segunda-feira, 28 de abril de 2025

Apagão

Imagino que o dia 28 de Abril esteja mal servido de efemérides. Para colmatar a falta, decidiu dar-se, e a nós com ele, um apagão memorável. Decretou que toda a Península Ibérica ficaria sem energia. Não sei se, da sua parte, foi uma decisão sábia. Duvido que algum dos países afectados declare o dia de hoje feriado nacional. Por outro lado, mostrou os limites da minha energia. Não me agradou chegar junto aos elevadores, abrir a porta que dá para as escadas e subir, degrau a degrau, até ao quinto andar. Ainda pensei, depois de ter ultrapassado o primeiro lance de escadas: isto faz-me bem. Conforme fui subindo, a minha opinião foi-se alterando. No quarto andar, lancei uma praga à ideia de cortar a energia. No quinto, resmunguei enquanto procurava a fechadura da porta. Acabado o almoço, tive de descer as escadas. A tarefa não foi desagradável. A minha cultura, onde borbulham ditados populares, informou-me: para baixo todos os santos ajudam. Ao ouvir a frase no fundo da minha consciência, estanquei e invectivei todos os santos, esses mesmos que ajudam para baixo e têm um dia só para eles. Deveriam ter vergonha. O que nós precisamos é de ajuda para subir e não para descer. Para quedas estamos cá nós. Aliás, somos especialistas em trambolhões. Disse-lhes isto em pensamento, claro. Talvez esses santos que formam uma totalidade não tenham gostado da reprimenda. Fui fazer o que tinha a fazer e, passadas umas duas horas, voltei para casa. Preparado para mais ascensão sem ajuda dos santos, conformado e sem energia, que em mim também sofrera um apagão, descubro que no elevador brilhava uma luzinha vermelha. Abro a porta, fecho-a, carrego no botão e vou eu até ao quinto andar, olhando para o espelho para ver se havia algum sinal de gratidão na minha cara. Ao chegar a casa, curvei-me, em pensamento,  perante todos os santos. Afinal, sempre fizeram o trabalho deles. Não sabia que eram electricistas. Exclamei mesmo, para os motivar: Excelente trabalho! Bem merecem o dia que o calendário lhes dedica.

domingo, 27 de abril de 2025

Uma conversa

Acabei de chegar de Itália. Ouvi do outro lado do telemóvel. Foi ao enterro do Papa, respondi. Uma gargalhada. Não, não. Devia ter ido, afinal ambos foram formados pela mesma Sociedade, respondi. Ou a sua veia de Settembrini, apesar de ser um jesuíta, o torna jacobino, acrescentei. O meu amigo padre Lodo, Lodovico Settembrini, continuou a rir. Não me provoque, ameaçou. Fui ver um sobrinho bisneto e baptizá-lo. Il Piccolo Settembrini que há-de assegurar a continuidade imortal dos Settembrinis, atirei. Sempre me pareceu que crê mais na imortalidade grega – aquela que vem pelos grandes actos e grandes palavras, mas, acima de tudo, pela continuidade biológica – do que naquela que lhe chegou de Jerusalém. Hoje, não consegue provocar-me. Além do mais, não acredito nessa veia de provocador, respondeu-me. Bem me parecia que lhe falhava a fé, contrapus. Sim, por vezes falta-me a fé, não no Alto, mas nas coisas baixas. Há muito tempo que não conversávamos, declarei, para mudar de assunto. Apesar da idade, tenho andado muito ocupado e não apenas com o baptizado do Pietro. Assuntos da Companhia. Não somos assim tantos e as solicitações não param. Liguei-lhe para combinarmos um jantar no próximo sábado. Estará cá o Hans e a Emília; acho que devemos juntar o grupo todo. Isso não será uma desculpa para esconder o pecado da gula? Não se preocupe com os meus pecados, ouvi. Trato disso, ao contrário de si, exclamou. Por mim, disse, nada a opor; antes pelo contrário. Quer que eu escolha o sítio e marque, perguntei. Não se preocupe, eu trato disso, prometo. Desde que não seja... não tive tempo de acabar a frase. Eu sei, eu sei. Estamos combinados, continuou, depois digo-lhe o local e a hora é a de sempre. Agora, tenho de ligar para a família em Itália.

sábado, 26 de abril de 2025

Dignos de registo

Não sei por que razão chegou à minha consciência a expressão A Ronda da Noite. É a designação de um programa da Antena 2, onde se fala de livros. É também um eco de um quadro de Rembrandt. O título é fascinante. Aliás, sinto um grande fascínio por títulos. Um dos filósofos com mais talento para os produzir é o italiano Giorgio Agamben. Recebi há pouco — também há empresas a fazer entregas ao sábado — uma série de livros, entre eles a edição integral, num único volume, de Homo Sacer, a qual contém em si nove obras distintas. Veja-se o título da primeira obra: Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua. O quarto livro da série é Horkos. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. O quinto também tem um título notável: Oikonomia. O Reino e a Glória – Para uma genealogia teológica da economia e do governo. Também se distinguem Opus Dei. Arqueologia do Ofício e, ainda dentro da série Homo Sacer, O uso dos corpos. Fora da série, O Tempo que resta – Comentário à Carta aos Romanos e O Reino e o Jardim não ficam atrás. Encontrar títulos é um exercício requintado, pois envolve, por um lado, uma grande capacidade de síntese e, por outro, um afinado sentido estético. Imagino que Agamben terá um grande prazer em baptizar as suas obras, talvez tanto quanto em escrevê-las. Entre os livros que recebi hoje, vinha também um de outro filósofo italiano, Paolo Virno. Também ele sabe encontrar excelentes títulos: Gramática da Multidão – Para uma análise das formas de vida contemporâneas. Agora que escrevo sobre isto, ocorre-me que o facto de ambos serem italianos pode ter uma importância decisiva. Talvez a arte de escolher bons títulos seja um fenómeno regional. Não digo todo o mundo, mas todo o Ocidente devia ser italiano. Não por motivos políticos ou sociais — isso seria uma péssima ideia —, mas por uma questão estética. Nem que fosse para aprender a encontrar títulos dignos de registo.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Uma arte

Um dos meus talentos – talvez o único – é o da arte de protelar. Protelei tanto que fui coagido pela realidade a dedicar o feriado a coisas que tinha de fazer, mas cuja execução me causa náuseas. E, esclareça-se, não sou dado a náuseas, embora a náusea sartriana tenha exercido fascínio sobre a minha configuração mental mais do que devia, reconheço. Não sofro de procrastinação. O meu adiar coisas repelentes não é uma doença, mas uma arte, a arte de protelar, como escrevi acima. Procrastinar é uma doença porque o sujeito que procrastina é passivo. Sofre a procrastinação, como se sofresse de reumático, de gripe ou de uma qualquer doença do catálogo sem fim que os médicos guardam no cofre-forte dos seus consultórios. Protelar, porém, resulta de uma decisão, a qual dá às coisas proteladas espaço para amadurecerem, para se tornarem mais sólidas e, por isso, mais imperativas. Quando chegam a essa fase, apresentam-se diante de mim – daquele que as permitiu desenvolver na irresolução – e, peremptórias, pedem para serem resolvidas. Eu cedo ao pedido. Por isso, quase não dei pelo feriado cívico, ocupado com aquilo que tinha adiado. Este episódio é virtuoso. Mostra que a ordem do mundo está errada, coisa que Hamlet já sabia ou o próprio Quixote. Errada porquê? Pelo facto de tudo aquilo que eu protelo não desaparecer no seu protelamento. Isso, sim, seria um mundo perfeito, ou quase. Também este texto foi, na sua escrita, protelado. Não foi por isso que se tornou melhor, apenas esteve mais tempo naquele limbo onde vivem os textos que estão à espera de ser escritos. Pois, se alguém pensa que os textos só existem porque alguém os escreve, posso afirmar que está errado. Qualquer texto, desde o mais incipiente até ao mais genial, existe a priori num estado potencial no mundo de textos à espera de se manifestar. Aquele que os escreve é apenas uma espécie de parteira que traz à luz do mundo a cria que existia já. Eu não escrevo estes textos. Faço o parto e eles nascem. Sou completamente irresponsável pela sua bondade ou maldade. Juro que é assim.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A mesa do lado

Hoje já fiz uma viagem de doze graus centígrados. Há quem meça a distância pelos quilómetros, há quem o faça pelos ponteiros do relógio. Eu sirvo-me do termómetro. Fui almoçar a certa praia do Oeste. Quando saí de lá, estavam dezoito graus, bem depois das duas da tarde. Ainda me demorei por aqui e por ali. Quando cheguei a esta cidade – cuja honra maior seria a promoção a vila, o que nos dias de hoje é impossível – estavam trinta. Como sempre, o peixe daquele restaurante é excelente. O problema é que não podemos escolher quem se senta na mesa ao lado. Calhou em sorte um casal – enfim, talvez não fosse um casal, mas um homem e uma mulher – em que ele mal abria a boca, seja para comer, seja para beber, seja para falar. Ela, porém, compensava a frugalidade dele e restabelecia o equilíbrio no mundo. A certa altura, o discurso dela voltou-se para a teologia. Que tinha lido qualquer coisa que não percebi, embora tivesse ficado desejoso de saber o quê. Asseverou que Jesus Cristo tinha sido casado com Maria Madalena, e deu uma explicação teológica: ele era Deus e homem, e, como homem, decidiu casar-se, mas não adiantou se tinha tido filhos e se fora feliz no casamento. Como Deus, fez todas aquelas coisas de multiplicar os pães, curar os doentes, ressuscitar os mortos e transformar a água em vinho. Tudo isso era verdade, está mais que provado cientificamente. Só não há filmes nem fotos, pensei, porque ainda não tinham descoberto o cinema, nem a máquina fotográfica. Quando ela pediu a segunda garrafa de vinho, deu a desculpa de que estava com muita sede, mas percebi que acreditava que ainda era um resto do vinho das Bodas de Canaã, e que era melhor aproveitar, não vá esgotar-se. O que me pareceu bastante plausível. Tinha uma cor rosada e não o vermelho tinto que teria resultado da metamorfose da água. Dois milénios sempre são dois milénios, e as antocianinas perderam o vigor, ficaram anémicas. A senhora, porém, não se preocupou com a anemia e, para compensar, pediu uma aguardente velha, com aquela cor castanha que faz lembrar sangue seco. Não devia escrever estas coisas. Sabe-se lá se são verdade. O pior foi a chegada, depois de doze graus de viagem.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Ramalhetes de papoilas

Hoje – finalmente – fui caminhar pelas ruas da cidade. Passei pelo parque, mas não era um parque de merendas. Não havia piqueniques de burguesas, nem ramalhetes rubros de papoilas, nem seios como duas rolas. As burguesas de hoje não andam de burro, deslocam-se a grande velocidade, não sabem o que são piqueniques nem papoilas – e, quanto aos seios como duas rolas, estamos conversados. Cesário Verde não escreveu papoilas, mas papoulas. Em contrapartida, no tempo dele, seria provável que o ouro fosse oiro. As pessoas iam aos toiros; hoje vão aos touros. Ninguém encontra tesoiros, mas também não descobre tesouros. Tesouro ou tesoiro, a coisa não se entrega a ninguém – ou quase. Foi isto que ocupou o vazio da minha mente enquanto caminhava? Não, claro que não. Isto ocorreu-me agora, pois aquilo que pensei evaporou-se. Esta ideia de um pensamento que se evapora contém uma importante lição sobre a mecânica do mundo – do mundo mental. Talvez o único mundo que exista seja o mundo mental, mas não vou discutir metafísica ou epistemologia a uma hora destas. A lição pertence à física – talvez à mecânica dos fluidos. A evaporação do pensamento é um fenómeno interessante porque o processo não é igual ao longo da vida. A princípio, o pensamento não se evapora porque não se pensa nada. Depois, o pensamento torna-se sólido e fica dentro de nós: são os primeiros princípios. Mais tarde, o pensamento sofre uma metamorfose e devém líquido – aquilo a que se poderia chamar a água do pensamento. Eu vivo, porém, noutra fase: a do pensamento gasoso. Mal penso, ele transforma-se em gás e evola-se, evapora-se – o que quiserem. Quando Joyce escreveu o Ulisses e o Finnegans Wake, o seu pensamento era líquido. Por isso, recorria à corrente do pensamento – ou da consciência. Era a água do pensamento a fluir dentro da cabeça dele. Eu passei directamente da fase sólida para a gasosa. Faltou-me a líquida. Se a tivesse, talvez ao caminhar descobrisse um piquenique de burguesas, que, sem posturas tolas, colhiam ramalhetes rubros de papoulas. A vida é perda contínua.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Hesito, hesito

Voltou a luz sobre as ruas. A Primavera começa a inclinar-se para o futuro estival, ela que esteve tanto tempo fascinada pelo passado invernoso. Talvez por isso – penso-o agora – ela seja uma estação volúvel, de paixões irracionais e desejos inconfessáveis. É muito capaz de entrar em Maio com a forja de Vulcano debaixo do braço. Tê-la-á roubado ao deus, ele que é coxo e não pode perseguir ladrões. Sim, a Primavera é uma ladra contumaz, de personalidade inconstante; rouba a um lado e a outro as vestes com que se apresenta diante dos mortais, para lhes dar um horizonte onde eles – pobres criaturas decaídas – se entregam, como animais perdidos entre o deserto e a floresta, ao labor de cada dia. Estou sem assunto para escrever, coisa que me acontece muito à segunda-feira. Eu sei que estamos numa terça, mas penso – melhor, sinto – que estou no dia que vem depois de domingo. Este sentimento rouba-me o assunto, embora não me diminua a verborreia. Talvez tenha nascido voltado para a loquacidade, dado à facúndia, perdido no labirinto do verbo. Estive todo o dia a montar um engenhoso esquema para me facilitar certa tarefa que devo realizar. Agora que o concluí, constato que, se tivesse empregado o tempo na tarefa, já a tinha acabado. Novo problema: ou a inteligência é parca, ou não me serve para nada. O mais ajuizado será ir caminhar, aproveitar o sol – dizem que faz bem à vitamina D. Eu fico maravilhado, mas não me sinto motivado por isso. Não sou vitamina D. Se o fosse, nem hesitava; assim hesito, hesito, hesito se acabo este texto e vou para a rua, ou se o acabo e fico a descansar. Está uma tarde cheia de luz.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Glória

Os dias continuam soturnos. Ao longe, um baloiço range, tomado pelo desespero, expulsando o silêncio que o crepúsculo deixa cair sobre a terra. Abril, o mais cruel dos meses, dilui-se em água: um dilúvio. Abril, que faz brotar lilases da terra morta. Abril, que mistura memória e desejo. Abril, que agita raízes entorpecidas pela chuva da Primavera. O poeta via Abril por dentro, perscrutava-lhe a natureza, procurava-lhe a essência eterna. Os poetas não descansam, mas a essência das coisas pertence a um mundo que está vedado aos homens. Um poema é uma viagem para essa pátria cujas fronteiras estão fechadas, onde o mais terrível dos exércitos se entrega a uma vigilância infalível. A beleza – essa palavra que perdeu a graça – da poesia está nessa expedição que nunca atingirá o seu destino. Dela faz parte o naufrágio inevitável, que se manifesta no esplendor da linguagem, na cintilação de uma metáfora que, ao aproximar-se da essência procurada, a perde. É esta a sua glória.

domingo, 20 de abril de 2025

Domingo de Páscoa

A casa sossegou. Filhos, netos, famílias. Tudo isto é a memória de um tempo, já distante, onde o calendário religioso tinha impacto na organização da vida. Entre a vida e o calendário religioso cresceu um muro, que aqui e ali abre uma fresta e permite uma contaminação da vida pelo que resta da tradição. O almoço de Domingo de Páscoa não é mais do que um almoço profano, onde é possível juntar todos. Ontem estava a ouvir uma entrevista dada há um ano pelo historiador, antropólogo e demógrafo Emmanuel Todd. A certa altura, ele referia que os ocidentais evacuaram a religião e ficaram sem nada que dê sentido à sua existência. Há muito que percebi que, independentemente da existência ou não de Deus, a religião é uma vantagem competitiva da espécie na sua adaptação ao ambiente. É uma compensação da lucidez que a racionalidade traz ao homem. Um olhar lúcido vê a vida como um intervalo entre dois nadas. As religiões deram-lhe um sentido e um princípio de esperança. E isso permitiu à espécie evitar confrontar-se com o absurdo de uma existência que se resolve no nada. Talvez exista uma correlação entre o crescimento da descrença religiosa e a regressão demográfica, mas não conheço os dados empíricos. Os séculos XVIII e XIX ocidentais encarniçaram-se com a religião por esta ser um embuste, uma falsificação da realidade. Ora, a essa obstinação irreligiosa faltou fazer, com a seriedade de quem quer perceber um fenómeno, a pergunta fundamental: por que razão a humanidade, no seu processo evolutivo, teve necessidade de criar esse mundo a que se dá o nome de religião? Certamente que encontramos essa pergunta formulada, explícita ou implicitamente, em autores importantes, mas ela tem sempre a mesma natureza: é uma pergunta retórica, uma pergunta que não quer compreender, mas apenas suportar uma tese prévia. Estou soturno. Talvez porque a casa ficou vazia e o Domingo de Páscoa, mesmo para mim, não é mais do que um domingo.

sábado, 19 de abril de 2025

Em vias de extinção

Sob um sol quase radioso, as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado agitam-se como se tivessem sido tomadas pela incerteza de como os seus ramos se devem erguer em direcção aos céus. Balançam para a frente e para trás. Ao longe, o hospital oferece as paredes à reverberação da luz, mas a cinza dos fungos impede que a cintilação se expanda. Notas sobre uma cidade que vejo de longe, apesar de viver dentro dela. Sou um narrador extrínseco à narrativa que componho. Há pouco, estive a contemplar as orquídeas floridas. Aproximam-se neste momento da dúzia; outras prometem fazê-lo em breve. São promessas mudas, mas talvez mais seguras do que muitas promessas vocálicas feitas pelos homens. Imagino que o acto de vocalizar uma promessa a faça perder energia para se cumprir. As orquídeas, como são destituídas de voz, não sofrem dessa astenia. Isto prova que ser dotado de linguagem não é uma vantagem tão grande quanto se pensa. A espécie humana gasta muita energia a falar — energia preciosa para fazer acontecer alguma coisa. Talvez seja por isso que, apesar do seu crescimento exponencial, a nossa espécie esteja na verdade em vias de extinção. A loquacidade está para os humanos como o asteróide esteve para os dinossauros. A bavardage — sempre podia ter escrito tagarelice, mas não escrevi, para me dar ares de douto — cobre a Terra com o seu fumo tóxico, e a humanidade definha, a começar pelo quociente de inteligência, que se encontra em regressão. Enquanto isto, as orquídeas ostentam, na simplicidade do silêncio, a sua beleza, e o mundo acabará por escolhê-las em detrimento de certos seres que nunca se calam. Onde me incluo, claro.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Hábito e destino

Para que serve o hábito? Foi a questão que pus a mim mesmo ao tomar consciência de que me tinha esquecido de escrever o post diário – embora este blogue não seja um diário. O hábito, ensina Aristóteles, é uma segunda natureza. Ora, que acontece à minha segunda natureza, se me esqueço do hábito? Será que perco a segunda natureza e fico só com a primeira? O problema dos hábitos é que eles ocultam essa primeira natureza – que já nem sei se alguma vez a tive. O hábito não funcionou na devida hora, mas acabou por funcionar, oiço dizer-me a mim mesmo. Não concedo, porém, assentimento ao que me digo. Um hábito efectivo é pontual; não falha a hora a que está destinado. Havia uma canção popular –ainda deve existir – em que o cantor asseverava que o destino marca a hora. Isso só é verdade se o destino for um hábito, pois é este que deve marcar a hora em que as coisas acontecem. Esta última frase trouxe-me uma súbita revelação sobre a natureza do destino. O que é o destino? Um hábito, uma repetição das coisas, de modo a parecer que elas sucedem porque tinham de suceder, estavam destinadas. A tese que me ocorre é que o destino é o hábito da natureza. Portanto, pode-se acrescentar: o destino é a segunda natureza da própria natureza. Esta é a minha contribuição de hoje – pro bono – para ajudar a humanidade a compreender o mundo em que vivemos. Não apenas é um momento alto na minha gesta gloriosa neste universo que me coube em sorte, como reflecte, para a eternidade, a luz baça – se não apagada – que de mim se desprende para iluminar as trevas exteriores. Um destino.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Relógios e relojoeiros

Um acaso levou-me a uma foto de um antigo relógio de parede. Para os conhecedores — que não é, de todo, o meu caso —,uma peça valiosa, dada a sua raridade. Uma particularidade deixou-me perplexo. No lugar dos tradicionais algarismos, tem um coração onde deveria estar o 6 e, nos restantes, letras que compõem a expressão latina TEMPUS FUGIT, que pode ser traduzida por o tempo voa ou o tempo foge. A perplexidade reside no propósito da inscrição. Um aviso? Uma ironia? O que significará avisar um mortal, cujo tempo é limitado, de que o tempo — aquele que lhe resta — voa, que em breve já não será? Sempre que consultar o relógio, ficará confrontado com a sua finitude. Isso terá um efeito perturbador e será uma porta aberta para a paralisia. Mergulhamos na vida porque suspendemos a crença na nossa mortalidade. Se somos continuamente confrontados com ela, qualquer esforço torna-se insensato para uma mente lúcida. Imaginemos, porém, que o autor da peça pretendia ironizar. A pessoa vê as horas e é recordada de que esse gesto é inútil, pois as horas que acabou de ver já pertencem a um passado que se afasta ao ritmo veloz do voo de um pássaro. Consultar um relógio seria, na óptica desse relojoeiro irónico, um acto absurdo. Entre o terror do sujeito e o absurdo da sua acção, há, naquele mostrador, uma crítica feroz aos tempos modernos. A modernidade ocidental — esse acontecimento emergente no século XVII — tinha por símbolo do seu mecanicismo o relógio. O mundo era um gigantesco relógio criado pelo divino relojoeiro, uma máquina precisa e matematicamente ajustada. Foi um século glorioso para a ciência e para a relojoaria. Essa glória, porém, escondia a evidência de que o tempo voa, que a vida continuamente se desfaz no nada, e que toda a consulta da informação no mostrador é um gesto inútil, pois ela torna-se, de imediato, desfasada da realidade. Talvez Deus, ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden, lhes tenha dado, como castigo — para além daqueles que são enumerados no relato bíblico —, um relógio, ou a arte da relojoaria, para que não esquecessem aquele tempo em que o tempo não existia para eles. A suprema ironia do relojoeiro, porém, é o coração — essa declaração de amor, exibida sem pudor por aquele que acaba de ser lembrado de que desaparecer é o seu destino, ou de que querer saber as horas é o mais absurdo dos gestos. Talvez o relojoeiro fosse um ateu convicto. Ou estivesse em guerra com a suprema divindade.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Lapelas e colarinhos

Não sei o que pensar de mim. Isto acontece a muito boa gente, e talvez eu não seja tão bom assim. Passei, durante a hora de almoço, pelo canal Mezzo e deparei-me com um documentário sobre o violinista Itzhak Perlman. Fiquei siderado. Não com o virtuosismo do violinista, mas com as lapelas dos casacos que se usavam quando o programa foi realizado, talvez nos finais da década de setenta do século passado. Quando dei por isso, Perlman estava no estúdio, vestido informalmente, e conversava com os técnicos, suponho. Estes estavam de fato e gravata. Aquela época, pensei de imediato, só podia ser um tempo em que se cultivava a hipérbole, de tal maneira as lapelas eram enormes, uma espécie de asas que assentavam sobre o peito dos homens. A indumentária interessou-me, e reparei, de seguida, nos colarinhos das camisas. Também eles enormes. Sim, eu vivi aqueles dias, mas a memória já os apagou — Deo Gratias. Quereriam os homens, nessa era infausta, apassarar-se? Pertenceriam a uma seita da asa grande ou da super-lapela? Julgar-se-iam descendentes de Ícaro e que acabariam por levantar voo? Há épocas em que as lapelas se estreitam até ao limite do verosímil — se é que o verosímil tem limite — e em que os colarinhos das camisas se tornam tão discretos que mal se vêem. Talvez a moda seja cíclica, mas não sei nada do assunto. Admitamos, porém, que é verdade: a moda cumpre uma espécie de ciclo de eterno retorno, como aquele que existe na natureza. Isto significaria que teríamos épocas de grande expansão de lapelas e de colarinhos, e épocas de enorme retracção. Épocas de um optimismo desmedido e épocas de um pessimismo sem freio. Que nos diz tudo isto da espécie humana? A conclusão é simples: sofre de bipolaridade crónica. Isto é, não regula bem. Por mais que se tente educá-la na prudência e justo meio de Aristóteles, ela nunca deixa de ceder à mania das grandezas ou ao terror da pequenez. Estes são os meus pensamentos, e é por causa deles que não sei o que pensar de mim. Tenho de ir espreitar as lapelas dos casacos que estão cá por casa.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Efeméride

Sou dado a efemérides. E hoje é uma. Não faço ideia se a data é memorável ou se nela ocorreu um facto digno de ser lembrado. Devem ter ocorrido vários. Não há dia do calendário que esteja despojado deles. Antes pelo contrário. As minhas efemérides, contudo, pertencem a outra ordem. Memorável é estarmos no meio de um mês. Hoje é o último dia da primeira quinzena de Abril, coisa que merece ser comemorada. Qual a razão? – perguntar-se-á. O simples facto de o mês ter conseguido chegar – ou quase, só lá chega à meia-noite – a meio, não deixa de ser uma grande vitória do calendário. As pessoas julgam que um mês chegar a meio não passa de uma trivialidade. Ora, cometem um erro com funestas consequências. O facto de todos os meses de Abril de que nos lembramos terem chegado a meio, isso não nos garante que este o fará. É uma possibilidade, mas quem nos certifica de que o universo não colapsa nas próximas horas? Quem tem a chave para interpretar a vontade obscura desse ser monstruoso na sua grandeza sem limites? Se estivermos conscientes disto, percebemos uma coisa simples: o mês de Abril chegar a meio não é uma trivialidade, mas um milagre, um acontecimento excepcional, merecedor de ser considerado uma efeméride. Onde está o funesto anunciado acima? O facto de não reconhecermos o milagre pode irar o monstro, e este, na sua monstruosidade, só para punir a nossa insolência, decidir colapsar. O que seria desagradável. Ora, se há trivialidade mais que experimentada, essa é a emergência de coisas desagradáveis.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Sem stock

O meu problema é ter a cabeça vazia. Acontece-me com frequência – ou será melhor dizer amiúde? – às segundas-feiras. Chego a certa hora e o que, de manhã, tinha dentro dela desaparece. O processo é outro: não se trata de uma súbita evasão. As ideias começam a ir-se cedo, num escoamento gradual que só se completa a esta hora – caso estejamos numa segunda-feira, insisto. Queria qualquer coisa para escrever, procuro no armazém, mas não há stock disponível. Nos outros dias não é assim: a esta hora ainda há uma boa reserva de ideias. Tenho reflectido sobre o caso, mas não encontrei explicação plausível. Pode pensar-se que “ter a cabeça vazia” não passa de uma expressão retórica e que, na realidade, haverá sempre lá qualquer coisa. Não. A expressão é literal. A minha mente – que se supõe estar dentro da cabeça – é uma ausência. Sim, tenho um cérebro, mas é como se não tivesse. Os neurónios entraram em greve: não fazem sinapses. Seria um drama, se fosse irreversível. Não é. Não posso, no entanto, provar esta última afirmação: trata-se de uma previsão e, como se sabe, o futuro escapa à certeza. A greve neuronal pode, no meu caso, ser eterna. Resta-me a esperança de que não o seja – que não seja greve, mas apenas cansaço.

domingo, 13 de abril de 2025

Ingratidão

Deveria escrever textos mais curtos. Vivemos na pós-modernidade, e esta exige textos da dimensão de um tweet — embora essa expressão possa já ter caído em desuso, pois o Twitter tornou-se X. Dito de outro modo: deverei ser ou não ser um pós-moderno? Isto, porém, não me atormenta. O que me mortifica é a ingratidão dos objectos. Sim, as pessoas adoecem só de pensar na ingratidão dos outros — mas eu, não. Um herói pós-moderno (talvez o seja) preocupa-se com outro tipo de questões. O caso é simples: tenho uma balança com a qual mantenho uma relação conflitual. Contudo, perdeu energia e eu, num gesto de benevolência, comprei-lhe uma pilha, salvei-lhe a vida. Agradeceu? Mal a pisei, devolveu-me um quilo a mais do que da última vez. Em vez de gratidão, justicialismo. Que as pessoas sejam ingratas, percebe-se — há nelas uma inclinação para o mal. Que os objectos, onde não existem inclinações, apenas regras mecânicas, o sejam — isso sim, deveria pôr-nos em estado de choque. Disse-lhe: A próxima vez que estiveres morta, deixo-te assim por uns meses. Como resposta, acrescentou trezentos gramas ao peso anterior. Ficou a olhar para mim com aquele ar estúpido de balança, o que me deixou constrangido e levou-me, para minha vergonha, a explicações que soaram como desculpa: o mau tempo impede-me as caminhadas. Ela bocejou — e, naquele bocejo, havia todo o desprezo deste mundo e do próximo. Estas são as verdadeiras tragédias da pós-modernidade. Sobre elas, há que escrever pouco, pois pouco há para dizer. Hoje é domingo — e, depois disso, a única coisa que me ocorreu é que amanhã será segunda-feira, a não ser que também a organização da semana de sete dias tenha aderido à pós-modernidade e pratique a ingratidão de confundir os dias na vida dos mortais.

sábado, 12 de abril de 2025

Dias de sombra

Está um sábado tristonho, indeciso, ora ameaçando tempestade, ora prometendo tempo de praia. Isto tem sobre mim um efeito desagradável, talvez dois. Em primeiro lugar, interfere com o corpo, tornando-o dorido aqui ou ali. É da instabilidade do tempo, penso. Melhor seria tomar um analgésico e deixar de pensar. O segundo efeito é tornar-me mais cinzento do que o habitual. Tinha uma tese – aposto que falsa – sobre a minha perfeita conformação com o tempo do norte da Europa: a má relação com o calor e uma certa configuração física. Ora, este ano tem sido um teste ao meu enraizamento ancestral em terras sombrias. Resultado: estou farto deste tempo. Venha sol, mas sem grandes calores. Quero luz, não ser cozinhado em lume pouco brando. Agora chove sem pudor. Há uma tristeza neste cair da chuva que toca toda a cidade, tornando-a mais pequena e humilde do que aquilo que ela é. Ao longe, troveja. Diante de mim tenho dois livros de Georges Simenon. Não se pense que são Maigrets. Não são. São dois romans durs, segundo a própria qualificação do autor. A Cavalo de Ferro publicou As Janelas Defronte e A Neve Estava Suja, dois entre largas dezenas de romances que Simenon escreveu sem ter o inspector Maigret como protagonista. Além de duros, são sombrios, o que seria de esperar de um escritor belga. São romances que estão em linha com o clima que se faz sentir por aqui. Vou aguardar dias mais luminosos para os ler. Simenon, seja dito, é um grande escritor, um dos maiores em língua francesa, língua em que existem grandes escritores, pois um escritor só existe na língua em que escreve. Aqui, porém, já estou a especular. O homúnculo que vive em mim corrigiu-me de imediato: não estás a especular, estás-te a armar aos cucos. Esta é uma expressão que corria muito por aqui, não sei se ainda corre, e também não sei se é um mero regionalismo ou se todo o país está disponível para atirar à cara de alguém: estás a armar-te aos cucos. É provável que seja um nacionalismo. Seja como for, o homúnculo, meu inimigo, conhece-a bem.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Dos simples e da sua simplicidade

O mundo exterior invade-me o escritório: o grupo musical da escola secundária vizinha teima em ensaiar música dos anos sessenta e setenta do século passado, enquanto um bando de adolescentes ocupa o tempo, com o vozear que lhe é próprio, antes de entrar para o instituto de línguas. Não sei o que é pior; talvez nenhuma das coisas seja um mal em si mesma — só a sua conjugação se torna um pouco disruptiva. Num dos textos sobre cultura, Antonio Gramsci diz, não sem cândida inocência: a filosofia da práxis não tende a manter os «simples» na sua filosofia primitiva do senso comum, mas, pelo contrário, a conduzi-los a uma concepção superior de vida. Polemizava com aquilo que seria a filosofia católica, a qual, depreende-se, desejaria manter os simples na sua simplicidade. O equívoco de Gramsci reside no pressuposto de que os simples querem abandonar a sua simplicidade e o doce conforto do senso comum. Gramsci morreu em 1937, e a denominada filosofia da práxis ainda não tinha feito a prova do tempo. Talvez hoje Gramsci tivesse menos ilusões. Pensa-se sempre que a simplicidade dos simples — para nos mantermos fiéis ao jargão do pensador e político italiano — se deve a uma estratégia dos opressores, da qual a filosofia católica seria um instrumento. Quando as sociedades se abrem à possibilidade de os simples saírem da sua simplicidade, são eles que gritam contra quem os queira tirar desse lar, onde se sentem, verdadeiramente, chez-soi. Quem ler com atenção a célebre Alegoria da Caverna percebe que já Platão tinha percebido isso. Ora, Nietzsche, na sua relação intempestiva e destrambelhada com o cristianismo, disse que este não passava de um platonismo para o povo — e nisso terá alguma razão. Isto permite afirmar o seguinte: se Platão percebeu que o desejo dos simples é manterem-se na sua simplicidade, então também o cristianismo o compreendeu. Corolário: a filosofia católica percebeu muito melhor o desejo dos simples do que a filosofia da práxis. Os simples não desejam uma concepção superior de vida, mas ouvir umas músicas do seu tempo de juventude ou deixar o som vibrar com vigor nas gargantas, se vivem na simplicidade da adolescência. Tenho de ir com o meu neto ao parque infantil.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Trovoada

Também os deuses envelhecem. Quando novos, a sua ira é terrível. