sábado, 27 de novembro de 2021

Um birra

Uma birra monumental. Fui buscá-lo, ao meu neto, à entrado do prédio. Vinha ensonado e cabisbaixo. A coisa começou a meio da viagem de elevador. Abriu a boca e desatou a chorar. Não queria entrar em casa. Entrado, queria sair. Um grande problema afligia-o. Queria pôr a chucha no carro da avó que o deixara para ir tratar de assuntos urgentes. Tive de fechar a porta à chave, pois insistia em sair. Percorreu as várias tonalidades da tragédia grega. Chegou a atirar-se ao chão, mas achou que não valia a pena. Peguei-o ao colo, esperneou, fez-se de enguia para tentar fugir. Mostrei-lhe um presente que tinha para ele, nem olhou. Valeu-me a avó de cá. Com tantas peripécias, a energia foi-se gastando e o sono, que o atormentava desde o início, venceu. Agora dorme como um anjo, se é que os anjos dormem. Foi um começo de tarde exuberante. O sol já começa a declinar, toma a palidez por tom de pele, anuncia o crepúsculo e a noite que há-de vir, quando a porta ranger nos gonzos para ela, como se fosse uma rainha, entrar. Isto lembrou-me a ária da Rainha da Noite, na Flauta Mágica, do Mozart. Como eu gostaria que o meu neto, um dia, a visse comigo. Tenho ainda muitas coisas para tratar. Nem todos os sábados são dias de fim-de-semana. O pior, porém, é que não vou ter grande tempo para brincar com o rapaz, agora que a birra lhe passou. Acordado, será hora de lanchar e de o ir pôr a casa da outra avó. A vida é o que é e não o que se deseja, ou será o contrário?

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Desconexão neural

Há dias que oiço continuamente a mesma música. Não sei de quê será isto sinal, mas imagino que não deve ser lá muito abonatório do meu estado mental, se é que eu tenho uma mente para possuir estados. Não a oiço como se a estivesse dedicado a ouvi-la, mas como se ela fosse o pano de fundo da minha existência, como a música das esferas celestes o é da vida neste pobre planeta e noutros, caso exista vida noutros lugares. Não parece muito verosímil que este acontecimento, o do surgimento da vida, seja uma excepção num universo cuja dimensão o espírito dos homens é incapaz de abarcar, mas é uma possibilidade a considerar. Até agora, nenhuma prova em contrário, embora isso não prove a inexistência da vida por outros lugares. Já não me recordo quem o terá dito, talvez Pitágoras, mas as esferas celestes, nas suas rotações em torno da Terra, emitem uma música – celestial, por certo – mas nós não a ouvimos porque o hábito toldou-nos a audição e ficámos surdos para as harmonias celestes. Talvez os recém-nascidos a oiçam, mas habituam-se a ela ainda antes de falarem e perdem a memória desses memoráveis concertos. Quando chego à sexta-feira, vendo-a passar num foguete (ainda haverá quem se lembre do comboio-foguete, no qual muitas viagens fiz para o Porto?), o aparelho neuronal descamba e começa a soletrar-me coisas desconexas, pegando uns assuntos noutros. É isso que escrevo com fidelidade, a minha desconexão neural das sextas-feiras à tarde quase noite.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Resiliência

Voltamos para o estado de calamidade. Parece que o vírus tem uma grande resiliência, como se tornou moda dizer. A sua manifestação é atacada, mas ele logo se recompõe do choque e não perde o equilíbrio emocional. O que lhe permite voltar a infectar. Resiliência é uma palavra que me irrita sobremaneira, tal como empreendedorismo. Não querem dizer rigorosamente nada, não passando de chavões na comunicação social.  Como, num outro contexto, alguém dizia – alguém que já não recordo – são significantes sem significado. Um significante sem significado, na linguagem falada, não passa de um flato. Abre-se a televisão e descobre-se, abismado, que muita gente importante sofre de um estado crónico de flatulência, tantos são os significantes sem significado que debita. Se fosse dono de uma farmacêutica tentaria criar um Aero-Om linguístico, passe a publicidade. A toma deveria ser compulsiva. Pessoa que falasse, na comunicação social, em resiliência, empreendedorismo e coisas semelhantes teria de tomar quatro comprimidos por dia, após as refeições. O ambiente tornar-se-ia menos pestífero, a língua agradecia e, mesmo que isso não fosse condição suficiente para chegarmos ao paraíso, contribuiria decisivamente para dele nos aproximarmos. Não fosse o caso de estar proibido de falar de política pelo autor, este narrador teria imensas soluções que melhorariam a vida das pessoas. É o que faz os narradores estarem subordinados ao seu criador, os quais são despóticos e falhos da misericórdia divina. Deus criou o mundo e deu ao homem liberdade para fazer o que entendesse. Os autores criam os narradores, mas em vez de lhes dar rédea solta, enchem-nos de proibições. Não falas disto, nem daquilo, nem daqueloutro. Seja como for, oiço agora a minha neta mais nova numa sessão online com a avó. O assunto parece ser a Geometria. Espero que pequena seja resiliente. O que vale é que comprei Aero-Om.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O que me ocorreu

Quem hoje em dia sabe quem foi Domingos Monteiro? Poucos, muito poucos. No entanto, foi um editor com peso no mundo literário com uma editora também pouco conhecida nos dias de hoje e já desaparecida há muito, a Sociedade de Expansão Cultural, a qual deu voz a muito autores nacionais, que ali encontravam abrigo. O próprio Domingos Monteiro foi escritor e com nome firmado na praça. Conhecido, principalmente, como contista, também escreveu poesia, história, doutrina e crítica, múltiplas novelas e o romance O Caminho para Lá. É este que comprei em segunda mão, a edição definitiva, a segunda, de 1958. A primeira data de 1947. Espanta-me sempre os milhares de exemplares que eram tirados. Esta segunda edição corresponde aos 5º e 6º milhares, o que significa que a primeira teve uma tiragem de 4000 exemplares. Números que hoje seriam astronómicos. Apesar de ser um óptimo escritor, Domingos Monteiro não era um dos grandes nomes da época e mesmo assim os seus livros vendiam-se muito. E não é caso único. Contudo, à medida que os portugueses se vão escolarizando, à medida que o ensino superior se vai democratizando, os leitores de literatura com um módico de seriedade parecem diminuir. Em torno da poesia gira uma pequena seita esotérica, sem qualquer ligação ao grande público. Diz-se que os poetas escrevem uns para os outros. Talvez seja assim. Temo, porém, que ao romance aconteça a mesma coisa. Curioso que o cinema, essa forma de narrativa romanesca com imagens, não matou o romance, mas talvez as séries do Netflix e semelhantes o estejam a fazer. Isto foi o que me ocorreu num dia em que pouca coisa me ocorreu.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Provações iniciáticas

Quase duas semanas de poupança. O hábito é ligar, por aqui, o aquecimento no S. Martinho. Este ano não foi preciso. O frio, porém, chegou agora e já começou a infiltrar-se nas casas, armado com uma espada de gelo com que persegue as manchas de calor ainda restantes. Como alguém dizia, vivo numa zona climatizada, quente no Verão e fresca no Inverno. Não se trata, porém, de frescura, mas de frio. Ainda, por cima, sem o consolo da neve, a qual é guardada, só para eles, pelos ciosos habitantes das zonas altas. Espera-me uma noite difícil e uma manhã igual, pois hei-de submeter-me a um estranho exercício de abluções interiores, as quais me tornarão puro e cristalino, para que amanhã possa ser visto e revisto. Na verdade, é um autêntico ritual iniciático, que nem sequer exclui o jejum, embora o destino próximo não seja a elevação espiritual, mas o caminho atarefado para a casa de banho. Alguém contumaz na prova iniciática recomenda que se tenha as leituras e gadgets a postos, pois fazem parte da provação. Servem para evitar o contacto com as forças negras. Já verifiquei se os eReaders estão carregados. São mais maleáveis que uma pilha de livros e, contêm, bibliotecas. Literatura e outras leituras mais inóspitas não me faltam. Há que enfrentar com denodo a fragilidade humana. De resto, continuo a ouvir canto gregoriano, mas acho que chegou a hora de mudar. Um concerto, em Seatle, de polifonia portuguesa, com música de Filipe Magalhães, Manuel Cardoso e Duarte Lobo, todos da chamada escola de Évora e do período de ouro da polifonia portuguesa. Talvez a música, a excepcional música portuguesa, estenda sobre mim as suas asas protectoras.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Fora da realidade

Num certo diálogo, em Kiev, entre o jornalista Jagorski e o ajudante S. I. Antonov, o primeiro diz: Mas antes contou as coisas de um modo diferente. Então, o ajudante responde: É que as coisas eram complexas, e por isso eles não nos impediram a concretização da acção essencial. Ao ler o trecho do diálogo fiquei perplexo com a resposta de Antonov. Se tivesse presença de espírito e um módico de sabedoria teria respondido de outra maneira. Diria: Há pouco contei as coisas de modo diferente porque elas eram diferentes. Ao contá-las segunda vez elas já se tinham transformado com a primeira narração. Se as tornar a contar, não terei outra possibilidade, para lhes ser fiel, senão dar uma nova versão dos factos. Isto, sim, seria uma resposta à altura. É certo que todos nós possuímos a crença ingénua de que factos são factos e que mal tenham acontecido eles permanecem eternamente idênticos. A crença, porém, não tem em conta os estranhos efeitos que a narrativa tem sobre os factos. Ela interfere com eles e faz com que, mesmo já tendo acontecido, eles se transformem. Se queremos que certos acontecimentos passados permaneçam o que foram, a única forma de o conseguir é não falar neles. Talvez esta minha deambulação por terrenos ínvios esteja ligada à escuridão da noite. As trevas intrometem-se no corpo de uma pessoa e a capacidade sináptica do cérebro é duramente abalada. Ou então foi o título do Volume II da Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, de onde retirei o excerto do diálogo, que me afectou. Não é sem enormes perigos que se estabelece relação com um livro que tem por título A Queda para Fora da Realidade. Também eu terei caído para fora da realidade. Há muito, ouço dizer.

domingo, 21 de novembro de 2021

Mais valia

Como um biscoito seco tirado de uma caixa comprada numa grande superfície. Não é mau. Também não é particularmente bom. Come-se. O pior é que mesmo ao lado da caixa está um bolo de maçã e nozes, feito em casa, com um aspecto e um odor absolutamente tentadores. Mais do que isso, pois ontem perdi-me, com um sabor esplêndido. Hoje, porém, e nos próximos três dias está-me interdito. Não apenas o bolo, como tudo o que vale a pena comer. É-me permitido, por exemplo, sopa branca de batata. O que será sopa branca de batata? Terá cal? Olho para a dieta prescrita e não vejo a proibição nem de álcool nem de café. É nestes momentos que me sinto perdido na existência. Não estão prescritos, mas não estão interditos. Por exemplo, o leite está interdito. O que para mim não tem qualquer problema, pois não o suporto. Seja como for, a coisa está clara. Será que posso beber um copo de tinto? Talvez eu não tenha percebido. Aquilo que posso comer não requer acompanhamento de bebidas sérias e profundas. Logo, quem fez o maldito panfleto não achou necessidade de interditar o vinho. Pensou que era uma evidência. É nestas meditações que perco o domingo, em vez de pensar em coisas sérias, como brincar com o meu neto, fazer corridas de carros, pô-los no camião transportador, todas essas coisas que dão sentido a uma vida e não requerem dietas durante três ou quatro dias. Mais valia que me fosse decretado um período de jejum e abstinência. Mais valia.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Efeitos musicais

