segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Ligar o aquecimento

Estava a ler um livro de Peter Sloterdijk com o sugestivo título You Must Change Your Life – não se pense que é uma obra de auto-ajuda, não é – quando me deparo com a seguinte consideração: A era moderna é aquela que trouxe a maior mobilização das forças humanas em prol do trabalho e da produção, enquanto aquelas formas de vida em que se deu a máxima mobilização em nome da praxis e da perfeição pertencem à antiguidade. Imagino, embora tenha uma certa propensão para imaginar coisas desfocadas da realidade, que em todos os seres humanos exista uma cesura, um buraco escavado pela tensão entre uma vida marcada pela produção e a necessidade de a dedicar à perfeição pessoal, à realização de si. Quando se fala em antiguidade, nela se devem incluir todas as sociedades tradicionais e não apenas a grega e a romana. A realidade, nos dias de hoje, tempo talvez culminante da era moderna, é a produção sem fim, com o objectivo de consumir, para se produzir mais, para se consumir mais, até ao infinito. Em tudo isto parece haver uma condenação de Sísifo, uma ausência de sentido para o facto de se estar neste mundo e ter capacidade de pensar. Se queremos encontrar uma grande razão para o absurdo na literatura de Camus ou para a náusea em Sartre, encontramo-la nesta mobilização infinita das capacidades humanas para a exterioridade produtiva. A redução da existência à dinâmica da quantidade, a que se expressa no jogo dos gastos e dos proventos, é a casa do absurdo em que a vida de muitos seres humanos se tornou. Não sei o que me deu para escrever estas coisas. Talvez seja o facto de a noite estar a cair, com a escuridão que é a sua, ou a causa terá sido o ter passado o dia em actividade produtiva intensa, embora a produção a que me dedico não sirva realmente para nada. Não tarda e terei de ligar o aquecimento. Isto, sim, é uma questão importante.

domingo, 7 de novembro de 2021

Um domingo para contar uma aventura de quarta

Contrariamente ao habitual, o almoço deste domingo foi cedo. De seguida, um salto a uma superfície comercial. Talvez fosse melhor considerar aquilo um volume comercial e não uma superfície, pois não consta que a nossa espécie consiga viver num espaço bidimensional. Excepto o pouco tempo que demorou a aventura, não dei por nada mais que merecesse anotação. A luz que fendia a atmosfera e se precipitava pela cidade, essa sim. Uma luz melancólica que só existe nas tardes de domingo, e não em todas. Há nela uma cor desmaiada e aquele que para ela olha quase sente vontade de chorar, embora não saiba a razão. Talvez seja o próprio domingo que assim se apresenta por saber-se cada vez mais próximo da morte. Por falar em coisas melancólicas, ocorreu-me a minha vista a um sítio lúgubre. Trata-se da aventura nos meandros da justiça portuguesa. Arrolado como testemunha, lá me desloquei ao tribunal. Dirigi-me à secretaria, disse ao que ia, apresentei a convocatória (ou a intimação), para testemunhar em videoconferência, pois a sessão real passava-se em Lisboa. A funcionária sorriu. Escreveu no computador, disse que já tinha avisado o colega. Que esperasse lá fora. Pode ser no hall interior, está menos frio. Na verdade, havia gente no hall exterior à espera e ao frio. Dirigi-me ao interior, uma sala ampla, escura, com uma mesa, bancos corridos e dois ou três sofás aos cantos. Nesse hall desembocava uma escadaria ampla e quase imponente. Por ali, pensei, deve descer a justiça. Por vezes, um pequeno grupo de pessoas parava junto à mesa, trocava impressões e subia. Quanto a mim, testemunha ocasional de um naufrágio, dedilhava o telemóvel e esperava. A certa altura, entra um advogado, por acaso meu vizinho, e trocamos umas palavras. Digo-lhe ao que viera e que esperava que a coisa se despachasse rapidamente. Ele ri e responde-me que estava em mau sítio para ter pressa. Ri-me, despedimo-nos, volto a sentar-me e a dedilhar o telemóvel. Passam duas mulheres togadas, ainda relativamente novas. Oiço alguém murmurar que se trata da juíza e da delegada, mas não consegui saber quem era quem. Talvez seja isto a opacidade da justiça. Deveriam trazer letreiros para identificarmos os titulares de tão alta função. Assim me ia entretendo, até que, passada uma meia-hora bem medida, a oficial de justiça que me recebera, vem dizer-me que a advogada do meu amigo dispensara o meu testemunho. Que podia ir à minha vida. Perguntou-me se queria uma declaração de presença. Declinei e agradeci. Vim-me embora, sem que desse o meu testemunho. Ao sair pensei que aquele é um sítio que qualquer herói deve evitar. Agora está a chegar a noite dominical. O anúncio da cadeira de hambúrgueres cintila espampanante e o hospital, ao longe, cerra-se numa tristeza parda e sem fim. Vi que hoje a canção Let it be faz cinquenta anos. Hoje estou particularmente palavroso. Vou ler um artigo que fala – para desconstruir, claro – sobre os cinco mitos que persistem ainda hoje sobre os Beatles.

sábado, 6 de novembro de 2021

Um sábado esquivo

Não sei o que fiz deste sábado. Levantei-me bem cedo e estive a trabalhar até às dez horas. Saí e fui tratar de uns assuntos familiares. Regressado para almoçar, nem dei pelo passar das horas. É deste modo que se dissipa a vida. O tempo passa e nem por ele se dá. Já é noite cerrada há muito. Vista da janela, a rua não passa de uma fantasia fantasmagórica, pontilhada por luzes brancas e amarelas. O bosque da escola ao lado é apenas uma sombra negra e densa, as árvores da rua – tílias, acácias, liquidâmbares – dançam empurradas pela música do vento, enquanto, em estranho strip-tease, deixam cair, uma a uma, as folhas mortas. Por vezes, a avenida é cortada pelos faróis de um carro, mas o trânsito é pouco, vagaroso, alguém que procura chegar a casa, embora sem pressa. Um carro estaciona, sai um casal e precipita-se para o bar da esquina. Há pouco, sem imaginação para melhor, estive a ver um jogo de snooker. É quase tão espectacular como um jogo de xadrez, apenas um pouco menos imóvel, pois os jogadores levantam-se e sentam-se, andam à volta da mesa, onde correm bolas para dentro de buracos empurradas por varapaus a que dão o nome de tacos. A humanidade, honra lhe seja feita, de tudo faz um jogo, talvez porque esteja cansada de coisas sérias. Inventado o jogo, logo é tornado em coisa séria, para que seja inventado outro, antes que o tédio seja mais eficaz que as alterações climáticas e acabe com a espécie. Como se vê, estou sem assunto e ainda não foi hoje que falei da minha aventura, no outro dia, no palácio da justiça local. Fica para a próxima.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mrs. Robinson

Li há pouco que hoje, dia 5 de Novembro, Art Garfunkel faz 80 anos. Que importância tem isso, a não ser para ele e para a família e amigos, caso os tenha? Nenhuma. No entanto, a dupla Simon & Garfunkel marcou várias gerações, entre as quais a minha. Não apenas pela sua música (possuo todos os seus álbuns em CD), mas também por ser deles a banda sonora de um filme de culto, de Mike Nichols, com o título The Graduate, o que deu em português europeu A Primeira Noite. O filme é de 1967 e, apesar da soma dos meus anos ser pesada, não tinha idade, então, para ver o filme. Nem sei se ele passou nessa época em Portugal. Vi-o anos depois. Não por acaso fiquei fascinado. Por certo, se o revisse, não o ficaria. Os tempos mudaram e a inocência perdeu-se sabe-se lá onde. Quem nunca viu o filme, por certo não terá dificuldade de o encontrar por aí. Eu vinha aqui para contar a minha experiência de quarta-feira, numa ida a um tribunal, mas julgo que vou ter de adiar a narrativa épica, embora não tenha acontecido nada, nem eu seja criminosos, nem o motivo tenha sido um crime, mas a dolorosa partilha de bens entre um amigo e a mãe dos seus filhos. Hoje, porém, é sexta-feira, já anoiteceu, o sábado conspira para chegar. Acho que vou ouvir a música que animou A Primeira Noite. Podia dar-me para pior. Quem não desejou uma Mrs. Robinson que atire a primeira pedra.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Metafísica de trazer por casa

Já era noite quando me sentei no escritório. Cansado. Demasiado contacto com a realidade torna-se patológico. No leitor de CD estava um disco de Richard Strauss, corria o poema sinfónico MacBeth. Ao fim de alguns minutos descobri que hoje não é dia em que possa ouvir Strauss. O meu cansaço – ou as preocupações que me atravessam a mente – deixam-me incapaz para uma música tão densa. Ainda pensei escolher uma coisa ligeira. De imediato, porém, uma voz vibrou dentro de mim. Nada, exclamou. Silêncio, ordenou. Sou obediente. Desisto da música, olho pela janela para a noite. Então recordei-me do tempo em que fumava. Se ainda o fizesse, acenderia um cigarro e deixaria a mente deambular entre o fumo e a escuridão do céu. Sem ouvir nada, desejando não pensar em nada, mas isso não me parece possível. A mente é uma cabrita irrequieta, nunca pára. Não fumo, resta-me a noite. Não a noite que existe, mas aquela que desejo. Uma noite pura, não toldada pelas luzes humanas, uma noite que espelhasse o silêncio do universo, que trouxesse até mim o mistério de tudo o que é. Como se vê, depressa se deriva para uma metafísica de trazer por casa, toldado por um pathos insuportável. Melhor seria fumar um cigarro.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Deambulações com os astros

Num site de agregação de notícias, vejo as previsões para os diversos signos astrológicos. São extraordinárias. Quase ao nível das previsões do tempo e das da chave do Euromilhões. Só são batidas pelas previsões económicas e estas, como se sabe, nem depois dos factos acontecerem conseguem estar de acordo com a realidade. Lembro-me de uma conversa tida num meio jornalístico da capital, há muitos anos, em que um jornalista dizia que as previsões da astrologia eram um trabalho da redacção, por norma dado a um novato. Uma forma de desenvolver o talento para contar histórias sobre a realidade. É muito possível, imagino, que mesmo muitas cartas dos leitores sejam – ou tenham sido – trabalho de redacção. Não faço ideia por que razão me aventurei num campo tão juncado de minas e armadilhas como a astrologia. Não vale a pena, para contrariar a minha mais funda e completa desconfiança nesses truques, falar de Fernando Pessoa. Se ele se dedicava à astrologia, também se dedicava a outras coisas que não faziam bem ao espírito. O que conta em Pessoa não é aquilo em que ele acreditava, mas aquilo que escreveu. Não o conteúdo, mas a forma. Se era dado a mapas astrais, isso é irrelevante, embora talvez fosse mais interessante que desenhasse mapas físicos e atlas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Considerações sobre os mortos

Chegámos a Novembro e aos Santos. Cedo, saí de casa pois necessitava de fazer umas compras. Passei pelo cemitério. No pequeno largo exterior havia algum movimento, venda de flores e de alguma parafernália para deixar nas campas. O movimento, todavia, não era muito. Talvez fosse muito cedo, talvez porque o dia de Fiéis Defuntos seja amanhã e não hoje. Poderá haver uma outra razão para a diminuição da afluência aos cemitérios, se é que há essa diminuição. A subjectivização da relação com os mortos. As visitas aos cemitérios pressupõem ainda a existência de um corpo objectivo que ali está e é esse que suporta o culto do antepassado. Ora, uma das marcas da modernidade é a subjectivização da relação com o mundo. Pode-se cultuar os antepassados apenas na interioridade do sentimento e da memória, sem necessidade de recorrer a um suporte físico dado pela existência de um corpo na campa, no jazigo, etc. Os que morreram não se encontram nos cemitérios, mas na memória, no sentimento e nas orações dos vivos. Tudo isto me disse há pouco o padre Lodo, quando lhe liguei e lhe contei que tinha visto pouca gente à porta do cemitério da cidade. Depois, da reflexão filosófica sobre um problema sociológico, lembrou-me que estava com imensas saudades de comer umas broas daqui. São únicas, acrescentou. Levar-lhas-ei, caso vá a Lisboa no fim-de-semana. Agradeceu. Não resisti e disse-lhe que deveria ter cuidado com elas, mesmo que não contribuam para a perdição a alma, podem não ajudar muito o corpo. Ele respondeu com uma expressão em italiano que não percebi e riu-se.

domingo, 31 de outubro de 2021

Tempo de broas

Outubro despede-se com dia aumentado. Talvez ele esteja preso na amargura por ter de partir e lança mão a todos os estratagemas para evitar a ida sem volta. Por isso, precisa de 25 horas, compreende-se. De resto esteve um domingo plangente, espalhando a lástima por tudo o que é canto. As pessoas recolhem-se em casa e começam a sonhar com lareiras. O pior é que não está frio, apenas a água e o tédio envolvem o ambiente. O dia não foi mau. Falei com os três netos. Em primeiro lugar, com o mais novo que me perguntou se estava em casa, depois com as mais velhas que me informaram estarem de saída para uma noite de Halloween em casa de amigos. Talvez o mais novo tivesse medo que também eu fosse para o Halloween. Amanhã será dia santo ou o dia de Todos-os-Santos. Tempo de broas, que têm o condão de me saberem muito bem e de me fazerem bastante mal. Culpa minha, pois cedo sempre à tentação e ultrapasso a justa medida. Para tudo, como sabiam os antigos gregos, há uma medida justa. Nada deve ser feito em excesso e também se deve evitar a falta. A discussão, porém, surge de imediato. Cada um tem a sua justa medida ou existe uma justa medida universal, ou, ainda, a justa medida pode ser, ao mesmo tempo, individual e universal? São estas coisas que me atormentam a consciência, enquanto vou comendo broas e o organismo não se queixa.

sábado, 30 de outubro de 2021

Melancolia de sábado

Não tem sido um dia fácil, o de hoje. Não por causa da chuva e do mau tempo, mas por necessidade de ter de tomar decisões e fazer coisas desagradáveis. Por vezes, é necessário pôr as mãos não na massa, mas naquilo que tem um péssimo aroma. Todos gostaríamos que a vida aqui na terra fosse um paraíso, mas parece que os astros não estavam para aí virados, quando fadaram o destino da espécie humana ao cimo desta pequena bola rochosa. De resto, a chuva tem animado as terras e terá contribuída para que as barragens não se afoguem na secura. Isto digo eu que de barragens e de chuva nada sei. Está um sábado triste, nimbado por uma melancolia vagarosa. Na avenida não se avista ninguém, apenas os carros, poucos, passam, deixando uma esteira, feita de uma pequeníssima babugem, aberta pelos pneus ao rodar sobre os lençóis de água que cobrem o alcatrão. No bosque da escola aqui ao lado, cedros, ciprestes e pinheiros oferecem a folhagem ao anoitecer. Os campos de jogos estão vazios, nos beirais dos prédios não se avistam pombos, apenas o hospital, mais ao longe, deixa o branco das paredes contaminar-se com a ferrugem dos fungos. Não tarda e será noite.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Bolachas do Halloween

A profecia meteorológica confirmou-se. Chove, o alcatrão parece um espelho, os carros passam devagar para não molhar os transeuntes. Estes equilibram guarda-chuvas em mãos desabituadas, encolhem-se como se estivesse por aí o Inverno. Ainda não chegámos ao S. Martinho, o qual tem tendência para pequenas estiagens, nem tão pouco aos Santos e a Fiéis Defuntos. Ninguém quer saber deles, dos Fiéis Defuntos e ainda menos dos Santos, mesmo que venham por atacado e sejam todos. O que move os ânimos é o Halloween, essa velha tradição ibérica, com fortes raízes em Portugal. Já hoje me perguntaram se queria uma bolacha do Halloween. Nem estava a perceber. Uma bolacha de quê, perguntei. Do Halloween, responderam-me. Para além das bolachas Maria, Torrada, de Araruta, Americana, também há bolachas do Halloween, voltei a perguntar. Confirmaram. Até me ofereceram a possibilidade de comer uma. Disse que sim, mas depois esqueci-me e perdi a extraordinária possibilidade de aumentar o meu conhecimento gastronómico. Está uma verdadeira sexta-feira, daquelas que fazem lembrar longos fins-de-semana sem afazeres prementes. Continua a chover e o crepúsculo aproxima-se. Não sei a razão, mas estou a ouvir um álbum com a música para piano de Michael Nyman. Há qualquer coisa que não combina. Acho que vou mudar para Die schöne Müllerin, de Franz Schubert. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Coisas diversas

Consta que no próximo fim-de-semana muda a hora. Também constou que hoje mudava o tempo e que, a esta hora, deveria haver aguaceiros a sério. Ora, está uma noite tranquila. Nada de chuva. Tenho esperança de que também a hora não mude no fim-de-semana. Não é que me faça grande diferença, a não ser ter de acertar um ou outro relógio, mal dou pelo acontecimento. Parece que o país anda divertido com as peripécias da distribuição da mercearia. Houve um problema qualquer com o rol, mas sobre isso estou proibido pelo autor de fazer comentários. Isto é muito injusto. Um autor pode ter opiniões políticas, mas um narrador está proibido. Nem sequer pode falar em róis de mercearia, nem de venda a grosso e a retalho. Nada. Por outro lado, ouvi dizer que a pandemia ainda não está domada, que os casos podem vir a aumentar exponencialmente. O pior é o senhor da Marinha já não estar ao leme. Sempre podia chover, as terras estão a precisar de água e não tarda virá por aí grande charivari por causa das barragens. E ainda me lavava o carro que tenho na rua. Na minha frente repousa um livro que deve pesar mais de um quilo. É um saber substancial, diga-se. Não partilho o título para preservação do que resta do meu bom nome, se é que alguma vez o tive, ou possa haver um nome que seja bom.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma aventura

Entrego-me ao anacronismo. Deveria contar uma aventura de hoje, mas não encontrei nenhum torto para endireitar, nenhum gigante para pôr na ordem. Resta-me narrar uma aventura na qual, no lugar de ser um glorioso agente, não passo de um glorioso paciente. Tudo começou há umas semanas quando, apenas para tranquilizar o espírito, talvez porque não fizesse meditação transcendental, um cardiologista, rapaz da idade dos meus filhos, achou por bem mandar-me fazer uma ressonância magnética ao coração. Disse-me que aquilo era um bocado chato, pois demorava cerca de quarenta minutos. Ontem lá fui fazer a coisa para tranquilizar o espírito. Descobri, no acto de pagamento, que afinal não era uma ressonância magnética, mas três. Uma morfológica, outra funcional e a terceira para estudo da perfusão do miocárdio. Quando olhei para a requisição feita pelo médico, confesso que não consegui ler coisa alguma do que estava escrito. Pensei que ele escrevia num alfabeto que eu desconhecia, mas que haveria nos centros de imagiologia hermeneutas especializados e infalíveis na interpretação. A aventura, que supera as do Cid e do Quixote, senão mesmo as de Ulisses, de Eneias e do peito lusitano, consiste em entrar numa espécie de túnel, onde se fica muito quieto, com uma buzina na mão para o caso de dar para o torto, e se ouvem ordens através de uns auscultadores. Ainda me perguntaram se queria música, mas declinei tendo em conta o que os técnicos estavam a ouvir. Que ordens eram essas? Eram muito claras. Um técnico dizia: encha os pulmões de ar, despeje-os, não respire. Ouvia uns sons cortantes e estranhos. Quando paravam, ouvia a mesma voz: pode respirar. A partir de certa altura comecei a contar as emissões sonoras. Desconfiei que estava perante uma mente caótica. A do técnico, claro. Umas vezes, apenas havia a emissão de um desses sons, outras vezes ultrapassavam as vinte – cheguei a contar vinte e cinco – sem que um padrão lógico se me apresentasse ao espírito. O meu medo – um herói também tem medo – foi que ele se esquecesse de dar a ordem para voltar a respirar. Cheguei a imaginar-me num sarcófago. O momento mais perturbador aconteceu, porém, por volta da meia-hora de exame. Estava à espera de ouvir o técnico a dar as suas ordens quando chega até mim uma voz feminina. Fiquei de tal maneira perturbado que nem percebi que também ela dava as mesmas ordens. Talvez o técnico tenha precisado de ir à casa de banho, pensei depois. Após uns instantes de confusão, lá me recompus, e fui obedecendo. Até que chegou o fim, entraram pela sala umas raparigas para me livrarem da parafernália que me envolvia. Pensei ter chegado a Ítaca e estar rodeado de Penélopes. Descobri, porém, que era uma ilusão. Apenas queriam que eu me fosse dali para fora, que lhes desamparasse a loja, que elas tinham mais que fazer. Obedeci, claro, pois a obediência é a maior virtude de qualquer herói.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Livros de cowboys

Uma troca de comentários aqui no blogue levou-me à evocação de um tempo muito remoto, no qual eu ia, bem criança, aos domingos de manhã ao café com o meu pai. Ele lia os jornais, um de informação geral e outro desportivo, e eu entretinha-me com o Falcão ou o Mundo de Aventuras, umas vezes. Outras eram o Condor e o Ciclone. Tudo isso revistas de banda desenhada populares. Conhecidas por livros de cowboys. Na altura, a escola desaconselhava tal tipo de literatura, mas ninguém queria saber do desaconselhamento. Se não foi por aí que comecei a ler, foi talvez pelas aventuras do Pinóquio, nas edições Romano Torres, uma gloriosa editora popular que foi tragada há muito. Havia uma enorme estultícia nesse acto de desaconselhar essas leituras, a presunção de que as pessoas começavam pela literatura de qualidade, ainda que infantil. Foram as horas intérminas de Verões sem fim a ler essa má literatura que me conduziram a Kafka, a Mann, a Borges, a Sartre, a Camus, já nem sei bem a quem. Antes do prazer do texto, que vem bem depois, há o prazer de acompanhar o desenrolar da acção, de saber como acaba a história, de ver acontecer as peripécias que levam ao desenlace. Isso estava tudo nessa pequena literatura. Estava ainda uma outra coisa, a vitória do bem sobre o mal, o sentimento de que vale a pena bater-se pela boa causa. Não era pouco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Admirável mundo novo

O dia começou com uma visita ao laboratório de análises clínicas. Tudo muito eficiente e despachado, mas – há sempre um mas – também um pouco desconcertante. Outrora sabia de quem era o laboratório, passava pela proprietária, cumprimentava-a, fazia parte de uma paisagem bem definida. Passou, há uns tempos, para uma grande cadeia de laboratórios, da qual nunca chegarei a saber quem é o proprietário. Não é que tenha algum interesse em conhecer donos de laboratórios de análises ou de supermercado, ou seja lá do que for. A questão é outra. A paisagem despovoa-se. As coisas que tinham donos por todos conhecidos entraram numa vertigem tal que os donos foram sugados e enviados para Marte. Tudo se tornou anónimo, obediente a normas burocráticas e a imperativos de racionalização. O espaço para o improviso, para recorrer, em caso de necessidade, à fonte do poder, esse espaço está morto. As pequenas cidades de província – também as não tão pequenas – vão-se tornando em dormitórios de assalariados de poderes estranhos, sem rosto. Tudo a fingir que se está num sítio muito civilizado, muito cosmopolita. Não, não se está. Sempre desconfiei de que o jejum que antecede a realização da colheita dos materiais a analisar não faz bem a ninguém. A mim, por exemplo, dá-me para devaneios sociológicos. Ora, o que me interessa a sociologia? Tanto como a psicologia, isto é, nada. Seja como for, as coisas são eficientes, os resultados já chegaram por email, agora encriptados, a que só se pode aceder com uma password, vá lá alguém saber que tenho o colesterol onde deve estar, mas os triglicéridos estão com ligeira inclinação para a hipérbole. Imagino que este encriptamento dos resultados deve ser uma vantagem competitiva do laboratório contra os rivais. Um admirável mundo novo.

domingo, 24 de outubro de 2021

Rainhas

Não é pequena coisa o espírito comercial e a livre iniciativa. Digo-o sem a mínima ironia. Operam verdadeiros prodígios e nunca deixam de nos maravilhar. Já hoje comi um recente doce tradicional de Natal e ainda nem chegámos aos Santos. Por aqui, ainda os particulares, neste caso as particulares, não se entregam aos rituais das broas, e já se vendem Bolos-Reis e Bolos-Rainhas. Foi um destes últimos que foi vítima da minha gula. Uma pequena parte, esclareça-se. Durante décadas só conheci o Bolo-Rei, depois a livre-iniciativa preocupada com a infracção aos princípios da igualdade de género introduziu o bolo consorte. Como acontece sempre, o que vem depois é francamente melhor. Também no acto da criação Deus deu vida a Adão, mas temendo algum desvio narcisista ou práticas indecorosas e solitárias, tirou-lhe uma costela e de lá nasceu a Eva, incomparavelmente mais interessante que o pobre descostelado. Mesmo no Xadrez as Rainhas são muito mais poderosas que os Reis. É certo que se este morrer de xeque-mate o jogo acaba, mas o coitado mal se pode mover pelo tabuleiro, enquanto a Rainha desloca-se por ele, grácil e ameaçadora, não havendo peça que o adversário mais tema. Se ela morrer ou for feita prisioneira, o que é o mesmo, o jogo não acaba e ela, por acto de magia, pode voltar ao tabuleiro pela promoção de um peão. Pena que Ovídio tenha escrito as Metamorfoses sem conhecer a do peão em rainha. Mais grave que isso é, porém, a possibilidade de um Rei, devido à promoção dos peões, ter mais de uma Rainha. O que pode ser concebido como um ataque à família monogâmica. Isto levanta sérios problemas e estes não se resumem aos aspectos teológicos da questão. O domingo afunda-se no mar da noite. Já estava com saudades de umas frases a cair para o kitsch.

sábado, 23 de outubro de 2021

Música vesga

Quando chegamos a eles, esperamos que sejam gloriosos e quase eternos, mas os sábados são tão triviais como quaisquer outros dias. Fazem a única coisa que um dia sabe fazer. Passar. Comecei com a ida ao centro de inspecção com um carro. Na verdade, um ancião. Descobri, ao atentar na documentação, que o pobre nem chega a fazer 2 000 km por ano. A maior viagem que faz é de 100 km para um lado e outros 100 km de retorno a casa. É verdade que nos últimos dois anos a pandemia o impediu de andar por aí, mas sem ela duvido que passasse dos 2 500 km. Tenho pena dele, pois sempre que são viagens a sério, é dispensado e deixado a dormir ao relento ou na garagem. Depois, de inspeccionado recebeu a aprovação, mas parece que terei de mandar regular os faróis de nevoeiro. A lei mudou e a incidência da luz ficou desactualizada. A inspectora comentou que sempre que a lei muda não é para favorecer o cidadão. Pensei que havia nela uma certa sabedoria e sorri. Ela não viu o meu sorriso, pois eu estava de máscara, como ela. Fiz um esforço e não consegui lembrar-me da última vez que usei, neste carro, os faróis de nevoeiro. Agora, o sábado entristece-se. Uma luz mortiça embate nas paredes e chega a mim como uma onda de melancolia. Descubro que um livro comprado há dias em Lisboa é exactamente igual a um que tinha comprado há uns anos. Maldigo a memória e deixo-me embalar pela música vesga das tardes de província.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

As virtudes da segunda mão

Comprar livros em segunda mão é um exercício virtuoso, um modo de reciclar o papel, sem desfigurar o objecto que o usa. Em tempos, comprei, num desses leilões de livros que ocorrem nas redes sociais, uma Histoire du Roman Moderne, de R. M. Albérès, publicada em 1962, pelas Éditions Albin Michel. O anterior proprietário, suponho que português, cuidaria com esmero dos seus livros, pois a obra está encadernada, mas com cuidado de manter, no interior da encadernação, as capas originais. Estava a folheá-lo e deparei-me com um folheto, que presumi ser da mesma idade do livro. Publicitava o Méthode A.B.C. Este serviria para pôr um pobre mortal a desenhar e a pintar de um dia para o outro: Apprenez aujourd’hui à dessiner et à peindre par la Méthode A.B.C. Pena que não existisse em Portugal, escusava eu de passar pela humilhação de ser o pior aluno do colégio em Desenho, título que não foi confirmado em exame nacional, esclareça-se. Chego sempre tarde a tudo o que é essencial. O folheto tem inclusive alguns testemunhos que comprovam a eficácia do método, um cavalheiro de Seine-et-Oise, outro da zona de Charente-Maritime, uma menina – Mademoiselle – belga e, de Saumames-de-Vaucluse, outro cavalheiro, mas de nome português. Não consta que tenha ficado na história da pintura, apesar de se ter dado conta desde a primeira lição de reais progressos. Guardo o folheto dentro do livro, este na prateleira e olho a noite pura maculada pela iluminação pública e as luzes melancólicos do hospital. A sexta-feira declina.

domingo, 26 de setembro de 2021

Inutilidades e aparências

O último post, neste blogue, foi publicado exactamente há duas semanas. Têm sido umas ricas férias. Não férias efectivas, mas um descanso de vir aqui todos os dias debitar inutilidades. Ora, quem tem propensão para o inútil, e esse é o meu caso, pouco consegue resistir a tentação de o cultivar. Terá o mundo mudado durante estas duas semanas? Eis uma questão completamente inútil. Claro que mudou e ainda mais claro que tudo continua na mesma. Andamos neste impasse há mais de dois milénios e meio, e ainda não encontrámos maneira ou modo de resolver a pendência entre o eleata Parménides e o efésio Heraclito. O melhor é venerar os dois, o que dará a aparência de erudição e ostentará um gosto pelo paradoxo. Importante é manter as aparências, pois não se sabe se sob elas existe alguma coisa. Há aquela história de o rei ir nu, embora toda a gente o visse com as mais belas roupas. Seria mais dramático, porém, se toda a gente comentasse a roupa do rei, depois outros afirmassem que ele ia nu, mas na verdade não existisse qualquer rei, vestido ou nu, nem outra pessoa, animal, planta ou coisa. Conclusão: mantenham-se as aparências pois são as únicas que sabemos existirem. Há no pavilhão da escola ali ao lado uma grande azáfama. Convocados às urnas, os eleitores para lá se dirigem para cumprirem o seu dever cívico. Também, não tarda, o irei fazer, embora a viagem não seja longa, pois, sentado na minha secretária, só não vejo as mesas de voto devido à existência de paredes exteriores no pavilhão. O mundo há-de conter sempre alguma imperfeição.

domingo, 12 de setembro de 2021

Viajar

À maneira de Xavier de Maistre – isto é, sem sair de casa, ora sentado no escritório, ora recostado na cama – continuo a descer o Danúbio na companhia de Claudio Magris. Tenho estado em Viena. A última visita, por volta das sete da manhã, foi ao complexo de habitação social denominado Karl-Marx-Hof, concebido pelo arquitecto Karl Ehn e inaugurado em 1930. Não é apenas o estilo arquitectónico – Arte Déco – que espanta, mas o facto de os 1382 apartamentos destinados a famílias da classe operária terem, desde a origem, a sua casa de banho privada, pelo menos foi isso que espantou não Claudio Magris, mas o autor da entrada em língua portuguesa da Wikipedia referente ao complexo. A minha leitura da obra de Magris segue por caminhos muito tortuosos, que têm o condão de desperdiçar muito do que está escrito. Uma leitura virtuosa seria fazer a viagem narrada no livro, acompanhando-a passo a passo, o que permitiria registar com precisão aquilo que o tempo fez aos espaços visitados e descritos pelo escritor triestino. Passados 35 anos da publicação da obra, alguma coisa há-de ter mudado. Talvez isso desse um novo livro. Para aqueles que não têm possibilidade de fazer a viagem com vagar que ela exige ou que não gostam de viajar, a leitura deveria ser feita com um acesso permanente à internet, para ir se consultando tudo o que o escritor refere. No fim, ter-se-ia compilado uma pequena enciclopédia. O que me vale é que não sou lá muito virtuoso e, ainda por cima, intercalo essa leitura com outras, num exercício de infidelidade contumaz. Ao mesmo tempo penetro na vida das personagens de O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis, e no coração inquieto de Delphine, protagonista do romance epistolar homónimo, de Germaine de Stäel-Holstein, mais conhecida como Madame de Stäel. Um dia destes, talvez, fale sobre esses livros, caso não me esqueça ou esteja para aí virado. Hoje é domingo, dia de almoço tardio, mas que não será de pleno descanso. Há uma série de coisas a fazer, para tranquilizar a realidade e mostrar-lhe que a sirvo com dedicação. Aparente, mas não há outra essência senão a aparência. Cultivemo-la.

sábado, 11 de setembro de 2021

Descontinuações

Por aqui, o calor voltou, veio menos dramático, mais dado à fleuma, do que antes. A luz solar está mais amarelada, como se o Sol fosse um enorme vegetal cujas folhas começam a apresentar sinais de maturidade. Tive de ir às compras e estou decepcionado com a longa ausência das prateleiras de um certo chocolate que combina o cacau e o piripiri. Omito a marca, na verdade havia por aqui duas marcas, uma nacional e outra estrangeira, que tinham essa combinação no catálogo. Talvez o tenham descontinuado, coisa que, nos tempos que correm, acontece muito. Ninguém deixa de fabricar seja o que for, apenas descontinuam o produto. Assim, os seres vivos que morrem não morrem, são descontinuados pela vida. Este tipo de linguagem irrita-me. Os trabalhadores foram descontinuados. Agora só existem colaboradores. Noutros tempos existiam colaboracionistas, mas sobre isso omito o comentário. Também há palavras que me irritam. A mais recente é resiliência. Estou cansado de tanta gente resiliente que desaba ao primeiro choque com a realidade. A espécie humana tem uma inclinação natural para o fetichismo e nunca perde a oportunidade de transformar uma pobre palavra, que não passa de uma curta emissão de ondas sonoras, um flato vocálico, num fetiche. Estou convencido de que se os seres humanos se contivessem na emissão de palavras, os gases com efeito de estuda poderiam diminuir na atmosfera. Como tenho dito, sou dado à hipérbole, embora me falhe a ironia. Para isso teria de ser inteligente. Ora, não é esse o caso. Que saudades do chocolate negro com chili. A vida está sempre a descontinuar-se. É pena que não descontinuem a resiliência.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Louvor da ignorância

A vida é feita de coisas muito variadas, entre elas a própria morte. Hoje morreu um antigo Presidente da República. O que não se sabe é se não terá nascido outro, aquele que o futuro espera para ocupar o cargo. A incapacidade humana para saber o futuro é o que permite uma vida suportável. Se o que há-de vir fosse acessível, a existência dos homens tornar-se-ia um inferno. Viveríamos como condenados à morte à espera do dia da execução. A ignorância salva-nos e abre a possibilidade de uma vida aprazível. Talvez aqueles que se empenham em predizer o futuro sejam verdadeiros amantes do inferno. Vale-nos o porvir ser um animal esquivo, um bicho que se furta a armadilhas e capturas. Sobre o Presidente morto não falo, pois, enquanto narrador, estou proibido pelo autor. Ele lá terá as suas ideias políticas, mas criou-me destituído delas. Posso falar, todavia, da ignorância. A partir de certa altura da história da humanidade, a ignorância foi vista um dos piores males que afligiam a nossa pobre espécie. Esta é uma visão unilateral. Como em tudo, também na ignorância há um bem. Todos seriam mais felizes se ignorassem certas coisas. Viver inocentemente no desconhecimento de certos factos pode ajudar não só a uma vida melhor como mais longa. O excesso de informação inútil é um produto tóxico e, como se sabe, as toxinas não fazem bem ao frágil organismo que, devido a um terrível esquecimento de Epimeteu, nos calhou em sorte.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Transposições

Fui pôr o carro a lavar. O pobre coitado tinha poeira acumulada de várias eras geológicas. Tenho uma relação meramente instrumental com os carros e não lhes dedico mais que o cuidado estritamente necessário. Se na adolescência automóveis e o automobilismo me fascinavam, a realidade agora é bem outra. Seja como for, é preciso que aquela coisa tenha uma apresentação mínima. Enquanto ele era aspirado, mangueirado, ensaboado e colocado numa máquina de tortura, aproveitei para dar um salto a uma FNAC. A ficção científica é um tipo de literatura que, ao contrário, do romance policial, nunca me atraiu. Tendo visto ontem o filme Solaris, do realizador russo Andrei Tarkovsky, decidi comprar o romance que lhe deu origem, do polaco Stanislaw Lem. Consta que este é um génio literário. Tenho medo, porém, de achar que o livro não está à altura do filme. Apesar de romance e cinema serem ambos géneros ficcionais narrativos, não é fácil a transposição de um lado para o outro. Alguns casos, porém, o filme pode ser muito melhor que a obra romanesca que lhe deu origem. Além disso, eu tenho uma visão enviesada. Tarkovsky faz parte do meu top três de realizadores de cinema, para usar uma metáfora desportiva. Os outros são o japonês Akira Kurosawa e o sueco Ingmar Bergman. Como diria alguém que eu conheço, só gente chata. Não é, mas se forem, então estão adequados à minha natureza. Também eu sou um chato. O carro saiu muito lavado, mas, mal chegou à rua, desabou-lhe o céu em cima. Vou ler o romance do Lem. Quando acabar, talvez compre a adaptação cinematográfica feita, em 2002, por Steven Soderbergh, esse mesmo que realizou Sexo, Mentiras e Vídeo.

domingo, 29 de agosto de 2021

Sinais da realidade

Um sinal. Ao vestir-me, hoje, coloquei o relógio no pulso, coisa que já não fazia há semanas. Isto significa que a realidade está a chegar. Não tarda e bate à porta. Entrará sem ser convidada, coisa que é nela, realidade, um vício. Todos os seres humanos são dados à fantasia, mesmo aqueles que se pretendem realistas – seja isso o que for – e pragmáticos. Cada um fantasia conforme pode. Antes de a ficção ser um tipo de literatura, era uma forma de estar no mundo. Significa originalmente o acto de fingir, simulação. Simular e fingir é o que todos fazemos no mundo. Contudo, a realidade não se conforma com a nossa disposição para o devaneio e a mascarada, e, apesar de algumas tréguas, está sempre em pé de guerra para se nos impor. Se há coisa difícil de captar literariamente, essa coisa é a realidade. Claudio Magris na sua viagem pelo Danúbio, passa por Mauthausen, um campo de concentração nazi. Escreve: A literatura e a poesia nunca conseguiram representar de maneira adequada este horror; até as melhores páginas empalidecem perante o documento nu desta realidade, que ultrapassa qualquer imaginação. Podemos pensar que esses lugares de morte e de horror são o sítio em que a realidade se mostra naquilo que é. A fantasia e o trabalho da imaginação, no qual se deverá incluir o da razão, são protecções que utilizamos perante essa monarquia negra onde reina, inviolada e inviolável, a morte. Seja como for, Agosto ainda não acabou, e hoje é domingo.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Uma narrativa engraçada

Como o leitor, também este pobre narrador não fazia a mínima ideia de quem era Henri Falk. Uma navegação em águas calmas por sites que fornecem ebooks gratuitos e livres de direitos de autor conduziu-me, por acaso, a esse nome e a um romance com o sugestivo título de L’Âge de Plomb (A Idade de Chumbo). Fiz uma pesquisa sobre o senhor e recebo a informação de que ele era escritor, dramaturgo, cenarista, compositor, libretista. Em resumo, alguém que esteve na literatura, mas que não há já quem o conheça. Um escritor de terceira linha. O interessante haver ainda quem, fazendo um trabalho pro bono, lhe republique os livros em edição digital. A ele e a muitos outros como ele. Em Portugal, este tipo de editores simpáticos, benévolos e generosos, quando os há, concentram-se apenas nos grandes nomes da literatura nacional. Esses que se encontram em qualquer lado. O interessante seria publicar todos aqueles escritores que o tempo tornou esquecidos. São muito mais do que se imagina. Voltando a L’Âge de Plomb, o que pode ter ela de interessante para um leitor actual, uma obra secundária escrita em 1919? A pandemia. Imagine-se que o governador militar francês do Gabão descobre que caiu todo o pêlo ao cão. Depois, o pobre do papagaio perde as penas. A seguir, a mulher do senhor governador militar fica sem cabelo e o próprio governador vê a barba ir-se. Num ápice, todos os homens e animais da África Equatorial perdem pêlos e cabelos. A estranha doença não fica por aqui. Atinge os Estados Unidos e a Europa. O belo e dourado mundo onde se vivia entra em colapso. Daí, a queda da idade de ouro na idade de chumbo. Reproduzo o último período da apresentação do livro feita pelos editores: À l’ère du coronavirus, ce récit visionnaire et cocasse, malgré son cadre démodé, apporte une touche d’humour bienvenue. Um humor bem-vindo. É o que se precisa, agora que Agosto se aproxima do fim.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Aforismos, sentenças e escólios

Ontem descobri um autor colombiano que me parece particularmente interessante, apesar de tudo. Nicolás Gómez Dávila (1913-1994). O apesar de tudo refere-se ao facto dele não ser propriamente um adepto da democracia e baptizar-se a si mesmo como um reaccionário. Digo isto não porque ache que fosse melhor que ele se classificasse como revolucionário ou liberal, mas porque estas classificações são, mal se começa a esgaravatar nelas, equívocas e funcionam como um véu para ocultar o que é mais interessante. Ele escreveu apenas pequenos textos e aforismos, isto é, pequenas sentenças. Por norma, são verrumantes e luminosas, mesmo se se discorda delas. Por exemplo, relativamente aos homens da modernidade afirma: O moderno não tem vida interior: apenas conflitos internos. Sobre o gosto e aquela ideia, muito em voga, que o gosto é uma coisa relativa, diz: A relatividade do gosto é desculpa que adoptam as épocas que têm mau-gosto. Tem, o colombiano, também grande perspicácia psicológica: Nem sempre distinguimos o que fere a nossa delicadeza do que irrita a nossa inveja. Um escólio – é assim que o autor chama aos seus aforismos – trouxe-me à recordação toda uma literatura erótica que vai do Marquês de Sade até Henry Miller. Diz Gómez Dávila: O escritor moderno olvida que só a alusão aos gestos do amor capta a sua essência. A textualidade explícita falha sempre o erotismo, mesmo que isso estimule os apetites. A linguagem alusiva no domínio do erótico não é um tributo a uma moralidade que reprime e ou condena a sexualidade. O erótico vive naquele espaço que uma alusão abre. É sempre do domínio do não-dito. A linguagem explícita de Sade ou de Miller é uma revolta contra o interdito. A linguagem alusiva do Eros está para além do permitido e do proibido. Ela abre uma outra dimensão da experiência humana, pois o amor – mesmo o apenas carnal, para usar uma palavra caída em desuso – coloca os seres humanos para além daquilo que é a sua quotidianidade e as regras morais que a regulam. Coloca-os num outro nível do ser. Está a ser penoso chegar ao fim de Agosto, como se pode ver pelos textos dos últimos dias.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O enigma da beleza

De um livro de Eugénio de Andrade caiu uma factura. Datada de um tempo que parece pertencer a uma era já muito distante, 25 de Junho de 2019. Nesses dias, ninguém imaginaria o que estaria para acontecer, como tudo haveria de mudar, e mal passaram dois anos. Nesse dia, comprei dois livros cujos títulos são um exemplo exímio do uso da aliteração. Um, Os Lugares do Lume; o outro, Os Sulcos da Sede. Cada título é, por si só, um poema intenso e poderoso. É isto que faz os grandes poetas. Os livros pertencem a uma edição das obras de Eugénio de Andrade, da Assírio & Alvim. São, todos eles, belíssimas edições. As capas, com desenhos de Ilda David, possuem uma extraordinária beleza. Adequam-se completamente à poesia de Andrade. A partir do início do século XX, a beleza deixou de interessar a generalidade dos grandes artistas, deixou de ser uma condição necessária para que uma obra seja classificada como obra de arte. Passado o fervor vanguardista e experimentalista, fica uma nostalgia pelo tempo em que a beleza tinha um papel central na arte. Será possível recuperá-la? Como o bem e a própria verdade, a beleza tornou-se enigmática, tão enigmática quanto o sorriso da Gioconda. No mundo pré-moderno, pensava-se que Deus era sumamente belo, bom e verdadeiro. A proclamação da morte de Deus, por Nietzsche, retirou o fundamento onde a beleza, a bondade e a verdade se escoravam. Daí, terem-se tornado enigmáticas. As férias ainda não acabaram e deveria ter cuidado em não deixar derivar estes textos para assuntos marcados por um rosto sério. Mais valia que falasse sobre a factura, aliás fatura simplificada original, completamente adequada a um mundo onde a simplicidade foi substituída pela simplificação.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Tempo de leviandades

Estes são dias propícios a coisas levianas. Vi os vários filmes de Les Enquêtes du Commissaire Laviolette. Uma novidade para mim. Li uma aventura de Arsène Lupin e, agora, mergulhei não nas águas do oceano, mas num policial cujo protagonista é o detective privado Nero Wolfe, alguém que raramente sai de casa, apesar de trocar todos os anos de carro, tem um cozinheiro particular, pois é um exigente gourmet, e possui uma estufa onde dedica várias horas do dia ao cultivo de orquídeas. Há décadas que não lia nenhuma aventura deste extraordinário detective, que resolve tudo com o poder da mente. Aliás, parte substancial da literatura policial parece um anúncio àqueles livros que prometem, a quem os compre, desenvolver-lhe as capacidades cerebrais, o poder da mente. Eu, confesso sem vergonha, bem precisava desenvolver o poder da minha, ela que anda pelas ruas da amargura e só se entretém, ou quase, com coisas leves. Para me distrair desta leviandade, vou revendo uns filmes do Bergman. Ontem, vi mesmo um que nunca tinha visto, Musik i mörker (Música en la Oscuridad, na versão legendada em espanhol). É uma película de 1948, da fase inicial do realizador sueco. Começa com uma tragédia e acaba em bem, como num conto de fadas. É uma tragédia ao contrário. Quanto às leituras sérias, se é que eu tenho leituras sérias, entretenho-me com um autor do século XVII, Sir Robert Filmer, e o seu PatriarchA Defence Of The Natural Power of Kings Against The Unnatural Liberty Of The People, isto para fornecer o nome completo da obra. Não sei se isto será uma leitura séria. No século XVII, o nome dos livros esticava-se muito para além do razoável. A obra é uma defesa do absolutismo. Segundo o autor, todos os reis seriam descendentes de Adão e, por isso, seriam os legítimos detentores do poder e estariam, claro, acima de todos os outros homens, que talvez só sejam descendentes de Eva. Estou, porém, impedido pelo autor destes textos, de falar de política. Remeto-me à minha condição de narrador. Só me compete a leviandade.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Economia e romance

Estou sempre a alargar os horizontes, já demasiado vastos, da minha ignorância. Ao ler um artigo no jornal, a minha atenção ficou presa num nome, Alexander Kluge, um realizador e escritor alemão. Não conheço nada dele e se já ouvi alguma vez o seu nome, a memória apagou-o. Descobri que tinham sido editados em Portugal os dois volumes de Crónica dos Sentimentos, por uma editora que desconhecia por completo, a BCF Editores. Curioso e sem nada de urgente para fazer, fui espreitar a filmografia. É enorme. Entre os filmes que me chamaram a atenção, está Nachrichten aus der ideologischen Antike: Marx, Eisenstein, Das Kapital. A Wikipedia, na sua versão brasileira, traduz por Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital. O filme – de que não encontrei nenhuma versão legendada para uma língua acessível – tem uma duração de nove horas e trinta minutos. Parece que Kluge retoma um projecto do realizador soviético Sergei Eisenstein de filmar O Capital, de Marx, a partir da estrutura de Ulisses, de James Joyce. Eu não conheço o filme nem o seu autor, mas este projecto parece-me particularmente interessante. Talvez nele se compreenda que O Capital, essa bíblia sagrada que animou parte do século XX, seja uma ficção. A ideia deveria ser replicada. Por exemplo, filmar A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a partir da estrutura romanesca de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, com a estrutura da trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann Broch, ou mesmo a obra Acção Humana: Um Tratado de Economia, de Ludwig von Mises, com a estrutura de O Processo, de Franz Kafka. Alexander Kluge teria assim descoberto a essência da Economia, uma ardilosa ficção romanesca que, para acentuar o seu carácter ficcional, gosta de se apresentar como ciência, chegando mesmo a lançar mão da Matemática, para que os leitores, ao lerem esses romances, possam cumprir a exigência de Coleridge e suspender a descrença. Hoje é sexta-feira, a semana foi árdua e não me ocorre mais nada para preencher este espaço em branco.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Dia de férias

Hoje é o décimo nono dia do mês de Agosto. A manhã de férias ocupei-a a trabalhar, como se fosse um workaholic vade retro Satana – mas há coisas que têm de ser feitas, decisões a tomar, projectos a ultimar e todas essas coisas necessárias à acção dos homens e que demonstram a inferioridade destes perante os outros animais, que fazem o que têm de fazer sem projectos, deliberações, planos e outras coisas em que a razão prática se desdobara na tentativa de salvar os homens da morte. Não salva. Antes, porém, caminhei durante seis quilómetros, fui ver o mar, os barcos, as gaivotas e os pobres veraneantes mais madrugadores que, coitados, lá têm de cumprir o ritual de se encharcarem em areia, sol e água. Gosto imenso de praias, desde que estejam vazias e não haja calor. O almoço será tarde, como acontece sempre nestes tempos de férias. Chamam-me para a mesa. Tenho de ir abrir o vinho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Viagens

Talvez já tenha falado aqui em Xavier de Maistre, o irmão mais novo de Joseph de Maistre, um encarniçado inimigo da Revolução Francesa e um brilhante teórico da reacção. Lembrei-me dele porque, estando a ler Danúbio, de Claudio Magris, na verdade um livro de viagem – belíssimo – pelos locais que o rio visita. Também Xavier de Maistre fala de viagens. Duas das suas obras têm os seguintes títulos: Voyage autor de ma chambre (1794) e Expédition nocturne autor de ma chambre (1825), este uma sequela do primeiro. Há nestas obras uma ironia relativamente à literatura de viagens, então em voga. Enquanto a viagem pressupõe o abrir do espaço, rasgá-lo, digamos assim, para que o corpo nele se desloque de um ponto para outro, viajar à volta do quarto é uma forma de oclusão. Substitui-se a linha recta pelo círculo. Resta saber qual das duas formas de viagem, aquela que vai de um sítio para outro ou a que se enrola sobre si mesma, é a porta autêntica para o universal. Creio que os viajantes – mesmo aqueles que não são meros turistas e coleccionadores de recordações, mas que fazem da viagem um modo de aprofundamento da sua relação com o mundo – acabam por ser falsos cosmopolitas, presos que ficam à diversidade paroquial por onde passam. Vão do particular para o particular. Aquele que explora até ao fim o particular, esse quarto onde está encerrado e por onde viaja, acaba por descobrir nele o universal, como se cada lugar, assim explorado até ao fim, revelasse nele o segredo do cosmos. Li que Almeida Garrett terá sido influenciado pela Voyage, de Xavier de Maistre, na escrita de Viagens na Minha Terra. Se assim foi, parece-me que o português não terá compreendido o essencial da obra do escritor francês (na verdade, saboiano). Mais próximo disso esteve Alexandre Herculano, não em qualquer dos seus romances, mas quando se exilou em Vale de Lobos, na Póvoa de Santarém.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Coisas de um provinciano em férias

Depois de uma semana em que a principal actividade foi estar sentado e um dos objectos mais requisitados foi o saca-rolhas, a balança teve a amabilidade de me comunicar que o peso não aumentara sequer um grama. Desta experiência concluí que fazer caminhadas engorda e que as virtudes do exercício físico são meramente fantasiosas. O melhor é não levar estas ideias a sério, não porque elas não sejam sérias, mas porque são, como agora se tornou moda dizer, politicamente incorrectas, uma expressão horrível, diga-se. Durante essa quadra de ócio descobri uns policiais que desconhecia. Tratam-se de Les Enquêtes du commissaire Laviolette, da autoria de Pierre Magnan, passados na Haute Provence, França, dos quais se encontram no Youtube adaptações felizes. Por falar em Provence, recordei-me que um dos tópicos que muito animava os professores de Francês, no tempo em que Portugal não se tinha ainda tornado uma nação anglo-saxónica, era a distinção entre province e Provence. Consta que o Reino de França estava dividido em províncias. Numa lista de 1748, são contabilizadas 125, desde a província Agenois – com capital em Agen, a terra das ameixas, aliás excelentes – até à província do Vivarais – com capital em Viviers. Depois veio a Revolução Francesa e zás. Os departamentos, uma divisão mais racional e menos medieva, substituíram as províncias, embora o espírito de província não tenha acabado. Voltando a Modeste Laviolette, o comissário, há que referir que é um bom passatempo, onde transparece um certo odor – caí no poço da sinestesia – a uma França eterna, que já não existirá, a França dos anos sessenta do século passado.

domingo, 15 de agosto de 2021

O tripálio

Pior que um feriado em Agosto, apenas um feriado num domingo de Agosto. Perda sobre perda. Esta dupla perda deveria ser compensada. Poder-se-ia imaginar que no início de cada ano civil, as autoridades, ao olhar para os feriados e a sua distribuição no calendário, proclamavam um certo número de dias como feriados compensatórios. Com eles substituíam aqueles que calhavam ao fim-de-semana e o de Agosto. É certo que vivemos num país em que há sempre uns governantes de ocasião – coisa que são todos os governantes – que fazem uma fronda contra os feriados e apostam em diminuí-los, como se isso fosse um desígnio civilizacional. Se fossem inteligentes, o que será pedir muito, aumentavam-nos ou, pelo menos, seguiam a minha douta sugestão. Quanto mais feriados, mais tempo livre, maior a felicidade geral. Quanto mais felizes as pessoas, maior a capacidade de suportar o tripálio, isto é, o instrumento romano de tortura composto por três paus, e cujo nome, segundo consta, terá dado origem à palavra trabalho. Numa civilização normal, o trabalho é entendido como uma tortura. Na anormalidade em que vivemos, é incensado como o objectivo supremo da existência. Sempre me pareceu que somos, há muito, dirigidos por sádicos ou, em certos casos, por sadomasoquistas. Hoje, porém, é dia de Assunção de Nossa Senhora, o que não é muito propício para deambulações psicanalíticas. Agora que o trabalho é tortura, lá isso é inegável.

sábado, 14 de agosto de 2021

Lógica matrimonial

Hoje é sábado e está calor. Estas duas proposições deixam-se traduzir pela fórmula lógica p Λ q. Para que esta seja verdadeira, é necessário que tanto p como q o sejam. A conectiva Λ significa então um casamento para a vida, um compromisso que exige a verdade dos consortes. Imaginemos, todavia, a seguinte proposição complexa: Hoje é sábado ou está um frio de gelar os neurónios.  Tradução: p V q. Para que esta proposição seja verdadeira, basta apenas que uma das variáveis (p, q) o seja, embora se ambas o forem não haverá problema. Traduzindo, estamos perante um casamento onde não existe reciprocidade. Um dos consortes está comprometido com a verdade, mas o outro nem por isso, umas vezes sim, outras não, sempre pode recorrer a umas mentiras para justificar o atraso com que chega a casa. Todavia, isso não põe em causa o matrimónio. Como se vê a lógica é das coisas mais úteis para compreender a vida humana. Com ela podemos construir toda uma explicação sobre o matrimónio e as relações amorosas. Fundamentalmente, podemos exprimir, num texto preguiçoso escrito num sábado de calor, que o estado de demência já esteve mais longe, embora a demência do mundo esteja ainda mais próxima. Basta olhar para a comunicação social. Antes deambulações atarantadas sobre lógica proposicional. Talvez, mas apenas talvez, um dia destes deambule por outras lógicas. É uma questão de agravamento do estado mental.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Calor e leituras

Estou encantado, tanto quanto é possível com este calor, com Arsène Lupin. Há muito, muito que não o lia. Uma revisitação ao melhor dos tempos de adolescência, uma época lastimável que todos temos de atravessar, uns com mais obstáculos e infelicidade, outros com menos. Só espero não me pôr a reler a Enid Blyton, pois seria o anúncio de uma regressão à infância, ao Pinóquio, não ao texto do florentino Carlo Collodi, mas às adaptações em banda desenhada que se vendiam numa certa mercearia desaparecida há muito. Talvez uma dia fale sobre essa inusitada loja. Divido, porém, a atenção a Arsène Lupin com a leitura de Danúbio, de Claudio Magris. Talvez se possa dizer que é uma viagem sentimental ao longo desse rio que tanto tem marcado a História da Europa central, da Mitteleuropa. Contudo, mais que uma viagem sentimental, estamos perante uma viagem intelectual. Acabei de ler o ponto 12, da primeira parte. A guia de Sigmaringen. Uma viagem à política e à literatura europeia. O marechal colaboracionista Pétain, desconhecido da guia do Castelo de Smgmaringen, onde se refugiou, e, através de um outro colaboracionista, Céline, reflexões sobre Kafka, Pessoa, Hamsun, Neruda, Svevo, Hemingway, etc. Estas reflexões são, todavia, pequenas iluminações que pontuam o caminho. Danúbio não é un roman-fleuve, um romance-rio, mas o romance de um rio, onde este é a personagem central de uma história que, apesar de vivermos na parte mais ocidental da Europa, ainda nos toca. Está calor.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Camaleões, monstros e plágios

Também eles possuem o dom do disfarce. Entregam-se ao mimetismo, como se fossem camaleões, e fazem-se acreditar como dias imensos, marcados pelo vagar, anúncios da eternidade ociosa, isto é, livre das consequências das dentadas na maçã e da expulsão do paraíso. Nunca percebi como se pôde trocar o Jardim do Éden por uma maçã, se fosse por uma laranja, pêssego ou uma toranja (que não havia na altura), ainda compreenderia, mas uma maçã… A realidade, seja como for, é bem mais prosaica. Não há, nos dias de férias, a poesia da mimese do eterno, mas a prosa monótona da passagem implacável das horas, minutos e segundos, tal como acontece no resto do ano. Ontem juntei os três netos. A dada altura, fiz umas cócegas ao mais pequeno e disse-lhe eu sou o monstro das bolachas. Logo uma das netas olhou para mim e repôs as coisas no seu devido lugar: o monstro das bolachas é meu. Como quem diz, se o avô quiser ser monstro para esse que invente outro nome, que a monstruosidade das bolachas será eternamente para mim. Inventar uma nova monstruosidade é a minha tarefa para hoje, aproveitando o disfarce de um dia de férias. Não é fácil a tarefa, pois o monstro das bolachas foi um descarado plágio. Terei de ir consultar uma lista de monstros benévolos usados na infância. Para plagiar, claro.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Deambulações literárias

Há em Campo de Ourique, no Jardim da Parada, uma livraria de que muito gosto, a Ler. Pequena, mas com um bom catálogo, com o ambiente das velhas livrarias lisboetas. Ontem, ao passar por Lisboa, fui lá e resolvi o meu problema de leituras de férias. Tinha-me queixado da falta de uns Maigret. Não resolvi essa falta, mas descobri que a Relógio d’Água está a editar o Arsène Lupin, esse Gentleman Ladrão, a cujas aventuras dediquei num outro século muitas tardes de Verão. Comprei dois, A Agulha Oca e A Condessa de Cagliostro, e tomei a resolução de adquirir os que forem sendo publicados. Talvez nem os releia todos, mas é uma espécie de revisitação a um tempo em que aprendi a gostar da leitura. Foi com uma certa literatura menor, digamos assim, que fui conduzido, quase sem dar por isso, à literatura maior. Dos livros de cowboys (então, superlativamente malvistos), das aventuras da Enid Blyton, passei para os policiais e, de um momento para outro, vi-me a ler Camus, Kafka, Sófocles, Sartre. Claro que também lia os portugueses. Agora, porém, estou mais interessado em Lupin. Só espero que uma qualquer editora se lembre de republicar o Fantômas, outro herói – na verdade, um herói negativo – da adolescência. Bem, esta dedicação à literatura de entretenimento só é verdade em parte. Também comprei ontem Manhã e Noite, do norueguês John Fosse, Rua Katalin, da húngara Magda Szabó, ambos publicados pela Cavalo de Ferro, e, voltando à Relógio d’Água, O Rei João, de William Shakespeare. Este faz parte do «Projecto Shakespeare», em que a Relógio d’Água e o grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) conspiram para uma publicação integral da tradução da obra dramática de Shakespeare. Dir-se-á que há, neste texto, excessiva publicidade. Talvez, mas todas as referências são merecidas. Há que não deixar morrer aqueles que se esforçam pelo que há de melhor.

domingo, 8 de agosto de 2021

Más escolhas

O tempo de férias não é pouco trabalhoso. Não fazer nada exige muito esforço, pois não é sem sacrifício que se domesticam e civilizam os impulsos que nos levam a trabalhar. Exagero, claro. É preciso não esquecer que possuo uma certa propensão para a hipérbole. No entanto, há alguma verdade no exagero. Trouxe comigo um conjunto de livros sérios para ler, para além das pequenas bibliotecas que arrasto nos dois eReaders (um Kindle e um Kobo) e no iPad. Dei comigo, porém, a desgostar-me com as leituras. Coisas demasiado sisudas para tempo de veraneio. O melhor, pensei, seria ler uns policiais, enquanto o tempo passa por mim. O problema é que não trouxe nenhum. Encontrar uma solução exigiu, então, esforço neuronal, a mim que pertenço a um tempo em que a televisão começava às sete da tarde e, para sanidade da população, acabava à meia-noite com o hino nacional, a bandeira a ondular, a que se seguia a mira técnica da RTP, que antecedia o momento em que tudo se desligava e ficava apenas um mar borbulhento cor de cinza acompanhado por um ruído irritante. Ah, havia apenas um canal, que chegava e sobrava. Eu sou desse tempo e é assim que penso, com os dados desse tempo. Por isso foi preciso esforço para encontrar a solução. Não havendo livros, sempre se pode recorrer ao Youtube e ver uns policiais. Comecei com três episódios do Sherlock Holmes. Não é a mesma coisa, eu sei, até porque a interpretação feita na série é um pouco estridente, mesmo para um opiómano. Em vez de ler, posto-me diante do monitor e deixo o patético detective resolver casos que nem ao diabo lembrariam, e ao diabo lembram muitas coisas, como bem se sabe. Seja como for, o que me apetece mesmo é ler um Maigret. Gostava de saber por que razão trouxe as Reflexões sobre a Revolução Francesa, do Edmund Burke, em vez de Maigret e a Morte do Perna-de-Pau ou de Maigret e o Corpo Sem Cabeça. Aliás, Simenon é um grande escritor. Más escolhas, portanto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Bolhas e bolas

Nada em excesso! Este mandamento resumia a ética dos gregos antigos. É de uma sabedoria conspícua, mas isso não é o suficiente para que um mortal o cumpra. Não fora ter-me entregado aos excessos das caminhadas e hoje não teria uma bolha num dos pés. Olho-a e compreendo que muitos são os limites que cercam os pobres seres humanos. Caminhadas suspensas, pomadas, pensos e um cuidado com o que calço, não vá a bolha crescer tanto como certas bolhas imobiliárias que, ao rebentar, têm o condão de lançar a matérias viscosa que as anima sobre uma multidão que, aparvalhada, olha para o céu, para descobrir de onde vem a matéria purulenta que chove sobre cautos e incautos. Há pouco recebi uma fotografia do meu neto. Instalado na areia, entregava-se à volúpia da bola de Berlim. Oiço de imediato, também queremos. Terei de pegar nas netas e ir a um lugar onde as há. Sem creme, sem óleo, ou quase. Eu não sei se também quero. Com a visita à balança no horizonte, sem poder caminhar para gastar calorias, duvido que seja uma boa ideia ceder à gula. Logo verei, até onde vai o meu poder de resistir à tentação. Nada em excesso, lembrei-me, agora.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Dinossauros

Dinossauros. Não me estou a referir aos presidentes de câmara que não podendo eternizar-se no seu município tentam continuar a carreira num outro onde os eleitores lhes achem graça. Aqui não se fala de política. Tratam-se mesmo de dinossauros. Bem, também não é completamente verdade. São réplicas desses terríveis monstros. Para ajudar as minhas netas a passar o dia, fomos visitar o Dinoparque, na Lourinhã. Não fiquei comovido, embora o parque esteja bem organizado. Aquelas figuras terríveis fazem recordar a ideia de que a vida possa ser absurda, um contínuo matar para não morrer, num fluxo de violência de que não se vislumbra nem sentido nem fim. Elas gostaram, uma tirou fotografias a quase todas as réplicas, a outra olhou-as, sobranceira, como se já não tivesse idade para aquele tipo de fantasia. O melhor foi ir almoçar a um bar de praia, olhar para o oceano, conversar sobre isto e sobre aquilo, mas não sobre dinossauros, como se estes já não existissem, nem sequer na memória dos visitantes do parque.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Verão

Estes dias de Verão não passam de uma fantasia. Com uma liberdade aparente, foge-se dos grandes calores e encontra-se refúgio perto do mar, onde as temperaturas nunca se entregam a devaneios hiperbólicos. Aqui, onde há um ditado que diz primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Os dias passam sem inquietação, a não ser a inquietação de que tudo termine e a realidade, essa grande meretriz, volte e crave as suas garras na carne repousada pela estiagem. Ainda não pus um pé na praia e tenho esperança de a evitar tanto quanto possível. É um lugar para o qual não tenho paciência. Não consigo perceber como há quem passe horas e horas ao sol, mas como há muitas outras coisas que não compreendo, tenho de integrar essa incompreensão na incompreensão geral que me foi destinada. Seja como for, gosto de contemplar o mar, desde que o olhar passe por cima dos veraneantes. Trouxe comigo uma pilha de livros. O mais certo é não ler nenhum, pois cada vez mais cultivo a preguiça, o não fazer nada e, se for possível, não pensar em nada. De resto, faço longas caminhadas, onde acumulo pontos cardio, embora não saiba para servem tais pontos. A aplicação que os mede diz que acumular 150 pontos durante uma semana ajuda a prolongar a vida. Parece-me uma afirmação fantasiosa e que jamais poderá ser testada, o que evita ser falsificada. Logo, não científica, segundo Sir Karl Popper. De resto, a pandemia tornou-se um novo modo de aprender o alfabeto grego, o chamado ελληνικό αλφάβητο. Temos uma variante alfa, uma beta, uma gamma e uma delta. Isto, apesar de didáctico, é desesperante. Para chegar ao fim, ao ómega, ainda faltam vinte letras. O mundo está longe da perfeição.

sábado, 31 de julho de 2021

Uma megera

Sábado. Último dia de Julho. Um mau começo. Um conciliábulo com a balança redundou numa inútil humilhação. Depois de uma semana cheia de exercício, caminhadas a ultrapassar a dezena de quilómetros e a megera ainda teve a desfaçatez de me dizer que o peso – o meu, note-se, não o dela – aumentara. Parece pouco, mas duzentos gramas para cima no lugar dos dois mil que esperava para baixo é muito. Na verdade, entre a expectativa e a realidade vão dois mil e duzentos gramas. A realidade nunca me pareceu ser alguém de confiança. O melhor é não desanimar, a vida é feita destas contrariedades. Há várias explicações para o caso. Algumas delas bastante racionais e convincentes. Por exemplo, pode ser um facto que a balança me tenha tomado de ponta e aproveite estes momentos semanais para se desforrar de alguma insídia que eu lhe tenha armado. Outra probabilidade, não menos razoável, é ser o exercício físico a causa do aumento de peso. Quanto mais se caminha, mais se engorda. Uma terceira possibilidade, tão sensata quanto as anteriores, é a chamada hipótese astrológica. Uma conjugação astral adversa coincidiu com o momento em que coloquei os pés em cima da balança e foi o que se viu. É o que se chama acabar mal o mês e preparar-me para entrar em Agosto com o pé esquerdo, ainda por cima mais pesado. Sempre posso dizer que está inchado, que preciso de beber mais líquidos. Uma voz retine dentro de mim. Mais líquidos, sim, mas não daqueles que tens bebido. Escuto perplexo o acinte da voz e decido que tenho de me levantar e ir escolher os vinhos para o almoço tardio deste sábado.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Moscas

O tempo quente tem vários, e não pequenos, inconvenientes. Um deles é o acordar das moscas. Por certo que tudo o que existe terá o seu lugar e o seu papel. Facilmente se pode aceitar que as moscas tenham um lugar. Por norma, esse lugar coincide com aquele em que estou. Depois, dá-se o estranho caso de quanto mais elas se sentem atraídas por mim, mais eu as detesto. Com exclusão das melgas, não conheço outro ser que por mim mais se sinta atraído do que a mosca. Pergunto-me, nos dias quentes de Verão, que papel foi reservado na criação a esses miseráveis insectos. Por mais que procure, não lhes encontro nenhum, a não ser irritarem-me. Elas cumprem com afinco a função que o Criador lhes deu. Com o progredir do Verão uma pessoa fica sem assunto. Resta-lhe falar em moscas. Um dia destes, farei uma entrada sobre melgas, as quais ainda me irritam mais e mais profundamente que as moscas. A minha cultura é pobre, caso não o fosse conheceria a poesia que louvaria as moscas. Não conheço. O meu desconhecimento, porém, não é prova de que não exista.

domingo, 25 de julho de 2021

Do sofrível

Ontem acabei o texto com a palavra sofrível. A primeira vez que me lembro dela foi num certo colégio por onde andei a seguir à quarta classe. Fazia parte de uma estranha escala de classificação. Situava-se acima do medíocre e abaixo do suficiente. Imagino que o sistema classificativo do colégio estivesse já desadequado, mas talvez seja apenas eu que sou muito mais velho do que gosto de admitir. Não consigo imaginar as razões que terão levado alguém a transformar um adjectivo que diz que algo se pode suportar ou sofrer num nome que refere um certo desempenho escolar. Seja como for, os professores daquele tempo tinham uma escala mais ampla para classificar as provas e, quando estavam cansados desta, juntavam-lhe mais e menos. Os alunos, então, tinham suficiente menos que não se confundiria com sofrível mais, como o bom menos não era em nada idêntico ao suficiente mais. Tive uma professora de Físico-Química que se entretinha a distribuir medíocres e maus com vários menos e mais à frente, numa escala cujos arcanos só ela conheceria. Desconfio que, naqueles dias, a profissão de professor era muito entediante e havia que passar o tempo a inventar estes jogos classificativos. O lamentável de tudo isto é que a palavra quase caiu em desuso. Ninguém diz mas que filme sofrível ou aquele é um poeta sofrível, embora eu possa dizer que a minha inspiração está sofrível ou talvez mesmo medíocre, com um mais à frente.

sábado, 24 de julho de 2021

Do terrível

Todo o anjo é terrível. Assim começa a segunda Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tantas vezes dei comigo a pensar sobre essa estranha sentença, não sobre a sua verdade, mas a perguntar-me se ela não é uma pista para decifrar o enigma daquilo que nos aterra, o mistério do terror. Sempre que algo de terrível assombra os homens talvez seja a obra de um anjo ou de uma legião deles, mesmo se nós nos convencemos que o excesso de iniquidade ou de prazer seja o fruto do arbítrio humano. Pensar sobre os anjos não será o mais indicado para uma tarde soalheira de um sábado de Julho, com o mar tão perto. Encerro os pensamentos na gaveta do armário onde guardo as toalhas de praia e os calções de banho, e espero que também esses pensamentos adormeçam e deixem de me assediar aos sábados à tarde. Ponho de lado o poeta e deixo-me cativar pelas longas conversas com que os pássaros, mesmo ao pé da janela, ajustam os negócios da sua vida. Tenho de me aprontar, parece que alguém se esqueceu de comprar gengibre. Sem ele, o jantar estará ameaçado, ou talvez ninguém desse por isso, pois um anjo terrível se haveria de dispor a embotar o gosto dos comensais e, como um certo génio maligno que atormentou o pobre René, haveria de fazer parecer óptimo aquilo que apenas era sofrível.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Encontros

Num bar da praia a que vou, nas raríssimas vezes que me disponho a ir a tal lugar, quem haveria eu de encontrar? É verdade que na ilha adjacente os jesuítas possuem uma casa de veraneio e não é a primeira vez que por ali encontro o padre Lodovico Settembrini. Venho contemplar o oceano, disse-me. Aliás, é o que sempre me diz quando o encontro por aqueles sítios. Não estava, porém, a olhar para o mar, mas lia um jornal enquanto bebia café. Faço-lhe o reparo, mas ele não desarma. A contemplação é da janela do meu quarto. Dali, vejo o mar como ele é. Largo, profundo, de um azul ao mesmo tempo celestial e tenebroso. Daqui, vejo as ondas sobre a areia e uma ou outra rapariga em biquíni. Suspendeu o discurso e deu uma gargalhada. Eu sei, eu sei, continuou, que já não tenho idade para estas visões, mas elas metem-se mesmo diante dos olhos e eu ainda não sou cego. Não imaginei, respondi-lhe, que o problema fosse a idade, mas a condição. Olhou-me com despropositada ironia e retorquiu: a condição sacerdotal não elimina a condição de ser homem. Às vezes, nem dá um modo de lidar com essa particularidade, mas, afirmou como se me quisesse tranquilizar, o meu olhar é inocente. Com o tempo consegui chegar ao estado de inocência. Depois, mudou de conversa e disse-me que o Hans Castorp chegará amanhã com a mulher. Vêm da Galiza, de casa da família dela, Emilia Bázan. Podemos ir jantar todos à Brasserie, aqui perto, sugeriu. Eu disse-lhe que era uma excelente ideia, mas havia que ter em conta se o concelho vizinho não estaria sob o efeito de medidas restritivas por causa da pandemia. Seja como for, acrescentei, trato do assunto. Na praia, havia apenas os alunos das escolas de surf. Para eles não há bom nem mau tempo. O mais nublado dos dias é ainda óptimo para cavalgar as ondas. Terei também de comprar uma prancha para a minha neta mais velha, disse para mim mesmo.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Tributos

Aqui perto alguém ouve rádio. Há palavras que não decifro e uma música que reconheço como inimiga dos meus ouvidos. Presumo que seja alguém da minha geração, embora eu não pertença à minha geração. Não é que me julgue acima dela, pelo contrário. Sou anacrónico e nunca consegui acompanhar o ritmo das coisas que fizeram a moda no tempo em que as pessoas ligavam à moda. Há dias, numa daquelas reuniões online em que a vida se tornou fértil, um dos participantes, músico nas horas vagas, disse que o seu grupo ia actuar, não consegui perceber onde, e prestar tributo a um outro grupo inglês, famoso naqueles dias em que se é novo e se deveria prestar atenção a essas coisas. Um frémito perpassou pela assistência virtual, desejosa também de tributação. Fiquei com pena de mim, pois não senti qualquer frémito, nem vontade de qualquer tributo. Para tributo, já bastam os impostos, diria eu, caso fosse um liberal, mas não sou. Como narrador, estou proibido pelo autor de ter qualquer ideia política, o que talvez seja uma vantagem. Acabei uma das tarefas que a realidade me impôs e tenho uma enorme vontade de ir dormir uma boa sesta. Talvez não seja uma má ideia.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Língua morta

Pensava que iria fazer uma longa viagem de uns dezasseis ou dezassete graus, mas afinal ficou-se por uns míseros nove. Julho, sem piedade, abre o véu para que o Sol, na sua inquietação, dardeje a Terra. O resultado é, muitas vezes, devastador. Já era tempo de o astro se tornar grego, cultivar a justa medida e fazer sua a máxima nada em excesso. Talvez por tudo isso tenho na mão um livro com uma belíssima capa, em tons de azul, feita a partir de uma imagem de Pieter Bruegel. Descubro que a tiragem foi de 300 exemplares e que a editora tem o sugestivo nome de Língua Morta. O que tem tudo isso a ver com o calor? Talvez nada, mas o título do livro é Canícula, o que dá nome um nome tórrido a um conjunto de poemas de Daniel Jonas. De uma outra imagem do mesmo Pieter Bruegel fez-se, mais uma vez, capa de livro, também de poesia, Spinalonga, de Amândio Reis. Enquanto escrevo isto, oiço múltiplas comunicações sobre assuntos tão tolos quanto inverosímeis, que hão-de servir para coisa nenhuma. É um prazer viver num país onde a maior parte das coisas que se fazem não servem para nada, embora sejam absolutamente necessárias. Sem elas, talvez o mundo acabasse. Seja como for, espanta-me sempre a grande capacidade que os portugueses têm de adaptar-se a cada novilíngua orwelliana que surge. Gostamos muito de falar e não tememos nunca a falta de assunto. Mais logo terei de fazer uma caminhada. Grande, de preferência, pois preciso de acumular pontos cardio, seja lá isso o que for. O que me apetece, todavia, é uma bela soneca. Na verdade, usamos a língua como fosse uma língua morta.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Fastio

Tudo isto se tornou muito monótono. Olha-se para um jornal ou para um noticiário na televisão, e parece que a realidade flutua entre o judicial e o patológico. A pergunta sacramental de quem se dispõe a ver notícias é quem foi hoje preso ou condenado? Quando as coisas não começam por aí iniciam-se com a pandemia. Os casos aumentam, também os internados e aqueles que estão em cuidados intensivos. Há muito que julgo ser a realidade uma coisa perversa. Há que ser mais preciso. Ela é perversa e muito fastidiosa. Dizia-se, não sei se ainda se diz, que uma pessoa sem vontade de comer tinha fastio. Eu, em criança, sofria imenso de fastio. Depois, vá lá saber-se a razão, passou. Hélas! Daqui a pouco terei de sair de onde estou, um lugar de temperaturas amenas, para regressar à antecâmara do inferno. Vou fazer uma viagem de 10 graus. Na sexta-feira, estarão 40. Por antecipação, sinto já os meus velhos neurónios a derreter. Se com eles arrefecidos aquilo que escrevo é o que é, o que será quando mergulharem nesse braseiro, prova das alterações climáticas?

domingo, 11 de julho de 2021

Cheirar a esquecimento

Um poeta romeno escreve os seguintes versos Die Schöne Müllerin / entra no quarto / cheirando a esquecimento. A primeira reacção é ouvir esse ciclo de canções de Schubert. Envolto pela música posso deter-me noutra paragem. Esta é equívoca. Não é claro quem ou o quê cheira a esquecimento. A bela moleira? O quarto? Inclino-me para o quarto. Se a moleira é bela, por que razão haveria de cheirar a esquecimento. Duvido que uma mulher bela, mesmo se moleira, possa transportar consigo o aroma do oblívio. Não lhe seria permitido. Resta o quarto. Quem nunca entrou num quarto que cheirava a esquecimento, como se a vida que nele existiu tivesse acabado há muito? Tudo parece composto, a cama feita, os móveis arrumados, mas tudo isso aconteceu noutra era. Quem viveu nesse quarto há muito que terá perdido a memória dele e quando alguém ali entra, é recebido pelo odor do abandono. Hoje é domingo. Aos domingos, almoço sempre mais tarde e tenho uma certa inclinação para escrever disparates. Temos de passar o tempo de alguma maneira. Fischer-Dieskau continua a cantar em Paris, nesse longínquo ano de 1991, o ciclo Die Schöne Müllerin. Há coisas que resistem ao esquecimento ou que levam mais tempo a serem esquecidas.

sábado, 10 de julho de 2021

Um sábado de Julho

Devia estar num sítio para onde se anunciam 38 graus. Literalmente, pus-me ao fresco, tão fresco que nem aos 23 chegará. De manhã, um dos sites que me informa sobre os devaneios do clima dizia-me que aqui estavam 17 graus, mas a temperatura sentida era apenas de 13. Com isso confirmei a velha tese do senhor Cartesius. Os sentidos enganam-nos. Sente-se uma coisa e está outra. Tinha pensado comprar hoje um daqueles jornais de fim-de-semana. Há muito que deixei de ler a imprensa em papel. Tinha visto, todavia, um artigo que queria ler. De manhã, quando fui à rua, esqueci-me de comprar o jornal. Talvez para compensar, também me esqueci qual era o artigo e nada me garante que, comprado o jornal, me consiga recordar. Em contrapartida não me esqueci de adquirir um belo Alvarinho. Estou certo que valerá mil artigos de jornal. Não sou um cultor de vinhos brancos, nem de verdes. O Alvarinho é excepção. Só dois concelhos constituem a região do Alvarinho, Melgaço e Monção. Saiu-lhes a sorte grande. Também em Espanha, do outro lado do rio, há uma zona de Albariños. Não é por propensão patriótica, mas prefiro os de cá. Os galegos, por certo, preferirão os deles, que, diga-se, são bons, mas não falam português. E não vale a pena virem com a história do galaico-português.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Um padre contaminado

Fui contagiado pelo Papa, ouvi. O Papa tem alguma doença contagiosa, apanhou COVID, perguntei, e acrescentei, de imediato, que não sabia que tinha estado com Sua Santidade. Nesse momento o padre Lodo deu uma enorme gargalhada. Não sou digno, afirmou, de ser por ele recebido. O contágio é outro, a bola. Franzi o sobrolho e disparei para o telemóvel, a bola, mas qual bola? O futebol, o campeonato da Europa. O Papa é adepto de um clube argentino e eu, que nunca na vida liguei ao futebol, estou em transe devido à final do campeonato da Europa. Sempre sou italiano, é preciso não esquecer, embora eu quase me esqueça todos os dias. Sou de uma família iluminista, mas que deu à luz um jesuíta. A minha vontade foi sublinhar que cada um terá os vícios que entender, mas contive-me. O pior é que o padre Lodo está mesmo entusiasmado. Sabe, inclusive, o nome dos jogadores italianos e até de alguns ingleses. Nunca imaginei, foi preciso chegar a velho, continuou, para olhar para a bola. Depois riu-se. Talvez Deus me perdoe este entusiasmo, mas a minha idade terá de me dar algumas prerrogativas, e gostar de futebol talvez seja um pecado, mas apenas venial, acrescentou. Quando nos despedimos, perguntou-me se não lhe desejava boa sorte para a final. Claro que desejo, sempre são latinos e os bárbaros da ilha não sabem o que é cultivar a vinha. Ele riu-se.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Palavras sem significado

Há palavras que não querem dizer nada. Julgo que foi Roland Barthes, mas o tempo corroeu a certeza, que chamou a atenção para a não significação do adjectivo agradável. Dizer que um romance ou um concerto são agradáveis não diz nada sobre eles. É uma forma de não dizer aquilo que se sente ou pensa, para evitar um inútil conflito. Há pouco li, num comentário a uma peça musical, outra expressão que não quer dizer nada. Uma música inspiradora. No entanto, quem a escreveu tem a inocência que o presumível Barthes não tinha. O comentarista julga mesmo que é um elogio fazer notar que a música é inspiradora, pois nada tem a dizer sobre ela e encontrou ali um refúgio para a sua necessidade de exprimir uma opinião. Deveria haver um dicionário de palavras que não querem dizer nada. Seria de grande utilidade para a educação da urbanidade das pessoas. Existe quem julgue ser de grande mérito dizer a verdade – isto é, aquilo que acha que é a verdade – e não hesita dizer coisas desagradáveis, sem que isso contribua para uma atmosfera mais saudável. Acaba sempre por se justificar, eu cá não tenho papas na língua. Quem a ouve sente pena pela falta das papas ou pela existência da língua. Educar as pessoas para a urbanidade não é um exercício de cinismo, como se poderá supor. O que cada um acha o que é a verdade e aquilo que esta é são coisas muito diferentes. Se o assunto não for decisivo, optar pela urbanidade e usar uma palavra que não significa nada torna o mundo mais aprazível. Alguém pode dizer que este texto é agradável ou inspirador. Isso não quer dizer nada sobre ele, mas a atmosfera fica menos poluída. É tudo uma questão de poluição. Agora, porém, terei de ir ler um conjunto de coisas que não posso dizer que sejam agradáveis e inspiradoras. 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

No labirinto da saudade

Hoje fui à capital de distrito. O sítio que me esperava tem, há muito, novos caminhos, mais rápidos, para lá chegar, mas como é hábito fui por aqueles que conheço desde a infância. Os outros são para mim meros atalhos disfarçados de ruas modernas e não possuem nada que justifique a passagem por eles. Não será descabido dizer que fui fiel à tradição, a uma tradição pessoal. Pessoas mais objectivas dirão, não sem razão, que sou um conservador. Custa-me ver aquelas pessoas que chegadas a uma idade razoável continuam a depositar uma fé inabalável no futuro. Ora, a única coisa certa que o futuro trará é o facto de não estar cá, de não haver lugar para mim. Nem acho que isso seja um mal ou uma injustiça. É a natureza das coisas, há que aceitá-las no que são e evitar dourar a pílula com expectativas que nunca se poderão comprovar. Se olhar para o passado, constato que muitas coisas mudaram, tornaram-se melhores, muito melhores. Isso não significa, porém, que continue a acontecer. Quanto à fé no futuro, o melhor será suspender o juízo e evitar louvar o que não se conhece nem conhecerá. Seja como for, gosto sempre de ir à capital de distrito. Não é que seja uma cidade esplêndida e cosmopolita, não é, mas, de alguma maneira, faz parte do meu passado. Hoje devo ter acordado com alguma alteração neuronal. Não tarda e dou entrada no labirinto da saudade. O melhor será marcar consulta.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Almotolias e traduções

Talvez ainda existam almotolias, mas por certo os serviços de manutenção dos parques infantis da cidade não as possuem. Caso as possuíssem, já teriam oleado, agora que estamos em pleno Verão, as roldanas dos baloiços. Então, as crianças baloiçar-se-iam sem o ruído opressor do ferro a ranger na fricção com outro ferro, como se a matéria fosse viva e tivesse estados de alma e vontade de chorar. Fora eu compositor e escreveria uma peça, talvez uma peça para violino, piano, fita magnética e roldanas. Como não o sou, o mundo fica poupado ao meu desvario, evitando experiências insanas nascidas numa mente ociosa. Também poderia ser mecânico e ter em casa uma almotolia. Pegaria nela e, pela calada da noite, olearia o ferro para descanso dos ouvidos de quem vive por aqui. Falta-me, porém, o talento para a mecânica, não tenho almotolia, nem para o azeite. Ambas as palavras têm origem árabe – al-motoliiâ e az-zait – como muitas outras. Consta que as línguas têm menos preconceitos rácicos que aqueles que as falam. A tarde avança irrequieta. A tradução de um verso de Eliot deixou-me inquieto. O poeta escreveu The only wisdom we can hope to acquire. O tradutor verteu para O único saber pelo qual podemos ter esperança. Eu traduziria por A única sabedoria que podemos desejar, deixando cair o acquire, pois todo o desejo traz nele o impulso para a aquisição do desejado. Bem, perguntar-se-á, que sabedoria é essa. Eliot responde: Is the wisdom of humility: humility is endless. O tradutor transforma a sabedoria da humildade, que o poeta propõe como um fim em si mesmo, num saber instrumental que serve para poder ter esperança. Com isso perde-se o essencial, a ideia de a humildade não ter fim. Sendo um fim e não um instrumento ela é infinita. Isto, porém, são especulações de quem tem de ocupar espaço com palavras. Amanhã ocorrer-me-á algo mais interessante, assim o espero. Uma criança chora, alguém acelera uma moto e há dias que não vejo anjos nos telhados dos prédios envolventes. Terão ido de férias?

domingo, 4 de julho de 2021

Quartéis e lustros

Um quartel. Quantas pessoas ainda saberão o que é um quartel ou que este contém cinco lustros. Foi precisamente há um quartel que nasceu a ovelha Dolly, o primeiro animal clonado. Isto terá entusiasmado imensa gente e também assustado outra tanta. O susto nasce da possibilidade de se clonarem seres humanos. Não tenho dúvidas que haverá quem, se pudesse, clonava-se. Aliás, encheria o mundo de clones seus. Por mim, dispenso ser clonado. Para desgraça, já basto eu. Por outro lado, ainda continuo a achar mais interessante o velho método de fabricar bebés humanos. Talvez a técnica, um dia, se torne mais precisa e seja mais eficaz produzir seres humanos por manipulação genética, uma espécie de propagação por mergulhia (como me fui eu lembrar de tal coisa?), de que reproduzir segundo a tradição com todo o desgaste de energia e de emoções que o caso ainda exige. Com a idade as pessoas tornam-se conservadoras. Também hoje faz 245 anos, nove quartéis e quatro lustros, que as treze colónias declararam a independência do império britânico, dando origem aos EUA. Talvez haja uma relação entre uma coisa e outra, é possível que os americanos quisessem ser uns clones dos britânicos, independentes e imperiais como eles, mas isto é especulação. Eu gosto muito da América, mas gosto ainda mais de não ser americano, coisa em que não tenho qualquer mérito. Ouvem-se por aqui as sirenes, mas nada disso tem a ver com a clonagem da Dolly nem com o Dia da Independência. É um velho hábito usado por ambulâncias, carros da polícia e de socorros a náufragos.

sábado, 3 de julho de 2021

Trivialidades

O sol, no sítio para onde fugi, nasceu tarde, para dizer a verdade ainda não nasceu por completo. Durante grande parte da manhã manteve-se oculto por uma muralha densa de nuvens e, mesmo agora, só a espaços espreita o que se passa em terra. Caminhei durante seis quilómetros, a maior parte do tempo envolto numa névoa vinda do mar. O farol de um dos molhes não era visível a cem metros e os barcos que saíam do porto e passavam diante dos meus olhos eram apenas esboços, navios-fantasmas, qualquer coisa vinda de um mundo desconhecido. Num poema de Louise Glück leio o verso Um dia seguia-se continuamente a outro. Será legítimo reconhecer como grande poetisa quem escreve um verso tão trivial, perguntará alguém que espera da poesia um festival de fogo-de-artifício. Qualquer dia se segue a outro, numa caminhada contínua, mas será que vemos isso? Será que sentimos até ao fim o enigma que essa trivialidade encerra? Qualquer coisa de inquietante – uma inquietante estranheza, para citar Freud – se insinua na familiaridade aparente do verso. Os sábados, oiço dizer, não se devem gastar com conversa tão soturna. Aquiesço e penso que os sábados se seguem continuamente às sextas-feiras. O sol continua em processo de libertação das nuvens que o escondem. Não tarda e mostrar-se-á exuberante, talvez porque hoje seja mais um sábado que se segue a uma sexta-feira.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Acção paralela

Nos poucos cronistas de jornal que ainda leio conta-se um que deu à sua coluna semanal a designação de Acção Paralela. Não vou aqui contar a história da Acção Paralela, nem tão pouco especular sobre as razões que terão motivado tal escolha pelo colunista. Não o conheço e as suas motivações não me interessam. Digo apenas que é uma citação literária de um dos elementos da trama romanesca de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Não parece, esta informação, particularmente motivante para levar quem nunca leu o exorbitante romance a lê-lo. Bem, há quem pense que não se trata de um romance, mas de um anti-romance, talvez influenciado pela Física que à matéria opôs a antimatéria. Já me estou a perder no que ia dizer. Disse que o romance é exorbitante, pois, apesar de inacabado, ou talvez por isso, tem largas centenas de páginas. Quem gostar de literatura, eis uma obra excelente. Quem gostar de entretenimento, esqueça. Há por aí muitos livros venturosos de autores aventurados. Musil faz parte de um quinteto que abriu o romance à modernidade. Desse grupo constam Kafka, Broch, Joyce e Proust. Isto, todavia, não interessa a ninguém, ainda menos se se está a entrar no fim-de-semana, o qual é uma espécie de acção paralela à semana útil – embora, não se perceba em quê – propriamente dita. Caso eu tivesse talento e propensão para romancista, haveria de escrever um romance com o título Acção Paralela, no qual haveria de ficcionar a minha natureza de narrador sem qualidade. Julho entregou-se ao calor. Talvez este narrador se devesse entregar a uma psicanálise do fogo.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Arremedos

Hoje lá me submeti a um teste à COVID-19. Faz parte da vigilância que com que se pretende trancar a casa roubada. Não é que seja uma provação, nem nada que se pareça, mas já era altura de encontrarem outro método para recolher os indícios do crime. Se não se deve meter os dedos no nariz, também será pouco elegante enfiarem uma zaragatoa por ali adentro e escarafunchar, fazendo-a rodar para um lado e para outro. Pior que a impressão física sentida é a perspectiva estética do evento. Há que manter a compostura mesmo numa coisa como essa. Passam das nove e meia da noite e ainda há uma luz crepuscular. O céu tem uma cor de cinza quase a cair para o chumbo. Não tarda, estará negro. Então, dir-se-á é de noite. Alguém poderá responder já não há noites como as de antigamente. Essas, sim, eram noites a sério, negras, a via láctea bem definida. Agora, há tanta luz na cidade que já nem se vê a noite. É tudo um arremedo. Ainda haverá gente que diga arremedo? Vindas da rua, umas gargalhadas denunciam um convívio jovial. Pelo tom, parece que os convivas se arremedam uns aos outros. É de noite. O teste deu negativo, o que me permite pensar no fim-de-semana.