das tradições e manter um tempo diferenciado, um tempo que se arranca à monotonia rasa e insípida da passagem inexorável dos dias. Até os ritmos da natureza parecem perder a sua capacidade diferenciadora. Por estes dias, ocupo as horas de insónia com a leitura de Au Château d’Argol, o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo de Louis Poirier. Argol é uma aldeia na Bretanha, mas, para desconsolo de eventuais cultores de Gracq, não possui qualquer château. A palavra deve traduzir-se por palácio e não por castelo, penso. Enquanto vou lendo, pergunto-me, nalgum momento de desatenção, como foi possível nunca ter lido Julien Gracq. Só há umas semanas entrei naquele universo. Mais valia ter lido Gracq na juventude do que Sartre, mas isto é uma constatação de quem já perdeu a juventude há muito. Uma presunção sobre o que deveria ter sido o passado. Uma das coisas que me agrada na escrita de Gracq poderá contribuir para que o universo dos seus leitores não seja excessivamente grande. Mais do que narrar, ele descreve. Descreve paisagens, não tivesse ele cursado Geografia, descreve construções humanas, descreve pensamento, emoções. Mesmo as acções e os diálogos, o que constituiria a trama romanesca, são apresentados em forma de descrição. Tudo se torna paisagem e um romance é a construção de um mapa. Não de uma carta que representa um território, abstraindo as paisagens, mas uma que institui todos os territórios, interiores e exteriores, numa paisagem luxuriante feita de palavras, frases, parágrafos enormes. Olho de novo para a rua e a sensação de aproximação do Advento continua viva. Penso que um dia irei a Argol e procurarei o château que nunca existiu, mas que está à minha espera, pois aquilo que nos espera só chega à existência quando o encontramos. Começou a chover e tenho a súbita necessidade de saber se em Argol também chove. Um site meteorológico diz-me que sim. Ao longe, ergue-se para os meus olhos o velho château.

sábado, 4 de novembro de 2023

Do prazer estético

Está um tempo chuvoso e sombrio. Dito de outra maneira, está um belo sábado, cheio de melancolia e com a promessa de uma tristeza que se derrama nas águas caídas do céu. Não é a Terra que sofre mágoas inexplicáveis, mas a morada celestial que não consegue conter a cinza da sua dor. Leio e releio o prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura. Faço-o de um modo intolerável. Não procuro ali conhecimento, mas um prazer estético que a repetição faz nascer no leitor. A frase de abertura é espantosa: A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. A técnica usada por Kant é claramente romanesca, mostra a personagem dilacerada pelo seu singular destino, na verdade, um tormento, quase que me atreveria a dizer uma paixão, onde o desejo que a natureza lhe deu é limitado pela impotência com que essa mesma natureza a cobriu. O prazer estético, todavia, vai muito para além do parágrafo de abertura. As metáforas que o autor semeia no texto são outra fonte de volúpia. A Metafísica a certa altura é um teatro: O teatro destas disputas infindáveis chama-se Metafísica. Logo a seguir, passa a ser uma rainha: Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada a rainha de todas as outras. E o texto prolonga-se de metáfora em metáfora, para que o leitor descubra que os cépticos afinal são nómadas e como tal repugna-lhes estabelecerem-se definitivamente numa terra. Tudo isto ainda antes de chegar a fim da segundo página. Antecipando o destino de Maria Antonieta, também esta rainha terá de comparecer perante um tribunal. Dir-se-á que o tribunal kantiano não é um tribunal revolucionário. Já estive mais convencido disso, pois a nobre rainha sai do processo condenada à morte. É decapitada. Ora, o enorme processo a que ela é sujeita, cerca de 700 páginas na edição portuguesa, talvez seja tão irracional quanto aquele que conduziu o empregado bancário Josef K. à morte, em O Processo, de Kafka. Aliás, há, quase no fim do prefácio kantiano, um sinal de um destino comum, quando o filósofo de Konigsberg diz: a metafísica outra coisa não é que o inventário, sistematicamente ordenado, de tudo o que possuímos pela razão pura. Afinal a nobre rainha não passa de uma peça de contabilidade, melhor dizendo de uma contabilista, como de alguma maneira o seria Josef K. São quase duas da tarde e aqueles que espero para o almoço ainda não chegaram.

domingo, 22 de outubro de 2023

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Poluir as almas

Passo os olhos pela imprensa, nacional e internacional, a guerra entre Israel e Hamas é apresentada como se fosse um jogo de futebol. Não é caso único. Só falta montarem um sistema de apostas. A comunicação social tem um enorme poder de degradação. Ela dirige-se à massa e explora as pulsões mais baixas que habitam os homens. Fá-lo com grande avidez, pois parece ser difícil viver de informação rigorosa, contida nos limites da decência, mostrando perspectivas rivais, não através de emoções, mas de razões. A ideia reguladora, vinda do Iluminismo, de uma esfera pública assente em informação séria caiu às mãos da exploração das paixões e das afecções para assegurar audiências. Muitas vezes apresentada como o quarto poder, a comunicação social não percebeu que o seu poder é um poder de degradação. Degradação de si mesma, das instituições, mas também das pessoas, da alma das pessoas. Uma guerra não é uma competição desportiva, as metáforas a usar terão de ser diferentes. De preferência, a linguagem deveria ser o mais objectiva possível e evitar o tropo que incendeia a imaginação. Apresentar a guerra como um jogo de futebol é banalizar a guerra. Um exemplo da banalização é o aviso que locutores de televisão fazem: chamo a atenção para a violência das imagens. Estão a falsificar a realidade. As imagens são apenas imagens, como as do cinema ou das séries, nelas a violência está rasurada, pois quem vê a imagem não está em contacto com a realidade. A exibição serve apenas para degradar o espectador, para lhe produzir uma emoção instantânea que será de imediato substituída por uma outra emoção, talvez de um jogo de futebol ou do assalto à ourivesaria da esquina. Um trabalho que nunca acaba de poluir as almas, para utilizar uma palavra caída em desuso.

domingo, 15 de outubro de 2023

O peso do ambiente

Conforme vou lendo o romance, mais ele me recorda O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Refiro-me a A Costa das Sirtes, de Julien Gracq, na tradução de Pedro Tamen. Há na obra qualquer coisa de espantoso. Não se trata da intriga que compõe uma geopolítica imaginária, coisa que podemos encontrar em Ernst Jünger, mas o poder descritivo de Gracq. Muito mais do que pelo diálogo e pelas cenas de acção, é através da descrição das geografias interiores dos protagonistas e das geografias exteriores – sejam edifícios, como o almirantado, sejam as paisagens onde se desenrola a acção romanesca – que o romance se vai desenvolvendo. O uso sistemático da descrição visa criar uma ambiência e, a certa altura, o leitor pergunta-se, tal como em O Deserto dos Tártaros, se não será essa ambiência a verdadeira protagonista da narrativa. O romance moderno, na sequência da afirmação da subjectividade e da descoberta do indivíduo, centra-se em heróis ou anti-heróis, agentes autónomos que buscam os seus fins. O que pode ter ficado de lado no deslumbramento moderno com o indivíduo é a dependência dos protagonistas do ambiente onde vivem, o qual os trabalha e os conduz para que realizem certas acções que não estavam nos seus desejos, mas às quais não puderam escapar. Foi isso que a leitura do primeiro terço do romance me fez pensar. Pode ser, não o nego, o efeito de ler durante as horas de sono. Não é inverosímil que a compreensão da obra esteja a ser afectada pela rêverie que aquelas horas de insónia sempre proporcionam.

sábado, 14 de outubro de 2023

Naturezas mortas

Na sala, há quadros com motivos de caça. São aves mortas por um tiro certeiro penduradas numa parede. Verdadeiras naturezas mortas. Estou fora do meu ambiente, estranho as pinturas. Pertencem a um mundo que, definitivamente, não é o meu. Como todos nós, sou descendente de caçadores-recolectores. Sem a caça a espécie não teria sobrevivido e eu não estaria a escrever estas palavras. Imagino, porém, que alguma coisa se terá perdido no caminho. Talvez os nossos antepassados caçassem num acto ritual e ficassem gratos à vítima por lhes dar a sua carne e a possibilidade de continuarem a viver. Hoje a caça, continuo a devanear, é um exercício fundado não na estrita necessidade, mas na satisfação de um prazer egoísta, que encontra o seu objecto na morte do animal. Não haverá diferença para os animais que morrem, mas a forma como são mortos afecta o espírito e manifesta o carácter de quem os mata. É o que me ocorre neste sábado, em que me perdi por terras do Alentejo, onde tudo parece pertencer a um outro mundo, mais branco, mais silencioso, mais lento, mas talvez mais dissimuladamente violento.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Libertação

Os dias úteis desta semana dediquei-os a auscultar as minhas possibilidades literárias em diversos géneros. Comecei pelo apocalipse, passei para as teorias da conspiração, espreitei o gag humorístico, experimentei a reflexão filosófica. Tudo debalde. O melhor que consegui foi uma ou outra frase kitsch. Contudo, tal como estão os tempos, o género literário mais urgente é o profético. Dedicar-se à profecia é penetrar no inexistente para encontrar o que ali existe e, depois, como um Papa, anunciá-lo urbi et orbi. Não estou a dizer que os Papas são profetas, apenas que fazem proclamações à cidade e ao mundo. Sofro de uma limitação que impede a dedicação a esse género literário. Cada vez que penetro no inexistente deparo-me com o nada. Isso prova que não tenho um dom para a profecia. O inexistente não é outra coisa senão o futuro. Como vivemos sempre no presente, o futuro é coisa que está para vir, mas que ainda não veio, e não veio porque ainda não existe. Pode-se argumentar contra esta ideia. Imagine-se o seguinte. Alguém está num café à espera de outra pessoa, digamos o amador espera a coisa amada. Enquanto ele espera, ela ainda não chegou, a sua chegada será no futuro e a própria coisa amada é uma promessa que virá no futuro. Isso, porém, não significa que ela, a coisa amada, não exista. Existe. Portanto, há coisas que existem no futuro. Talvez os profetas sejam amadores de grande perspicácia e não se importem de esperar no café que chegue até eles aquilo que está no futuro. Há muito que deixei de frequentar cafés e ainda há mais tempo que deixei de esperar neles que alguma coisa me chegasse vinda do futuro. Tudo tem o seu tempo e o meu tempo de profeta, na duvidosa circunstância de o ter tido, passou. Vale-me hoje ser sexta-feira, fim dos dias úteis desta semana. Libertei-me desta auscultação das minhas possibilidades literárias.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Preocupações