Nesta altura do ano, os dias começam a despedir-se muito cedo. A um sol glorioso, que parece ir brilhar por toda a eternidade, segue-se, de súbito, uma luz mortiça e envergonhada, impotente para fazer reverberar as paredes dos prédios, para iluminar de ouro e prata a copa das árvores que ainda não perderam as folhas. Logo vem o crepúsculo e a escuridão nocturna. As acácias da praceta ainda estão magníficas, com as suas folhas amarelas, ainda tisnada por leves sombras esverdeadas. Daqui a pouco serão apenas manchas pardas. Das colunas da aparelhagem sai uma música que se poderia escutar sem nunca dela ficar cansado. Trata-se de canto gregoriano. A opinião da escuta eterna sem cansaço não é minha, mas de alguém que no Youtube comenta um vídeo com sete horas deste tipo de música. Tanto o canto gregoriano como o bizantino têm o estranho poder de envolver a consciência sem a ela se impor. Talvez a polifonia renascentista ainda herde algum deste poder. A música do barroco, porém, já se afastou desta possibilidade. Apesar de ser uma música extraordinária, não tem o poder conciliador que o ouvinte encontra no canto gregoriano e na polifonia da Renascença. A partir daí, com o classicismo, o romantismo e a música contemporânea, o afastamento dessa origem pacificadora foi crescendo, embora no século XX se tenha assistido a algumas tentativas restauracionistas dessa experiência agora arcaica. Como se vê, a minha falta de assunto é total. Se tivesse alguma coisa para dizer, mínima que fosse, não teria escrito sobre aquilo de que nada sei, a música. Uma pessoa, porém, se escrevesse apenas sobre aquilo que sabe, talvez ainda não existisse hoje coisa alguma escrita. Com isto, cheguei ao crepúsculo. A tonalidade do ambiente está carregada de mistério, o mistério da queda da noite.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Dos pastores e dos rebanhos

Na escola aqui ao lado há eleições para a associação de estudantes. A campanha é feita, segundo sou forçado a perceber, ao som de uma música ensurdecedora, acompanhada pelo grito em uníssono de um rebanho exaltado. Gritam: vota e a letra que designa a lista, tudo repetido ad nauseam. Talvez não tenha sido por acaso que tenha visto, enquanto os meus ouvidos eram martelados, num tweet de um conhecido ex-embaixador português, uma fotografia do amado líder político, de uma das mais caricatas ditaduras existentes, seguido não pelos gritos de um rebanho enfurecido, mas por um conjunto de civis e militares, armados de caneta e papel, prontos para apontar qualquer palavra – sempre, um grande pensamento – do divino pastor de rebanhos. Nós nunca estamos suficientemente atentos a estas conexões inesperadas, mas elas trazem-nos lições. Não estou a dizer que as associações de estudantes do ensino secundário sejam uma escola para produzir candidatos a amados líderes e, por outro lado, ovelhas exaltadas de um rebanho. Honni soit qui mal y pense! Talvez, porém, esta estranha coincidência, na minha consciência, não seja fruto de um mero acaso. São ínvios os caminhos do Senhor. Não tarda, chega o meu neto. Faz três anos. Sei lá se, um dia, não se irá candidatar a uma associação de estudantes. Sei lá. O que vale é o intervalo ter acabado, a música calou-se, o rebanho entrou para o redil.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Sonhos

O senhor René Descartes achou por bem que nós, seres humanos, não possuímos um critério seguro para distinguir se, neste momento, estamos acordados ou a sonhar que estamos acordados. As ínvias razões que o motivavam, nessa altura da vida, não são chamadas para aqui. A verdade, porém, é que talvez eu esteja a sonhar que estou a escrever sobre o que escreveu o filósofo francês, embora ele não pudesse afiançar – pelo menos sem recurso ao sobrenatural, o que nos jogos de hoje está interdito – que não estivesse a sonhar. Se assim for, aquele que ler o que Descartes escreveu, pode estar a sonhar com o sonho que ele teve de estar a escrever tal coisa. Tal como pode acontecer com o eventual e benévolo leitor ao pensar que está a ler aquilo que eu escrevi. Quem lhe disse que não está a sonhar? O que me atormenta de momento, todavia, é não saber por que motivo esta história de Descartes me veio assombrar. Talvez esteja a sonhar com ela. Bem podia estar a escrever qualquer coisa que tivesse o Saramago pelo meio. Além de ser português e de hoje fazer cem anos que nasceu, tem ainda a vantagem de ter recebido um prémio Nobel, coisa que Descartes não conseguiu, embora não lhe faltasse inclinação para a ficção. E caso a Academia Sueca achasse que a ficção cartesiana não era merecedora de tão alta distinção, podiam dar-lhe o Nobel da Física. Há quem diga que ando a baralhar as coisas. Se isso é verdade, então também posso baralhar as épocas. Alguém é capaz de dar uma boa razão para afirmar que Descartes não veio depois de Saramago? Não vale dizer porque ele nasceu primeiro. Essa é muito fácil e pode estar incluída na história do sonho. Alguém está a sonhar que Descartes nasceu antes de Saramago. Um sonho tão implausível como qualquer outro. Por falar em sonhos, os únicos que eu conheço são os sonhos de Natal. Se há outros, não sei, e também não vale a pena vir com a conversa de Freud e da interpretação dos sonhos. Cada um ganha a vida como pode.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Dia de Feronia

Chegámos a meio de Novembro. Parece que gosto de comemorar estas efemérides, pois algumas há-de haver neste dia. Por exemplo, há 132 anos, exactamente, nasceu D. Manuel II, que viria a ser rei de Portugal. Durante parte substancial da sua vida não soube que iria ser rei e, ainda menos, que haveria de ser o último. Aconteceu-lhe o mesmo que a todos nós. Nasceu sem saber para que estava destinado, embora o certo é que o seu destino não era ser rei. Foi-o por um acaso e a realidade pô-lo na ordem. Imagino que muitos corações femininos batessem mais depressa à evocação da majestade, mas a realidade não se interessa por essas coisas e faz o que lhe apetece com quem quer, seja nobre ou plebeu, seja soberano ou súbdito. É um facto que ela parece mais condescendente com uns do que com outros, mas talvez não seja assim. Haveria que fazer estatísticas. Consta que na Roma antiga, no dia de hoje, se realizava o Festival de Feronia, a deusa dos bosques e das florestas. Era o tempo em a divindade se dividia de tal maneira que havia uma para cada função. Agora é o que se vê. Não há Feronia que valha a bosques e florestas. As segundas-feiras não são dias fáceis.

domingo, 14 de novembro de 2021

Lição de Sociologia

Está consumado mais um fim-de-semana. A noite chegou ainda andava eu a fazer uma caminhada. Veio sem pedir licença e instalou-se, mesmo contra a vontade de certos candeeiros de iluminação pública. Persistiam em permanecer apagados, em protesto mudo contra o fim do dia e o ter chegado a altura de entrarem em funções. Talvez estejam em greve. Nunca se sabe o que se passa na cabeça luminosa de um candeeiro público. Nem dos privados, mas esses, por agora, não vêm ao caso. Durante grande parte de percurso temi que a minha deambulação fosse inútil, que nenhuma lição me surgisse no caminho, nem gesto glorioso viesse à existência para que eu, como narrador muitas vezes em conflito com o autor, aqui viesse contar. A sorte, porém, protege os audazes. Tinha-me metido por uma ruela menos dada ao trânsito quando me deparo com um adolescente – noutros tempos diria um fedelho – a equilibrar-se numa trotineta e a tentar, com pouco êxito, fazer uns equilibrismos. De repente, oiço uma voz feminina – por certo, a mãe – a proclamar que não tarda o equilibrista estará a ganhar dinheiro no YouTube. Durante a minha transição naquele beco com saída, ouvi-a umas três vezes manifestar a convicção. Não esperava, ao sair de casa, ter uma lição de sociologia, mas esta pode surgir a qualquer momento, desde que nos aproximemos da humanidade. A graçola maternal era bem mais que uma graçola, era a expressão de um desejo que é, todo ele, uma visão da sociedade. Ganhar dinheiro nas redes sociais produzindo irrelevâncias. Foi depois desta epifania que a noite caiu. Fê-lo sem estrondo, como só uma noite o sabe fazer. Talvez o equilibrista em potência chegue ao YouTube ou se perca na tenda de um circo.

sábado, 13 de novembro de 2021

Otium, skholē

O prazer de ver uma tarefa concluída. É sábado, mas ainda não pus um pé na rua e não me encontro confinado. Acabei agora mesmo um documento com 115 páginas. Não se pense que é literatura. É fantasioso, bastante, não digo que seja desprovido de imaginação, alguma haverá de ter, mas não se pode dizer que seja coisa literária. Se o é, então é péssima literatura, uma narrativa burocrática. Na verdade (muito gosto eu desta expressão), o melhor de tudo é ter ficado livre da corveia. As últimas horas de trabalho foram acompanhadas, em fundo, por cântico gregoriano, na voz de monges beneditinos, os descendentes de S. Bento de Núrsia, personagem curiosa por múltiplos motivos, entre eles o de ser um dos pais da Europa que ainda conhecemos. Talvez por pouco tempo. A regra monástica que inventou, com a consigna de Ora et Labora, tinha como função curar os monges, através do trabalho, dos desvarios que uma vida puramente dedicada à oração produzia. Talvez neste pequeno incidente, em aparência trivial, se compreenda a profunda diferença que separa a espiritualidade cristã da dos antigos gregos. Para estes, o labor estava interdito, coisa de escravos. A vida espiritual, a filosofia, nascia e alimentava-se do ócio. E é a esse ócio que me vou dedicar, não por inclinação espiritual, mas porque hoje é sábado, preciso de caminhar e, mais logo, entregar-me a um jantar alargado. Nem ora, nem labora, o corpo e o espírito pedem otium, skholē. A vida é o que é. Mais uma expressão de que muito gosto e que, na verdade (sic), não significa coisa alguma.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Uma coisa triste

Sentado à secretária, esquecido que era sexta-feira, entreguei-me a um longo delíquio. Não no sentido de me ter estado a liquefazer, mas de ter perdido a consciência. Neste caso, a consciência da realidade, envolvido que estive numa daquelas tarefas fantasiosas com que preencho a vida, cuja utilidade é nula, apesar do esforço de perfeição com que a envolvo. Talvez eu esteja a pagar pensamentos que tive na longínqua juventude. Pensamento sobre a inutilidade de tudo o que era visto como útil, a inutilidade da própria existência humana sobre o planeta Terra. O mais importante, porém, aconteceu ontem. Fui com o meu neto à feira da Golegã. A criança, o pai e o avô, com a intromissão da avó, foram jardinar entre cavalos e gente que se passeava por ali, como se o ali fosse uma coisa importante. Nunca apreciei o evento. Sempre me faltou paciência para feiras, festas e romarias, mesmo que sejam a efusão de pessoas que ouvi denominar como agro-betos. Os cavalos parecem muito nervosos com a multidão, as pessoas tentam dar-se ares de tradição e fidalguia, mas na verdade tudo aquilo, se observado com atenção, é triste, tão triste como um circo, com os seus palhaços ricos e pobres. O pequeno não me pareceu particularmente entusiasmado. Compreende-o. Chega de devaneio sociológico. Coisas ainda mais inúteis esperam o ardor do meu esforço. Tê-lo-ão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O pior é o Nanetti

