quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Flatus vocis

Não é raro deparar-me com coisas escritas por mim há uns anos e ficar perplexo não por aquilo estar escrito, mas por aquilo que fui e que me levou a escrever o que escrevi. Temos uma inclinação para a identidade, isto é, para nos pensarmos como sendo os mesmos numa linha contínua no tempo. A memória socorre-nos na presunção dessa identidade. Ora, muitas das coisas que se escrevem não cabem no grande armazém da memória. Se as encontrássemos num sítio que não reconhecemos como nosso, não as identificaríamos como tendo a nossa autoria. Eu sou aquilo de que me lembro, mas há muita coisa que, apesar de ter sido, não cabe na montra da identidade. Posso dizer com propriedade eu não fui aquilo. Uma identidade fundada na memória é uma coisa frágil. Ora, em que outra coisa podemos fundar a nossa identidade a não ser na memória? Imagino que a identidade seja um flatus vocis, um termo que tem som, tem sentido, mas que não se refere a nada, e talvez isso seja o melhor que nos possa ter acontecido.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Influenciar e dominar

Pega-se num livro e olha-se para a capa. Suja-a a declaração O Bestseller Internacional Traduzido em Mais de 20 Idiomas. Para a coisa não ficar por aí, chapa-se A Arte de Influenciar Pessoas e Dominar Multidões. O livro em causa foi publicado em 1895 e foi discutido em meios académicos. Ser traduzido em mais de 20 idiomas não é nada de excepcional e o objectivo do livro não é ensinar qualquer arte, e muito menos a de influenciar pessoas e dominar multidões. É um estudo que pretende perceber determinado fenómeno, que foi discutido e criticado, como acontece a qualquer estudo académico. Que o tratemos assim é prova de que o provincianismo continua a fazer parte da ambiência mental dos portugueses. Parte da ideia de que haverá compradores para a obra não pela sua qualidade científica, mas porque esses compradores estão desejosos de influenciar pessoas e de dominar multidões. Tudo isto é, além de infantil, muito cansativo. Vou fazer uma caminhada para desintoxicar.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A pesada carga

A história dos europeus é, por vezes, assombrada pela luz que chega da antiga Grécia. Esta assombração, porém, não provoca o terror, mas uma nostalgia que parece inultrapassável, como se a velha Hélade fosse, para nós homens de uma era sombria, uma idade de ouro, a nossa autêntica idade de ouro. Acontece que a nostalgia pode tornar-se pesada, muito pesada, e que, de forças enfraquecidas, não suportemos o peso sobre os ombros. Talvez por isso, nos estejamos a afastar desse modelo, sentido como tirânico. A sensação que se tem é que estamos apostados em cortar o fio de Ariadne que nos permite retornar à luz e à vida, para nos perdermos no labirinto que, como Dédalos inconscientes, construímos. Esta sensação pode ser apenas o resultado de este ser um narrador envelhecido, que já não descortina a luz do mundo. Isso seria o melhor que poderia acontecer, mas duvido. Os sinais desse esquecimento da idade do ouro, dessa conjugação de arte, pensamento e política, são tão evidentes que parecem corroborar que alijámos dos ombros a pesada carga que a perfeição grega sobre nós fazia cair.

domingo, 1 de setembro de 2024

Realidade e repetição

O último dia de férias. Amanhã, retorno à realidade, com a sua procissão de coisas inúteis. Para dizer a verdade, só retorno porque decidi fazê-lo. Um acto do meu livre-arbítrio. Sempre se poderá argumentar que esse acto livre não passa de uma ilusão. Eu estou determinado a realizá-lo por um conjunto de causas que desconheço, e é essa ignorância que me oferece a doce ilusão de que aquilo que faço depende da minha escolha. Isso foi pensado por um judeu de origem portuguesa, Baruch Espinosa. Por interessante que o pensamento de Espinosa seja, eu não partilho da sua falta de fé no livre-arbítrio. A minha fé – qualquer posição sobre o livre-arbítrio, por excelentes que sejam os argumentos que se possua, será, em última análise, uma questão de fé e não de prova racional – a minha fé, dizia, é de que possuo livre-arbítrio e que, por vezes, escolho aquilo que faço, podendo fazer uma coisa diferente. Por exemplo, poderia ter decidido, em vez de escrever isto, ir a uma esplanada, beber uma cerveja e contemplar o sol a afogar-se no mar. Nada me impedia e tenho várias esplanadas, com vista sobre o pôr-do-sol, mesmo à mão de semear, embora na areia e no mar nada se semeie e eu não tenha alma de agricultor. Ao fim de várias décadas de convívio com a minha alma, ainda não compreendi que tipo de alma é que me coube em sorte. Talvez seja uma alma sem tipo, como, no romance de Musil, o homem é sem qualidades. Hoje, ao telemóvel, tive uma longa conversa com o padre Lodo, mas não discutimos o problema do livre-arbítrio, uma das coisas em que eu e o velho jesuíta meu amigo estamos de acordo. Explicou-me, longamente, por que razão, este ano, não esteve por aqui, onde a Companhia tem um belo local de férias. Ao ouvi-lo pensei que estava a repetir-se, mas, de imediato, reconheci que também me repito e sou mais novo. Com o avançar da idade temos uma tendência para a repetição. No meu caso, parece haver uma predilecção pela anáfora. Imagino que o uso da repetição seja uma luta contra o desmemoriamento. A realidade aproxima-se, mas um dia hei-de esquecê-la. Não haverá anáfora que resista.

sábado, 31 de agosto de 2024

Repressão e censura

Leio num jornal online a frase a repressão é a mãe do desejo. A proposição não é particularmente inovadora ou, sequer, interessante, apenas explora uma promessa de erotização. Vivemos num mundo que se saturou de tal modo de psicanálise que tudo o que tenha o seu aroma se torna cansativo. Contudo, a frase recordou-me uma outra coisa, os livros que o antigo regime censurava e proibia. Sempre me pareceu que se essas obras fossem livres, o seu impacto social seria tendencialmente nulo. O acto censório era um modo de propaganda dos livros, muitos deles medíocres, outros de tal modo complexos que só seriam lidos por especialistas, os quais, apesar das proibições, encontravam sempre modo de os ler. Um dos livros vítima da censura portuguesa foi O Anticristo, de Friedrich Nietzsche. Contudo, que impacto poderia ter um livro que discute as raízes da cultura europeia e questões de natureza axiológica? O impacto que tem hoje, isto é, nulo. No acto de censura de um livro há uma crença de que os livros podem mudar o mundo. Uma crença exagerada. Mais facilmente uma descoberta tecnológica muda o mundo do que um livro ou mesmo um arsenal de livros. Repressão e censura de livros são exercícios não apenas moralmente inaceitáveis como inúteis.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Devaneio

O dia tal como tem estado ofereceu-me duas possibilidades para o pós-almoço. Ou sentar-me aqui onde estou a escrever e acabar por adormecer, ou ir caminhar, aproveitando o dia cinzento e fresco. Escolhi a segunda opção. Fiz alguns quilómetros absorto, acompanhado pela música de Alban Berg. Talvez devesse caminhar sem música, prestando atenção ao caminho, deixando-me contaminar pela surpresa que nele, por certo, sempre haverá. Isto seria a realização de um ideal de vida. Prestar uma atenção sem falha a cada coisa que se faz, evitando a distracção que nos rapta do tempo presente e nos envia para um não tempo, onde a imaginação se entrega às suas divagações, criando mundos oníricos que se sobrepõem ao mundo em que nos movemos. Ouvir música, enquanto se caminha, é um compromisso. A imaginação é sustida e a atenção é mobilizada pela realidade daquilo que se ouve. Podemos imaginar que a arte, do ponto de vista, daquele que a contempla – visual ou auditivamente – representa um pacto que evita tanto as utopias subjectivas da imaginação quanto a crueza da submissão à realidade que nos cabe. Agosto aproxima-se do fim e isso é a única coisa que me ocorre neste momento.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Causa sui

Uma pessoa perde-se. É de tal modo desmesurada a obra de Fernando Pessoa que um leitor, mesmo medianamente atento, deixa escapar inúmeras facetas. Descobri há pouco que também escreveu histórias policiais. Acho que lhe chamava novelas policiárias. Talvez também tenha escrito ficção científica. É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande, foi o pensamento que me ocorreu quando descobri que nem o policial escapara ao poeta. Não devia pensar coisas destas, pois pode indispor aqueles que andam sempre com a pátria na boca e a bandeira na lapela. Isto, porém, são coisas que não cabem nestas narrativas. Para dizer a verdade, eu não pensei que É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande. Foi o pensamento que se pensou em mim. Se se tiver atenção, descobre-se que muitos dos nossos pensamentos não são nossos, mas são coisas que se passam em nós sem que tenhamos qualquer responsabilidade delas. Somos responsáveis pela censura ou não desses acontecimentos que se dão na nossa mente, mas não criamos a maior parte deles. Talvez uma parte substancial da obra de Pessoa seja desse género, coisas que ocorrem na sua mente e que ele, em vez de censurar, regista. Ele deve ter sentido isso mesmo e ficou perturbado, tentando encontrar pensadores para muitos dos seus pensamentos poéticos. Daí a heteronomia. Se ele fosse mais radical, admitiria que toda aquela obra não tinha autor. A obra compusera-se nele, mas tinha-se autocriado. Como diria Espinosa, a obra, como Deus, é causa sui.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Sem laço

Em 1906, Arthur Moeller van den Bruck, um pensador alemão, com uma costela holandesa, ou neerlandesa, afirmava Uma perspectiva inesperada abriu-se assim diante da arte moderna: ser ela própria a cultura moderna! Passaram 118 anos e a profecia de van den Bruck parece falhada. A evolução da arte moderna afastou-a, de algum modo, do poder de dar forma a uma cultura moderna, uma cultura que se tornasse uma visão global e unificada do mundo. Pelo contrário, a arte moderna integra o amplo espectro daquilo a que poderíamos chamar o grande estilhaçamento. Por todo o lado, o que emergiu foi uma contínua pluralização espiritual e cultural, sem que se percebe nas infinitas manifestações culturais qualquer laço comum, a não ser o da sua radical autonomia e, por isso, não possuir qualquer princípio unificador partilhado com todo o resto. Não há uma cultura moderna, mas múltiplas culturas modernas, como não haverá uma arte moderna, mas múltiplas artes modernas, deslaçadas – culturas e artes modernas – umas das outras. Os nossos tempos são assim de estilhaçamento e deslaçamento. Uma unidade global do espírito poderá ter existido no passado, mas não existe no presente. Do futuro, nada sabemos. Em 1906, ainda se vivia sob a sombra de um passado que, agora, está morto.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Um acontecimento

Hoje, pela primeira vez nesta época balnear, passeei-me à beira-mar. Enquanto caminhava sobre a areia e sentia a água nos pés, pensava que era monsieur Hulot, num dos extraordinários filmes de Jacques Tati, no caso, Les Vancances de Monsieur Hulot. O filme é de 1953, ainda não tinha este narrador nascido. Demorei muitas décadas para poder encarnar a personagem que Tati filmou e encarnou, diga-se. O senhor Hulot era mais alto, mas pouco, do que este narrador e tinha uma inclinação pelo cachimbo, que não consta no rol das inclinações de quem narra este episódio. Partilhamos, porém, a inclinação para o desajeitamento, embora seja necessário fazer uma ressalva. Enquanto monsieur Hulot acentuava esse estado de pouco ajeitamento, este narrador disfarça, não poucas vezes com sucesso. A vida tem destas coisas que não sabemos como nos calham. Poderia ser uma encarnação de Ivan, o Terrível, mas não. Saiu-me na lotaria o senhor Hulot. O grande acontecimento, porém, foi mesmo estar à beira-mar, coisa que em tempos era banal, mas que se tornou excepção. Ainda fui desafiado para entrar dentro de água, mas exclamei de imediato vade retro Satana, que é como quem diz Afasta-te, Satanás, a que acrescentarei vai tentar o diabo, se quiseres mergulha tu. Eu tenho de passear, com o meu panamá genuíno na cabeça e as mãos atrás das costas, para ver o que se me apresentar diante dos olhos.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A obra, não a biografia