Preocupa-me, a sério que me preocupa, o mundo. Não o que se passa na Terra, mas no mundo como totalidade. O que me tem estragado o dia é a indecisão em que a minha mente caiu. Será que o mundo teve um começo ou é eterno? Se ele teve um começo, o mais plausível pensar é que terá um fim. Se o mundo tiver um fim, o que poderá acontecer? A resposta mais óbvia é: não vai acontecer nada, pois nada existe que possa sofrer modificação e assim se possa falar de um acontecimento. Se, porém, o mundo é eterno, então instala-se uma monotonia sem fim, pois os acontecimentos sucedem-se sem parar, e por diferentes que sejam, o próprio suceder torna-se monótono. A princípio pode-se achar graça, as pessoas sentem-se num filme de acção onde sempre se passa qualquer coisa de vibrante, mas se o filme tiver mais de duas horas, o espectador começa a mexer-se na cadeira, cansado de tanta acção e deseja que o filme tenha um rápido fim. É isso que acontece connosco, seres humanos. A história do mundo começa a cansar-nos, o trepidar sem fim dos eventos exaure-nos a paciência. É por isso que morremos. A morte deriva directamente da eternidade do mundo, é uma defesa contra a monotonia que uma existência eterna sofreria perante um mundo sem começo nem fim. Pode-se argumentar, e haverá quem o faço, que essa explicação da mortalidade humana só faz sentido caso o mundo seja eterno, mas se não for? Neste caso a explicação muda, claro. Muda porque as condições também são diferentes. Morremos por solidariedade com o mundo. Sendo ele finito, não faria sentido que nós não nos irmanássemos no seu destino, antecipando-o, para dar coragem a esse mundo que um dia irá acabar. Não consegui resolver o dilema sobre se o mundo teve um começo ou se será eterno, mas encontrei duas explicações irrefutáveis sobre a mortalidade humana. Este é o meu contributo semanal para o progresso do conhecimento no mundo.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Kitsch

Existe uma escala de degradação das aptidões escriturárias. Há dois dias vi que me faltava talento para escrever apocalipses. Ontem baixei a fasquia, mas também não tenho capacidade para ser um escritor de teorias da conspiração. Hoje analiso se tenho poder para escrever piadas, daquelas que são idiotas, mas que fazem rir as pessoas. Ora, escrever uma coisa idiota não me é difícil, mas não faz rir ninguém. Nunca inventei uma anedota e não uso o chiste, a ironia está-me vedada por natureza, natureza minha. É deprimente, mas esta é a verdade. Se escrever tragédias nunca me ocorreu por razões óbvios, podia ser que escrevesse comédias, não comédias a sério, mas uns pequenos gags para animar a conversa em grupo. Nada, porém, me ocorre, falta-me a finesse d’esprit orientada para a ironia. Isto transportou-me para uma experiência cinematográfica dos últimos dias. Vi diversos filmes de Nanni Moretti. Estes podem dividir-se em dois géneros. O drama, onde Moretti actor e os filmes que faz são tensos, e o filme político. E é este o mais interessante para o assunto de hoje. São comédias, onde somos levados a rir da personagem, das suas convicções, do modo como ela se relaciona com as ideias que tem sobre o mundo. Não se está perante um clown, mas diante de um exercício de relativização das crenças que talvez tenha a sua raiz em Cervantes, descobrindo-se uma personagem quixotesca no lugar de um militante cego pelo sol das suas convicções. Esta última frase era dispensável, mas não resisti a um bocadinho de kitsch. Voltando ao meu caso, incapacitado para o gag, estou confrontado com a realidade. Restam-me as frases kitsch, como a que diz o crepúsculo enovela-se sobre si mesmo, abrindo o caminho por onde passarão os cavalos da noite.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Fundamentalistas dos textos

Hoje passou-me a vontade de escrever apocalipses. Só de pensar no assunto fico exausto. Mais interessante seria escrever teorias da conspiração. Tenho, porém, um ponto fraco. Falta-me a alma de conspirador, o que me impediu de ser o quadragésimo primeiro conjurado na revolta do 1.º de Dezembro de 1640. Tivesse eu essa alma, e a história seria diferente, pelo menos no número de conspiradores. Há quem me afiance que aqueles que escrevem teorias da conspiração não conseguem conspirar contra coisa nenhuma, exercício que exige disciplina, realismo, cálculo de probabilidades, intuição para a teoria dos jogos e capacidade de acção dento dos limites estreitos das possibilidades. Os escritores das teorias da conspiração, apesar de anónimos, são desprovidos de disciplina e contacto com a realidade, não sabem calcular, não imaginam que exista uma teoria dos jogos e poder de acção é coisa que neles não existe. Em suma, falta-lhes, como a este narrador, a verdadeira alma de conspiradores. Então derramam nos processadores de texto – os conservadores fazem-no em papel – as mais alucinadas teorias. Eis uma outra faculdade de que estou desprovido, a da alucinação. Por vezes, alucino um pouco nestes textos, mas é mesmo tão pouco que chego a pensar que são descrições hiper-realistas do mundo. Com tudo isto, consegui perceber a razão que me impede de ser um escritor de teorias da conspiração. Tenho um poder de alucinação muito baixo. Quase que se pode dizer que sou impotente, o que pode ser uma coisa boa para o mundo, pois é menos um a multiplicar maluquices. Contudo, o problema não está tanto em quem escreve teorias da conspiração, mas nos leitores que lêem essa literatura. Levam muito a peito a suspensão da descrença, que no dizer de Coleridge é essencial para seguir uma história ficcional. Nas teorias da conspiração, encontramos aquilo que o poeta inglês diz ser necessário para suspender a descrença: a teoria implausível deve ter um interesse humano e uma aparência de verdade. Um leitor normal de romances suspende a descrença enquanto lê, mas, quando pára a leitura, põe em vigor a descrença, torna-se ateu perante o que está a ler. Já os leitores das teorias da conspiração são muito mais fiéis ao texto e nunca suspendem a descrença. São religiosos da literatura, digamos assim, verdadeiros fundamentalistas dos textos.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Apocalipse

Imagino que em vez de narrar as patetices que narro deveria escrever textos apocalípticos. O mais difícil, porém, está em escolher por qual apocalipse deveria começar. São tantos que fico perplexo pelo embaraço da escolha. A perplexidade leva-me à hesitação e, hesitante, caio na inacção, isto é, na não escrita de textos desse género. Resta a vulgaridade da vida quotidiana, o calor que por aqui está, a tortura a que os castanheiros da avenida marginal parecem estar a ser submetidos, o sono que me arrasta para sestas indesejadas, a compra de umas anilhas de borracha para tentar pôr uma máquina de lavar louça a fazer a sua obrigação sem que haja uma inundação. Também podia mobilizar a memória e escrever sobre a vitória da selecção de râguebi sobre a das Ilhas Fiji, um acontecimento, diga-se. Ou então contar o que os olhos vêem se se dirigem para uma das janelas deste escritório onde me sento. Escolas, bosques, hospitais e um símbolo de uma hamburgueria internacional que se ergue impante sobre a ramagem do arvoredo para chamar incautos esfomeados. A vida quotidiana é uma tristeza e talvez seja ela própria, na sua trivialidade, uma forma de apocalipse. É, pelo menos, o apocalipse que está ao alcance da minha escrita. Também é verdade que isto não é a ilha de Patmos, apesar da ilha de Patmos poder ser em qualquer lado, inclusive aqui.

domingo, 8 de outubro de 2023

Dupla alma

Uma semana de Outubro passada e o calor não recua no terreno. Tem um exército bem treinado e não está disposto a ceder à amenidade dos dias frescos. Hoje acordei com uma alma heraclitiana e em tudo vejo conflito, a guerra é a mãe de todas as coisas. Não é sempre com esta alma que acordo. Tenho também uma alma parmenideana. Quando acordo com ela, os conflitos desapareceram e até a própria mudança se extravia para parte incerta. Estou – melhor, sou – no reino da uniformidade. Tudo é imóvel e eu permaneço na imobilidade geral. Quem sofre da doença da dupla alma contém em si todas as filosofias que existem, aquelas que virão a existir e todas as possíveis que nunca virão à existência. Quem traz em si todas as filosofias possíveis, porém, deve abster-se de privilegiar alguma e, desse modo, não deve ter nenhuma, pois escolher uma seria um acto de exclusão de todas as outras. Um ser filosófico, na sua completude feita de duas almas, não tem nenhuma filosofia, enquanto todos os que têm filosofias não são seres filosóficos, pois são incompletos, faltando-lhes ou a alma heraclitiana ou a alma parmenideana. Fiquei assim depois de tentar em vão consertar uma ligação da máquina de lavar louça à canalização da rede pública. O dispositivo, de natureza heraclitiana, decidiu começar a pingar, inundando o que não devia. Eu, também em maré heraclitiana, apliquei-me em consertar mais este torto no mundo, mas, nesse instante, a minha alma virou parmenideana, e a coisa manteve-se como estava. Optei então pela imobilidade do que se estava a mover e fechei a torneira de segurança. Uma derrota na minha gesta de consertador de mundos. Amanhã, terei de contactar algum canalizador heraclitiano para que a coisa entre nos eixos. O calor expande-se e os meus neurónios arrastam-se sempre que são chamados a fazer sinapses.

sábado, 7 de outubro de 2023

Tédios

É no pensamento 529, na edição portuguesa, que Blaise Pascal trata do spleen. Muito antes de Baudelaire. Não é assim que ele lhe chama, mas Ennui. Em português, optou-se por tédio. Este nascerá da insuportabilidade de o homem estar em pleno repouso, isto é, ausência de paixão, de afazeres, de divertimentos, de tarefas. A inacção seria um revelador insuportável da natureza ontológica do homem. Pascal dramatiza: Sente então o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Perante a experiência dessa natureza decaída e nula, virá do fundo da alma o tédio, mas não vem só. Acompanha-o a treva, a tristeza, o desgosto, o desprezo, o desespero. Tremo perante a descrição deste inferno moderno, eu que estou em pleno dia de repouso, desejando nada fazer. Contudo, o pensamento pascaliano projectou-me para a acção – já que qualquer paixão que me possa tocar será de evitar – e entrego-me ao acto de comer aquilo que, na padaria pós-moderna existente neste lugar abandonado pelos anjos, dão o nome de rolinhos de canela. Não gosto do nome, mas rasuro-o ao comer a coisa. Não devia fazê-lo, pois hoje tive um encontro muito desagradável com a balança. Há muito que não a pisava, e ela, por despeito, sentindo-se abandonada, temendo o seu nada, devolveu-me um peso exorbitante. Não lhe disse nada, saí de cima dela e deixei que a informação digital do monitor se apagasse. O meu nada está muito pesado, pensei já numa versão próxima de Pascal. Agora, tenho de me despachar, pois tenho de ir à capital de um outro distrito para ver um filme do Nanni Moretti. Lugar a que terei de voltar, caso queira ver o de Woody Allen, isto se não for à capital do império, do antigo império, queria dizer, agora uma cidade pimpona, cheia de turistas desejosos de vistas panorâmicas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Leituras

Fora eu poeta, e grande ode escreveria à sexta-feira, a esse tempo de anunciação do fim-de-semana, em que a beatitude de se libertar das corveias da necessidade se torna, por instantes, um facto. Aproveito este tempo de interlúdio para ler algumas coisas. Por exemplo: A minha atitude para com as mulheres está determinada por isso de forma perfeitamente clara:  não elejo a minhas companheiras, mas são elas que me elegem a mim. Isto foi escrito por Hermann Broch na Autobiografia psíquica. Esta suposta troca de papéis – pois é isto que está em causa – seria o resultado da sua impotência, não sexual, mas ontológica.  O escritor austríaco não terá dado conta, porém, que o seu caso não é excepção, mas a regra. Os homens supõem que escolhem, e essa suposição é tanto maior quanto maior é a sua potência ontológica, mas, na verdade, são as mulheres que os escolhem, dando-lhes a ilusão da iniciativa. Isto conduz a que seja enviesado o corolário proposto por Broch: ainda que (o homem) não tenha escolhido por si mesmo (a mulher), chega, desde o princípio a uma relação emotiva de agradecimento e obrigação, determinada por laços muito menos eróticos do que morais… O enviesamento reside na consideração de que isto acontece como excepção. Ora, como é sempre a mulher que escolhe, o que está por detrás da sua iniciativa é a transformação de eros em morus, num costume que assegura a continuidade. Esta leitura não é minha, pobre narrador sem experiência das coisas do mundo, mas encontrei-a num caderno de Eduína. Limitei-me a reproduzir um pensamento alheio e a traduzir a citação de Broch do castelhano para português. Nunca deixa de me espantar o que encontro naqueles cadernos que herdei sem saber como. Agora, vou sair e entrar dentro do resto da sexta-feira, para ver o que há por lá.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Perturbação na atmosfera

Está um quente dia republicano. Sábado haverá um casamento monárquico. Não se pense, todavia, que este escriba vai tomar aqui posição sobre a querela entre monarquia e república. O autor talvez tenha uma clara e firme posição sobre o assunto. O narrador, porém, não se imiscui em assuntos que, na verdade, não têm qualquer interesse. Mais importante é o Nobel atribuído a Jon Fosse ou a leitura de Rayuela (O Jogo do Mundo, na tradução portuguesa), de Julio Cortázar. Li até ao capítulo 56. Parei mesmo na entrada daquilo que o autor chama capítulos prescindíveis. A partir destes propõe um novo percurso de leitura da obra que, talvez seja interessante e inovador, mas para o qual ainda não ganhei paciência. Serei um leitor preguiçoso, pouco dado à genialidade inovadora, mas cada um é o que é. Gosto de ler romances de seguida e não de andar aos saltos entre capítulos. Não sou um macaco nem um canguru. Tão pouco um cavalo de xadrez. Eu, no lugar de Cortázar, teria publicado dois livros. Um com os 56 capítulos imprescindíveis. Outro com todos os capítulos, os prescindíveis e os imprescindíveis, ordenados segundo o arbítrio do autor. Cada vez estou mais certo de que os anos sessenta não fizeram bem a ninguém. Haveria qualquer coisa na atmosfera de então que perturbava os espíritos, e o romance de Cortázar é de 1963. Logo, fruto da perturbação reinante. Esta opinião de narrador pode não coincidir com a do autor destes textos. É apenas uma possibilidade, mas estou longe de confiar no seu discernimento. É mesmo possível que, como dito acima, ele tenha convicções firmes sobre repúblicas e monarquias, mas isso poderá ser mais uma prova da debilidade do seu poder de discriminação. Então, quando está calor, só se pode esperar o pior. Vou acabar isto e publicar, antes que ele acorde com mau humor e exerça o poder censório com que se dotou.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A expulsão do mundo

Lentamente somos expulsos do mundo. Estava previsto no contrato que permitiu a chegada a este lugar inóspito. Mesmo que eu não o soubesse, sempre haveria o célebre fragmento de Anaximandro para me o recordar. Diz o seguinte, numa tradução encontrada por aí, pois faltou-me a paciência para a procurar nos meus livros: De onde é a génese dos seres, também para aí devém a sua corrupção, segundo a necessidade. Pois se concedem e se compensam reciprocamente, justiça pela injustiça, segundo a ordem do tempo. Sei, portanto, que me será feita justiça pela injustiça cometida ao nascer, ao separar-me do ilimitado. A ele terei de voltar. Contudo, há uma outra forma, mais insidiosa, de nos colocar fora do mundo, que é alterar as regras que um longo hábito solidificou em nós. Há pouco, para me entregar um livro, um carteiro tocou, atendi no intercomunicador. E ele decidiu tratar-me pelo nome próprio. Suspeito que é uma estratégia de relações públicas. Dei pela moda quando, há uns anos, o cardiologista, um rapaz bem mais novo do que eu, a inaugurou. Deve imaginar estabelecer uma relação mais próxima com o paciente. Percebi que a moda está a democratizar-se, pois já chegou aos carteiros e, constou-me, às pessoas que atendem os clientes em certas lojas de roupa. É verdade que a coisa é ligeiramente mais suportável do que o corrente tratamento por senhor seguido do primeiro nome. Numa situação normal, entre pessoas que não se conhecem, no caso de homens, o tratamento seria pelo último apelido, ao qual seria anteposto a designação de senhor. Este era o meu mundo. Fui expulso dele ou ele acabou. Só um outro cardiologista, o que me trata da electricidade e do ritmo do coração, cumpre a regra à qual fui habituado. Não é um caso de idade, pois ele é da mesma idade do outro. Talvez o facto de ter sido formado na Academia Militar o tenha tornado atento à tradição. Julgo que é a isto que sociólogo Zygmunt Bauman chamava a liquefacção do mundo. Num mundo líquido, deixou de haver espaços abertos e sem eles somos todos a mesma água. Talvez esta liquidez seja uma preparação para mergulhar no ilimitado.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O decréscimo dos dias

Os dias estão a encolher a olhos vistos. Imaginemos que chegávamos à Terra em Junho e nada soubéssemos da mecânica das estações, das relações entre a Terra e o Sol. Neste momento, haveria razões para temer que a luz, com o passar dos dias, desaparecesse para sempre. O que nos esperava seria um mundo de trevas eternas. Durante muito tempo, até a ciência se introduzir no assunto, existia um temor real de que isso pudesse acontecer, pois não faltavam, na história da humanidade, as festividades para assinalar o solstício de Inverno e agradecer, mais uma vez, que a ameaça pendente sobre a Terra não se tivesse concretizado. O que é curioso é que a experiência da repetição dos períodos de crescimento e de decréscimo dos dias não era suficiente para tranquilizar o coração dos homens perante o temor de uma noite sem fim. O conhecimento científico poupou-nos o medo, mas, ao mesmo tempo, matou o espírito de gratidão pelo funcionamento do cosmos. A noite está a cair. A luz crepuscular é, a cada instante, mais ténue. A vida quotidiana manifesta-se no barulho dos carros que passam desejosos de chegarem ao destino e das injunções para que a neta mais nova tenha atenção ao exercício de matemática. Eu penso na noite sem nome que há em mim, na esperança de encontrar alguma lua que a ilumine, ou na chave da equação que se esconde sobre o peso do nome que me deram.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Os limites do saber

Deite-se sobre a marquesa, enquanto vou buscar o que é necessário. Assim o fiz, não sem antes descalçar o pé esquerdo. O cirurgião veio e retirou os pontos, disse que estava tudo óptimo, assim como o resultado da anatomia patológica. Daqui a um ano vá ao dermatologista, para ver se há novos sinais, sugeriu. Enquanto respirava fundo, perguntei se já podia molhar o pé. Claro que sim, mas não esfregar muito na zona operada. Tudo isto, somado ao ter sido atendido antes da hora e de estar livre em poucos minutos, fez-me pensar que estava noutro mundo. Para comemorar entrei na cidade, a capital de distrito, onde fui lanchar a uma conhecida pastelaria. Aqui, todavia, há uma imprecisão. Não era a antiga pastelaria, mas uma sucursal mesmo ao lado do tribunal para aproveitar a gula de juízes, delegados do Ministério Público, advogados e, plausivelmente, réus. A antiga, a verdadeira, a incontornável pastelaria era – e é, julgo – no Largo do Seminário, onde não se pode estacionar. Talvez já não existam seminaristas, nem padres no seminário, e a gula teve de procurar outros lugares para se manifestar. Desde que recebi a indicação – ou a ordem – para me deitar sobre a marquesa fiquei preocupado. Por que razão aquela cama onde uma pessoa é submetida às sevícias da observação se chama marquesa? Pus a possibilidade de se estar perante uma catacrese – isto é, uma metáfora morta – na qual, por estar morta, já não se sente a inovação semântica dada pela transferência de um nome de uma realidade para outra. Haveria, em tempos, uma marquesa, mulher de um marquês, sobre a qual as pessoas se deitavam, e isso terá permitido a transferência da aristocrática e benévola marquesa, onde múltiplos ensonados eram acolhidos, para a cama onde se deitam os múltiplos adoentados? Depois de avaliar a situação pareceu-me a razão disparatada, pois nunca, mas mesmo nunca, uma verdadeira marquesa admitiria que dormissem sobre ela. Eliminei uma conjectura espúria, mas não consegui resolver o problema. O que prova que toda a ciência tem os seus limites.

domingo, 1 de outubro de 2023

Zorro e Mascarilha

Começamos Outubro sob um ataque cerrado de calor. Talvez tenha sido a situação de guerra climática que me provocou uma dúvida existencial. Dois nomes dançaram na minha mente devido a uma palavra espanhola num produto qualquer, mascarilla. As palavras Zorro e Mascarilha tinham o mesmo referente, ou será que havia duas séries distintas uma denominada Zorro e outra O Mascarilha. O mal dos tempos que correm, um deles, pois não faltam males aos tempos que correm, é que rapidamente se podem tirar as dúvidas, não deixando estas criar raízes e exercer sobre a mente um trabalho de limpeza das crenças dogmáticas. Não passou muito tempo que não visitasse a rede a que se dá o infeliz nome de internet. Não, o Zorro e O Mascarilha eram séries diferentes que o passar dos anos e o uso da máscara começavam a fundir na minha memória. Não devemos confundir Don Diego de La Vega, o Zorro, com John Reid, quase sempre denominado como Lone Ranger, o Mascarilha. Zorro inscreve-se na tradição dos heróis de capa e espada, enquanto Mascarilha, na dos heróis do Far West, presumo. Esta confusão é quase tão grave como a de pensar que Sherlock Holmes e Hércule Poirot eram as mesmas personagens. Pior, porém, seria confundir Sherlock Holmes com Miss Marple. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não tem idade para zorros e mascarilhas, mas por certo vai querer o Pica-Pau, cuja colecção de DVD repousam numa estante. Quando a comprei, disse que era para os netos verem. Recebi um olhar de dúvida mais radical do que a cartesiana. A verdade é que ainda nenhum recusou o Pica-Pau, embora a mais velha me fizesse ver com ela milhares de vezes a Galinha Pintadinha. Tenho de procurar as séries do Zorro e de O Mascarilha, para daqui a uns tempos as ver com o mais novo. Domingo. Está tanto calor que nem vai dar para ter a angústia dos domingos à tarde.

sábado, 30 de setembro de 2023

Um contributo

Quase se podia dizer que o mar estava agitado. As ondas atingiam uma altura de uns trinta centímetros, quando se levantavam para logo morrer na areia com um baque surdo. Uma agitação destas só podia ser na baía de S. Martinho do Porto. Fui lá almoçar para fugir ao calor que por aqui anda desalvorado. A praia, onde não pus os pés, estava cheia de gente, como se estivéssemos em Agosto. Ainda dei um pequeno passeio pela marginal, mas também ali o calor era excessivo. De retorno a casa, passei por um hipermercado. Era preciso comprar qualquer coisa em falta. Tive uma iluminação. Percebi a razão que leva os portugueses a terem como lugar preferido as grandes superfícies. A temperatura. Nem na praia a temperatura é tão agradável. É verdade que a paisagem é monótona, os caminhos levam sempre aos mesmo sítios e a luz, apesar de intensa, parece sofrer de anemia, mas a temperatura tem suficiente poder para explicar a afluência. Leio que a Europa está a viver um Verão sem fim. Imagino que a solução seja abrir hipermercados por tudo o que seja sítio, para que todos os europeus, e não apenas os de Portugal, possam fruir do prazer de um clima fresco, sem necessidade de usar protector solar. A proliferação de hipermercados eis a minha solução para o aquecimento global. Enquanto tudo arde, nós passeamo-nos frescos entre prateleiras de massas e arrozes, de vinhos e cervejas, e arcas congeladoras de onde emana, como uma bênção, um frio contumaz que se propaga pela área, isto é, pela superfície, por norma grande. Bem tento ajudar, mas…

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Incertezas

Andar na rua, por aqui e no dia de hoje, é um suplício. A pele parece gretar. Quase que me sinto a cavalgar pela planície manchega, sofrendo de calores e desejando encontrar algum gigante para o colocar na ordem. Isto prova o poder do calor para me perturbar o contacto já difícil com a realidade. La Mancha é bem pior do que isto aqui, caso não o fosse nunca teria podido criar um herói como D. Quixote. A prova é que aqui não nasceu nenhum Cervantes. No bosque da escola aqui ao lado, há qualquer coisa de inquietante. Onde havia uma mancha verde cintilante, agora aparece um verde manchado de um quase castanho, como se algumas árvores – e são todas de folha persistente – estivessem cansadas deste tempo e começassem a desistir de si mesmas, numa abdicação de identidade que nos inclina a pensar que também elas são dotadas de uma certa subjectividade. Imagino-lhes linguagem e pluralidade de línguas, em conformidade com as espécies. Por exemplo, os carvalhos entendem-se entre si, mas necessitam de tradução para compreenderem os que os cedros sussurram uns aos outros. A distinção entre a língua das laranjeiras e a das tangerineiras não será muito diferente daquela que há entre o português e o castelhano. Já as diferentes espécies de laranjeiras apresentam uma diferenciação como aquela que há entre o português de Portugal e o do Brasil. Tudo isto escapa aos homens, pois estes ainda não aprenderam a escutar o vento nem descobriram a Pedra de Roseta que permitirá compreender as vozes do arvoredo. Ou então falta um Champollion versado na filologia vegetal. Um dos problemas do mundo é que nunca se tem a certeza de qual é a causa decisiva para uma certa imperfeição.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Ninguém

Dentro de um livro de Charles Taylor, As Fontes do Self, encontrei um bilhete de uma ida ao teatro, no ano de 2007, ver Macbeth. Como não tenho o costume de andar a pedir bilhetes de teatro usados para pôr dentro dos livros, concluo, por inferência pela melhor explicação, que terei ido ver a peça. Se tivesse sido interrogado sobre o assunto, teria respondido convictamente que não, que há muito não vou ao teatro. Como se pode observar a realidade conspira contra mim, aproveitando o declínio da memória. Taylor explora, no livro referido, as várias instâncias de construção da identidade moderna. A mim preocupa-me a relação entre identidade e memória. Se perder a minha memória, continuarei a ser eu? Se as coisas que fiz forem sendo continuamente rasuradas, o que poderei dizer se me perguntarem quem és tu? A certa altura, nem sequer o Ninguém do romeiro do Frei Luís de Sousa estará disponível. Platão teria alguma razão em colocar a reminiscência no centro de uma vida digna de ser vivida. Não a anamnese das Ideias ou Formas entrevistas, antes do nascimento, no mundo inteligível, mas daquilo que se foi vivendo no tenebroso mundo sensível. Também aqui, todavia, convém adoptar o virtuoso meio-termo aristotélico. Nem a página em branco de uma memória apagada, nem a memória de elefante que nada esquece. A memória virtuosa, a que nos dá uma identidade e possibilita uma vida digna de ser vivida, é uma trama composta por recordações e esquecimentos. O que causa perplexidade, porém, é que não somos donos daquilo que recordamos e daquilo que esquecemos, como se recordar e esquecer fossem coisas que acontecem em nós, mas não somos os agentes disso que se dá em nós. Isto levar-nos-ia a perguntar quem em nós se recorda e quem em nós se esquece. Quem se esqueceu em mim que na noite de 26 de Maio de 2007 fui assistir ao Macbeth? Esta questão acaba por pôr em causa a importância há pouco atribuída à reminiscência e inclina o pensamento a responder à questão com a resposta do Romeiro: Ninguém.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Podia ter sido pior

A enfermeira foi simpática e atendeu-me a súplica, reduzindo o penso ao mínimo indispensável. Posso voltar a calçar sapatos e andar quase normalmente. Segunda-feira, profetizo, serão tirados os pontos. Não tarda voltarei à tarefa de acumular pontos cardio, como recomenda a Organização Mundial de Saúde. O pior do dia, até ao momento, foi a avaria na caldeira. Veio um técnico e consertou o que havia a consertar, uma peça estava dentro da garantia, outras não. Tudo corria bem, mesmo ao pagar. O problema só surgiu no fim, quando ele decidiu fazer um longo discurso sobre aparelhos a gás, caldeiras, fogões e esquentadores, o facto de as marcas serem iguais, só muda uma coisa ou outra no software, informou. Os produtos são todos fabricados na China em fábricas que demoram três ou quatro dias a visitar. Daí mudou para o caso tenebroso de o gás consumido na União Europeia ser todo igual, dando a referência singular desse gás igualitário, coisa que dantes não acontecia, com indicação da pluralidade diferenciadora das referências dos gases que corriam por essa Europa fora. Teve tempo para verberar a Itália, onde ninguém cumpre as regras que nos outros lados têm de ser cumpridas, para acabar com insidiosas considerações sobre a guerra em curso, o caso de três jovens irrequietos, manipulados na sua opinião, terem pintado um ministro de verde e da impossibilidade de acabar com o gás de um dia para o outro. Eu já estava cansado, a tudo anuía, esperando uma aberta para, sem parecer ofensivo, pôr um fim à conversa, onde havia uma ameaça já manifesta de descambar em considerações geopolíticas. Ao lembrar-me, porém, que posso tomar banho e que entre o telefonema a relatar a avaria e a vinda demorou uma meia hora, acabei por considerar que a lição sobre o estranho mundo do gás foi um preço simbólico do benefício usufruído. Podia ser pior, pois, neste planeta, não há mal que não possa superado por outro ainda pior.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

O lugar da decisão

Começar com uma citação não é o melhor dos começos, embora seja um possível. O desfecho de uma batalha, diz Müller, decide-se na cabeça dos que nela participam. Quem o escreveu foi Alexander Kluge. Perante a afirmação sinto alguma perplexidade, que se pode traduzir por perguntas. Exactamente, em que parte da cabeça se decide o desfecho de um acontecimento? E quando, como em certas batalhas, estão dezenas ou centenas de milhares de cabeças, qual a percentagem da cabeças que contribuem para um desfecho e qual a percentagem para o desfecho contrário? Uma pergunta mais insidiosa seria a seguinte: não será nos intestinos que o desfecho de uma batalha se decide, sendo a cabeça o sítio onde os intestinos manifestam a sua decisão? Por certo, também haverá quem ache que o desfecho de uma batalha se decide no coração dos combatentes, enquanto outros acharão que é nas gónadas, uso este termo por ser mais inclusivo. Não há nada melhor que a proliferação das possibilidades, provavelmente, todas falsas. Ora, o facto de se nadar em conjecturas falsas não impede que a vida decorra. Não causava qualquer obstáculo ao desenrolar das existências a crença de que a Terra era o centro do Cosmos. Era falso, mas a falsidade não interferia na felicidade ou infelicidade das pessoas. Resta uma magna questão: onde se decidirá a batalha que travo neste instante contra o sono?

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Uma aventura

O Verão que tinha saído pela porta voltou pela janela. Está previsto, para esta cidade onde me acolho, temperaturas, em Outubro, na ordem dos 34 e 35 graus. O mestre do clima, S. Pedro, mantém-se inflexível. Admito que os pedidos, em forma de oração, tenham diminuído drasticamente com o passar dos anos. Como não lhe pedem ajuda, ele não a dá e depois é o que se vê. Pessoas esbaforidas, barragens vazias, entidades públicas a ameaçar cortar a água. Apesar da impiedade reinante, o grande gestor do estado do tempo poderia ser compassivo e usar da misericórdia com os pobres pecadores. Hoje, depois de muito porfiar, consegui descobrir o ponto de pick up onde uma transportadora deixou na sexta-feira dois livros que me eram destinados. O site tinha-me anunciado que entrega seria hoje, segunda-feira, 25 de Setembro. Acreditei e na sexta-feira ausentei-me, fui almoçar com a minha neta mais velha, que fazia anos. A transportadora, aproveitando a minha ausência, passou por cá e marcou-me falta. Mandou, talvez como desculpa, uma mensagem com um link que me deveria indicar o lugar de recolha da embalagem. Consultei o mapa, aquele da Google, que me deu indicações, mostrou-me a rua, a casa, a envolvência. Fui lá e o que me tinha sido mostrado era uma ficção. Fiz várias tentativas em vão. Depois, um telefonema para uma agência da distribuidora noutro lugar acabou por resolver o assunto. Começo a ter saudades do tempo em que só os CTT entregavam encomendas, pois sabia onde haveria de as ir buscar. Parece que a concorrência – e ela é enorme – melhora o serviço. Talvez seja assim, só que eu sinto que, enquanto recebedor de encomendas, estou pior. É verdade que, muitas vezes, nos CTT, passava longos minutos à espera até chegar a minha vez. Agora, passo longos minutos à procura do lugar onde me hei-de apresentar. Já era altura dos objectos – livros ou outras coisas – serem enviados desmaterializados e, ao chegar a casa dos clientes, voltarem a materializar-se. Seria um serviço imbatível, mas não conheço nenhuma empresa que esteja interessada na minha brilhante ideia. Devem ter pavor da inovação ou são incapazes de compreender as ideias mais geniais que me ocorrem. O pior, porém, são os 35 graus.

domingo, 24 de setembro de 2023

Tarde de domingo

Existe a magna questão de saber se a Magna Moralia é ou não obra de Aristóteles. Os especialistas, como é hábito, dividem-se. Uns que sim, outros que não. Os que acham que sim defendem que é uma obra de juventude, anterior às duas Éticas (a Eudemo e a Nicómaco). Os que acham que não julgam tratar-se de uma obra espúria proveniente de algum discípulo. Este tipo de disputas possui uma trama romanesca, onde o plot não chega ao desenlace, ficando sempre o fim em aberto. Imaginemos que uma prova irrefutável decidia a contenda. Isso, porém, teria consequências terríveis. Punha fim a toda uma fileira de trabalho académico. Quantos livros ficariam por escrever? Quantos artigos morreriam antes de nascer? Quantos colóquios, por realizar? Depois, haveria o impacto nas diversas indústrias associadas, desde a do papel até à da restauração, passando pelos transportes aéreos. Já se sabe que um bater de asas de uma borboleta em Heidelberg, por exemplo, pode criar uma terrível tempestade em Pequim ou, caso Pequim seja imune às borboletas ocidentais, em Tóquio. O melhor é que se mantenha o suspense e o mistério permaneça mistério, antes que uma catástrofe económica venha do Oriente e se abata no Ocidente. Perguntar-se-á: qual o interesse de toda esta história? A uma pergunta destas só se pode responder com uma outra: qual o interesse de qualquer outra história? Por exemplo, o Telescópio Espacial Hubble captou duas galáxias em rota de colisão. Parece uma história interessante, mas quando a coisa se der, se é que não se deu já, as notícias só chegarão cá passados 465 milhões de anos-luz. Nessa altura, quem vai querer saber do assunto?  São assim as tardes de domingo na província, agora que não há cinemas, nem ninguém vai ver a bola. Talvez vá a tempo de dormir uma sesta.

sábado, 23 de setembro de 2023

Os limites da atenção

Foi um almoço animado. Não pelo almoço, nem pelos convivas, mas por ter sido acompanhado pelo jogo de râguebi da selecção portuguesa. O adversário, embora não fazendo parte da elite mundial, era bastante razoável, tal como o quinze português. Foi um resultado justo num jogo em que ambos poderiam ter ganhado, ambos poderiam ter perdido. Empataram, num jogo emocionante, em que os georgianos foram muito melhores na primeira parte e os portugueses, na segunda. Foi a primeira vez que, num Mundial, Portugal não perdeu o jogo. A minha questão quanto ao râguebi é de saber se o jogo conseguirá resistir, ou não, ao processo de futebolização, onde o jogo é constantemente manchado pela manha, por truques sujos, pela falsificação da verdade, com o apoio incondicional dos adeptos e o incentivo dos responsáveis. Acabado o jogo, o sábado começou a deslizar em direcção à noite. Poder-se-á pensar que isso também estava a acontecer durante o jogo. Se tomarmos a aparência pela realidade, então podemos dizer que é verdade que mesmo durante o jogo o sábado deslizava em direcção à noite. A realidade, contudo, é outra. Se alguma coisa consegue capturar a nossa atenção, o tempo suspende-se, deixa de correr. Então, perguntar-se-á, por que razão não somos eternos? Bastaria que a nossa atenção estivesse sempre intensamente concentrada nalguma coisa e trocaríamos o tempo pela eternidade. É verdade, mas o poder da nossa atenção, por mais desenvolvido que seja, é muito frágil. Essa fragilidade interrompe com frequência os estados de atenta concentração e lança o tempo na sua correria. Por isso, as paixões amorosas são de curta duração, pois o amante tem pouco poder para prolongar a sua atenção no objecto amado, por mais que Transforme-se o amador na coisa amada / Por virtude do muito imaginar.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Meditações de sexta-feira

Estou dividido entre uma meditação sobre a chegada do admirável mundo novo, anunciada hoje por um colunista do Público, pois chegámos ao momento em que as máquinas começam a dizer eu – será que já se reconhecem ao espelho? – e se reproduzem, e retomar a leitura dos cadernos manuscritos herdados de Eduína. Há muito que não pego neles. Na realidade, as vezes que lhes toquei foi para ler uma coisa aqui, outra ali, sem grande preocupação com a linha do tempo. Temo a leitura contínua e o que possa neles descobrir. Ler ao acaso é jogar à roleta russa. Pode acontecer que ao disparar a câmara esteja vazia, que aquilo que me é dado ler não me atinja, nada tenha a ver comigo. Se soubesse alguma coisa de grafologia, ainda submeteria a sua escrita a análise. Esta ideia, porém, mal a formulei, pareceu-me indigna, repugnante. Como se fosse a violação da intimidade de uma alma. As almas, todas elas, têm um lado íntimo e outro exterior, contrariamente aos que afirmam que a alma é pura interioridade. Não é. Aquela grafia não sendo particularmente excêntrica, é bastante pessoal, uma emanação da alma de Eduína, mas também do seu corpo. Fico a olhar para ela sem tentar decifrar o texto. Isso basta-me, por hoje. Volto ao artigo do Público, no qual Martin Heidegger é rotulado como o mais ilustre e influente tecnófobo do século XX, aquele que anunciou que a filosofia será substituída pela cibernética. Há qualquer coisa que não está bem. Heidegger não tinha fobia à técnica, mas ao facto de o homem deixar de pensar. O problema não estará na técnica, por muito que esta subverta a relação entre homem e natureza, mas na demissão dos seres humanos de exercitarem aquilo que os distingue não apenas dos outros animais, mas também dos seres de silício, mesmo daqueles que são capazes de dizer eu.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Broch e Cortázar

Continuo enredado na escrita de Hermann Broch, mas o digno de nota não é isso. Existe, na Gallimard, um volume do escritor austríaco, com o título La Grandeur Inconnue, o nome do primeiro romance do autor. Contudo, existem nela mais coisas. Cartas para Willa Muir, ensaios, narrativas e um fragmento de romance. Como não conhecia nada disto, ontem decidi comprá-lo online. Fui à Amazon francesa, passe a publicidade, o livro estava disponível. Tinha o preço de 18,60€ e os portes de 8,07€. Fui espreitar se o mesmo livro existia na Amazon espanhola. Existia, custava um pouco mais, 18,95€, mas os portes para Portugal eram gratuitos. Encomendei-o eram cerca das 11 horas de ontem. Recebi-o hoje por volta da mesma hora. É possível que de Espanha nem bom vento, nem bom casamento. Tenho alguma experiência do vento espanhol, mas não de casamento. Na verdade, o primeiro, não é grande coisa; o segundo, não me pronuncio. Sei, todavia, que os livros vindos de lá chegam rapidamente. Talvez venham a fugir do vento ou de um casamento que lhes desagradou. Tudo é possível, embora as pessoas tendam a não acreditar na proliferação das possibilidades. Estes enredos em Hermann Broch são apenas diurnos. À noite, nos períodos de insónia, vou lendo O Jogo do Mundo (Rayuela), de Julio Cortázar. Em conversa com um amigo disse-lhe que estava a gostar da obra, mas não tanto como teria gostado há trinta ou quarenta anos. Hoje, aquele ambiente intelectual e boémio de Paris, presente pelo menos no primeiro terço do romance, não me causa qualquer exaltação. Pelo contrário. Dou comigo a pensar que se trata de uma rêverie de adolescência ou de primeira juventude, mas que há pouca seriedade nela. Não afasto a possibilidade de mudar de opinião, caso os dois terços que me faltam ler tenham esse poder. Estes escritos estão a ficar fastidiosos, quero dizer: estão a ficar ainda mais fastidiosos. Talvez seja o efeito da operação ao pé esquerdo. A anestesia local pode ter provocado uma mais intensa paralisia da imaginação. Tenho de voltar às reflexões sobre o estado do tempo, isto é, do clima.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Midinettes

Numa conferência, La vision du monde donnée par le roman, Hermann Broch, a certa altura, para exemplificar um tipo de arte preocupada em produzir um qualquer fogo-de-artifício, diz: Je choisis Zola, car personne n’osera prétendre que Zola ait écrit des romans pour midinettes. Apesar de Zola ter escrito romances para produzir fogo-de-artifício, isto é, para vender uma certa ideia, Broch exemplifica, não chegou a cair nesse abismo de onde não há regresso, escrever para midinettes. O que terão feito estas pobres raparigas para que seja negativo um escritor importante fazer romances para elas? A palavra resulta de uma aglutinação de midi + dînette. Literalmente, significa que janta ao meio-dia, isto é, que toma uma refeição àquela hora. Quem o fazia, em Paris, no tempo de Zola, eram as costureirinhas. São elas as midinettes, referidas por Broch. Nelas se consuma a sentimentalidade ingénua e a simplicidade frívola. Todo essa gente que ganhava a vida costurando para que outros andassem vestidos, estava à partida excluído da grande arte, mesmo quando não era assim tão grande ou não era mesmo arte. Contudo, o primeiro nome que refere o escritor austríaco é o de Hedwig Courths-Mahler, uma escritora alemã que escreveu mais de 200 romances de amor, na primeira metade do século XX, que por certo fariam o encanto das descendentes sociais das costureirinhas parisienses. Podemos imaginar que os romances da senhora Courths-Mahler tocariam a sentimentalidade ingénua e a simplicidade frívola de qualquer costureirinha. A vida da autora, porém, está longe de ter sido cor-de-rosa e é possível que tenha sido pouco dada a frivolidades e ingenuidades. Quando se julga que a grande arte resulta de vidas ricas e duras, é possível que se esteja errado. O mais plausível é que entre arte e vida exista um claro divórcio, e só por uma ingénua e frívola concepção de arte se pensa que esta tem a sua causa eficiente no que foi vivido pelo artista.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

A primavera outonal

O tempo continua a passar. Não é uma abertura brilhante, mas talvez seja verdadeira. O talvez deve-se a não haver certeza de que exista uma coisa a que damos o nome de tempo. Ora, se o tempo não existir, então não pode passar. Estou a perder-me. A manhã foi passada em estágio para o que iria acontecer à hora de almoço. Essa preparação foi acompanhada por um número infinito de concertos para rebarbadora e corta-relva. Não sou refractário à música contemporânea, mas há coisas que excedem os meus poderes. Às empresas que foi concessionada a manutenção dos jardins e parques municipais falta-lhes a sensibilidade que havia nos antigos serviços camarários, onde tudo era mais lento e com enormes intervalos que deixavam o auditório descansar contemplativamente. Pela hora de almoço, dei entrada no bloco operatório para excisão de um sinal no pé esquerdo. As enfermeiras, antes da chegada dos médicos, anestesista e cirurgião, falavam de sopa de tomate, se era refogada, se era à alentejana, conversa que desembocou em tomatada com ovos escalfados. Chegados os médicos, a conversa mudou de rumo. Cheguei a participar dela, mas já não me lembro bem qual o assunto. Uma anestesia no pé acaba por ter um efeito na mente. A continuar assim, chego ao fim-de-semana cheio de aventuras, para ilustrar a minha gesta. O pior é conseguir andar. Vale-me um poema de Hermann Broch que, a certa altura, diz, na tradução francesa: Oh printemps automnal ! / Il n’y eut jamais de plus beau printemps que cet automne-là. / Le passé se mit à pousser des bourgeons, toutes les fleurs s’épanouirent / C’était le calme délectable qui précède l’orage. / Le Dieu Mars même souriait. Só espero que a tempestade seja no mar alto, naqueles lugares onde nem os barcos passam. Só espero que Marte, depois de sorrir, se sinta furioso por terem sido frustrados os seus planos, pois mesmo um cavaleiro andante tem os seus limites.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Luta com um moinho de vento

Comecei o dia da melhor maneira possível, irritando-me com a pessoa que me atendeu, através de contacto telefónico, num serviço público. Conforme ia pondo as questões, respondia-me com a ironia que se utiliza perante a insistência de estúpidos contumazes, a que se associava um tom paternalista, maternalista, no caso, para vincar a sua supina superioridade intelectual perante um representante imaculado do império da estupidez. Que eu seja estúpido, aceito-o com bonomia, pois ninguém pode fugir ao que é. Que outros me pensem estúpido, também o aceito sem reclamações. Que comentem nas minhas costas a infinita estupidez de que sou proprietário também não me levanta qualquer objecção. Que me o façam notar, isso ultrapassa a linha da vida civilizada. Eu sei que era cedo, mas a pessoa é paga para responder a questões e prestar esclarecimentos. Se está descontente por não poder, no exercício das suas funções, candidatar-se a prémio Nobel do que quer que seja, paciência, procure outra ocupação onde possa chegar à glória. Eu compreendo que a função seja de um aborrecimento mortal, que as pessoas lhe ponham mil vezes as mesmas questões, mas ninguém tem culpa da natureza esotérica da burocracia nacional, nem da inimizade para com o cidadão com que são construídos os sites dos serviços públicos. A certa altura, acabei por me irritar e dizer que ela estava ali para prestar esclarecimentos, que era essa a sua função e que também lhe cabia ter paciência para os que estão perdidos nos arcanos da literatura pública. Não foi bem assim, pois não perceberia a linguagem. A partir daí a situação tornou-se mais produtiva e os esclarecimentos foram prestados, descodificando siglas e não sei mais o quê, dando as informações pretendidas. Não há como começar a semana com um combate com um moinho de vento.

domingo, 17 de setembro de 2023

Domingo

Gosto destes dias de chuva, cada vez mais raros, de fim de Verão. Somos devolvidos a um mundo mais sério e autêntico, marcado pelo cheiro da terra molhada. O Verão é um tempo fantasioso, apesar do calor funesto. Agora, o Sol brilha, mas há pouco chovia intensamente. Não tarda, o Sol será ocultado por densas barreiras de nuvens escuras e a água cairá mais uma vez dos céus para fecundar a terra, numa manifestação da virilidade celestial e da feminilidade terrestre. O masculino e o feminino, em mitos de muitas tradições, tinham uma função ordenadora da realidade. O homem e a mulher eram apenas uma manifestação dessa estrutura que organizava o mundo e lhe fornecia um princípio de compreensão. Talvez porque vivamos numa época desencantada, onde o mito parece moribundo, o masculino e o feminino perderam não apenas a sua função estrutural, mas também a evidência com que se manifestavam. Este, porém, é um assunto que caiu no alçapão do debate ideológico e foi capturado pela política, o que o exclui deste espaço, onde um narrador dedicado cumpre as ordens de um autor que decidiu rasurar esse assunto que tanto ocupava o ócio dos cidadãos gregos. Descubro, não sem surpresa, algumas folhas amarelas nas acácias da praceta. Vêm muito mais cedo do que o habitual. O chão molhado do campo de jogos da escola aqui ao lado reverbera. Na rua, não passa ninguém. É domingo e a vida parece suspensa. Ah passa um carro, vagaroso e tímido. Não tarda, recomeça a chover.

sábado, 16 de setembro de 2023

Uma tarde desportiva

Passei parte da tarde a ver o jogo de Râguebi. Portugal perdeu, mas não seria de esperar outra coisa, já que o País de Gales pertence a outra galáxia. Contudo, não foi mau, a distância entre ambas as selecções já não é infinita. O gosto por esta modalidade, ocorrência não muita antiga, acabou por ser uma reminiscência. Na adolescência, numa época em que já teria nascido a RTP 2, eram transmitidos os jogos do Torneio das 5 Nações, aos sábados à tarde. Se não tinha nada melhor para fazer, ver os jogos era uma alternativa muito decente a estudar. Passada essa época, o Râguebi foi esquecido, mas há uns vinte cinco ou trinta anos, já nem sei bem como, voltei a ver, sempre na televisão, jogos de Râguebi. Quando posso – isto é, quando passam em canal aberto, já que não assino canais desportivos – vejo um jogo. Dá-me mais prazer do que o futebol, pois o ethos do jogo é muito diferente, mais decente, sem manhas e truques, sem perdas de tempo, sem violência, apesar de ser muito duro. Há muito que não tinha uma tarde desportiva.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Silêncio

Sexta-feira tornou a ser um dia de libertação e, ao mesmo tempo, de melancolia, pois sabe-se que a libertação é passageira, e as duras garras da realidade voltarão mais depressa do que se deseja. A madrugada desponta e mais um dia / Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da madrugada / Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui / Ou ali, ou algures. No meu começo. Por mim, penso ao ler estes versos de Eliot, deixava ir o calor, pedindo ao vento do mar que o levasse para longe, e ficava com o silêncio, pois não tenho outro começo que não o silêncio. É nele que tudo começa, mesmo o ruído mais abominável ou o gesto digno do maior louvor. O silêncio é uma casa, a minha casa comprada sem prestação mensal, sem pagamento a pronto, herdada dos dias de nevoeiro ou das noites veladas à luz estelar. Caminho pelos corredores do silêncio, entro em cada um dos seus quartos, em cada uma das suas salas, e ele é sempre diferente, como são diferentes os dedos de uma mão. Há dias em que habito não o silêncio, mas o vento, um certo vento que desliza sobre a terra de um modo que só eu reconheço. Dançava diante da escola onde aprendi a ler, e por isso aprendi a ler, e se amo a leitura foi porque amei antes dela o vento que a trouxe, nesse começo que era, ao mesmo tempo, começo e continuação e, ainda, fim, mas isso eu não sabia, pois nesse tempo a sexta-feira ainda não era um dia de libertação. Tudo era então mais lento, e havia que esperar a chegada do sábado ao início da tarde, quando saía da escola, e o vento esperava por mim para me guiar à casa do silêncio, onde ouvia as vozes que dobavam, para o meu prazer, o silêncio infinito que me cabia.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Solipsismo neurónico

Retorno a uma das minhas ocupações desesperadas. Consultar as previsões para a evolução do estado do tempo. Tornei-me um amante da meteorologia. O calor retornou e o corpo, miserável e incapaz, protestou, recusando-se a grandes pressas. O pior, contudo, é o cérebro. Sinto-o empapado, sem vontade que nele os neurónios se entreguem à feroz actividade exigida pelas sinapses. Quando o calor cai sobre mim, os neurónios, todos eles, tornam-se solipsistas e recusam qualquer contacto com outros neurónios, cuja existência é negada não sem veemência. Em dias como o de hoje o meu cérebro é habitado entidades solitárias que se negam a trabalhar. Daí os meus pensamentos serem o que são, fruto de uma mente implantada num cérebro deliquescente.  Apesar disso, nem tudo tem sido mau. Recebi uma notícia agradável, relativamente inesperada, mas cujo conteúdo omito. Falo do assunto, para evitar espalhar a impressão de que só me preocupo com os males e não dou a devida atenção aos bens recebidos. Imagino que a esta hora o calor tenha declinado e vou sair um pouco. Talvez o vento me arrefeça o cérebro, os neurónios comecem a trabalhar e me nasçam algumas ideias que, caso não as esqueça, utilizarei amanhã.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Paisagens

Em 2020 foi roubado do museu de Groninger um quadro de Van Gogh. Foi agora recuperado. O título da obra é O Jardim do Presbitério Neunen na Primavera. Tudo no quadro, porém, é outonal, as corres sombrias, a natureza representada, mesmo a figura humana com o seu vestido negro. Imagino que uma pintura destas não fosse possível num país do Sul da Europa. Também não consigo imaginar uma indiferenciação entre o crepúsculo que antecede a noite e aquele que anuncia a manhã. É possível que aquilo que cada um é e o modo como vê e representa o mundo dependa tanto da geografia como dos genes. Imagino que sejamos filhos das paisagens, pois são elas o pano de fundo onde se desenrola o drama de cada um. Quanto mais poder essas paisagens têm sobre nós, menos damos por elas. Tornaram-se carne da nossa carne. Aquelas que se impõem à atenção são as que são estranhas. Podem ser belas, mais belas que as nossas, mas nelas somos sempre estrangeiros. Talvez o jardim do presbitério de Neunen nunca tenha sido abençoado com uma Primavera.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

O absoluto

É na “Introduction” à sua obra God, Freedom and Evil que o filósofo norte-americano Alvin Plantinga propõe a distinção entre crer em Deus e crer que Deus existe. Nesta última formulação, crê-se que um conjunto de proposições acerca de Deus são verdadeiras. Na primeira formulação, a crença ultrapassa dimensão epistemológica e implica um compromisso com essa crença. Seria um compromisso com o absoluto e, para ser autêntico, seria um compromisso absoluto. Esta ideia de um compromisso absoluto, a certa altura da história da Europa, e a Europa é muito mais do que a Europa, emigrou da relação com o divino para outras áreas. Para a política, para a arte, para o amor. Em todas estas dimensões, a procura do absoluto redundou em desilusão, no melhor dos casos, ou em tragédia, como aconteceu nessa terrível ligação entre a política e o absoluto. A razão de ser da desilusão ou da tragédia é fácil de compreender. Nem na política, nem na arte, nem no amor, existe um absoluto, ao qual alguém se possa entregar até à extinção de si, do seu ego. Aqueles são sítios humanos, demasiado humanos, para que o absoluto resida neles. A distinção de Plantinga é interessante não porque assegura que Deus existe, mas porque, sub-repticiamente, mostra que crer em Deus, nesse absoluto absolutamente perfeito, é uma resposta, a única resposta, ao desejo de um compromisso absoluto que habita o coração de muitos seres humanos, senão de todos, mesmo que disso não tenham consciência. David Hume estava errado ao pensar que a ideia de Deus tem a sua origem numa reflexão sobre as operações da mente humana e eleva sem limites essas operações de bondade e sabedoria que encontrou na mente humana. A ideia de Deus nasce de uma fome de absoluto, de um desejo que as coisas terrenas, mesmo as mais sublimes, não saciam. Dito de outra maneira, a ideia de Deus nasce do desejo humano. Nada disto prova, porém, que Deus existe, mas também não prova que não existe.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Uma rapaziada

Tudo tem um tempo. Findo este, tentar prolongá-lo torna o prolongador não apenas insensato, mas também ridículo. Uma consulta, na capital de distrito, antes de almoço. Outra, na capital do antigo reino, depois de almoço. A conjugação das duas levou à supressão do almoço. De retorno a casa, sem almoçar tive a estulta ideia de uma rapaziada. Que tal uma sandes de leitão, ali mesmo à saída da auto-estrada? Se bem o pensei, melhor o executei. Na altura, tudo me pareceu perfeito. Depois descobri o ridículo de um narrador a quem retiraram a vesícula, a biliar, crer que tinha direito a certo tipo de rapaziadas. Não tem. Resume-se nesta experiência trivial todo o drama metafísico da finitude do homem, a tensão entre um desejo infinito – nem que seja de uma sandes de leitão, num dia sem almoço – e os limites de um corpo. Salvou-me o dia a pontualidade dos médicos, eu que tantas vezes sublinho a sua tendência para os mais inexplicáveis atrasos. Como castigo, além da caminhada, embora lenta, que já fiz, eximo-me à tarefa de jantar. Entrego-me, como penitência, ao jejum, embora a Quaresma ainda venha longe, mas já ninguém jejua na Quaresma. Agora jejua-se não por amor a Deus, mas por amor à forma física, isto é, por amor a si mesmo. Temo que o meu próximo jejum se inscreva nesta última categoria. Também é verdade que quem quer conquistar a glória do altar não se torna narrador e não se põe a escrever sobre coisas sem nexo, o que, segundo a crença de Einstein, não é particularmente bem vista por Deus, o qual, di-lo o eminente físico alemão, não joga aos dados e muito menos à roleta russa, acrescento eu.

domingo, 10 de setembro de 2023

Contra a querela

A certa altura, no século XVII, desencadeia-se em França uma querela que ficou famosa, a denominada Querela dos Antigos e dos Modernos. Que tipo de arte é superior, aquela que imita os clássicos greco-latinos ou a que pretenda inovar? Como acontece nestes conflitos de ideias, as posições extremam-se e acabam por parecer incompatíveis ou mesmo incomensuráveis, como se a arte clássica e as suas imitações pertencessem a um universo e a arte moderna pertencesse a outro, e entre eles não houvesse possibilidade de estabelecer mediação. Muito curiosamente a Querela estava fundada numa exclusão, a da arte medieval, de acordo com a ideia de que a Idade Média tinha sido uma era de trevas. Havia no espírito do tempo uma propensão para a exclusão. O que fará sentido, porém, é a atitude contrária, perceber que a arte de uma certa época terá de carregar com o peso do passado, terá de apropriar-se das tradições e reinventar-se nesse solo mil vezes adubado e por isso fecundo. A que propósito vem isto? Ocorreu-me e não encontro razões conscientes para falar deste assunto, mas é plausível pensar que haverá razões inconscientes que, através dos artifícios que só o inconsciente conhece, tivessem desencadeado em mim a vontade de escrever sobre ele. Talvez, ao contrário ao dos modernos, o meu inconsciente não esteja inclinado a matar o pai, dando-lhe um lugar e fazer da arte um lugar onde o novo, o inédito, se insere num culto dos antepassados, como acontece em certas tribos arcaicas.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Uma inclinação nacional

Hoje, pisei a areia pela primeira vez este ano. Quase ninguém no areal, o mar enrolado em algas, um céu cinzento. Eis, para mim, um dia perfeito de praia. Passeei com o meu neto e tive de esforçar-me para correr atrás dele. Valeu a pena depois de uma manhã inteira entregue ao ócio da realidade. É provável que sofra de um défice cognitivo não diagnosticado, mas ainda não consegui perceber a capacidade que as pessoas têm para inventar coisas cuja utilidade é zero, ou, para ser mais rigoroso, negativa. Imagine-se uma qualquer instituição, pública ou privada. Imagine-se ainda que se acha que ela tem de ser melhorada. O que acontece muitas vezes é que as acções tomadas para a melhorar a tornam pior, acelerando a sua decadência. Creio na existência de um gene português que nos inclina para a irrelevância e perdição. Agora, vou ao parque infantil, embora não me seja permitido andar de baloiço e deslizar no escorrega.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Essa é uma questão filosófica

Mas essa é uma questão filosófica, e, após a sentença, continuou a derramar sobre o assunto, para logo de seguida acrescentar, para vincar a certeza, mas essa é uma questão filosófica, o que não foi suficiente para acalmar o derramamento, pois este prolongou-se até chegar novamente ao estribilho, o motivo real do escrito, mas essa é uma questão filosófica. O assunto não vem ao caso, a escrita aconteceu numa caixa de comentários de um blogue, cujo nome e autor omito. Fiquei a meditar no sentido da frase, enquanto olhava o céu. Uma parede de nuvens apresentava, por vezes, abertas por onde passavam quentes e ameaçadores raios solares. A expressão é usada, amiúdo, num sentido pejorativo. Quer dizer: essa é uma questão obscura que não interessa a ninguém. Outra possibilidade é que sobre essa questão cada um diz o que lhe der na veneta, como se sobre o assunto pudesse exsudar os sentimentos que lhe atormentam a alma. O estranho é que as questões filosóficas são, em geral, claras e pouco consentâneas com a democratização opinativa corrente, porque a generalidade das pessoas não tem capacidade para as pensar – mais por falta de disciplina, do que de inteligência – e aquilo que as pessoas chamam pensar não passa de uma amálgama de desejos, sentimentos, emoções, interesses pessoais, tudo articulado por uma sintaxe generosa que permite confundir expressão com pensamento. Quando se ouve, e tantas vezes se ouve, mas essa é uma questão filosófico, o melhor é pensar que é um ouriço-caixeiro ou uma zebra pintada de azul a sair do autocarro que vai para o Cais do Sodré, pois, por certo, não será uma questão filosófica. O mais provável é ser um eflúvio que se desprendeu de uma mente sobressaltada com qualquer emanação vinda de um órgão do corpo em funcionamento deficiente. Também é verdade que se o meu corpo fosse completamente são, não teria escrito este texto, mas a manhã vai avançada, tenho coisas para fazer e espero, depois de almoço, o meu neto.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Experiências matinais

Hoje fui a uma agência bancária, sítio onde não ia há muito. Fiquei espantado. Quase não havia funcionários, também eram poucas as pessoas que solicitavam os serviços desses funcionários. O lugar para o público combinava o aspecto de uma sala de espera de um consultório médico com o de um café. Tudo se resolveu com rapidez, no meio de um silêncio reverente, o que me fez suspeitar que aquilo seria também uma espécie de igreja, com bar e lugar para os crentes prepararem as suas confissões. Um exemplo de metamorfose moderna, que ainda não descobriu o seu Ovídio para a cantar. Ao sair, encontrei o mundo profano que deixara ao entrar. Respirei fundo e caminhei descansado para o carro. Chegado a casa, depois desta vibrante aventura, dei uma vista de olhos pela imprensa online. Parece que as máscaras estão a começar a voltar aos hospitais, ainda por causa da COVID-19. Temo que esse retorno se propague. O que me chocou, porém, foi saber que a nossa espécie esteve quase para não chegar à existência. Um tenebroso colapso populacional, ocorrido há 900 mil anos, reduziu os nossos antepassados, em idade reprodutiva, para cerca de 1280. Note-se a precisão do número aproximado, passe a incongruência. Não foram cerca de 1300 ou de 1200, mas cerca de 1280. Foi uma sorte esses 1280 não terem entrado todos num convento e feito votos de castidade ou terem trocado os encontros presenciais por contactos virtuais, ou mesmo terem achado o sexo uma prática repugnante e desistido dela. Não, fiéis ao compromisso que tinham para assegurar que nós haveríamos de existir, decidiram nada de entradas em conventos, nada de uso de telemóveis, nada de repugnâncias com a troca de fluidos. Sacrificaram-se, usando os sexos, para que nós tivéssemos a possibilidade de vir à existência. Devemos admirar e honrar o seu altruísmo.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Assim seja

Hoje tomei um banho não no mar, mas na realidade, e esta é opressivamente maçadora, mata o espírito de uma pessoa pelo tédio. Não passa de uma água chilra, onde se adiciona uma quantidade significativa de soporíferos, ao mesmo tempo que se mistura doses significativas de fantasias adequadas à primeira infância. Nunca fui adepto das desconstruções, mas posso converter-me às desrealizações, uma tarefa hercúlea para tornar manifesto quanto a realidade é perversa. Quase podia fazer minhas as palavras do primeiro verso do “Recanto 11”, de Luiza Neto Jorge, O verão deu-nos uma volta aos olhos. Só não faço, porque não é necessário o Verão para nos dar a volta aos olhos, basta a realidade, basta a existência de realistas, simulacros de seres humanos que dizem amar a realidade e que com eles não há cá fantasias. Esta gente dá-me volta aos olhos, põe-me estrábico, como se os olhares que me saem de ambos os olhos fossem cordéis a que deram nós cegos. Estou com pouca paciência e tenho uma caminhada pela frente, de onde posso varrer, caso tenha cuidado com a circulação, a realidade realista. É uma forma de me lavar do contacto com o real. Assim seja.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Notas biográficas

A minha vontade, alimentada por uma inclinação natural, era de falar sobre o tempo, não a duração, mas o clima. Contenho-me, pois não tenho habilitação meteorológica, e o que é demais, é demais. Já para falar da duração, teria habilitação, desde que não falasse mais de três minutos, o que é obviamente pouco. Talvez pudesse discorrer acerca do conflito entre guelfos e gibelinos, mas isso foi há tantos séculos que, apesar de ter participado nessas lutas, já não me recordo do resultado, nem do lado a que ofereci os meus primeiros serviços, embora, como se sabe, tenha combatido ora de um lado, ora de outro. Se foi essa a verdade, pois tudo em mim está difuso, não se pense que eu chefiava uma comandita que usava mercenários para combater pelo lado que melhor pagasse. Nesse tempo, o meu espírito ainda não se tinha rendido à economia de mercado. O que me movia nesses séculos finais do medievo, se bem me recordo, era um espírito de equanimidade, no sentido de advogar a igualdade e a imparcialidade, oferecendo os meus serviços a quem estivesse em pior posição, de modo a repor a igualdade entre os contendores. A minha alma não se movia nem pelo papado nem pelo império, mas pela ideia de equilíbrio. Consta que esta posição foi, desde muito cedo, atacada, pois ela significava um prolongar infinito da guerra. Para que haja paz, é necessário que uma das partes fique mais fragilizada e se submeta, o que acabaria por promover a felicidade do maior número de intervenientes no conflito, argumentou-se. Ora, posso jurá-lo, nunca o utilitarismo me moveu, o que me terá levado a rejeitar com acinte as críticas, continuando apostado na promoção de equilíbrios, sempre que um desequilíbrio surgia. Tudo isso se passou há muito, bem antes de ter partido nas naus portuguesas e, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, ter aportado a terras de Vera Cruz, e ter acompanhado a redacção da carta de Pêro Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel, o primeiro dessa denominação no rol dos reis pátrios. Cansado de tantas peripécias, sento-me agora à janela e vejo a chuva cair, para adormecer de seguida, acordando se algum trovão ribomba, sentindo um leve ânimo se o horizonte se abre num clarão ou um raio fende a atmosfera cinzenta e entra pela terra.

domingo, 3 de setembro de 2023

Pobres planos

Chove e troveja, venta, parece um pequeno temporal, com um céu de cinza e chumbo. Lamento os meus planos, pobres enganos. A caminhada da tarde, com os respectivos pontos cardio, está comprometida. Resta-me esperar que S. Pedro, o meteorologista-mor em exercício, se apiede de mim e mande suspender o temporal. Os santos, todavia, regem-se por uma lógica que os pobres pecadores não compreendem. Não sei se isso será da santidade ou da falta cultura filosófica. Talvez São Tomás de Aquino seja mais lógico, mas não lhe foi dada a incumbência de reger o clima. Pior do que isso acontecia, segundo o poeta Rilke, ao Rei de Münster: Já não se sentia legitimado: / o senhor nele era moderado / e o coito era falhado. Talvez a pobre majestade tivesse medo da trovoada, o desejo sucumbisse ao ruído dos trovões e o sentimento real se apagasse à luz dos relâmpagos. É possível que impérios tenham caído por coisas de menos importância. Portanto, podemos pensar que o brevíssimo reino de Münster tenha sucumbido por motivos tão triviais como esse. Convém, no entanto, não confundir os reinos de Munster e de Münster, o primeiro, na ilha da Irlanda, foi duradouro, o segundo, na Vestefália, resistiu um ano. Foi governado por Jan Leiden, um alfaiate holandês, de orientação religiosa anabaptista, e proporcionou não pouca diversão. Para além de tornar obrigatório o rebaptismo, pôs em comum os bens e decretou a poligamia. Imagino que as competências do alfaiate não estivessem ao nível do que era proposto, o que permitiu que os inimigos da experiência sitiassem a cidade, se apoderassem da corte tresloucada e executassem os seus membros. Se me perguntarem qual a opinião de S. Pedro e de S. Tomás, confessarei que não faço a mínima ideia. Talvez, no momento da conquista da cidade, S. Pedro tenha mandado uma tempestade, e S. Tomás, escrito, no paraíso celeste, mais umas páginas da Summa Theologica. Isto, porém, são especulações intempestivas de alguém que é, por natureza, anacrónico. Os trovões calaram-se, mas continua a chover. Münster será reconquistada.

sábado, 2 de setembro de 2023

Curva de Gauss

É no início do décimo primeiro capítulo do romance A Rebelião que Joseph Roth escreve: O dia em que Andreas devia comparecer no tribunal despontou como um dia inteiramente normal, como todos os dias que o tinham precedido. Imagino que seja este paradoxo que torna a vida possível. Qualquer acontecimento anormal – uma ida a tribunal, um casamento, uma declaração de amor, a morte – tem o seu lugar na existência no quadro de um dia normal. Isto significa que tudo o que é excepcional, tem por pano de fundo a trivialidade, e esta acaba por colonizar o extraordinário, contaminando-o com a sua vulgaridade. Os antigos gregos – por exemplo, o velho Aristóteles – viam no espanto o início do filosofar. Ora, este não é mais do que a redução desse assombro, desse espasmo perante o anormal, à normalidade da investigação. Os seres humanos, por muito que pensem o contrário, não foram feitos, nem lhes foi dado por destino, o viverem na assombração. Por isso, os dias, com a sua variabilidade sem fim, nunca deixam de ser normais, para que nós possamos adoptar a nossa anormalidade a essa norma e evitar um destino funesto, como sermos fulminados por um raio ou transformados em estátuas de sal. Por muito que protestemos, as nossas vidinhas, mesmo quando matamos dragões e combatemos gigantes, cabem todas dentro da curva de Gauss.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O encoberto

Hoje foi o dia em que estive mais perto da areia. Passei pela travessia que divide duas praias com o mesmo nome, mas que se distinguem por que uma é do Norte e a outra do Sul. O caminho aliás é duplo, um para carros, em alcatrão, e outro para peões, em cimento. Passei por ali como peão e fui sentar-me numa esplanada voltada para a praia do Norte, onde, outrora, passeava e mergulhava nas águas frias do Atlântico. Estava um dia espantoso, com um enorme nevoeiro que mal se via o mar. Havia pessoas deitadas na areia a apanhar banhos de névoa. Esta, com o passar dos minutos, ia ficando mais densa. Do mar veio o barulho de uma sirene ou qualquer coisa do género. Pensei que seria o barco que traria D. Sebastião. Se ele vinha, não desembarcou. Penso, porém, que qualquer rei encoberto, mesmo quando chega a algum sítio, nunca perde essa característica e, por mais que se manifeste, nunca deixa de estar oculto. Este texto, em particular este último período, é a minha contribuição teórica para o desenvolvimento do sebastianismo em Portugal, talvez a mais importante de Fernando Pessoa para cá, ou mesmo desde antes dele. É plausível, penso agora, que o nevoeiro seja uma forma de me contrariar, quando penso que o Verão se vai prolongar por dentro do Outono. Será, antes, o contrário, uma invasão outonal na terra do Estio. O jovem Werther reforça esta intuição, pois de uma intuição se trata. Diz ele, a 4 de Setembro, apesar de estarmos a um: Tal como a natureza se encaminha para o Outono, também dentro de mim e em meu redor faz-se Outono. As minhas folhas amareleceram e as folhas das árvores vizinhas já caíram. Ele, tão jovem, parece-me muito impressionável, mas, é preciso não o esquecer, está apaixonado e sofre, uma coisa que, em naturezas delicadas e submissas às impressões, pode acabar em suicídio, embora eu não seja psicólogo para o asseverar. Quanto à areia, consegui não lhe tocar. Na esplanada, estava um casal alemão, mas não me constou que fosse Werther, agora menos jovem, e a sua amada Lotte. Ele talvez fosse o encoberto, quem sabe?