Sem dar por isso, deixei que um terço de Novembro se tenha escoado. Cronos é um deus miserável. Sofre de uma acentuada bulimia, de um desejo convulsivo de devorar os dias, isto é, os seus próprios filhos. O pior é que, como efeito colateral, também nos devora a nós. Começar assim significa que não tenho nada para dizer neste diário. Como me acontece muitas vezes o cérebro começa a fazer curto-circuito e liga coisas que não devia. Lembrei-me do filme Querido Diário, de Nanni Moretti. Para dizer a verdade, já não me lembro nada do filme, apenas do título. Contudo, Moretti é um cineasta que me coloca, muitas vezes, problemas verdadeiramente existenciais. Por exemplo, quando me quero referir a ele e lhe chamo Nanetti. Ao dar-me conta do erro, que ocorre mais vezes do que gostaria, começo a pensar que já tive melhores dias, mas talvez mesmo nesses eu não seria grande coisa. Hoje comecei o dia antes das oito da manhã com um serviço de transportes. Fui buscar a minha mãe para a levar ao laboratório de análises. Depois, levei-a para casa. Ainda não eram nove horas já estava sentado a trabalhar. Confesso que o fazia com entusiasmo, embora tenha a certeza que o fruto de tanto labor será nulo. Isso, porém, é uma característica muito pessoal. Tenho uma acentuada inclinação para a nulidade, embora tenha outra para a verborreia.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Enigmas

Foi ao levantar dinheiro numa caixa multibanco que dei comigo a cismar que esse é um gesto condenado. Ainda não está morto, mas já passou o seu tempo. O cartão e o MB Way, no telemóvel, tornam obsoleto andar com notas. O dinheiro sempre foi uma imaterialidade. Só que até aos nossos dias era uma imaterialidade material. A informação necessitava de se codificar em pedaços de metal e de papel. Agora, basta a informação armazenada sabe-se lá onde e terminais para lhe aceder. Depois destas meditações, ri-me, pois eu estava, ao retirar as notas da caixa, mergulhado na mais pura obsolescência. Ora, essa é a minha verdade. Sou obsoleto. Talvez esteja a falar por enigmas. Ao escrever a palavra enigmas lembrei-me de uma nota de rodapé ao livro Anarchy, State and Utopia. Escreve Robert Nozick: Com frequência uma questão útil de colocar é a seguinte: - Qual a diferença entre um mestre zen e um filósofo analítico? – Um diz enigmas, o outro enigmas diz. Talvez a pilhéria de Nozick seja mais séria do que ele próprio terá pensado. É possível que tudo o que um ser humano diga seja enigmático. Repare-se na experiência que é ouvir falar uma língua que se desconhece por completo. Todos aqueles sons são verdadeiros enigmas. Contudo, dirá o eventual leitor, isso não se passa com aquelas que falamos e em primeiro lugar com a língua materna. Será uma observação avisada, mas esquece o longo treino necessário para que ela tivesse deixado de parecer enigmática. Anos e anos. E, apesar disso, nada nos garante que, mesmo parecendo a coisa mais transparente do mundo, ela não continue a ser profundamente enigmática, mais ainda que a língua desconhecida. Poderia, se eu fosse dado a fazer leis, enunciar a seguinte lei, ainda mais importante do que a segunda lei da termodinâmica: Quanto melhor se conhece uma língua, mais enigmática ela se torna. O que vale é que não fui fadado para legislador e a lei proposta não é uma lei, mas o devaneio de uma mente ociosa depois de uma longa reunião em videoconferência. As videoconferências são como a pandemia. Vieram para ficar. Nem vacinados nos protegemos delas. A minha neta mais velha está em sessão de massacre, em videoconferência, claro, para preparação com a avó de um teste de Matemática. O mundo tornou-se um lugar muito difícil.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Ligar o aquecimento

Estava a ler um livro de Peter Sloterdijk com o sugestivo título You Must Change Your Life – não se pense que é uma obra de auto-ajuda, não é – quando me deparo com a seguinte consideração: A era moderna é aquela que trouxe a maior mobilização das forças humanas em prol do trabalho e da produção, enquanto aquelas formas de vida em que se deu a máxima mobilização em nome da praxis e da perfeição pertencem à antiguidade. Imagino, embora tenha uma certa propensão para imaginar coisas desfocadas da realidade, que em todos os seres humanos exista uma cesura, um buraco escavado pela tensão entre uma vida marcada pela produção e a necessidade de a dedicar à perfeição pessoal, à realização de si. Quando se fala em antiguidade, nela se devem incluir todas as sociedades tradicionais e não apenas a grega e a romana. A realidade, nos dias de hoje, tempo talvez culminante da era moderna, é a produção sem fim, com o objectivo de consumir, para se produzir mais, para se consumir mais, até ao infinito. Em tudo isto parece haver uma condenação de Sísifo, uma ausência de sentido para o facto de se estar neste mundo e ter capacidade de pensar. Se queremos encontrar uma grande razão para o absurdo na literatura de Camus ou para a náusea em Sartre, encontramo-la nesta mobilização infinita das capacidades humanas para a exterioridade produtiva. A redução da existência à dinâmica da quantidade, a que se expressa no jogo dos gastos e dos proventos, é a casa do absurdo em que a vida de muitos seres humanos se tornou. Não sei o que me deu para escrever estas coisas. Talvez seja o facto de a noite estar a cair, com a escuridão que é a sua, ou a causa terá sido o ter passado o dia em actividade produtiva intensa, embora a produção a que me dedico não sirva realmente para nada. Não tarda e terei de ligar o aquecimento. Isto, sim, é uma questão importante.

domingo, 7 de novembro de 2021

Um domingo para contar uma aventura de quarta

Contrariamente ao habitual, o almoço deste domingo foi cedo. De seguida, um salto a uma superfície comercial. Talvez fosse melhor considerar aquilo um volume comercial e não uma superfície, pois não consta que a nossa espécie consiga viver num espaço bidimensional. Excepto o pouco tempo que demorou a aventura, não dei por nada mais que merecesse anotação. A luz que fendia a atmosfera e se precipitava pela cidade, essa sim. Uma luz melancólica que só existe nas tardes de domingo, e não em todas. Há nela uma cor desmaiada e aquele que para ela olha quase sente vontade de chorar, embora não saiba a razão. Talvez seja o próprio domingo que assim se apresenta por saber-se cada vez mais próximo da morte. Por falar em coisas melancólicas, ocorreu-me a minha vista a um sítio lúgubre. Trata-se da aventura nos meandros da justiça portuguesa. Arrolado como testemunha, lá me desloquei ao tribunal. Dirigi-me à secretaria, disse ao que ia, apresentei a convocatória (ou a intimação), para testemunhar em videoconferência, pois a sessão real passava-se em Lisboa. A funcionária sorriu. Escreveu no computador, disse que já tinha avisado o colega. Que esperasse lá fora. Pode ser no hall interior, está menos frio. Na verdade, havia gente no hall exterior à espera e ao frio. Dirigi-me ao interior, uma sala ampla, escura, com uma mesa, bancos corridos e dois ou três sofás aos cantos. Nesse hall desembocava uma escadaria ampla e quase imponente. Por ali, pensei, deve descer a justiça. Por vezes, um pequeno grupo de pessoas parava junto à mesa, trocava impressões e subia. Quanto a mim, testemunha ocasional de um naufrágio, dedilhava o telemóvel e esperava. A certa altura, entra um advogado, por acaso meu vizinho, e trocamos umas palavras. Digo-lhe ao que viera e que esperava que a coisa se despachasse rapidamente. Ele ri e responde-me que estava em mau sítio para ter pressa. Ri-me, despedimo-nos, volto a sentar-me e a dedilhar o telemóvel. Passam duas mulheres togadas, ainda relativamente novas. Oiço alguém murmurar que se trata da juíza e da delegada, mas não consegui saber quem era quem. Talvez seja isto a opacidade da justiça. Deveriam trazer letreiros para identificarmos os titulares de tão alta função. Assim me ia entretendo, até que, passada uma meia-hora bem medida, a oficial de justiça que me recebera, vem dizer-me que a advogada do meu amigo dispensara o meu testemunho. Que podia ir à minha vida. Perguntou-me se queria uma declaração de presença. Declinei e agradeci. Vim-me embora, sem que desse o meu testemunho. Ao sair pensei que aquele é um sítio que qualquer herói deve evitar. Agora está a chegar a noite dominical. O anúncio da cadeira de hambúrgueres cintila espampanante e o hospital, ao longe, cerra-se numa tristeza parda e sem fim. Vi que hoje a canção Let it be faz cinquenta anos. Hoje estou particularmente palavroso. Vou ler um artigo que fala – para desconstruir, claro – sobre os cinco mitos que persistem ainda hoje sobre os Beatles.

sábado, 6 de novembro de 2021

Um sábado esquivo

Não sei o que fiz deste sábado. Levantei-me bem cedo e estive a trabalhar até às dez horas. Saí e fui tratar de uns assuntos familiares. Regressado para almoçar, nem dei pelo passar das horas. É deste modo que se dissipa a vida. O tempo passa e nem por ele se dá. Já é noite cerrada há muito. Vista da janela, a rua não passa de uma fantasia fantasmagórica, pontilhada por luzes brancas e amarelas. O bosque da escola ao lado é apenas uma sombra negra e densa, as árvores da rua – tílias, acácias, liquidâmbares – dançam empurradas pela música do vento, enquanto, em estranho strip-tease, deixam cair, uma a uma, as folhas mortas. Por vezes, a avenida é cortada pelos faróis de um carro, mas o trânsito é pouco, vagaroso, alguém que procura chegar a casa, embora sem pressa. Um carro estaciona, sai um casal e precipita-se para o bar da esquina. Há pouco, sem imaginação para melhor, estive a ver um jogo de snooker. É quase tão espectacular como um jogo de xadrez, apenas um pouco menos imóvel, pois os jogadores levantam-se e sentam-se, andam à volta da mesa, onde correm bolas para dentro de buracos empurradas por varapaus a que dão o nome de tacos. A humanidade, honra lhe seja feita, de tudo faz um jogo, talvez porque esteja cansada de coisas sérias. Inventado o jogo, logo é tornado em coisa séria, para que seja inventado outro, antes que o tédio seja mais eficaz que as alterações climáticas e acabe com a espécie. Como se vê, estou sem assunto e ainda não foi hoje que falei da minha aventura, no outro dia, no palácio da justiça local. Fica para a próxima.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mrs. Robinson

Li há pouco que hoje, dia 5 de Novembro, Art Garfunkel faz 80 anos. Que importância tem isso, a não ser para ele e para a família e amigos, caso os tenha? Nenhuma. No entanto, a dupla Simon & Garfunkel marcou várias gerações, entre as quais a minha. Não apenas pela sua música (possuo todos os seus álbuns em CD), mas também por ser deles a banda sonora de um filme de culto, de Mike Nichols, com o título The Graduate, o que deu em português europeu A Primeira Noite. O filme é de 1967 e, apesar da soma dos meus anos ser pesada, não tinha idade, então, para ver o filme. Nem sei se ele passou nessa época em Portugal. Vi-o anos depois. Não por acaso fiquei fascinado. Por certo, se o revisse, não o ficaria. Os tempos mudaram e a inocência perdeu-se sabe-se lá onde. Quem nunca viu o filme, por certo não terá dificuldade de o encontrar por aí. Eu vinha aqui para contar a minha experiência de quarta-feira, numa ida a um tribunal, mas julgo que vou ter de adiar a narrativa épica, embora não tenha acontecido nada, nem eu seja criminosos, nem o motivo tenha sido um crime, mas a dolorosa partilha de bens entre um amigo e a mãe dos seus filhos. Hoje, porém, é sexta-feira, já anoiteceu, o sábado conspira para chegar. Acho que vou ouvir a música que animou A Primeira Noite. Podia dar-me para pior. Quem não desejou uma Mrs. Robinson que atire a primeira pedra.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Metafísica de trazer por casa

Já era noite quando me sentei no escritório. Cansado. Demasiado contacto com a realidade torna-se patológico. No leitor de CD estava um disco de Richard Strauss, corria o poema sinfónico MacBeth. Ao fim de alguns minutos descobri que hoje não é dia em que possa ouvir Strauss. O meu cansaço – ou as preocupações que me atravessam a mente – deixam-me incapaz para uma música tão densa. Ainda pensei escolher uma coisa ligeira. De imediato, porém, uma voz vibrou dentro de mim. Nada, exclamou. Silêncio, ordenou. Sou obediente. Desisto da música, olho pela janela para a noite. Então recordei-me do tempo em que fumava. Se ainda o fizesse, acenderia um cigarro e deixaria a mente deambular entre o fumo e a escuridão do céu. Sem ouvir nada, desejando não pensar em nada, mas isso não me parece possível. A mente é uma cabrita irrequieta, nunca pára. Não fumo, resta-me a noite. Não a noite que existe, mas aquela que desejo. Uma noite pura, não toldada pelas luzes humanas, uma noite que espelhasse o silêncio do universo, que trouxesse até mim o mistério de tudo o que é. Como se vê, depressa se deriva para uma metafísica de trazer por casa, toldado por um pathos insuportável. Melhor seria fumar um cigarro.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Deambulações com os astros

Num site de agregação de notícias, vejo as previsões para os diversos signos astrológicos. São extraordinárias. Quase ao nível das previsões do tempo e das da chave do Euromilhões. Só são batidas pelas previsões económicas e estas, como se sabe, nem depois dos factos acontecerem conseguem estar de acordo com a realidade. Lembro-me de uma conversa tida num meio jornalístico da capital, há muitos anos, em que um jornalista dizia que as previsões da astrologia eram um trabalho da redacção, por norma dado a um novato. Uma forma de desenvolver o talento para contar histórias sobre a realidade. É muito possível, imagino, que mesmo muitas cartas dos leitores sejam – ou tenham sido – trabalho de redacção. Não faço ideia por que razão me aventurei num campo tão juncado de minas e armadilhas como a astrologia. Não vale a pena, para contrariar a minha mais funda e completa desconfiança nesses truques, falar de Fernando Pessoa. Se ele se dedicava à astrologia, também se dedicava a outras coisas que não faziam bem ao espírito. O que conta em Pessoa não é aquilo em que ele acreditava, mas aquilo que escreveu. Não o conteúdo, mas a forma. Se era dado a mapas astrais, isso é irrelevante, embora talvez fosse mais interessante que desenhasse mapas físicos e atlas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Considerações sobre os mortos

Chegámos a Novembro e aos Santos. Cedo, saí de casa pois necessitava de fazer umas compras. Passei pelo cemitério. No pequeno largo exterior havia algum movimento, venda de flores e de alguma parafernália para deixar nas campas. O movimento, todavia, não era muito. Talvez fosse muito cedo, talvez porque o dia de Fiéis Defuntos seja amanhã e não hoje. Poderá haver uma outra razão para a diminuição da afluência aos cemitérios, se é que há essa diminuição. A subjectivização da relação com os mortos. As visitas aos cemitérios pressupõem ainda a existência de um corpo objectivo que ali está e é esse que suporta o culto do antepassado. Ora, uma das marcas da modernidade é a subjectivização da relação com o mundo. Pode-se cultuar os antepassados apenas na interioridade do sentimento e da memória, sem necessidade de recorrer a um suporte físico dado pela existência de um corpo na campa, no jazigo, etc. Os que morreram não se encontram nos cemitérios, mas na memória, no sentimento e nas orações dos vivos. Tudo isto me disse há pouco o padre Lodo, quando lhe liguei e lhe contei que tinha visto pouca gente à porta do cemitério da cidade. Depois, da reflexão filosófica sobre um problema sociológico, lembrou-me que estava com imensas saudades de comer umas broas daqui. São únicas, acrescentou. Levar-lhas-ei, caso vá a Lisboa no fim-de-semana. Agradeceu. Não resisti e disse-lhe que deveria ter cuidado com elas, mesmo que não contribuam para a perdição a alma, podem não ajudar muito o corpo. Ele respondeu com uma expressão em italiano que não percebi e riu-se.

domingo, 31 de outubro de 2021

Tempo de broas

Outubro despede-se com dia aumentado. Talvez ele esteja preso na amargura por ter de partir e lança mão a todos os estratagemas para evitar a ida sem volta. Por isso, precisa de 25 horas, compreende-se. De resto esteve um domingo plangente, espalhando a lástima por tudo o que é canto. As pessoas recolhem-se em casa e começam a sonhar com lareiras. O pior é que não está frio, apenas a água e o tédio envolvem o ambiente. O dia não foi mau. Falei com os três netos. Em primeiro lugar, com o mais novo que me perguntou se estava em casa, depois com as mais velhas que me informaram estarem de saída para uma noite de Halloween em casa de amigos. Talvez o mais novo tivesse medo que também eu fosse para o Halloween. Amanhã será dia santo ou o dia de Todos-os-Santos. Tempo de broas, que têm o condão de me saberem muito bem e de me fazerem bastante mal. Culpa minha, pois cedo sempre à tentação e ultrapasso a justa medida. Para tudo, como sabiam os antigos gregos, há uma medida justa. Nada deve ser feito em excesso e também se deve evitar a falta. A discussão, porém, surge de imediato. Cada um tem a sua justa medida ou existe uma justa medida universal, ou, ainda, a justa medida pode ser, ao mesmo tempo, individual e universal? São estas coisas que me atormentam a consciência, enquanto vou comendo broas e o organismo não se queixa.

sábado, 30 de outubro de 2021

Melancolia de sábado

Não tem sido um dia fácil, o de hoje. Não por causa da chuva e do mau tempo, mas por necessidade de ter de tomar decisões e fazer coisas desagradáveis. Por vezes, é necessário pôr as mãos não na massa, mas naquilo que tem um péssimo aroma. Todos gostaríamos que a vida aqui na terra fosse um paraíso, mas parece que os astros não estavam para aí virados, quando fadaram o destino da espécie humana ao cimo desta pequena bola rochosa. De resto, a chuva tem animado as terras e terá contribuída para que as barragens não se afoguem na secura. Isto digo eu que de barragens e de chuva nada sei. Está um sábado triste, nimbado por uma melancolia vagarosa. Na avenida não se avista ninguém, apenas os carros, poucos, passam, deixando uma esteira, feita de uma pequeníssima babugem, aberta pelos pneus ao rodar sobre os lençóis de água que cobrem o alcatrão. No bosque da escola aqui ao lado, cedros, ciprestes e pinheiros oferecem a folhagem ao anoitecer. Os campos de jogos estão vazios, nos beirais dos prédios não se avistam pombos, apenas o hospital, mais ao longe, deixa o branco das paredes contaminar-se com a ferrugem dos fungos. Não tarda e será noite.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Bolachas do Halloween

A profecia meteorológica confirmou-se. Chove, o alcatrão parece um espelho, os carros passam devagar para não molhar os transeuntes. Estes equilibram guarda-chuvas em mãos desabituadas, encolhem-se como se estivesse por aí o Inverno. Ainda não chegámos ao S. Martinho, o qual tem tendência para pequenas estiagens, nem tão pouco aos Santos e a Fiéis Defuntos. Ninguém quer saber deles, dos Fiéis Defuntos e ainda menos dos Santos, mesmo que venham por atacado e sejam todos. O que move os ânimos é o Halloween, essa velha tradição ibérica, com fortes raízes em Portugal. Já hoje me perguntaram se queria uma bolacha do Halloween. Nem estava a perceber. Uma bolacha de quê, perguntei. Do Halloween, responderam-me. Para além das bolachas Maria, Torrada, de Araruta, Americana, também há bolachas do Halloween, voltei a perguntar. Confirmaram. Até me ofereceram a possibilidade de comer uma. Disse que sim, mas depois esqueci-me e perdi a extraordinária possibilidade de aumentar o meu conhecimento gastronómico. Está uma verdadeira sexta-feira, daquelas que fazem lembrar longos fins-de-semana sem afazeres prementes. Continua a chover e o crepúsculo aproxima-se. Não sei a razão, mas estou a ouvir um álbum com a música para piano de Michael Nyman. Há qualquer coisa que não combina. Acho que vou mudar para Die schöne Müllerin, de Franz Schubert. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Coisas diversas

Consta que no próximo fim-de-semana muda a hora. Também constou que hoje mudava o tempo e que, a esta hora, deveria haver aguaceiros a sério. Ora, está uma noite tranquila. Nada de chuva. Tenho esperança de que também a hora não mude no fim-de-semana. Não é que me faça grande diferença, a não ser ter de acertar um ou outro relógio, mal dou pelo acontecimento. Parece que o país anda divertido com as peripécias da distribuição da mercearia. Houve um problema qualquer com o rol, mas sobre isso estou proibido pelo autor de fazer comentários. Isto é muito injusto. Um autor pode ter opiniões políticas, mas um narrador está proibido. Nem sequer pode falar em róis de mercearia, nem de venda a grosso e a retalho. Nada. Por outro lado, ouvi dizer que a pandemia ainda não está domada, que os casos podem vir a aumentar exponencialmente. O pior é o senhor da Marinha já não estar ao leme. Sempre podia chover, as terras estão a precisar de água e não tarda virá por aí grande charivari por causa das barragens. E ainda me lavava o carro que tenho na rua. Na minha frente repousa um livro que deve pesar mais de um quilo. É um saber substancial, diga-se. Não partilho o título para preservação do que resta do meu bom nome, se é que alguma vez o tive, ou possa haver um nome que seja bom.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma aventura

Entrego-me ao anacronismo. Deveria contar uma aventura de hoje, mas não encontrei nenhum torto para endireitar, nenhum gigante para pôr na ordem. Resta-me narrar uma aventura na qual, no lugar de ser um glorioso agente, não passo de um glorioso paciente. Tudo começou há umas semanas quando, apenas para tranquilizar o espírito, talvez porque não fizesse meditação transcendental, um cardiologista, rapaz da idade dos meus filhos, achou por bem mandar-me fazer uma ressonância magnética ao coração. Disse-me que aquilo era um bocado chato, pois demorava cerca de quarenta minutos. Ontem lá fui fazer a coisa para tranquilizar o espírito. Descobri, no acto de pagamento, que afinal não era uma ressonância magnética, mas três. Uma morfológica, outra funcional e a terceira para estudo da perfusão do miocárdio. Quando olhei para a requisição feita pelo médico, confesso que não consegui ler coisa alguma do que estava escrito. Pensei que ele escrevia num alfabeto que eu desconhecia, mas que haveria nos centros de imagiologia hermeneutas especializados e infalíveis na interpretação. A aventura, que supera as do Cid e do Quixote, senão mesmo as de Ulisses, de Eneias e do peito lusitano, consiste em entrar numa espécie de túnel, onde se fica muito quieto, com uma buzina na mão para o caso de dar para o torto, e se ouvem ordens através de uns auscultadores. Ainda me perguntaram se queria música, mas declinei tendo em conta o que os técnicos estavam a ouvir. Que ordens eram essas? Eram muito claras. Um técnico dizia: encha os pulmões de ar, despeje-os, não respire. Ouvia uns sons cortantes e estranhos. Quando paravam, ouvia a mesma voz: pode respirar. A partir de certa altura comecei a contar as emissões sonoras. Desconfiei que estava perante uma mente caótica. A do técnico, claro. Umas vezes, apenas havia a emissão de um desses sons, outras vezes ultrapassavam as vinte – cheguei a contar vinte e cinco – sem que um padrão lógico se me apresentasse ao espírito. O meu medo – um herói também tem medo – foi que ele se esquecesse de dar a ordem para voltar a respirar. Cheguei a imaginar-me num sarcófago. O momento mais perturbador aconteceu, porém, por volta da meia-hora de exame. Estava à espera de ouvir o técnico a dar as suas ordens quando chega até mim uma voz feminina. Fiquei de tal maneira perturbado que nem percebi que também ela dava as mesmas ordens. Talvez o técnico tenha precisado de ir à casa de banho, pensei depois. Após uns instantes de confusão, lá me recompus, e fui obedecendo. Até que chegou o fim, entraram pela sala umas raparigas para me livrarem da parafernália que me envolvia. Pensei ter chegado a Ítaca e estar rodeado de Penélopes. Descobri, porém, que era uma ilusão. Apenas queriam que eu me fosse dali para fora, que lhes desamparasse a loja, que elas tinham mais que fazer. Obedeci, claro, pois a obediência é a maior virtude de qualquer herói.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Livros de cowboys

Uma troca de comentários aqui no blogue levou-me à evocação de um tempo muito remoto, no qual eu ia, bem criança, aos domingos de manhã ao café com o meu pai. Ele lia os jornais, um de informação geral e outro desportivo, e eu entretinha-me com o Falcão ou o Mundo de Aventuras, umas vezes. Outras eram o Condor e o Ciclone. Tudo isso revistas de banda desenhada populares. Conhecidas por livros de cowboys. Na altura, a escola desaconselhava tal tipo de literatura, mas ninguém queria saber do desaconselhamento. Se não foi por aí que comecei a ler, foi talvez pelas aventuras do Pinóquio, nas edições Romano Torres, uma gloriosa editora popular que foi tragada há muito. Havia uma enorme estultícia nesse acto de desaconselhar essas leituras, a presunção de que as pessoas começavam pela literatura de qualidade, ainda que infantil. Foram as horas intérminas de Verões sem fim a ler essa má literatura que me conduziram a Kafka, a Mann, a Borges, a Sartre, a Camus, já nem sei bem a quem. Antes do prazer do texto, que vem bem depois, há o prazer de acompanhar o desenrolar da acção, de saber como acaba a história, de ver acontecer as peripécias que levam ao desenlace. Isso estava tudo nessa pequena literatura. Estava ainda uma outra coisa, a vitória do bem sobre o mal, o sentimento de que vale a pena bater-se pela boa causa. Não era pouco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Admirável mundo novo

O dia começou com uma visita ao laboratório de análises clínicas. Tudo muito eficiente e despachado, mas – há sempre um mas – também um pouco desconcertante. Outrora sabia de quem era o laboratório, passava pela proprietária, cumprimentava-a, fazia parte de uma paisagem bem definida. Passou, há uns tempos, para uma grande cadeia de laboratórios, da qual nunca chegarei a saber quem é o proprietário. Não é que tenha algum interesse em conhecer donos de laboratórios de análises ou de supermercado, ou seja lá do que for. A questão é outra. A paisagem despovoa-se. As coisas que tinham donos por todos conhecidos entraram numa vertigem tal que os donos foram sugados e enviados para Marte. Tudo se tornou anónimo, obediente a normas burocráticas e a imperativos de racionalização. O espaço para o improviso, para recorrer, em caso de necessidade, à fonte do poder, esse espaço está morto. As pequenas cidades de província – também as não tão pequenas – vão-se tornando em dormitórios de assalariados de poderes estranhos, sem rosto. Tudo a fingir que se está num sítio muito civilizado, muito cosmopolita. Não, não se está. Sempre desconfiei de que o jejum que antecede a realização da colheita dos materiais a analisar não faz bem a ninguém. A mim, por exemplo, dá-me para devaneios sociológicos. Ora, o que me interessa a sociologia? Tanto como a psicologia, isto é, nada. Seja como for, as coisas são eficientes, os resultados já chegaram por email, agora encriptados, a que só se pode aceder com uma password, vá lá alguém saber que tenho o colesterol onde deve estar, mas os triglicéridos estão com ligeira inclinação para a hipérbole. Imagino que este encriptamento dos resultados deve ser uma vantagem competitiva do laboratório contra os rivais. Um admirável mundo novo.

domingo, 24 de outubro de 2021

Rainhas

Não é pequena coisa o espírito comercial e a livre iniciativa. Digo-o sem a mínima ironia. Operam verdadeiros prodígios e nunca deixam de nos maravilhar. Já hoje comi um recente doce tradicional de Natal e ainda nem chegámos aos Santos. Por aqui, ainda os particulares, neste caso as particulares, não se entregam aos rituais das broas, e já se vendem Bolos-Reis e Bolos-Rainhas. Foi um destes últimos que foi vítima da minha gula. Uma pequena parte, esclareça-se. Durante décadas só conheci o Bolo-Rei, depois a livre-iniciativa preocupada com a infracção aos princípios da igualdade de género introduziu o bolo consorte. Como acontece sempre, o que vem depois é francamente melhor. Também no acto da criação Deus deu vida a Adão, mas temendo algum desvio narcisista ou práticas indecorosas e solitárias, tirou-lhe uma costela e de lá nasceu a Eva, incomparavelmente mais interessante que o pobre descostelado. Mesmo no Xadrez as Rainhas são muito mais poderosas que os Reis. É certo que se este morrer de xeque-mate o jogo acaba, mas o coitado mal se pode mover pelo tabuleiro, enquanto a Rainha desloca-se por ele, grácil e ameaçadora, não havendo peça que o adversário mais tema. Se ela morrer ou for feita prisioneira, o que é o mesmo, o jogo não acaba e ela, por acto de magia, pode voltar ao tabuleiro pela promoção de um peão. Pena que Ovídio tenha escrito as Metamorfoses sem conhecer a do peão em rainha. Mais grave que isso é, porém, a possibilidade de um Rei, devido à promoção dos peões, ter mais de uma Rainha. O que pode ser concebido como um ataque à família monogâmica. Isto levanta sérios problemas e estes não se resumem aos aspectos teológicos da questão. O domingo afunda-se no mar da noite. Já estava com saudades de umas frases a cair para o kitsch.

sábado, 23 de outubro de 2021

Música vesga

Quando chegamos a eles, esperamos que sejam gloriosos e quase eternos, mas os sábados são tão triviais como quaisquer outros dias. Fazem a única coisa que um dia sabe fazer. Passar. Comecei com a ida ao centro de inspecção com um carro. Na verdade, um ancião. Descobri, ao atentar na documentação, que o pobre nem chega a fazer 2 000 km por ano. A maior viagem que faz é de 100 km para um lado e outros 100 km de retorno a casa. É verdade que nos últimos dois anos a pandemia o impediu de andar por aí, mas sem ela duvido que passasse dos 2 500 km. Tenho pena dele, pois sempre que são viagens a sério, é dispensado e deixado a dormir ao relento ou na garagem. Depois, de inspeccionado recebeu a aprovação, mas parece que terei de mandar regular os faróis de nevoeiro. A lei mudou e a incidência da luz ficou desactualizada. A inspectora comentou que sempre que a lei muda não é para favorecer o cidadão. Pensei que havia nela uma certa sabedoria e sorri. Ela não viu o meu sorriso, pois eu estava de máscara, como ela. Fiz um esforço e não consegui lembrar-me da última vez que usei, neste carro, os faróis de nevoeiro. Agora, o sábado entristece-se. Uma luz mortiça embate nas paredes e chega a mim como uma onda de melancolia. Descubro que um livro comprado há dias em Lisboa é exactamente igual a um que tinha comprado há uns anos. Maldigo a memória e deixo-me embalar pela música vesga das tardes de província.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

As virtudes da segunda mão

Comprar livros em segunda mão é um exercício virtuoso, um modo de reciclar o papel, sem desfigurar o objecto que o usa. Em tempos, comprei, num desses leilões de livros que ocorrem nas redes sociais, uma Histoire du Roman Moderne, de R. M. Albérès, publicada em 1962, pelas Éditions Albin Michel. O anterior proprietário, suponho que português, cuidaria com esmero dos seus livros, pois a obra está encadernada, mas com cuidado de manter, no interior da encadernação, as capas originais. Estava a folheá-lo e deparei-me com um folheto, que presumi ser da mesma idade do livro. Publicitava o Méthode A.B.C. Este serviria para pôr um pobre mortal a desenhar e a pintar de um dia para o outro: Apprenez aujourd’hui à dessiner et à peindre par la Méthode A.B.C. Pena que não existisse em Portugal, escusava eu de passar pela humilhação de ser o pior aluno do colégio em Desenho, título que não foi confirmado em exame nacional, esclareça-se. Chego sempre tarde a tudo o que é essencial. O folheto tem inclusive alguns testemunhos que comprovam a eficácia do método, um cavalheiro de Seine-et-Oise, outro da zona de Charente-Maritime, uma menina – Mademoiselle – belga e, de Saumames-de-Vaucluse, outro cavalheiro, mas de nome português. Não consta que tenha ficado na história da pintura, apesar de se ter dado conta desde a primeira lição de reais progressos. Guardo o folheto dentro do livro, este na prateleira e olho a noite pura maculada pela iluminação pública e as luzes melancólicos do hospital. A sexta-feira declina.

domingo, 26 de setembro de 2021

Inutilidades e aparências

O último post, neste blogue, foi publicado exactamente há duas semanas. Têm sido umas ricas férias. Não férias efectivas, mas um descanso de vir aqui todos os dias debitar inutilidades. Ora, quem tem propensão para o inútil, e esse é o meu caso, pouco consegue resistir a tentação de o cultivar. Terá o mundo mudado durante estas duas semanas? Eis uma questão completamente inútil. Claro que mudou e ainda mais claro que tudo continua na mesma. Andamos neste impasse há mais de dois milénios e meio, e ainda não encontrámos maneira ou modo de resolver a pendência entre o eleata Parménides e o efésio Heraclito. O melhor é venerar os dois, o que dará a aparência de erudição e ostentará um gosto pelo paradoxo. Importante é manter as aparências, pois não se sabe se sob elas existe alguma coisa. Há aquela história de o rei ir nu, embora toda a gente o visse com as mais belas roupas. Seria mais dramático, porém, se toda a gente comentasse a roupa do rei, depois outros afirmassem que ele ia nu, mas na verdade não existisse qualquer rei, vestido ou nu, nem outra pessoa, animal, planta ou coisa. Conclusão: mantenham-se as aparências pois são as únicas que sabemos existirem. Há no pavilhão da escola ali ao lado uma grande azáfama. Convocados às urnas, os eleitores para lá se dirigem para cumprirem o seu dever cívico. Também, não tarda, o irei fazer, embora a viagem não seja longa, pois, sentado na minha secretária, só não vejo as mesas de voto devido à existência de paredes exteriores no pavilhão. O mundo há-de conter sempre alguma imperfeição.

domingo, 12 de setembro de 2021

Viajar

À maneira de Xavier de Maistre – isto é, sem sair de casa, ora sentado no escritório, ora recostado na cama – continuo a descer o Danúbio na companhia de Claudio Magris. Tenho estado em Viena. A última visita, por volta das sete da manhã, foi ao complexo de habitação social denominado Karl-Marx-Hof, concebido pelo arquitecto Karl Ehn e inaugurado em 1930. Não é apenas o estilo arquitectónico – Arte Déco – que espanta, mas o facto de os 1382 apartamentos destinados a famílias da classe operária terem, desde a origem, a sua casa de banho privada, pelo menos foi isso que espantou não Claudio Magris, mas o autor da entrada em língua portuguesa da Wikipedia referente ao complexo. A minha leitura da obra de Magris segue por caminhos muito tortuosos, que têm o condão de desperdiçar muito do que está escrito. Uma leitura virtuosa seria fazer a viagem narrada no livro, acompanhando-a passo a passo, o que permitiria registar com precisão aquilo que o tempo fez aos espaços visitados e descritos pelo escritor triestino. Passados 35 anos da publicação da obra, alguma coisa há-de ter mudado. Talvez isso desse um novo livro. Para aqueles que não têm possibilidade de fazer a viagem com vagar que ela exige ou que não gostam de viajar, a leitura deveria ser feita com um acesso permanente à internet, para ir se consultando tudo o que o escritor refere. No fim, ter-se-ia compilado uma pequena enciclopédia. O que me vale é que não sou lá muito virtuoso e, ainda por cima, intercalo essa leitura com outras, num exercício de infidelidade contumaz. Ao mesmo tempo penetro na vida das personagens de O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis, e no coração inquieto de Delphine, protagonista do romance epistolar homónimo, de Germaine de Stäel-Holstein, mais conhecida como Madame de Stäel. Um dia destes, talvez, fale sobre esses livros, caso não me esqueça ou esteja para aí virado. Hoje é domingo, dia de almoço tardio, mas que não será de pleno descanso. Há uma série de coisas a fazer, para tranquilizar a realidade e mostrar-lhe que a sirvo com dedicação. Aparente, mas não há outra essência senão a aparência. Cultivemo-la.

sábado, 11 de setembro de 2021

Descontinuações

Por aqui, o calor voltou, veio menos dramático, mais dado à fleuma, do que antes. A luz solar está mais amarelada, como se o Sol fosse um enorme vegetal cujas folhas começam a apresentar sinais de maturidade. Tive de ir às compras e estou decepcionado com a longa ausência das prateleiras de um certo chocolate que combina o cacau e o piripiri. Omito a marca, na verdade havia por aqui duas marcas, uma nacional e outra estrangeira, que tinham essa combinação no catálogo. Talvez o tenham descontinuado, coisa que, nos tempos que correm, acontece muito. Ninguém deixa de fabricar seja o que for, apenas descontinuam o produto. Assim, os seres vivos que morrem não morrem, são descontinuados pela vida. Este tipo de linguagem irrita-me. Os trabalhadores foram descontinuados. Agora só existem colaboradores. Noutros tempos existiam colaboracionistas, mas sobre isso omito o comentário. Também há palavras que me irritam. A mais recente é resiliência. Estou cansado de tanta gente resiliente que desaba ao primeiro choque com a realidade. A espécie humana tem uma inclinação natural para o fetichismo e nunca perde a oportunidade de transformar uma pobre palavra, que não passa de uma curta emissão de ondas sonoras, um flato vocálico, num fetiche. Estou convencido de que se os seres humanos se contivessem na emissão de palavras, os gases com efeito de estuda poderiam diminuir na atmosfera. Como tenho dito, sou dado à hipérbole, embora me falhe a ironia. Para isso teria de ser inteligente. Ora, não é esse o caso. Que saudades do chocolate negro com chili. A vida está sempre a descontinuar-se. É pena que não descontinuem a resiliência.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Louvor da ignorância

A vida é feita de coisas muito variadas, entre elas a própria morte. Hoje morreu um antigo Presidente da República. O que não se sabe é se não terá nascido outro, aquele que o futuro espera para ocupar o cargo. A incapacidade humana para saber o futuro é o que permite uma vida suportável. Se o que há-de vir fosse acessível, a existência dos homens tornar-se-ia um inferno. Viveríamos como condenados à morte à espera do dia da execução. A ignorância salva-nos e abre a possibilidade de uma vida aprazível. Talvez aqueles que se empenham em predizer o futuro sejam verdadeiros amantes do inferno. Vale-nos o porvir ser um animal esquivo, um bicho que se furta a armadilhas e capturas. Sobre o Presidente morto não falo, pois, enquanto narrador, estou proibido pelo autor. Ele lá terá as suas ideias políticas, mas criou-me destituído delas. Posso falar, todavia, da ignorância. A partir de certa altura da história da humanidade, a ignorância foi vista um dos piores males que afligiam a nossa pobre espécie. Esta é uma visão unilateral. Como em tudo, também na ignorância há um bem. Todos seriam mais felizes se ignorassem certas coisas. Viver inocentemente no desconhecimento de certos factos pode ajudar não só a uma vida melhor como mais longa. O excesso de informação inútil é um produto tóxico e, como se sabe, as toxinas não fazem bem ao frágil organismo que, devido a um terrível esquecimento de Epimeteu, nos calhou em sorte.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Transposições

Fui pôr o carro a lavar. O pobre coitado tinha poeira acumulada de várias eras geológicas. Tenho uma relação meramente instrumental com os carros e não lhes dedico mais que o cuidado estritamente necessário. Se na adolescência automóveis e o automobilismo me fascinavam, a realidade agora é bem outra. Seja como for, é preciso que aquela coisa tenha uma apresentação mínima. Enquanto ele era aspirado, mangueirado, ensaboado e colocado numa máquina de tortura, aproveitei para dar um salto a uma FNAC. A ficção científica é um tipo de literatura que, ao contrário, do romance policial, nunca me atraiu. Tendo visto ontem o filme Solaris, do realizador russo Andrei Tarkovsky, decidi comprar o romance que lhe deu origem, do polaco Stanislaw Lem. Consta que este é um génio literário. Tenho medo, porém, de achar que o livro não está à altura do filme. Apesar de romance e cinema serem ambos géneros ficcionais narrativos, não é fácil a transposição de um lado para o outro. Alguns casos, porém, o filme pode ser muito melhor que a obra romanesca que lhe deu origem. Além disso, eu tenho uma visão enviesada. Tarkovsky faz parte do meu top três de realizadores de cinema, para usar uma metáfora desportiva. Os outros são o japonês Akira Kurosawa e o sueco Ingmar Bergman. Como diria alguém que eu conheço, só gente chata. Não é, mas se forem, então estão adequados à minha natureza. Também eu sou um chato. O carro saiu muito lavado, mas, mal chegou à rua, desabou-lhe o céu em cima. Vou ler o romance do Lem. Quando acabar, talvez compre a adaptação cinematográfica feita, em 2002, por Steven Soderbergh, esse mesmo que realizou Sexo, Mentiras e Vídeo.

domingo, 29 de agosto de 2021

Sinais da realidade

Um sinal. Ao vestir-me, hoje, coloquei o relógio no pulso, coisa que já não fazia há semanas. Isto significa que a realidade está a chegar. Não tarda e bate à porta. Entrará sem ser convidada, coisa que é nela, realidade, um vício. Todos os seres humanos são dados à fantasia, mesmo aqueles que se pretendem realistas – seja isso o que for – e pragmáticos. Cada um fantasia conforme pode. Antes de a ficção ser um tipo de literatura, era uma forma de estar no mundo. Significa originalmente o acto de fingir, simulação. Simular e fingir é o que todos fazemos no mundo. Contudo, a realidade não se conforma com a nossa disposição para o devaneio e a mascarada, e, apesar de algumas tréguas, está sempre em pé de guerra para se nos impor. Se há coisa difícil de captar literariamente, essa coisa é a realidade. Claudio Magris na sua viagem pelo Danúbio, passa por Mauthausen, um campo de concentração nazi. Escreve: A literatura e a poesia nunca conseguiram representar de maneira adequada este horror; até as melhores páginas empalidecem perante o documento nu desta realidade, que ultrapassa qualquer imaginação. Podemos pensar que esses lugares de morte e de horror são o sítio em que a realidade se mostra naquilo que é. A fantasia e o trabalho da imaginação, no qual se deverá incluir o da razão, são protecções que utilizamos perante essa monarquia negra onde reina, inviolada e inviolável, a morte. Seja como for, Agosto ainda não acabou, e hoje é domingo.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Uma narrativa engraçada

Como o leitor, também este pobre narrador não fazia a mínima ideia de quem era Henri Falk. Uma navegação em águas calmas por sites que fornecem ebooks gratuitos e livres de direitos de autor conduziu-me, por acaso, a esse nome e a um romance com o sugestivo título de L’Âge de Plomb (A Idade de Chumbo). Fiz uma pesquisa sobre o senhor e recebo a informação de que ele era escritor, dramaturgo, cenarista, compositor, libretista. Em resumo, alguém que esteve na literatura, mas que não há já quem o conheça. Um escritor de terceira linha. O interessante haver ainda quem, fazendo um trabalho pro bono, lhe republique os livros em edição digital. A ele e a muitos outros como ele. Em Portugal, este tipo de editores simpáticos, benévolos e generosos, quando os há, concentram-se apenas nos grandes nomes da literatura nacional. Esses que se encontram em qualquer lado. O interessante seria publicar todos aqueles escritores que o tempo tornou esquecidos. São muito mais do que se imagina. Voltando a L’Âge de Plomb, o que pode ter ela de interessante para um leitor actual, uma obra secundária escrita em 1919? A pandemia. Imagine-se que o governador militar francês do Gabão descobre que caiu todo o pêlo ao cão. Depois, o pobre do papagaio perde as penas. A seguir, a mulher do senhor governador militar fica sem cabelo e o próprio governador vê a barba ir-se. Num ápice, todos os homens e animais da África Equatorial perdem pêlos e cabelos. A estranha doença não fica por aqui. Atinge os Estados Unidos e a Europa. O belo e dourado mundo onde se vivia entra em colapso. Daí, a queda da idade de ouro na idade de chumbo. Reproduzo o último período da apresentação do livro feita pelos editores: À l’ère du coronavirus, ce récit visionnaire et cocasse, malgré son cadre démodé, apporte une touche d’humour bienvenue. Um humor bem-vindo. É o que se precisa, agora que Agosto se aproxima do fim.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Aforismos, sentenças e escólios

Ontem descobri um autor colombiano que me parece particularmente interessante, apesar de tudo. Nicolás Gómez Dávila (1913-1994). O apesar de tudo refere-se ao facto dele não ser propriamente um adepto da democracia e baptizar-se a si mesmo como um reaccionário. Digo isto não porque ache que fosse melhor que ele se classificasse como revolucionário ou liberal, mas porque estas classificações são, mal se começa a esgaravatar nelas, equívocas e funcionam como um véu para ocultar o que é mais interessante. Ele escreveu apenas pequenos textos e aforismos, isto é, pequenas sentenças. Por norma, são verrumantes e luminosas, mesmo se se discorda delas. Por exemplo, relativamente aos homens da modernidade afirma: O moderno não tem vida interior: apenas conflitos internos. Sobre o gosto e aquela ideia, muito em voga, que o gosto é uma coisa relativa, diz: A relatividade do gosto é desculpa que adoptam as épocas que têm mau-gosto. Tem, o colombiano, também grande perspicácia psicológica: Nem sempre distinguimos o que fere a nossa delicadeza do que irrita a nossa inveja. Um escólio – é assim que o autor chama aos seus aforismos – trouxe-me à recordação toda uma literatura erótica que vai do Marquês de Sade até Henry Miller. Diz Gómez Dávila: O escritor moderno olvida que só a alusão aos gestos do amor capta a sua essência. A textualidade explícita falha sempre o erotismo, mesmo que isso estimule os apetites. A linguagem alusiva no domínio do erótico não é um tributo a uma moralidade que reprime e ou condena a sexualidade. O erótico vive naquele espaço que uma alusão abre. É sempre do domínio do não-dito. A linguagem explícita de Sade ou de Miller é uma revolta contra o interdito. A linguagem alusiva do Eros está para além do permitido e do proibido. Ela abre uma outra dimensão da experiência humana, pois o amor – mesmo o apenas carnal, para usar uma palavra caída em desuso – coloca os seres humanos para além daquilo que é a sua quotidianidade e as regras morais que a regulam. Coloca-os num outro nível do ser. Está a ser penoso chegar ao fim de Agosto, como se pode ver pelos textos dos últimos dias.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O enigma da beleza

De um livro de Eugénio de Andrade caiu uma factura. Datada de um tempo que parece pertencer a uma era já muito distante, 25 de Junho de 2019. Nesses dias, ninguém imaginaria o que estaria para acontecer, como tudo haveria de mudar, e mal passaram dois anos. Nesse dia, comprei dois livros cujos títulos são um exemplo exímio do uso da aliteração. Um, Os Lugares do Lume; o outro, Os Sulcos da Sede. Cada título é, por si só, um poema intenso e poderoso. É isto que faz os grandes poetas. Os livros pertencem a uma edição das obras de Eugénio de Andrade, da Assírio & Alvim. São, todos eles, belíssimas edições. As capas, com desenhos de Ilda David, possuem uma extraordinária beleza. Adequam-se completamente à poesia de Andrade. A partir do início do século XX, a beleza deixou de interessar a generalidade dos grandes artistas, deixou de ser uma condição necessária para que uma obra seja classificada como obra de arte. Passado o fervor vanguardista e experimentalista, fica uma nostalgia pelo tempo em que a beleza tinha um papel central na arte. Será possível recuperá-la? Como o bem e a própria verdade, a beleza tornou-se enigmática, tão enigmática quanto o sorriso da Gioconda. No mundo pré-moderno, pensava-se que Deus era sumamente belo, bom e verdadeiro. A proclamação da morte de Deus, por Nietzsche, retirou o fundamento onde a beleza, a bondade e a verdade se escoravam. Daí, terem-se tornado enigmáticas. As férias ainda não acabaram e deveria ter cuidado em não deixar derivar estes textos para assuntos marcados por um rosto sério. Mais valia que falasse sobre a factura, aliás fatura simplificada original, completamente adequada a um mundo onde a simplicidade foi substituída pela simplificação.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Tempo de leviandades

Estes são dias propícios a coisas levianas. Vi os vários filmes de Les Enquêtes du Commissaire Laviolette. Uma novidade para mim. Li uma aventura de Arsène Lupin e, agora, mergulhei não nas águas do oceano, mas num policial cujo protagonista é o detective privado Nero Wolfe, alguém que raramente sai de casa, apesar de trocar todos os anos de carro, tem um cozinheiro particular, pois é um exigente gourmet, e possui uma estufa onde dedica várias horas do dia ao cultivo de orquídeas. Há décadas que não lia nenhuma aventura deste extraordinário detective, que resolve tudo com o poder da mente. Aliás, parte substancial da literatura policial parece um anúncio àqueles livros que prometem, a quem os compre, desenvolver-lhe as capacidades cerebrais, o poder da mente. Eu, confesso sem vergonha, bem precisava desenvolver o poder da minha, ela que anda pelas ruas da amargura e só se entretém, ou quase, com coisas leves. Para me distrair desta leviandade, vou revendo uns filmes do Bergman. Ontem, vi mesmo um que nunca tinha visto, Musik i mörker (Música en la Oscuridad, na versão legendada em espanhol). É uma película de 1948, da fase inicial do realizador sueco. Começa com uma tragédia e acaba em bem, como num conto de fadas. É uma tragédia ao contrário. Quanto às leituras sérias, se é que eu tenho leituras sérias, entretenho-me com um autor do século XVII, Sir Robert Filmer, e o seu PatriarchA Defence Of The Natural Power of Kings Against The Unnatural Liberty Of The People, isto para fornecer o nome completo da obra. Não sei se isto será uma leitura séria. No século XVII, o nome dos livros esticava-se muito para além do razoável. A obra é uma defesa do absolutismo. Segundo o autor, todos os reis seriam descendentes de Adão e, por isso, seriam os legítimos detentores do poder e estariam, claro, acima de todos os outros homens, que talvez só sejam descendentes de Eva. Estou, porém, impedido pelo autor destes textos, de falar de política. Remeto-me à minha condição de narrador. Só me compete a leviandade.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Economia e romance

Estou sempre a alargar os horizontes, já demasiado vastos, da minha ignorância. Ao ler um artigo no jornal, a minha atenção ficou presa num nome, Alexander Kluge, um realizador e escritor alemão. Não conheço nada dele e se já ouvi alguma vez o seu nome, a memória apagou-o. Descobri que tinham sido editados em Portugal os dois volumes de Crónica dos Sentimentos, por uma editora que desconhecia por completo, a BCF Editores. Curioso e sem nada de urgente para fazer, fui espreitar a filmografia. É enorme. Entre os filmes que me chamaram a atenção, está Nachrichten aus der ideologischen Antike: Marx, Eisenstein, Das Kapital. A Wikipedia, na sua versão brasileira, traduz por Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital. O filme – de que não encontrei nenhuma versão legendada para uma língua acessível – tem uma duração de nove horas e trinta minutos. Parece que Kluge retoma um projecto do realizador soviético Sergei Eisenstein de filmar O Capital, de Marx, a partir da estrutura de Ulisses, de James Joyce. Eu não conheço o filme nem o seu autor, mas este projecto parece-me particularmente interessante. Talvez nele se compreenda que O Capital, essa bíblia sagrada que animou parte do século XX, seja uma ficção. A ideia deveria ser replicada. Por exemplo, filmar A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a partir da estrutura romanesca de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, com a estrutura da trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann Broch, ou mesmo a obra Acção Humana: Um Tratado de Economia, de Ludwig von Mises, com a estrutura de O Processo, de Franz Kafka. Alexander Kluge teria assim descoberto a essência da Economia, uma ardilosa ficção romanesca que, para acentuar o seu carácter ficcional, gosta de se apresentar como ciência, chegando mesmo a lançar mão da Matemática, para que os leitores, ao lerem esses romances, possam cumprir a exigência de Coleridge e suspender a descrença. Hoje é sexta-feira, a semana foi árdua e não me ocorre mais nada para preencher este espaço em branco.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Dia de férias

Hoje é o décimo nono dia do mês de Agosto. A manhã de férias ocupei-a a trabalhar, como se fosse um workaholic vade retro Satana – mas há coisas que têm de ser feitas, decisões a tomar, projectos a ultimar e todas essas coisas necessárias à acção dos homens e que demonstram a inferioridade destes perante os outros animais, que fazem o que têm de fazer sem projectos, deliberações, planos e outras coisas em que a razão prática se desdobara na tentativa de salvar os homens da morte. Não salva. Antes, porém, caminhei durante seis quilómetros, fui ver o mar, os barcos, as gaivotas e os pobres veraneantes mais madrugadores que, coitados, lá têm de cumprir o ritual de se encharcarem em areia, sol e água. Gosto imenso de praias, desde que estejam vazias e não haja calor. O almoço será tarde, como acontece sempre nestes tempos de férias. Chamam-me para a mesa. Tenho de ir abrir o vinho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Viagens

Talvez já tenha falado aqui em Xavier de Maistre, o irmão mais novo de Joseph de Maistre, um encarniçado inimigo da Revolução Francesa e um brilhante teórico da reacção. Lembrei-me dele porque, estando a ler Danúbio, de Claudio Magris, na verdade um livro de viagem – belíssimo – pelos locais que o rio visita. Também Xavier de Maistre fala de viagens. Duas das suas obras têm os seguintes títulos: Voyage autor de ma chambre (1794) e Expédition nocturne autor de ma chambre (1825), este uma sequela do primeiro. Há nestas obras uma ironia relativamente à literatura de viagens, então em voga. Enquanto a viagem pressupõe o abrir do espaço, rasgá-lo, digamos assim, para que o corpo nele se desloque de um ponto para outro, viajar à volta do quarto é uma forma de oclusão. Substitui-se a linha recta pelo círculo. Resta saber qual das duas formas de viagem, aquela que vai de um sítio para outro ou a que se enrola sobre si mesma, é a porta autêntica para o universal. Creio que os viajantes – mesmo aqueles que não são meros turistas e coleccionadores de recordações, mas que fazem da viagem um modo de aprofundamento da sua relação com o mundo – acabam por ser falsos cosmopolitas, presos que ficam à diversidade paroquial por onde passam. Vão do particular para o particular. Aquele que explora até ao fim o particular, esse quarto onde está encerrado e por onde viaja, acaba por descobrir nele o universal, como se cada lugar, assim explorado até ao fim, revelasse nele o segredo do cosmos. Li que Almeida Garrett terá sido influenciado pela Voyage, de Xavier de Maistre, na escrita de Viagens na Minha Terra. Se assim foi, parece-me que o português não terá compreendido o essencial da obra do escritor francês (na verdade, saboiano). Mais próximo disso esteve Alexandre Herculano, não em qualquer dos seus romances, mas quando se exilou em Vale de Lobos, na Póvoa de Santarém.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Coisas de um provinciano em férias

Depois de uma semana em que a principal actividade foi estar sentado e um dos objectos mais requisitados foi o saca-rolhas, a balança teve a amabilidade de me comunicar que o peso não aumentara sequer um grama. Desta experiência concluí que fazer caminhadas engorda e que as virtudes do exercício físico são meramente fantasiosas. O melhor é não levar estas ideias a sério, não porque elas não sejam sérias, mas porque são, como agora se tornou moda dizer, politicamente incorrectas, uma expressão horrível, diga-se. Durante essa quadra de ócio descobri uns policiais que desconhecia. Tratam-se de Les Enquêtes du commissaire Laviolette, da autoria de Pierre Magnan, passados na Haute Provence, França, dos quais se encontram no Youtube adaptações felizes. Por falar em Provence, recordei-me que um dos tópicos que muito animava os professores de Francês, no tempo em que Portugal não se tinha ainda tornado uma nação anglo-saxónica, era a distinção entre province e Provence. Consta que o Reino de França estava dividido em províncias. Numa lista de 1748, são contabilizadas 125, desde a província Agenois – com capital em Agen, a terra das ameixas, aliás excelentes – até à província do Vivarais – com capital em Viviers. Depois veio a Revolução Francesa e zás. Os departamentos, uma divisão mais racional e menos medieva, substituíram as províncias, embora o espírito de província não tenha acabado. Voltando a Modeste Laviolette, o comissário, há que referir que é um bom passatempo, onde transparece um certo odor – caí no poço da sinestesia – a uma França eterna, que já não existirá, a França dos anos sessenta do século passado.

domingo, 15 de agosto de 2021

O tripálio

Pior que um feriado em Agosto, apenas um feriado num domingo de Agosto. Perda sobre perda. Esta dupla perda deveria ser compensada. Poder-se-ia imaginar que no início de cada ano civil, as autoridades, ao olhar para os feriados e a sua distribuição no calendário, proclamavam um certo número de dias como feriados compensatórios. Com eles substituíam aqueles que calhavam ao fim-de-semana e o de Agosto. É certo que vivemos num país em que há sempre uns governantes de ocasião – coisa que são todos os governantes – que fazem uma fronda contra os feriados e apostam em diminuí-los, como se isso fosse um desígnio civilizacional. Se fossem inteligentes, o que será pedir muito, aumentavam-nos ou, pelo menos, seguiam a minha douta sugestão. Quanto mais feriados, mais tempo livre, maior a felicidade geral. Quanto mais felizes as pessoas, maior a capacidade de suportar o tripálio, isto é, o instrumento romano de tortura composto por três paus, e cujo nome, segundo consta, terá dado origem à palavra trabalho. Numa civilização normal, o trabalho é entendido como uma tortura. Na anormalidade em que vivemos, é incensado como o objectivo supremo da existência. Sempre me pareceu que somos, há muito, dirigidos por sádicos ou, em certos casos, por sadomasoquistas. Hoje, porém, é dia de Assunção de Nossa Senhora, o que não é muito propício para deambulações psicanalíticas. Agora que o trabalho é tortura, lá isso é inegável.

sábado, 14 de agosto de 2021

Lógica matrimonial

Hoje é sábado e está calor. Estas duas proposições deixam-se traduzir pela fórmula lógica p Λ q. Para que esta seja verdadeira, é necessário que tanto p como q o sejam. A conectiva Λ significa então um casamento para a vida, um compromisso que exige a verdade dos consortes. Imaginemos, todavia, a seguinte proposição complexa: Hoje é sábado ou está um frio de gelar os neurónios.  Tradução: p V q. Para que esta proposição seja verdadeira, basta apenas que uma das variáveis (p, q) o seja, embora se ambas o forem não haverá problema. Traduzindo, estamos perante um casamento onde não existe reciprocidade. Um dos consortes está comprometido com a verdade, mas o outro nem por isso, umas vezes sim, outras não, sempre pode recorrer a umas mentiras para justificar o atraso com que chega a casa. Todavia, isso não põe em causa o matrimónio. Como se vê a lógica é das coisas mais úteis para compreender a vida humana. Com ela podemos construir toda uma explicação sobre o matrimónio e as relações amorosas. Fundamentalmente, podemos exprimir, num texto preguiçoso escrito num sábado de calor, que o estado de demência já esteve mais longe, embora a demência do mundo esteja ainda mais próxima. Basta olhar para a comunicação social. Antes deambulações atarantadas sobre lógica proposicional. Talvez, mas apenas talvez, um dia destes deambule por outras lógicas. É uma questão de agravamento do estado mental.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Calor e leituras

Estou encantado, tanto quanto é possível com este calor, com Arsène Lupin. Há muito, muito que não o lia. Uma revisitação ao melhor dos tempos de adolescência, uma época lastimável que todos temos de atravessar, uns com mais obstáculos e infelicidade, outros com menos. Só espero não me pôr a reler a Enid Blyton, pois seria o anúncio de uma regressão à infância, ao Pinóquio, não ao texto do florentino Carlo Collodi, mas às adaptações em banda desenhada que se vendiam numa certa mercearia desaparecida há muito. Talvez uma dia fale sobre essa inusitada loja. Divido, porém, a atenção a Arsène Lupin com a leitura de Danúbio, de Claudio Magris. Talvez se possa dizer que é uma viagem sentimental ao longo desse rio que tanto tem marcado a História da Europa central, da Mitteleuropa. Contudo, mais que uma viagem sentimental, estamos perante uma viagem intelectual. Acabei de ler o ponto 12, da primeira parte. A guia de Sigmaringen. Uma viagem à política e à literatura europeia. O marechal colaboracionista Pétain, desconhecido da guia do Castelo de Smgmaringen, onde se refugiou, e, através de um outro colaboracionista, Céline, reflexões sobre Kafka, Pessoa, Hamsun, Neruda, Svevo, Hemingway, etc. Estas reflexões são, todavia, pequenas iluminações que pontuam o caminho. Danúbio não é un roman-fleuve, um romance-rio, mas o romance de um rio, onde este é a personagem central de uma história que, apesar de vivermos na parte mais ocidental da Europa, ainda nos toca. Está calor.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Camaleões, monstros e plágios

Também eles possuem o dom do disfarce. Entregam-se ao mimetismo, como se fossem camaleões, e fazem-se acreditar como dias imensos, marcados pelo vagar, anúncios da eternidade ociosa, isto é, livre das consequências das dentadas na maçã e da expulsão do paraíso. Nunca percebi como se pôde trocar o Jardim do Éden por uma maçã, se fosse por uma laranja, pêssego ou uma toranja (que não havia na altura), ainda compreenderia, mas uma maçã… A realidade, seja como for, é bem mais prosaica. Não há, nos dias de férias, a poesia da mimese do eterno, mas a prosa monótona da passagem implacável das horas, minutos e segundos, tal como acontece no resto do ano. Ontem juntei os três netos. A dada altura, fiz umas cócegas ao mais pequeno e disse-lhe eu sou o monstro das bolachas. Logo uma das netas olhou para mim e repôs as coisas no seu devido lugar: o monstro das bolachas é meu. Como quem diz, se o avô quiser ser monstro para esse que invente outro nome, que a monstruosidade das bolachas será eternamente para mim. Inventar uma nova monstruosidade é a minha tarefa para hoje, aproveitando o disfarce de um dia de férias. Não é fácil a tarefa, pois o monstro das bolachas foi um descarado plágio. Terei de ir consultar uma lista de monstros benévolos usados na infância. Para plagiar, claro.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Deambulações literárias

Há em Campo de Ourique, no Jardim da Parada, uma livraria de que muito gosto, a Ler. Pequena, mas com um bom catálogo, com o ambiente das velhas livrarias lisboetas. Ontem, ao passar por Lisboa, fui lá e resolvi o meu problema de leituras de férias. Tinha-me queixado da falta de uns Maigret. Não resolvi essa falta, mas descobri que a Relógio d’Água está a editar o Arsène Lupin, esse Gentleman Ladrão, a cujas aventuras dediquei num outro século muitas tardes de Verão. Comprei dois, A Agulha Oca e A Condessa de Cagliostro, e tomei a resolução de adquirir os que forem sendo publicados. Talvez nem os releia todos, mas é uma espécie de revisitação a um tempo em que aprendi a gostar da leitura. Foi com uma certa literatura menor, digamos assim, que fui conduzido, quase sem dar por isso, à literatura maior. Dos livros de cowboys (então, superlativamente malvistos), das aventuras da Enid Blyton, passei para os policiais e, de um momento para outro, vi-me a ler Camus, Kafka, Sófocles, Sartre. Claro que também lia os portugueses. Agora, porém, estou mais interessado em Lupin. Só espero que uma qualquer editora se lembre de republicar o Fantômas, outro herói – na verdade, um herói negativo – da adolescência. Bem, esta dedicação à literatura de entretenimento só é verdade em parte. Também comprei ontem Manhã e Noite, do norueguês John Fosse, Rua Katalin, da húngara Magda Szabó, ambos publicados pela Cavalo de Ferro, e, voltando à Relógio d’Água, O Rei João, de William Shakespeare. Este faz parte do «Projecto Shakespeare», em que a Relógio d’Água e o grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) conspiram para uma publicação integral da tradução da obra dramática de Shakespeare. Dir-se-á que há, neste texto, excessiva publicidade. Talvez, mas todas as referências são merecidas. Há que não deixar morrer aqueles que se esforçam pelo que há de melhor.

domingo, 8 de agosto de 2021

Más escolhas

O tempo de férias não é pouco trabalhoso. Não fazer nada exige muito esforço, pois não é sem sacrifício que se domesticam e civilizam os impulsos que nos levam a trabalhar. Exagero, claro. É preciso não esquecer que possuo uma certa propensão para a hipérbole. No entanto, há alguma verdade no exagero. Trouxe comigo um conjunto de livros sérios para ler, para além das pequenas bibliotecas que arrasto nos dois eReaders (um Kindle e um Kobo) e no iPad. Dei comigo, porém, a desgostar-me com as leituras. Coisas demasiado sisudas para tempo de veraneio. O melhor, pensei, seria ler uns policiais, enquanto o tempo passa por mim. O problema é que não trouxe nenhum. Encontrar uma solução exigiu, então, esforço neuronal, a mim que pertenço a um tempo em que a televisão começava às sete da tarde e, para sanidade da população, acabava à meia-noite com o hino nacional, a bandeira a ondular, a que se seguia a mira técnica da RTP, que antecedia o momento em que tudo se desligava e ficava apenas um mar borbulhento cor de cinza acompanhado por um ruído irritante. Ah, havia apenas um canal, que chegava e sobrava. Eu sou desse tempo e é assim que penso, com os dados desse tempo. Por isso foi preciso esforço para encontrar a solução. Não havendo livros, sempre se pode recorrer ao Youtube e ver uns policiais. Comecei com três episódios do Sherlock Holmes. Não é a mesma coisa, eu sei, até porque a interpretação feita na série é um pouco estridente, mesmo para um opiómano. Em vez de ler, posto-me diante do monitor e deixo o patético detective resolver casos que nem ao diabo lembrariam, e ao diabo lembram muitas coisas, como bem se sabe. Seja como for, o que me apetece mesmo é ler um Maigret. Gostava de saber por que razão trouxe as Reflexões sobre a Revolução Francesa, do Edmund Burke, em vez de Maigret e a Morte do Perna-de-Pau ou de Maigret e o Corpo Sem Cabeça. Aliás, Simenon é um grande escritor. Más escolhas, portanto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Bolhas e bolas

Nada em excesso! Este mandamento resumia a ética dos gregos antigos. É de uma sabedoria conspícua, mas isso não é o suficiente para que um mortal o cumpra. Não fora ter-me entregado aos excessos das caminhadas e hoje não teria uma bolha num dos pés. Olho-a e compreendo que muitos são os limites que cercam os pobres seres humanos. Caminhadas suspensas, pomadas, pensos e um cuidado com o que calço, não vá a bolha crescer tanto como certas bolhas imobiliárias que, ao rebentar, têm o condão de lançar a matérias viscosa que as anima sobre uma multidão que, aparvalhada, olha para o céu, para descobrir de onde vem a matéria purulenta que chove sobre cautos e incautos. Há pouco recebi uma fotografia do meu neto. Instalado na areia, entregava-se à volúpia da bola de Berlim. Oiço de imediato, também queremos. Terei de pegar nas netas e ir a um lugar onde as há. Sem creme, sem óleo, ou quase. Eu não sei se também quero. Com a visita à balança no horizonte, sem poder caminhar para gastar calorias, duvido que seja uma boa ideia ceder à gula. Logo verei, até onde vai o meu poder de resistir à tentação. Nada em excesso, lembrei-me, agora.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Dinossauros

Dinossauros. Não me estou a referir aos presidentes de câmara que não podendo eternizar-se no seu município tentam continuar a carreira num outro onde os eleitores lhes achem graça. Aqui não se fala de política. Tratam-se mesmo de dinossauros. Bem, também não é completamente verdade. São réplicas desses terríveis monstros. Para ajudar as minhas netas a passar o dia, fomos visitar o Dinoparque, na Lourinhã. Não fiquei comovido, embora o parque esteja bem organizado. Aquelas figuras terríveis fazem recordar a ideia de que a vida possa ser absurda, um contínuo matar para não morrer, num fluxo de violência de que não se vislumbra nem sentido nem fim. Elas gostaram, uma tirou fotografias a quase todas as réplicas, a outra olhou-as, sobranceira, como se já não tivesse idade para aquele tipo de fantasia. O melhor foi ir almoçar a um bar de praia, olhar para o oceano, conversar sobre isto e sobre aquilo, mas não sobre dinossauros, como se estes já não existissem, nem sequer na memória dos visitantes do parque.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Verão

Estes dias de Verão não passam de uma fantasia. Com uma liberdade aparente, foge-se dos grandes calores e encontra-se refúgio perto do mar, onde as temperaturas nunca se entregam a devaneios hiperbólicos. Aqui, onde há um ditado que diz primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Os dias passam sem inquietação, a não ser a inquietação de que tudo termine e a realidade, essa grande meretriz, volte e crave as suas garras na carne repousada pela estiagem. Ainda não pus um pé na praia e tenho esperança de a evitar tanto quanto possível. É um lugar para o qual não tenho paciência. Não consigo perceber como há quem passe horas e horas ao sol, mas como há muitas outras coisas que não compreendo, tenho de integrar essa incompreensão na incompreensão geral que me foi destinada. Seja como for, gosto de contemplar o mar, desde que o olhar passe por cima dos veraneantes. Trouxe comigo uma pilha de livros. O mais certo é não ler nenhum, pois cada vez mais cultivo a preguiça, o não fazer nada e, se for possível, não pensar em nada. De resto, faço longas caminhadas, onde acumulo pontos cardio, embora não saiba para servem tais pontos. A aplicação que os mede diz que acumular 150 pontos durante uma semana ajuda a prolongar a vida. Parece-me uma afirmação fantasiosa e que jamais poderá ser testada, o que evita ser falsificada. Logo, não científica, segundo Sir Karl Popper. De resto, a pandemia tornou-se um novo modo de aprender o alfabeto grego, o chamado ελληνικό αλφάβητο. Temos uma variante alfa, uma beta, uma gamma e uma delta. Isto, apesar de didáctico, é desesperante. Para chegar ao fim, ao ómega, ainda faltam vinte letras. O mundo está longe da perfeição.