Uma parte da manhã passei-a numa visita a uma casa-museu do século XIX. O proprietário foi um artista distintíssimo numa arte que então dava os primeiros passos. A visita foi guiada. O discurso da guia foi uma verdadeira hagiografia do antigo proprietário. Ora, este terá tido uma faceta privada pouco digna da glória dos altares, e não me refiro a picarescas aventuras sexuais, mas que o torna uma personagem ainda mais interessante. Há uma tentação de associar a grandeza em certa área das actividades humanas à bondade moral ou mesmo à santidade. Lembro-me de ter saído da escola primária, como então era conhecida, com a sensação de que Portugal só tinha sido governado por grandes heróis que eram, ao mesmo tempo, grandes santos. Estariam todos, imaginava eu, no céu. Ora, todos nós temos um fundo obscuro e, não poucas vezes, quanto mais luminoso se é em certa área – na arte, por exemplo – mais escura é a alma do ponto de vista moral. Era bom que isso fosse entendido num museu, mesmo de província, e que os artistas fossem apresentados na sua complexidade, embora a vida dos artistas seja uma curiosidade. O fundamental, enquanto artistas, não é a sua vida, mas a sua obra. As hagiografias surgem muitas vezes para colmatar uma certa incapacidade para comentar e explorar a obra. No caso de hoje, o que foi mostrado e comentado foram aspectos episódicos da biografia luminosa do autor, o seu peso social, mas nada se explorou da obra, do porquê da sua importância, da sua relação com as tendências da época.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Um problema de arrumação

Sem saber como fui ter a uma página da FNAC onde se exibia, depois da escolha de uns quanto doutos escolhedores, as 12 melhores obras literárias portuguesas, no âmbito da ficção narrativa, dos últimos 100 anos. Na verdade, dos últimos 108 anos, pois a escolha foi efectuada em 2016 e, tanto quanto dei por isso, nada surgiu no nosso país que merecesse elevar-se àquele empíreo ou entrar nesse restrito cânone. É feita uma breve consideração de cada obra, apresentado o começo e mobilizada uma frase sobre o autor, um juízo de autoridade que legitima a sua escolha. As obras não estão classificadas. São 12, ordenadas alfabeticamente. A que surge em primeiro lugar é A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Ora sobre este, foi escolhida a frase É um inimigo político, mas é um grande escritor. O autor é António Salazar. Que se saiba, Salazar, apesar de ser especialista em classificar pessoas como inimigos políticos, não tinha qualquer autoridade enquanto avaliador de escritores. No lugar de Aquilino, mesmo morto, ficaria ofendido. De todos os começos apresentados, o de que mais gosto, considerando a época do ano em que estamos, é o do Vergílio Ferreira:  É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olha-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. Há outros excelentes. Por exemplo, se estivéssemos no Outono, teria escolhido o de Fernando Pessoa: Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. É óptimo para ser apreciado em finais de Novembro. Caso estivesse num Inverno chuvoso, escolheria o de José Saramago: Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias. Sou um narrador ribatejano, note-se. Contudo a frase absoluta, que nunca esqueci é a de Herberto Helder: – Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. O que me fascinou, quando li o livro pela primeira vez, foi Se eu quisesse, enlouquecia. Agora, o que mais se me adequa é Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Dissidência

A Antígona Editores Refractários tem um pequeno projecto de publicação de cinco obras literárias, a que deu o sugestivo nome de Sementes de Dissidência, embora esta designação seja equívoca. Numa sociedade como a nossa a dissidência não precisa de ser semeada, pois qualquer um pode dissidir, sem que isso lhe traga consequências relevantes. Pode ser mesmo motivo de promoção. Não é, porém, a pertinência do nome do projecto, mas o começo das duas primeiras obras publicadas, ambas romances. A primeira – Caruncho (2021), de Layla Martínez – começa assim: Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. Eis um começo pujante. A outra – Niels Lyhne (1880), de Jens Peter Jacobsen, tem outra tonalidade: Ela tinha os olhos negro e faiscantes dos Blid, com sobrancelhas finas e rectilíneas; deles era igualmente o contorno saliente do nariz, o queixo firme, os lábios carnudos. Perante estes começos, podemos especular que no caso de Layla Martínez estamos perante uma narração na primeira pessoa e no caso de Jacobsen de uma na terceira pessoa. Podemos, então, perguntar que tipo de narração estará mais próxima da verdade, quero dizer, qual delas ficciona de modo mais adequado a verdade do que narra. A narradora de Layla Martínez narra percepções subjectivas, enquanto o narrador de Jacobsen faz uma descrição objectiva. Podemos pensar que aquele que fala de si mesmo sabe muito melhor o que diz do que qualquer outro. Não creio que uma autobiografia esteja mais próxima da verdade de uma pessoa do que uma biografia dessa pessoa feita por alguém preocupado com a objectividade do que escreve. Hoje, amanhã tenho o direito de mudar de opinião, prefiro uma narrativa na terceira pessoa. O começo de Jens Peter Jacobsen, menos tonitruante que o de Layla Martínez, moveu o meu espírito a dar-lhe a precedência na leitura, apesar de ser a segunda obra do projecta da editora, e o de Laila Martínez, a primeira. Também sou capaz de dissidência.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A gravidez dos mitos

Em Vico encontramos uma explicação em plano inclinado para a dificuldade que se tem perante os mitos, propriamente, os mitos da antiguidade clássica greco-latina. O autor italiano não usa mito, mas fábula, que traduz a palavra grega para mito. Por que razão se tem dificuldade em crer nos mitos? Eis a explicação. Eles nascem geralmente indecentes e, por isso, tornam-se impróprios, o que significará que estão alterados, o que os faz inverosímeis, o que dá lugar a que se tornem obscuros, o que conduz a que se tornem escandalosos, o que terá como consequência que sejam inacreditáveis. Encontramos um grupo de avaliações morais, são histórias indecentes, impróprias, escandalosas. Encontramos um grupo de avaliações epistémicas, são histórias inverosímeis, obscuras e inacreditáveis. O eixo em torno do qual giram estas duas rodas de avaliação dos mitos é a alteração. Os mitos são escandalosos e inacreditáveis porque estão alterados. Originariamente, escreve Vico, seriam narrações verdadeiras e severas, ainda uma avaliação epistémica e uma avaliação moral. Ora, em torno de que eixo giram estas duas avaliações? O eixo é a origem. Na origem, as narrativas dizem a verdade e expõem a conduta séria e rigorosa. Depois, quando o comboio do tempo traz as coisas e as narrações para cada vez mais longe dessa origem, mais elas se degradam moralmente e se tornam, ao nível do conhecimento, inacreditáveis. Repare-se, ainda, numa subtil distinção. Na origem, os mitos são verdadeiros e severos, mas nascem indecentes. Uma coisa é a origem e outra é o nascimento. O que nos leva a supor que a gravidez mítica é um processo de duvidosa moralidade que transforma uma história severa e verdadeira numa indecência inverosímil.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Um excesso

Na edição de 2007, da Bertrand Editora, das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu, o nome em destaque não é o de Rainer Maria Rilke, mas o de Vasco Graça Moura. O tradutor surge como mais importante do que o autor. Talvez a ideia seja de que não é possível traduzir poesia, mas esta pode ser reescrita e, nesse caso, o reescritor é o autor. Peguei no quarto soneto a Orfeu, aquele que começa por O ihr zärtlichen, tretet zuweilen (Ó vós ternos, por vezes entrai) e, desconhecendo a língua, pedi uma tradução automática. Uma tradução automática rasura o poético do poema, mas devolve-nos imagens e materiais semânticos usados na construção original. A tradução de Vasco da Graça Moura propõe um novo poético, adaptado à língua portuguesa, do soneto de Rilke, mas trabalha com imagens e materiais semânticos provenientes, como não podia deixar de ser, de Rilke. Podemos discutir, e tem-se discutido, se na poesia o essencial é o som ou o sentido. Ora, nos poemas de Rilke, por certo, a grandeza nascerá de uma combinação entre som e sentido. O trabalho de tradutor de Vasco da Graça Moura é pessoal na dimensão sonora, mas tem uma dívida impagável ao sentido construído por Rilke. A capa da Bertrand Editora é uma tomada de posição sobre a discussão entre som e sentido, proclamando visualmente que o som é mais decisivo na poesia do que o sentido. Uma tomada de posição excessiva, parece-me.

domingo, 18 de agosto de 2024

O poder da acção

Num comentário a um longo romance de Fiódor Dostoiévski, alguém – um leitor ingénuo, por certo – escreve que as primeiras cem páginas são difíceis, mas, depois, chega a acção a sério, aquela que capta a atenção do leitor. E esse comentador terá as suas razões. O romance, tal como o compreendemos hoje, é uma invenção da modernidade europeia, essa modernidade que decretara que a acção se sobrepunha à contemplação. O importante não é aquilo que o homem pensa ou observa de modo desinteressado, mas o que faz. O romance narra esse agir humano e os leitores, tomados pelo espírito moderno, não compreendem que um romancista – seja Dostoiévski ou Eça, o Eça de Os Maias – se entregue a longas descrições que pressupõem um espírito capaz de se abstrair do que se move para contemplar aquilo que está aí e parece permanecer. Os modernos precisam de mergulhar na acção, talvez como refrigério por não saberem o que fazer, neste mundo, da alma que lhes coube em sorte. Há muitos anos, na década de oitenta no século passado, quando foi exibido aqui, nesta cidade onde me acolho, o filme de Akira Kurosawa A Sombra do Guerreiro, o programador local agendou-o para uma sessão de um sábado à noite. Estranhei a opção e ainda mais estranhei o facto de a sala, com uma lotação para mil espectadores, estar cheia. Programador local e público pensaram estar perante um filme de guerra ou de artes marciais. Sentia-se a decepção dos espectadores pela ausência de acção, pela natureza contemplativa que percorre o filme. Houve uma explosão quando foi exibida uma batalha bem activa. Isto são memórias com mais de 40 anos e há muito que não revejo o filme. Talvez seja uma boa ideia para a noite deste domingo, onde, na verdade, não espero qualquer acção. Melhor, onde dispenso qualquer acção.

sábado, 17 de agosto de 2024

Poder absoluto

Retornei ao sítio de calor de onde tinha partido ontem e fui recebido com um abraço caloroso, demasiado caloroso. Os neurónios suspendem a sua função, que já não seria muita, e o mundo fica mais turvo. Dei por finda a estadia junto do mar, cansado de mais de um mês de litoral. Para dizer a verdade, não é tanto cansaço do litoral como saudades do escritório, a minha cadeira. A minha secretária, as minhas estantes. É o meu reino, onde o poder não necessita de negociação e, por isso, é absoluto, tal como o de Luís XIV. Esta coisa de um poder absoluto é sempre uma mentira, pois mil coisas conspiram contra esse poder, até as mais benévolas. Ninguém, nem Luís XIV, tem, teve ou terá poder absoluto sobre si mesmo, sobre o seu corpo, o seu desejo, quanto mais um império sem limites sobre os outros e o mundo. Somos limitados e finitos, o resto são fantasias para disfarçar essa limitação e essa finitude, as quais, elas sim, são absolutas. Agora, vou beber água para me hidratar.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O prazer do fogo

Acabei de fazer uma viagem de 17 graus centígrados. Saí de um sítio com 41o e cheguei a outro com 24o. A crónica de hoje de António Guerreiro, no Público, gira em torno do fogo. O título é Brincar com o fogo. E o lead diz: A Terra foi vista como um reservatório de energias inesgotáveis. Continuámos a brincar com o fogo e agora o planeta arde. Até certa altura pensava-se que a hipótese de as coisas acabarem devido a uma guerra nuclear era grande. Depois, o medo atenuou-se, embora não se perceba bem a razão desse atenuar. O medo seguinte, mas também cada vez mais atenuado, é de que tudo acabe devido ao aquecimento global. Ora, nem um conflito nuclear está posto de lado, nem há qualquer acção efectiva que vise travar o aquecimento global. Tirando uns infelizes militantes que atiram tinta a quadros, a generalidade das pessoas não quer saber de aquecimentos globais. Nós, seres humanos, somos fascinados pelo fogo. Poucos são aqueles que não sentem prazer em ver as labaredas de uma fogueira, o que significa que no fundo da alma de cada ser humano há um pequeno pirómano. Nesta altura, esses pequenos pirómanos parecem estar a tomar conta de cada um de nós e, em vez de temermos o fim pelo fogo, desejamo-lo cada vez mais e com mais intensidade. O ideal seria a combinação da revolta da natureza através do fogo e uma guerra nuclear. Enfim, hoje acordei com uma leve dor de cabeça e uma inclinação para a hipérbole. O planeta arde, mas isso não assusta a nossa alma de pirómanos. Pelo contrário, é como se estivéssemos numa noite fria de Inverno diante da lareira para contemplarmos as labaredas que dançam na lenha que arde. O prazer do fogo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Moda

Robert Musil, o escritor de O Homem Sem Qualidades, acreditava que a fealdade não impede a moda de surgir. Escreveu isto num ensaio de 1931, “A Moda”. A certa altura, com o pretexto de exemplificar essa fealdade, escrevia e as saias curtas de mulher igualmente usadas até há pouco representavam, para uma observação imparcial, a repartição mais desfavorável da figura feminina que imaginar se possa, uma vez que se gerava um rectângulo elevado assente em duas pequenas andas curtas. Saliente-se que por saia curta o autor considerava a saia pelos joelhos. Como pôde ele ler a parte visível das pernas das mulheres como duas andas curtas? A apreciação estética que faz é fruto de um hábito e de preconceitos sobre o que se deve vestir e o que se deve mostrar – ou ocultar – no corpo da mulher. Ninguém da minha geração pensaria as pernas desocultadas de uma mulher como um dispositivo artificial tipo andas. Quando Musil escreve que a fealdade não impede a moda de surgir, talvez devêssemos compreender as coisas de uma outra maneira. Toda a moda se funda numa manifestação da beleza. Aqueles que a pensam como feia apenas não conseguem perceber o que de belo nela se manifesta. A moda estaria, deste modo, ligada à transmutação dos valores estéticos e, por isso, ela é sempre reservada a uma pequena vanguarda. Isto permite ir mais longe na especulação. Aquilo que é belo não apenas é difícil, como pensava Platão, mas tem em si um princípio de inquietação que conduz a contínuas metamorfoses, as quais são apreendidas, por instantes, pela moda, para logo se transformarem, esperando que a moda as capte numa nova imagem do que é belo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Derrelicção

Sem se dar por isso, duas semanas de Agosto estão cumpridas. Há uma estranha percepção sobre a duração. Duas semanas nos dias de hoje passam muito mais rapidamente do que duas semanas há sessenta anos. Isto coloca um problema interessante. Enquanto nos tornamos mais lentos, o tempo torna-se mais rápido. Imagino que a rapidez do tempo está na proporção inversa da rapidez do ser humano. Dito de outra maneira, quanto mais lentos nos tornamos, mais rápido é o tempo. Isto, claro, é uma ilusão, mas o que faríamos nós da vida se fôssemos destituídos de ilusões? Um dos erros perceptivos que sempre me fascinou foi aquele que ocorre quando se está sentado numa carruagem de um comboio parado na estação e o comboio ao lado começa a movimentar-se. O deslocar do último gera no observador parado a sensação de que é ele que se move. O pior é que agora estou parado no comboio da existência, enquanto a realidade galopa em direcção ao futuro, mas nenhuma ilusão me acode. Sinto que o mundo vai desencabrestado por aí fora e que eu fico irremediavelmente para trás, sentado num comboio parado a que nunca se dará o sinal de partida. As pessoas não caminham em direcção à morte. É a vida que avança e se esquece delas no caminho. É a isto que se chama derrelicção.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Um gigante e uma vaca

Imagino que seja um livro com informação um pouco desactualizada, mas talvez não. Não sei, não sou sequer um curioso cuja curiosidade o leve a estar continuamente actualizado no assunto. O livro data de 1987 e tem por autor Steven Weinberg, um físico norte-americano que recebeu o Prémio Nobel, juntamente com outros dois físicos, por ter unificado duas das quatro forças que superintendem as interacções entre partículas e objectos, tema que não vem agora ao caso. Devido ao livro, Os Três Primeiros Minutos – Uma Análise Moderna da Origem do Universo, o autor foi agraciado pelo Presidente dos Estados Unidos com a Medalha Nacional de Ciências. Depois do Prefácio do livro, este segue com a Introdução: O Gigante e a Vaca. Esta começa com uma referência a um conjunto de mitos vikings – Edda – sobre a origem do Universo, mitos em que, apesar de não existir nada, havia um gigante chamado Ymer e uma vaca que tinha o nome, aliás inspirador, de Audhumla. Weinberg conclui que a explicação dada pelo mito nórdico para a origem do Universo não é muito satisfatória. Passa, então, para um resumo do «modelo-padrão», aquilo a que se chama normalmente a teoria do big bang. Ele escreve: No início houve uma grande explosão. Não uma explosão como aquelas com que nos familiarizámos na Terra, partindo de um centro definido e espalhando-se de maneira a englobar cada vez mais ar circundante, mas uma explosão que ocorreu simultaneamente em toda a parte, enchendo o espaço inteiro desde o início, cada partícula de matéria fugindo de todas as outras. Mais adiante, continua: Cerca do primeiro centésimo de segundo, o tempo mais recuado de que poderemos falar com confiança, a temperatura do universo era aproximadamente de cem mil milhões (1011) de graus centígrados. Ora, apesar de ter passado o tempo do gigante Ymer e da vaca Audhumla, o tempo anterior ao centésimo de segundo a que podemos recuar com confiança (o que é uma façanha tremenda da razão humana) e o tempo anterior (na verdade, não havia tempo) ao big bang abrem a porta para todos os gigantes matreiros e para todas as vacas encantadas reencarnarem. Quem primeiro propôs a teoria do big bang, denominando-a hipótese do átomo primordial, foi um padre católico, professor de Física, em Lovaina, George Lemaître. Consta que o Papa da altura ficou entusiasmadíssimo e julgou que tinha sido encontrada uma prova científica da criação do mundo por Deus. Parece que Lemaître lhe terá dito para não se meter por esses caminhos da ciência, tão ínvios quanto os de Deus. Talvez, imagino eu, quisesse preservar o encanto da narrativa do Génesis, aliás, mais imaginativa do que a do Edda nórdico.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Beleza

Há títulos de livros extraordinários. Por exemplo, The Fragility of Goodness, de Martha C. Nussbaum. Contudo, a tradução para português deixa de funcionar. A Fragilidade da Bondade perde o impacto sonoro devido à repetição das duas sílabas finais de fragilidade e de bondade. Um expediente seria traduzir por A Fragilidade do Bem, mas não seria a mesma coisa. Aliás, a tradução existente em português, na variante brasileira, faz a tradução literal. Martha C. Nussbaum não é apenas uma muito interessante e talentosa filósofa, mas é uma criadora de títulos excepcional. Além do citado, vejam-se os seguintes: Cultivating Humanity; Political Emotions; Frontiers of Justice; Upheavals of Thought; Not for Profit; The Cosmopolitian Tradition. Poder-se-á pensar que a natureza retórica destes títulos é uma estratégia comercial. Imagino que a autora se ofenderia. A qualidade linguística estará ligada, de alguma forma, à qualidade do pensamento. Os primeiros textos filosóficos completos que nos chegaram são os diálogos platónicos. Aquilo que que foi escrito antes, e foi alguma coisa, perdeu-se ou permaneceu em forma fragmentária. É possível pensar que esses textos pré-socráticos, é assim que se chamam, teriam qualidade poética e retórica. Os textos de Platão, os diálogos filosóficos, nasceram de uma ruptura dentro do próprio filósofo. Este era um jovem escritor de tragédias, mas fascinado pela figura de Sócrates, de quem queria ser discípulo, aceitou a imposição deste e destruiu as tragédias que tinha escrito. Contudo, não se conseguiu livrar completamente de si mesmo e passou do teatro trágico ao teatro filosófico, onde encenou as aventuras da própria razão. Para tornar as coisas mais interessantes, não são poucos os diálogos onde, ao lado de uma exploração racional de um problema, Platão constrói ou usa mitos. Poder-se-á pensar, e haverá quem o pense, que esses mitos, tal como os belos títulos da contemporânea Martha C. Nussbaum, têm um efeito retórico, quase de natureza comercial. Imagino que Platão ficaria ofendido. A beleza do título ou o encanto dos mitos fazem parte da verdade, que recusa revelar-se caso não haja um módico de beleza. Dessa beleza que a arte do século XX e XXI expulsou de si mesma, numa confissão de que se tinha divorciado da verdade, mas que, apesar do desígnio de muitos artistas, essa beleza acaba por voltar, contra a vontade dos próprios.

domingo, 11 de agosto de 2024

Pensamentos sem sentido

Hoje, fui à praia, mais uma vez. Dizer que fui à praia é uma hipérbole, pois fui ao bar da praia, onde me sentei a beber um café e a comer um pastel de nata, enquanto olhava o mar. Não passei, claro, do bar, mas prometi que voltaria à praia, isto é, ao bar. Não sei bem porquê, aquele bar, que até hoje me era indiferente, passou a ter um valor para mim. Que valor? Não faço ideia, mas apetece-me lá voltar amanhã e no outro dia. Este apetite de voltar a um sítio é a melhor prova de que esse sítio merece a visita. Apesar do meu contencioso com a praia, o mar sempre me fascinou. Não, não é tanto o mar que me fascina, mas a visão do mar. Olho para o mar e sinto uma vertigem – isto é uma metáfora. Essa vertigem quer dizer que estou perante algo que me ultrapassa infinitamente. Sinto-a, ou sentia-a, quando olhava o céu estrelado. O mar e o céu estrelado são símbolos daquilo que me ultrapassa infinitamente, daquilo que me é incomensurável. Há muitas décadas, nas noites estivais de céu estrelado, procurava um sítio onde a poluição luminosa não me incomodasse e ficava a contemplar as estrelas. Tentava suspender o pensamento, mas este resistia e trazia-me sempre as mesmas questões: Para quê tudo isto? Porquê tudo isto? Depois, fui estudar filosofia, mas acho que não adiantei nada. As questões permanecem, mas já não me entrego à contemplação dos céus nas noites estreladas. Tudo isto é inexplicável. O oceano, o céu estrelado, a minha perplexidade perante ambos. Oiço passos, é uma das minhas netas. Não sei se elas sentem uma vertigem perante o mar ou o céu estrelado. E o meu neto, ainda nos cinco anos, algum dia olhará o mar ou o céu estrelado e perguntará para quê e porquê tudo isto? Se nenhum deles o fizer, o que andei eu a fazer neste mundo?

sábado, 10 de agosto de 2024

Obrigações

Tive de ir à praia. Função de avô. Em tempos, que me parecem muito recuados, tinha prazer nesse ritual da ida à praia. Depois, foi desaparecendo. Nem ritual, nem areia, nem sol, nem água do mar salgado. Uma esplanada com vista para o mar ainda é uma coisa que me dá prazer, pois contemplar a linha do horizonte, onde o oceano e o céu se fundem na ilusão do olhar, abre o espírito à rêverie, a esse sonho acordado onde os mistérios do universo se fundem com os segredos ultramarinos. Devo estar a tornar-me uma pessoa insuportável, se não o era já. Não cultivo nem a praia e os banhos de sol e mar nem a viagem, turística ou outra. Estar onde se está e viajar na sua própria morada é a mais difícil e desafiante das viagens. Voltou-me o gosto pelas hipérboles. De tarde, consegui escapar-me à função da ida à praia, com a desculpa esfarrapada de ter de ir fazer compras, coisas que só eu sei o que são, embora não imagine o quê. É certo que fui olhado com condescendência, mas é coisa que suporto bem. Sobre este narrador, há duas teorias. Uma é que sofre de autismo. Outra é que falhou a vocação de monge eremita. Por mim, aceito qualquer uma. Talvez as duas sejam verdadeiras. Tenho de ir às compras. Um dia cheio de obrigações.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Mudos e surdos

Não é devido à qualidade da escrita – que é desmesurada – que vou citar Flannery O’Connor, mas por uma motivação lateral à literatura. Quase no início de O Céu é dos Violentos, diz-se O seu tio ensinara-lhe Contas, Leitura, Escrita e História, a começar em Adão expulso do Jardim e seguindo por aí abaixo, passando por todos os presidentes até Herbert Hoover, e avançando especulativamente até à Segunda Vinda de Cristo e ao Dia do Juízo Final. Este tio era profeta e talvez devêssemos olhar para os próprios historiadores como profetas. Fazem profecias sobre o que se passou. O tio profeta não apenas profetizou acerca do futuro – ou do fim do futuro, para ser mais preciso – como profetizou sobre o passado, a história de Adão e a expulsão do paraíso. Dir-se-á que os historiadores, não têm no seu bornal metodológico a profecia, que se atêm aos factos e isso é diferente das especulações sobre o início da humanidade e o fim da mesma humanidade. Ora, o grande problema é que os factos são mudos, não dizem nada, não usam língua gestual ou comunicam através de sinais de fumo ou de maquinetas que usam o código de Morse. Perante a mudez factual, os historiadores, dissimuladamente, sacam, de um compartimento escondido no dito bornal, a profecia e, movidos pelo Espírito Santo, põe-se a profetizar sobre o passado. Isto coloca um problema teológico que me apresto, para ajuda da humanidade, a resolver. O problema é o seguinte: como entender que diversos historiadores, perante os mesmos factos mudos e movidos pelo mesmo Espírito Santo, profetizam coisas diferentes? A explicação é mais simples do que pode parecer. Os diversos historiadores têm graus diferentes acuidade auditiva ou, para ser mais claro, diferentes níveis de surdez. O que é dito é o mesmo a todos, mas cada um ouve o que pode. Este é o meu contributo, sem preço, para deslindar um tomentoso problema teológico e, também, epistemológico. Sobre factos mudos, profetizam historiadores surdos.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O perigo do ócio

Por vezes, em momentos de ócio mais hiperbólicos, dou comigo a meditar um pensamento trivial sobre a possibilidade de o universo, depois de uma época de contínua expansão, ter um instante de suspensão e, de seguida, começar a contrair-se. O momento de suspensão, um momento desmesurado, se comparado com a escala da vida humana, seria destituído de tempo. Melhor, nele haveria o presente, mas não passado ou futuro. Tudo se suspendia, inclusive o movimento e a duração. Um acidente, porém, recolocava o universo em movimento, mas agora de contracção. Invertia-se o movimento que levara o universo ali, e este fazia o percurso em sentido contrário. Aqui, além do presente, sempre pontual como agora, haveria também passado e futuro, mas em sentido contrário. A certa altura, o universo chegava à configuração em que havia Terra e vida nesta, mas como se vinha do futuro para o passado, os seres vivos vinham da morte. Quem, na época de expansão, tivesse morrido velho, agora começava como velho e ia-se tornando cada vez mais novo, até desaparecer no útero materno, ou, melhor, até ao momento em que a cópula que lhe dera origem acontecia, começando do fim para o princípio com o intuito do óvulo fecundado expelir o espermatozóide fecundador, e este, juntamente com os irmãos falhados, regressar ao sítio de onde tinha partido, embora não seja fácil de conceber como a devolução à origem se daria. Talvez o órgão reprodutivo masculino possuísse, em vez de uma força para a emissão de material genético, uma força de sucção desse material, para o fazer desaparecer. Com tudo isto, se prova que a ociosidade é a mãe de todos os males e que convém manter as mentes sempre ocupadas para que não pensem em coisas destituídas de sentido.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Um deus caprichoso

Por aqui, o tempo é particularmente volúvel. Altera-se segundo apetites de um deus desconhecido. Se observarmos de perto os deuses gregos e latinos, percebemos, de imediato, que são caprichosos e, também nisso, imitam os homens. Teve de vir de outro lado a ideia de um Deus único, e nessa unicidade esvaiu-se o capricho, a volubilidade, mas também a forma humana. Nesse esvair-se de tudo o que era humano, os seus desígnios tornaram-se insondáveis. O que será mais terrível para o animal humano, esse animal que sabe que vai morrer e tem a capacidade de pensar na imortalidade, a volubilidade dos deuses ou a insondabilidade de Deus? Imagino que tenha sido este dilema que levou Nietzsche, cuja formação não era filosofia, a anunciar que Deus está morto. Eis um modo fácil de se livrar de um dilema. Fácil e rendoso, pois os europeus adoptaram como verdadeira a proclamação daquele que, após algumas obras tonitruantes, enlouqueceu, entrando assim pela morte dentro. A morte de Deus trouxe, porém, um novo politeísmo, tão volúvel quanto o antigo. Os novos deuses são também caprichosos, mas não sabemos quem são. Eu não sei qual é aquele que aqui rege o clima, mas tem uma notável inclinação para a súbita variabilidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Um país estrangeiro

Abro um daqueles livros de autores portugueses quase desconhecidos que vou comprando em alfarrabistas. Não para os ler, alguns nem tentarei. Procuro, por vezes, alguma voz desconhecida que se manifeste nas páginas do livro, uma voz que não seja a do autor. Hoje, ao desfolhar, no original, um romance de 1911, de Virgínia de Castro e Almeida, deparei-me com inúmeras anotações a lápis. O romance denomina-se Fé. O anotador ou anotadora do livro, a certa altura, indigna-se: Saúde por salut é um galicismo intolerável. A auctora deixou-se arrastar pela saude [foi assim que a autora grafou a palavra] e fraternidade da Republica. Noutro ponto, perante uma visão imanente e não transcendente do divino, anota: Isto é o velho e sediço pantheismo. Quando uma personagem proclama que Todo o bom catholico deve combater pelo triumpho da sua Egreja!, anota-se: Tambem me parece. Na página 220, surge um extraordinário comentário: Esta scena de amor entre os dois veladores do cadaver do pobre Baby é repelente. Bernardo manifesta-se o (ilegível) sem escrupulos que quer roubar a mulher ao marido e aos filhos para se satisfazer, sem respeitar a camara mortuaria de um anjinho. Gabriella é uma qualquer (ilegível) ridícula do sentimento, a resvalar para cabra. A auctora que compara um beijo lascivo a uma primeira comunhão, ou nunca beijou, ou nunca comungou. Perante a afirmação que considera o cristianismo a religião de inercia ensinando a resignação e a atonia, empurrando a humanidade para o aniquilamento, a reacção é peremptória: Isto tudo já é velho e muito batido e já foi tudo rebatido. Tudo isto é palha, não presta para nada. D’aqui a pouco surge o super homem de Nietzsche. A partir deste ponto, nas últimas cem páginas, não há qualquer anotação, talvez o super-homem não tenha surgido. Apenas, abaixo da data Julho de 1911, que assinala o fim da escrita do romance, surge uma outra anotada a lápis: 13-12-1911. Na capa do livro, porém, encontra-se a sentença final, ainda a lápis: Não presta. Talvez existissem poucos leitores em 1911, o que não será completamente verdade, mas não os podemos acusar de serem passivos. Recorra-se à frase batida de L. P. Hartley: O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Narradores cruéis

Sou um narrador pacífico e incapaz de uma narrativa que me eleve. Por vezes, cultivo o riso sobre mim próprio, mas talvez isso seja um truque para esconder a minha impotência narrativa. Há narradores cruéis. Usam as palavras como estiletes. Por exemplo, aquele que narra Os criados estão contratados sob os auspícios da segurança social e perderam muitas das suas fraquezas que Swift tão bem descreveu. São funcionários e não lacaios queixosos e cheios de manhas. Raramente são vistos senão à hora das refeições e ninguém pode dizer que é possível pedir os seus favores nas horas tuteladas pelo sindicato hoteleiro ou coisa assim. Mas têm o mesmo olhar vingativo e sonolento que avalia melhor o hóspede do que um despachante da alfândega faria. Onde está a crueldade? Na anulação do valor do trânsito do mundo que levou certas pessoas de lacaios queixosos e cheios de manhas ao estatuto de funcionário, protegido pela segurança social e pelo sindicato hoteleiro. De que vale ter mudado de estatuto, de deixar de ser lacaio e passar a ser funcionário, se se tem o mesmo olhar vingativo e sonolento? Este é um narrador cruel. Quando o Conde, uma das três personagens que animam os entretiens das Soirées de Saint-Pétersbourg, fala dessa figura tenebrosa do Carrasco, procura nela a grandeza própria, apesar da distância que todos os homens, perante ela, sentem dever manter. Quem leu a autora, percebe de imediato que este narrador cruel só poderia ter sido criado por Agustina Bessa-Luís. Talvez o narrador de Agustina lamente o fim dos lacaios e a magnífica escrita da autora sirva apenas como um requiem de um mundo que acabou, como acabou uma certa casa de família transformada em hotel privado, isto é, em turismo de habitação. Os mundos perdem-se no tempo e não há narrativa que os salve.

domingo, 4 de agosto de 2024

Do reino e do império

Se se ouvir o título A Monarquia do Medo pensa-se de imediato numa série da Netflix, talvez ligada ao tráfico de droga e ao ajuste de contas entre cartéis ou entre a polícia e os traficantes. Contudo, é um belíssimo título de um livro de filosofia, de Martha C. Nussbaum. O título, na verdade, é The Monarchy of Fear – A Philosopher Looks at Our Political Crisis. O livro trata de um assunto que me está vedado, pois eu sou um narrador sem opinião, coisa imposta por um autor despótico. Em vez de A Monarquia do Medo, caso me tivessem perguntado, proporia O Império do Medo. Teria outra ressonância. Numa monarquia do medo, o medo reino sobre os súbditos, mas nem todos os reinos são reinos do medo. Podem ser reinos constitucionais. Num império do medo, aquilo que se escuta é o domínio absoluto do medo sobre aqueles que lhe estão sujeitos. Num império há sempre qualquer coisa de obsessivo, como o cineasta japonês Nagisa Oshima mostrou em Império dos Sentidos, embora seja em Império da Paixão que Oshima torna mais clara a ligação entre império e medo, onde o medo se torna senhor daqueles que lhe vão ficando sujeitos.

sábado, 3 de agosto de 2024

Histórias

O livro foi impresso em 1971, na Sociedade Astória, Ldª, de Lisboa. No talão, que o livreiro devia ter devolvido ao editor, mas que não o fez, constava o preço de 65$00. Contudo, rabiscado a lápis, no canto superior direito da primeira página, estava uma outra informação, que reproduzo: 65/81#50. Imagino que o livreiro terá, com o passar do tempo, adequado o valor de venda do livro. Quando e onde o livro foi vendido não sei. Há, contudo, uma informação na quinta página que mostra que o livro mudou de dono em 1975. Escrita a esferográfica preta está a seguinte informação: Moçâmedes e, debaixo da localidade, a data 4/11/75. Abaixo desta informação encontram-se dois traços grossos feitos a marcador preto que ocultam um nome, imagino que do proprietário original. Uma história possível é que o livro tenha sido comprado em Portugal e o proprietário o tenha levado para Angola, onde o terá cedido a um novo proprietário no dia 4 de Novembro de 1975. Este voltou a Portugal e trouxe com ele o livro. Os herdeiros venderam-no a um alfarrabista, onde o comprei. Contudo, a história pode ser outra. O livro foi vendido em Moçâmedes por 81$50. O proprietário trouxe-o para Portugal e quando ele ou os herdeiros decidiram vendê-lo a um alfarrabista ocultaram o nome, mas deixaram à vista o local e a data de compra. O livro é uma obra de Alejo Carpentier, com o título de O Século das Luzes. Foi traduzido por Alfredo Margarido para as Publicações Europa-América. Serão poucos os que hoje sabem o que foram as Publicações Europa-América e ainda menos quem foi Alfredo Margarido, um intelectual influente naquele tempo. A obra original foi publicada em 1962, o que significa que demorou nove anos a chegar a Portugal. Naquele tempo, tudo era mais vagaroso.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Apetrechadas de asas

No canto XI, da Odisseia, Homero escreveu: Reconheceu-me a alma de Aquiles de pés velozes, neto de Éaco, / e chorando dirigiu-me palavras apetrechadas de asas. O segundo verso mostra a amargura de Ulisses com a sua sorte. Chora, mas mesmo assim as suas palavras são apetrechadas de asas. Elas não apenas voam, como são elevadas. As palavras voam de uma boca que as proferes para uns ouvidos que as escutam, mas a dimensão volátil talvez seja a menos importante na expressão metafórica usada, pois isso é o que acontece em qualquer situação de comunicação linguística. Ora o que distingue as grandes palavras das pequenas, é a capacidade de umas se elevarem, enquanto as outras voam baixo, um voo raso, perto do chão. Há nos gregos um culto desmedido das grandes palavras, dos discursos elevados, dessa capacidade de as palavras se elevarem, ao sair da boca de quem as profere, e dizerem um mundo que só do alto se observa: Filho de Laertes, criado por Zeus, Odisseu de mil ardis, / homem duro! Que coisa ainda maior irás congeminar? / Como ousaste descer até ao Hades, onde moram os mortos /sem entendimento, fantasmas de mortais estafados? A citação parece contrariar esta ideia de as palavras se elevarem. Ora, Aquiles fala dos mortos que não possuem entendimento, fantasmas de mortais estafados. Ao fazê-lo, ele que está morto e habita o Hades, exceptua-se dessa condição e pelas suas palavras mostra possuir entendimento. São as suas palavras que, ao elevarem-se, o raptam da condição da mortalidade dos homens comuns. Não é a velocidade dos seus pés ou a coragem no campo de batalha que o elevam, são as palavras que, ao erguerem-se e voarem para Ulisses, o erguem acima da condição mortal de todos os mortos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Aleijados

Em Sombra, o último livro de poemas de Maria Andresen, há dois poemas com referências ao último filme de Ingmar Bergman, Saraband. Em ambos surge Henrik, filho de Johan, mas não é referido o conflito intenso entre pai e filho. Há um momento, após uma tentativa falhada de suicídio de Henrik, em que este procura o pai e este diz-lhe que nem aquilo (o suicídio) foi capaz de realizar. Maria Andresen prefere a constatação de Henrik … sinto uma dor / constante, / sou um aleijado. O filme centra-se na relação de Johan (Erland Josephon) com Marianne (Liv Ullmann). Discute-se se Saraband é ou não uma continuação de Cenas da Vida Conjugal. Bergman defendeu que não. Ele é o autor, mas, como qualquer autor, a sua interpretação da obra vale tanto quanto qualquer outra, pois aquilo que está em causa não são as intenções que presidiram ao filme, mas o próprio filme. Voltando atrás, se o filme se centra na relação, após 30 anos de separação, entre Johan e Marianne, a tensão entre pai e filho é obsidiante. Que ilusões um pai alimentou acerca de um filho para que tamanho ódio nasce dentro dele? Talvez o pai fosse um aleijado e procurasse no filho o ser saudável que não era. Por aqui, está um começo de Agosto nublado e fresco. Julho entrou na vasta terra do nada. Fê-lo em silêncio, e o silêncio é toda a dignidade que resta a quem abandona a existência para entrar ali onde nada é ou sequer parece ser.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Preocupação

Estou quase preocupado comigo. Imagino que seja um efeito estival, mas dei por mim a comprar livros de ficção científica. Isaac Azimov, Robert Heinlein, Philip Dick, Ursula Le Guin, Frank Herbert, Ray Bradbury. O ano passado, por esta altura, comprei e li uma série de aventuras de Arsène Lupin, da autoria de Maurice Leblanc. Passado o tempo quente, e ainda durante ele, voltei à literatura não adjectivada e a outras leituras mais sérias. A minha preocupação centra-se na interpretação destas inclinações. Será que estou a regredir e não tardará estarei a ler a Enid Blyton? Depois, serão as aventuras, em banda desenhada, de Texas Jack e do Major Alvega, para descer, de seguida, às adaptações infantis das aventuras do Pinóquio? É evidente que, para me proteger de mim mesmo, tenho na secretária, bem à minha vista, a Teoría de la Constitución, de Carl Schmitt, e os Discursos à Nação Alemã, de Johann Gottlieb Fichte. Mais de um século separam estas obras, mas não será inútil para compreender muito do que se passa neste mundo – e talvez fora dele, quem sabe – dar alguma atenção aos autores e a estas obras, em particular. Se, por vezes, a coisa se mostrar um pouco árida, abre-se um romance de ficção científica, deixa-se este mundo, e entra-se noutros mundos possíveis, piores do que este, por certo, mas que nos aliviam do peso que este tem em si.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Uma doença nos olhos

Uma senhora milanesa escrevia – por certo, desesperada – a 28 de Setembro de 1938, numa carta a Benito Mussolini, o seguinte: É impossível que uma mente divina, sobrenatural, como a vossa não consiga encontrar uma solução pacífica para o desentendimento. A segunda grande guerra estava à porta e a aflição explica a hipérbole na consideração da mente do Duce. Há, ainda uma outra coisa. A pobre senhora não percebia que quando alguém, num lugar de poder, julga que possui uma mente divina, sobrenatural, então os homens podem esperar o pior. E o pior é a guerra. O homem comum que reconhece as suas limitações, quando está no poder é prudente. Contudo, outro homem comum, mas sem sentido das suas limitações, perde a prudência e alimentado pela húbris arrasta os outros para o inferno. São inúmeras as cartas de mulheres que, naquele Setembro de 1938, incensando o ditador italiano, pedem com ardor maternal que ele salve o país da guerra. Elas não percebiam que estavam a pedir ao diabo para acabar com o inferno. Isso acontece não poucas vezes na vida dos homens e não apenas em assuntos ligados ao poder. Quantas vezes as vítimas vêem no algoz um salvador? Que doença distorcerá o olhar dos seres humanos para que tão mal saibam julgar aquilo com que lidam? E isto não é uma questão de educação, de acréscimo no ciclo de estudos ou de colecção de diplomas. Talvez seja um problema de oftalmologia, uma doença nos olhos. À falta de melhor, esta parece uma boa explicação.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Contra a realidade

Está uma segunda-feira de sonolência, tecida no nublado dos céus e no calor que teima em descer sobre a Terra, sem que o vento decida intervir para restabelecer a temperatura. O ideal seria uma tempestade. Chuva abundante, raios e coriscos, mas a realidade nunca está pelos ajustes e as excepcionais ideias que me ocorrem são desperdiçadas, sem sequer existir uma explicação. Por isto se percebe que a realidade não pertence a um tempo em que o espírito crítico reina. Está, essa realidade, em desacordo com as minhas ideias? Muito bem, mas tem a obrigação de dizer as razões desse desacordo. A realidade tem uma índole inclinada para o absolutismo. Ignora essa coisa de dar explicações, como se fosse uma rainha absoluta, que aliasse a uma beleza imaculada a frieza do mais insensível dos entes que povoam este universo. Faz o que quer porque pode e o poder é a única explicação para as suas decisões. Muito bem andaria essa realidade que se nega, sem explicação, em realizar as minhas mais elevadas cogitações em ler o que o senhor Immanuel Kant escreveu, no ano de 1781, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. Assim como a religião e a legislação, também a realidade não quer submeter-se ao livre e público exame das razões que a assistem quando nega as minhas pretensões e ignora as ideias brilhantes que me ocorrem para salvação do mundo. Não apenas a realidade suscita justificadas suspeitas, como cria a certeza de que não está interessada na salvação do mundo. Agora, dito o que disse, posso continuar a minha sesta, neste dia sonolento, sem tempestades, nem raios e coriscos. Bocejo, é o que a realidade me permite, ela que se recusa a ler Kant, sabe-se lá a razão.

domingo, 28 de julho de 2024

Confiar

Nunca tinha lido e comecei ontem a ler o meu conterrâneo Claudio Magris, disse-me hoje, ao telemóvel, o padre Lodo. É brilhante, ouvi. Concordei de boa vontade. Logo no começo de Danúbio, perante a possibilidade de uma exposição sobre A arquitectura da viagem: história e utopia dos hotéis, ele – referia-se a Magris – escreve O projecto junto – redigido por professores das universidades de Tübingen e de Pádua, articulado segundo uma rigorosa lógica e acompanhado de bibliografia – quer levar à ordem inexorável do tratado a imprevisibilidade da viagem, a confusão e a dispersão dos caminhos, o acaso das paragens, a incerteza das noites, a assimetria de todos os trajecto. Isto é notável, exclamou o padre, pois fala da essência da vida. Não o sabia um essencialista, comentei. Devia, pelo menos, ter desconfiado, respondeu-me. Seja como for, continuou, e Magris nota-o de seguida, a existência é uma viagem, uma peregrinação. Sim, disse eu, uma peregrinatio ad loca infecta. Continua a desconfiar da bondade divina, devolveu-me. Não tanto da vontade divina, mas da qualidade dos materiais do mundo, a começar pelos humanos. Esse cepticismo não lhe faz bem, avisou-me. O cepticismo, caso não seja doentiamente pirrónico, é um modo de estar alerta. Há que desconfiar. Pois, respondeu-me o meu amigo, está enganado. Há que confiar. A confiança é fundamental. Voltei à citação de Magris e chamei-lhe a atenção de que o comentário do autor reflecte uma desconfiança estrutural no projecto académico, desconfia da redução do borbulhar existencial à arquitectura de um tratado ou mesmo à ponderada organização de uma exposição. É verdade, mas ele fá-lo porque confia mais no borbulhar da existência. Talvez tenha a esperança, acrescentei eu, que Leibniz tivesse razão ao afirmar que este é o melhor dos mundos possíveis. O padre riu e acrescentou que em breve estará por aqui, onde me encontro, e que no melhor dos mundos possíveis está aquela brasserie junto ao mar, uma das melhores mesas deste país. Para que dia marco o jantar, perguntei.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Jogos

Leio, num livro que não vem ao caso, a frase Não foi o homem que inventou o jogo. E esperei de imediato uma revelação extraordinária. Porém, apenas tive direito a uma citação de Schiller, é o jogo, e apenas o jogo, que torna o homem completo. Há coisas piores do que citações de Schiller, claro. Eu preferiria, contudo, uma continuação mais ousada, como afirmar foi o jogo que inventou o homem. Embora se saiba que não é possível encontrar uma essência – isto é, uma característica comum – partilhada por todos os jogos, essência cuja presença nos anunciaria de imediato estarmos perante um jogo, podemos afirmar que um elemento essencial dos jogos é o acaso. Ora aquilo que nós somos, as nossas características físicas e, possivelmente, não só, recebemo-las através da chamada lotaria genética. O espermatozóide paterno que fecundou o óvulo materno, por acaso disponível, foi aquele, mas poderia ter sido outro. Se assim fosse, já não teríamos vindo à existência, mas um outro cuja existência lhe pareceria tão natural como a nossa nos parece. Se isto é assim quanto aos indivíduos, talvez ainda seja mais quanto às espécies. Há aquela história darwiniana da evolução para adaptação ao meio. Parece fornecer uma regra, mas, na verdade, não elimina o acaso. O caminho adaptativo foi este, mas é plausível pensar que poderia ter sido outro, um caminho, por exemplo, que tivesse poupado a Terra à presença de uma espécie como a nossa. Imaginemos o futebol. A princípio um conjunto de seres humanos brincam com uma bola, correm, chutam, agarram-na, tudo de um modo caótico. Depois, lentamente, começam a introduzir regras. A ideia é eliminar o caos original, embora o acaso, por mais regulado por leis do jogo e tácticas competitivas que esteja, nunca desaparecerá. O mesmo acontece com cada um de nós e com a espécie a que pertencemos. Somos fruto desse acaso e este não é mais do que o jogo que a natureza joga consigo mesma. O jogo só torna o homem completo, como pensava Schiller, porque nós somos uma invenção do jogo. No fundo de nós, por mais que lutemos contra isso, existe um princípio de arbitrariedade. Antigamente, um homem de carácter era aquele que aparentava ter eliminado de si essa arbitrariedade originária, o que mostra que as antigas modas educacionais estavam assentes em puras aparências.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Traduções

A Áustria foi, no final do século XIX e no início do XX, um vespeiro de grandes escritores. Eis uma metáfora de péssimo gosto, como se os grandes escritores austríacos fossem vespas ou pessoas traiçoeiras e de má índole. Imagino, todavia, que um grande escritor austríaco posterior, Thomas Bernhard, não desdenharia da metáfora, aplicada não aos grandes escritores, mas aos austríacos em geral. Bernhard sofria dos pulmões, chegou a viver em Portugal por causa disso, mas sofria ainda mais pela a natureza da sociedade austríaca, que ele via composta por nazis dissimulados pelo catolicismo e a social-democracia. Não era de Bernhard que queria falar, mas de um poeta, um grande poeta que morreu jovem, aos 27 anos, de overdose de cocaína. Georg Trakl. Há uma tradução de poemas seus, mas que desconhecia até há pouco. Hoje, mergulhado na ociosidade, decidi fazer experiências e, usando o DeepL, o ChatGPT e um dicionário alemão-português, traduzir alguns poemas, entre eles o ciclo de A Jovem Criada (Die junge Magd). A experiência não me desagradou e, confirmei, o decisivo não é a tecnologia usada, mas a experiência pessoal, no caso a experiência de leitor de poesia, de quem a usa. Nos poemas assim lidos, consegui aproximar-me – tenho essa ilusão – da atmosfera poética que se desprende da obra de Trakl, talvez mais do que se os lesse na tradução portuguesa publicada. A razão é simples. Fui obrigado a reconstruir as traduções, sempre diferentes, que o tradutor automático e o chatbot ofereciam. Quando se está perante um texto traduzido por um ser humano e publicado em livro há uma tentação de conformismo perante o que está apresentado, o que gera uma leitura passiva, ao contrário daquela que me senti obrigado a fazer. Um dia, os dispositivos de tradução substituirão com vantagem o tradutor humano, porque terão mais capacidade, e mais velocidade, para apreender o espírito de uma obra do que um ser humano, mesmo especialista, e vertê-lo, ao espírito da obra, para outro idioma. Esse dia, imagino, ainda estará longe, mas a cada dia que passa estou menos certo dessa lonjura.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A génese

Por vezes, talvez não poucas, perpassam em mim pensamentos completamente parvos. Ao deparar-me com a data de hoje, 24 de Julho, pensei que coisa tão estranha haver um dia com nome de uma avenida de Lisboa. Este pensamento, porém, é mais aceitável do que pensar que existe um dia com o nome de uma praça, a praça 5 de Outubro, por exemplo. O 5 de Outubro ainda se vai sabendo as razões de haver ruas e praças com o seu nome, mas o 24 de Julho é mais associado a uma certa vida nocturna de há tempos. Contudo, foi a 24 de Julho que as tropas liberais, depois de derrotarem as miguelistas na Cova da Piedade, entraram em Lisboa. Daí haver uma avenida com esse nome na capital, que era absolutista e se tornou liberal. Imagino que não exista uma 24 de Julho no Porto ou em Aveiro. Mesmo em Coimbra ou Setúbal seria uma anormalidade. Contudo, como estamos em Portugal, podemos esperar toda a espécie de anormalidades, pois não nos falta talento para o anormal. Por exemplo, o meu talento para a anormalidade consiste em ter pensamentos parvos, isto é, não apenas insignificantes, mas também pequenos. A explicação deste texto reside nas temperaturas assombrosas que tive de suportar neste 24 de Julho. Os graus são tantos que começaram a infiltrar-se no corpo, passaram para a corrente sanguínea e quando chegara, há pouco, ao cérebro transformaram-se neste texto. Eis a génese da coisa.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Tudo tem um tempo

Retenhamos a abertura de Vida à Venda, de Yukio Mishima. Quando Hanio recuperou a consciência, tudo resplandecia à sua volta com um brilho tão intenso que pensou estar no céu. Mas sentia uma forte dor na zona da nuca. E não é possível ter dores de cabeça no céu. É o último período que me atormenta. Mesmo numa obra de ficção, será ultrapassar os limites da experiência possível e fazer afirmações peremptórias sobre lugares onde nunca se esteve. Deixemos de lado a questão de saber se existe ou não um céu. Imaginemos que existe, mas o seu acesso é só possível acabada a vida por aqui. Aceitemos, pois essa é a melhor explicação, que aqueles que chegam ao céu, jamais voltam aqui para contar a realidade do além. Ora, como podemos afirmar que não é possível ter dores de cabeça no céu? Um argumento seria afirmar que no céu não se tem corpo, o que implica não ter cabeça. Depois, conclui-se que não pode doer aquilo que não se tem. Contudo, este argumento esbarra na experiência trivial das pessoas que sofreram amputações de membros, as quais continuam a queixar-se, muito tempo depois, de dores no membro que não têm. Isto abre uma janela para a compreensão da morte. Morrer seria uma amputação global do corpo. Se assim é, então, mesmo no céu, pode-se ter dor de cabeça, de barriga, de peito e até de cotovelo. Esta, todavia, por simbolizar a inveja, pode não ser muito bem vista no paraíso celeste e, talvez, não seja conveniente levá-la para lá. Retornando a Hanio, Mishima diz-nos que ele, ao sentir dor de cabeça, percebeu que falhara a sua tentativa de suicídio. São coisas que acontecem. As pessoas querem apressar a amputação do corpo e, na precipitação, falham. Não perceberam uma questão essencial da vida fora do paraíso. Tudo tem um tempo.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Prazo de validade

Precisava de um medicamento para tomar ao jantar. Fui à farmácia e decidi trazer dois. Cheguei a casa e descobri que nenhum deles era o que estava em falta. Nas manipulações da receita electrónica, no vai e vem do pin de acesso e do pin de opção, na multiplicação de receitas que se acumulam na aplicação, lá troquei um Olmesartan medoxomilo por um Hidroclorotiazida + Amilorida. A coisa podia ser pior, caso tivesse trocado o meu nome por outro qualquer ou me tivesse esquecido do número de contribuinte, baptizado há muito pelo pomposo nome de número de identificação fiscal. O truque é interessante. Passei de contribuinte para alguém com identidade fiscal. Este upgrade na relação com o Estado não foi acompanhado, porém, com um upgrade do meu hardware neuronal e ainda menos pela afinação das competências do software intelectual. Pelo contrário. Isto não é tudo na saga da decadência deste narrador sem narrativa. Desde há dois dias que um mistério vinha a assolar a minha relação com o computador. Do nada, onde quer que escrevesse, começavam a aparecer sequências de pontos finais. Querem ver que fui atacado por um vírus, pensei. Fiz pesquisa, mas não colhi informações sobre um vírus em forma de sequências de pontos finais. Reinicio o computador, mudo de browser, faço isto e aquilo. Por vezes, parece que a coisa pára, mas, quando menos espero, lá voltam as sequências de pontos finais. Tenho de comprar um novo teclado, pensei. Deve haver um problema com a tecla onde se encontra o ponto final. De aparência, porém, parecia de boa saúde. Até que se me fez luz. Tinha colocado uma série de coisas em cima do portátil e como o tenho ligado a um monitor e a um teclado, não me apercebia que essas coisas, em cima daquela espécie de tapete que serve de rato, me estavam a enviar sinais. Que as tirasse dali, guinchavam em forma de pontos. Com o hardware e o software pessoais desactualizados, levei mais de dois dias a compreender uma coisa básica. Isto é muito pior do que trocar o Olmesartan pela Hidroclorotiazida. Um dia destes tenho de verificar o prazo de validade, o meu, claro.

domingo, 21 de julho de 2024

Grande literatura

Samuel Johnson, o Dr. Johnson que terá dito, mas não escrito, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, escreveu inúmeros ensaios, merecedores de leitura, daquela leitura que se faz por prazer e não por dever. O ensaio não é, por norma considerado, como uma das manifestações mais elevadas da literatura, se comparado com a poesia, o teatro ou, a partir dos tempos modernos, o romance. Isso, porém, é um erro. Samuel Johnson, no ensaio Melindre e Rabugice escreve Quando a velhice ou a solidão amargam o espírito das mulheres, a sua malevolência normalmente é exercida numa supervisão rigorosa e odiosa de insignificâncias domésticas. Depois de exemplificar com a conduta de Eriphile ao longo de vinte anos, prossegue escrevendo Ela vive unicamente para manter em ordem a casa e o jardim, não sente nenhuma inclinação para o prazer, nem nenhuma aspiração à virtude, enquanto está absorvida na grande tarefa de conservar a gravilha sem erva e o rodapé sem pó. Perante o grande drama de encontrar o que ler durante as férias deste infausto, caso o seja, ano de 2024, há uma solução. Ler os Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade, de Samuel Johnson, publicados pela E-Primatur em Junho deste ano, seleccionados e traduzidos por Pedro Galvão, professor na Faculdade Letras de Lisboa, no departamento de Filosofia. O primeiro ensaio tem por título Esperança Vã. Começa com uma observação pertinente: Túlio observou há muito que nenhum homem, por mais enfraquecido que esteja pelo tempo que já viveu, está ciente da sua própria decrepitude a ponto de supor que poderá não conservar o seu lugar no mundo por mais um ano. E o ensaio discorre sobre o tema por pouco mais de cinco páginas, dando lugar a um novo ensaio, também de curta dimensão e de grande talento. Não se trata de Filosofia, mas de grande literatura.

sábado, 20 de julho de 2024

Golias e David

Esta a ser um massacre. Não, não se trata de um acto terrorista, mas de um jogo de Râguebi entre um David e um Golias, só que o David não tem funda e o Golias, depois de um acidente de percurso, está a tirar partido da sua força. O Golias é a África do Sul, actual campeã do mundo, e o David é Portugal, que, ao intervalo, está a perder por mais de vinte pontos. Nem vou escrever no fim do jogo, é melhor não ter o panorama todo sob os olhos, pois o resultado pode ser traumático. Diante de mim, tenho um livro publicado em 1970, pela Sociedade de Expansão Cultural. Encontrei-o por acaso e faz parte daquilo a que se dá o nome de literatura colonial. É um livro de contos e novelas de Fernando Reis, com o título Histórias da Roça e transporta para a ficção a experiência do autor em S. Tomé e Príncipe. Tem uma capa excelente do pintor Neves e Sousa. A Sociedade de Expansão Cultural foi uma editora criada pelo escritor Domingos Monteiro. Esteve activa nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta do século passado e teve um papel importante na divulgação de inúmeros escritores. O tempo foi implacável tanto com a editora como com os seus autores, alguns deles ainda a merecerem a ser lidos. Tão implacável quanto o Golias do Râguebi com o pequeno David, o que esqueceu a funda.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

LHS 1140b, a esperança

Estou extasiado e radiante. Foi descoberto um exo-planeta, apenas a 48 anos-luz da Terra, que poderá ter não apenas atmosfera como água líquida. Eis um motivo para o meu êxtase e para a minha radicação. Cansado da má gestão do nosso planeta, tenho agora a oportunidade de ir para outro, ali ao virar da esquina. O que são, se não me enganei nas contas, 454 118 400 000 000 km? Nada. Enquanto uns imigram para a Suíça, para França ou, os mais temerários, para os EUA, eu, montado no meu Rocinante, imigro para o LHS 1140b. Ainda hei-de lá chegar bem a tempo de procurar ocupação e reinventar-me numa nova condição. O meu problema é que não sei o que hei-de levar para a viagem. Haverá, no caminho, restaurantes de beira de estrada? Encontrarei shoppings para comprar roupas, caso rasgue umas calças ou uma camisa? E farmácias haverá? Peço umas receitas aos diversos médicos que frequento, a contragosto, diga-se, e vou-me abastecendo ao longo do trajecto. Levo a família ou vou sozinho, como um batedor? São estes pequenos problemas que ainda me prendem a esta Terra, mas, tenho essa expectativa, acabarei por os resolver, pois um herói resolve não apenas os problemas dos outros, os mais fáceis, mas também os seus, os mais intrincados. Dizer Adeus, ó Terra que o LHS 1140b espera-me é a esperança que me move. O pior é o Flexiban. Dá-me uma soneira diabólica. Posso estar a dormir na estação de saída e ir parar ao centro da Via Láctea e ser deglutido por algum buraco negro.

domingo, 14 de julho de 2024

A tomada da Bastilha

Há pouco pensei que a imperfeição do calendário espoliou os franceses de um dia feriado. Aliás, como é possível comemorar a tomada da Bastilha num dia de descanso. As tomadas das Bastilhas não podem ocorrer nem aos domingos, nem aos feriados, tão pouco aos dias santos, mesmo aos sábados se tornou impossível. Em França, no ano de 1789, ocorreu a uma terça-feira, um dia bom para tomar a Bastilha. Com isto quero demonstrar a imperfeição dos calendários que, apesar da sua regularidade global, sofrem de uma irregularidade acintosa no particular. Qualquer um de nós deveria fazer anos no mesmo dia do mês e da semana. Quem, como eu, nasceu a um sábado, não percebe como pode fazer anos a uma terça-feira. Nesses anos temo que, por um qualquer acaso, se confunda o meu aniversário com o da tomada da Bastilha, apesar de ambos os aniversários estarem afastados no calendário. Há pouco, estive a contemplar as águas do oceano. Estavam cor de chumbo, ao contrário de ontem, que pareciam verdes. Outra irregularidade da natureza. É uma coisa num dia, outra no outro. Uma falta de carácter, uma inclinação para a volubilidade. Tanto os calendários humanos como as disposições da natureza são marcados pela leviandade, o que deixa aturdidas pessoas graves como este narrador, que cultiva a constância e abomina a irregularidade. Pelo menos em certos dias. Há outros, porém, em que o amor pela excepção ultrapassa em muito o da regra. Talvez, por isso, seja um narrador volúvel, mesmo quando enaltece a constância e abrenuncia a desarmonia de tudo o que está fora da regra. Seja como for, nada tenho a ver com a tomada da Bastilha, coisa que ocorre um pouco por todo o mundo, mas na qual os franceses são virtuosos. Sempre que sentem uma indisposição, tomam uma Bastilha. Já os portugueses preferem tomar uma pastilha. Sou exímio em fazer trocadilhos sem tino. Ainda bem que França foi eliminada do Europeu de futebol. Imagine-se que chegava à final e a Inglaterra lhes ganhava. Os franceses teriam de ceder a tomada da Bastilha aos ingleses, o que, como se calcula, os poria indispostos e obrigá-los-ia à tomada da pastilha.

sábado, 13 de julho de 2024

Indirectamente

Pego no livro com cuidado, com uma unha começo a separar, da contracapa, a etiqueta com o preço, a livraria que o vendeu e a data em que a etiqueta foi produzida. Depois, colo essa mesma etiqueta no verso da capa. É um sinal para o futuro. Leio alguns poemas e fico a meditar num. A alga queria ser flor, / a flor queria ser árvore, / a árvore queria ser pássaro. // O homem queria ser asa. Onde está o núcleo onde se gera a poeticidade deste poema, Lição de Botânica, de Ricardo Gil Soeiro? Encontra-se na suspensão da continuidade dos três primeiros versos. Em vez de nos dizer o que o pássaro queria ser, o poeta omitiu a vontade do pássaro, suspendeu o discurso e, ao retomá-lo, o pássaro é apenas referido metonimicamente, asa, como sendo o aquilo que o homem desejava ser. A árvore, explicitamente, pode querer ser pássaro, mas o desejo do homem só se pode enunciar indirectamente, como se todo o desejo trouxesse consigo uma culpa que não permite dizê-lo, mas apenas sugeri-lo. Não pagou caro, Ícaro, o seu desejo de ser pássaro? Há coisas que nunca se esquecem.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Da verdade

Alguém, no afã de persuadir o leitor para o seu campo de ideias, escreve A verdade relativa deve ser dita com prudência e circunspecção, porque ela é incerta pelo facto de não ser absoluta. Ora, há aqui um equívoco na utilização das palavras, uma oposição, como se os termos fossem antónimos, entre absoluto e relativo. Ora, toda a verdade é relativa a alguma coisa. Imaginemos que a seguinte proposição: Este narrador é um idiota.  Sem esforço, imaginemos ainda que a proposição é absolutamente verdadeira, pois descreve com completa exactidão a realidade do narrador. Esta verdade absoluta é relativa. Relativa ao narrador. A proposição só e verdadeira na sua relação com um certo referente. Podemos então afirmar que tudo aquilo que é absoluto é ao mesmo tempo relativo. É uma condição da linguagem na sua função declarativa. O seu dizer é sempre dizer de qualquer coisa, é um dizer que está relacionado com o seu objecto, digamos assim. Contudo, o que é mais interessante na frase é a recomendação de prudência e circunspecção. Eu estou de acordo, mas não pelos mesmos motivos. Não é porque aquilo que possa dizer seja incerto, mas porque a prudência e a circunspecção tornam o mundo melhor. É uma questão prática. Quanto menos se falar, escrever, etc., melhor é o mundo, menos poluído fica com os devaneios que ocorrem a falantes e a escreventes ou, numa linguagem mais religiosa, a escribas e fariseus. Por exemplo, este narrador, que não passa de um escriba farisaico, o que faria de melhor para cuidar do mundo seria omitir aquilo que lhe passa pela cabeça e desce pelos dedos para o teclado. Eis uma verdade absoluta na sua relação ao escriba.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Demónios

Consta que uma das teorias físicas mais desconcertantes é a mecânica quântica. Numa daquelas leituras inúteis a que, por vezes, me dedico sem que consiga perceber a razão, descobri que o princípio de incerteza de Heisenberg corrobora uma das intuições que guiam o senso comum. O passado está perfeitamente definido, enquanto o futuro é imprevisível. As relações de incerteza dizem-nos que não podemos saber ao mesmo tempo a posição de uma partícula subatómica e a quantidade do movimento, o que terá por consequência não podermos determinar a sua situação no futuro. Contudo, parece ser possível a partir de medidas relativas de um electrão, por exemplo, determinar a sua quantidade de movimento e a sua posição no passado. Isto contraria a pretensão do Marquês de Laplace, matemático e físico que viveu nos séculos XVIII e XIX. Este tinha uma visão determinista do universo e considerava o presente como a consequência do passado e como causa do futuro. Laplace imaginou que se um intelecto, suficientemente poderoso, tivesse conhecimento, a dada altura, de todas as forças que movem a natureza, teria a capacidade de incluir o movimento de todos os elementos que compõem a realidade numa única fórmula e, para ele, nada seria incerto, nem o passado, nem o futuro. Talvez não tenha sido um acaso ter sido dado a esta experiência mental o nome de Demónio de Laplace. Que coisa mais demoníaca poderia haver do que conhecer o futuro? Ora, Werner Heisenberg e Niels Bohr com a sua física insensata, digamos assim, vieram devolver a esperança aos homens. O futuro é imprevisível. Isto coloca um grave problema teológico. Se o futuro é imprevisível, então Deus não pode ser omnisciente, não tem conhecimento do futuro. Problema de fácil solução, e essa não necessita de passar pela negação da existência de Deus. Basta considerar que Deus vive na eternidade, num eterno presente. Logo, para ele, tudo existe como se estivesse no passado. Sendo assim, ele pode saber a quantidade de movimento e a posição de qualquer partícula do universo. É evidente que isto levanta novos problemas. Se Deus pode saber tudo, então tudo está determinado e com isso volta o demónio de Laplace. Não, propriamente. O demónio de Laplace, tal como os homens, move-se no tempo, enquanto Deus está fora dele. Claro, há razões para que o texto de hoje tenha saído este. Uma noite mal dormida. Posso imaginar mesmo um episódio febril, embora seja falso. Se estivesse na posse mínima das minhas faculdades não teria escrito o que escrevi, mas a vida é o que é. Com ou sem demónio de Laplace.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Da benevolência da química

Bendita química, ó aliviadora dos atormentados. Foi isto que pensei quando comecei a sentir os efeitos benévolos do analgésico receitado para enfrentar as dores não tanto da extracção do tal molar, mas da preparação para o implante. Isto imagino eu. O caso é simples. Quando a anestesia, outra conquista da química, começou a perder efeito, o corpo decidiu ajustar contas comigo e começar a vitimizar-se da ablação sofrida. Comprimido tomado, a vingança a afirmar-se, mas a partir de certo momento a situação inverteu-se. A dor, e com ela a vingança, começou a retroceder. Eu sei que ela vai voltar, mas espero estar equipado para a derrotar. Só espero que não sejam esperanças vãs. Não é aconselhado sair de casa, nem fazer exercício. Também me foi proibido o álcool por uma semana, logo agora que tinha comprado uns brancos bem interessantes. Em vez de um belo branco fresco, o aconselhado é fazer gelo de quinze em quinze minutos. Como achei que isso implicaria demasiado movimento, troquei para um prazo de vinte em vinte minutos. Mesmo para um cavaleiro andante, não há maior aventura do que lidar com o corpo, esse amigo que, de um momento para o outro, se enfurece e se torna inimigo. Vou passar a tarde a ler uma peça de teatro do norueguês Knut Hamsun, Aux Portes du Rayume (não existe em português), que faz parte de uma trilogia que inclui ainda Le Jeu de la Vie e Crépucule. Isto, enquanto ponho e tiro o gelo da cara. Também hei-de comer um gelado.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Meditação extraterrestre

Um site anunciava que revelações surpreendentes acerca dos extraterrestres poderão ser feitas até final do ano, melhor, até 18 de Outubro. Portanto, o que é anunciado não são as tais revelações, mas a possibilidade de estas ocorrerem. Se as revelações não ocorrerem a notícia não está factualmente errada. Posso noticiar que Espanha poderá vencer França no jogo de logo à noite. Se França ganhar, a minha anunciação não estará errada. Os órgãos e sites de informação não deveriam fazer profecias, ainda por cima na modalidade do possível. Jornalistas não são profetas nem videntes, mas pessoas que informam sobre factos. O que são factos? São coisas que estão feitas. A palavra facto deriva da latina factu- particípio passado do verbo facĕre, que significa fazer. Os jornalistas apenas deveriam informar sobre o que está feito. Ora, aquilo que está feito – e, por isso, é um facto – consumado está e perdeu o seu poder de mover os ânimos. Então os jornalistas dedicam-se à especulação, desenhando mundos possíveis. Neste caso, um mundo possível é aquele em que não exista qualquer informação relevante sobre a existência de extraterrestres; outro mundo possível é o da existência de informação factual sobre a existência desses tais ET. Pergunto-me em qual desses mundos gostaria de viver. Depois, concluí que seja qual for o mundo em que tenha de habitar, a informação sobre a existência ou não de extraterrestres não me serve para nada e não faço ideia o que me moveu para escrever esta prosa.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

O corpo

O corpo que também somos é uma coisa extraordinária até ao momento em que damos pela sua existência. Damos por ele não quando o vemos ao espelho, pois aí damos apenas pela existência de um reflexo, mas quando alguma coisa desse corpo se torna incómoda. Foi o que me aconteceu hoje com um dente. Depois de uma viagem à capital de distrito, comecei a notar que tinha um molar no lado esquerdo do maxilar inferior. A descoberta não foi motivo de júbilo. Então, perante o meu desagrado, ele começou a ameaçar com uma dor. Pouco depois do almoço, estava sentado na cadeira da dentista para avaliar a situação. A sentença foi a que eu esperava. Este molar já me tinha chamada várias vezes a atenção. Foi de tratamento em tratamento até que hoje recebeu o veredicto: ablação. Antibiótico mais ibuprofeno e quarta-feira será o dia da execução e o início dos trabalhos da substituição. Isto demonstra a minha tese acerca da natureza extraordinária do corpo. Quanto menos se dá por ele, mais extraordinário é. A grande vantagem dos anjos sobre os homens é não terem corpo, para além de não terem sexo. Nunca correm o risco de se deparar com ele num voo malsucedido. Alguém já ouviu falar de um anjo que fosse ao dentista? Ninguém.

domingo, 7 de julho de 2024

A jactância da diferença

Há domingos que se perdem e deles não fica rasto no grande armazém da memória, como, no início do primeiro poema de A Ilha – Mar do Norte, Rainer Maria Rilke nos lembra: A próxima maré-cheia apaga o caminho no baixio, / e tudo se torna em todos os lados igual. Essa estranha disputa que anima os corações humanos, a que opõe a diferença à igualdade, tem sempre a mesma solução. A igualdade acabará por vencer, por grandes que sejam os esforços para a diferenciação, pois o baixio é o lugar dos homens e basta que a maré-cheia venha, e ela nunca deixará de vir, para que tudo retorne a uma mesmidade, onde não há lugar para se inscrever a jactância da diferença. Por isso, eu deveria ser mais comedido na lamentação de um domingo que morre na indiferença. Esse é o destino de tudo e de todos, a começar por mim. Acho que vou sair, caso encontre um restaurante aberto para ir jantar. A indiferenciação dominical cansou-me.

sábado, 6 de julho de 2024

Meter-se na vida dos outros

O que sabemos nós daquilo que move os outros? Foi esta questão que me ocorreu ao ler o que um crítico da revista Illustração, no ano de 1884, escreveu acerca do escritor portuense Alberto Pimentel: O sr. Alberto Pimentel quer ser tudo (…) d'aqui resulta, que querendo ser tudo — o sr. Pimentel não é por emquanto cousa alguma nas lusitanas lettras! E acrescenta na sua verrina crítica: por querer ser tudo, por querer escrever sobre tudo. Quanto melhor não fora que o sr. Alberto Pimentel pensasse apenas em ser poeta, ou em ser jornalista, ou em ser regenerador. Havia de valer alguma cousa, pois que nós não duvidamos um momento do apregoado talento do sr. Pimentel. Mas com a mania de querer ser tudo, de querer fallar e escrever sobre tudo, ha-de cada dia ver mais distante da sua porta a Posterioridade. O crítico da Illustração acertou. Hoje, poucos sabem quem foi Alberto Pimentel e ainda menos são os que o lêem, caso haja alguém. Contudo, quem confiou ao crítico os segredos da alma do escritor? Quem lhe disse que aquilo que o motivava era ser alguma coisa nas letras lusitanas ou acamaradar com a Posteridade? É verdade que Alberto Pimentel escreveu sobre muitas coisas e abraçou inúmeros géneros literários, mas isso pode ser apenas a prova de que o prazer do escritor era o de escrever, o de sentir a pena a ranger sobre o papel, de ver os textos crescerem e tomar forma para que outros os lessem, e havia muitos que no tempo os liam. Este tipo de crítica literária estava todo ele assente numa conhecida falácia, o argumentum ad hominem, o ataque pessoal. Seria pertinente pegar num romance e mostrar as suas inconsistências, mas discorrer publicamente sobre o tipo de vida que alguém decide levar, sem com ele molestar os direitos de terceiros, é uma patologia fundada na crença implausível de que se sabe aquilo que os outros querem da vida.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Jogo de futebol

Depois de uma visita, passei por um supermercado. Os portugueses preparavam-se para o jogo de logo à noite. Também eu me fui preparar. Jantar a ver futebol, os nossos contra os de França, isto é, contra os dos outros. Gostaria que os nossos ganhassem, mas se perderem o ânimo, o meu, claro, não sofrerá alterações. É apenas um jogo entre rapazes e é preciso perceber que, no fundo, não é mais do que isso, apesar das aparências. O pathos que se apropriou do jogo tornou-o popular, pois não há coisa de que o povo mais goste do que emoções. Como tem um stock limitado em casa aproveita aquelas que o mercado lhe oferece. Repare-se como a comunicação social trata os jogos. Um Portugal – França parece uma batalha do exército lusitano contra as hordas napoleónicas. Como em todas as batalhas aquilo que está em jogo é a vida e a morte. Esta hiperbolização oculta a realidade prosaica das coisas. Uns rapazes (também podiam ser raparigas, claro, mas haveria muito menos emoção) de nacionalidade portuguesa jogam com outros rapazes de nacionalidade francesa. A ideia central é colocar a bola dentro da baliza adversária e evitar que os outros repitam a proeza ou que se avantajem na pontaria. Nada disto justifica tamanha paixão, embora pudesse provocar prazer estético ou até racional. O jogo, como todos os jogos, não é destituído de dimensões estéticas e racionais, as quais, por vezes, podem estar intimamente ligadas. Contudo, para as apreciar é necessário fazer uma epochê, isto é, pôr as emoções entre parêntesis e contemplar o jogo como um espectador desinteressado. É evidente que se essa fosse a condição necessária para haver futebol, que os espectadores o contemplassem de modo desinteressado e imparcial, ele nunca se teria tornado na indústria que é. Uma indústria da identidade fundada em emoções. Na verdade, uma indústria poluente. Seja como for, irei ver o jogo. Serei um espectador interessado, mas benevolente. Quero dizer, disposto a aceitar, se for o caso, que os deles são melhores que os nossos, embora gostasse que os nossos fossem melhores que os deles.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Uma recepção calorosa

Uns dias fora e chego à cidade onde me acolho e sou recebido com 38 graus. Eram cinco da tarde. Tive de sair do carro para ir à farmácia e senti a pele a estalar. Não estalou, mas a sensação foi essa. Parece que no fim-de-semana a temperatura desce para níveis aceitáveis, mas é apenas para ganhar balanço para novas aventuras na antecâmara do inferno. Demorei a ser atendido, mas quase agradeci, pois o ar-condicionado devolvia-me a um mundo normal. Este sítio antecipou as alterações climáticas. Já era um clima alterado e ainda não havia alterações climáticas com origem nos devaneios humanos. Alguém se lembrou de introduzir uma serra, não muito alta, entre o ar marítimo e aquele que se respira por aqui. O resultado é, na verdade, caloroso, demasiado caloroso. Já pensei em sugerir aos autarcas dos concelhos que sofrem os desmandos da serra para proporem a abertura de grandes túneis por onde o ar marítimo entraria para espalhar por estas terras uns dias não direi frescos, mas menos quentes. Depois, equacionei as consequências na indústria e comércio de aparelhos de ar-condicionado e contive-me. Não quis que a minha magnífica ideia fosse culpada de falências e desempregos. Sou um narrador com consciência social, coisa que não é partilhada por muitos dos meus confrades. Gostaria de ir caminhar, mas a temperatura sentida é de 37 graus, embora a real seja de 33. Esta diferença entre a temperatura que faz e aquela que é sentida permitir-me-ia uma bela dissertação sobre o problema do conhecimento, mas estou pouco inclinado para a epistemologia. Prefiro ficar a fazer nada, pois, como se sabe, o nada é uma coisa que dá muito gozo fazer. É um trabalho ontológico.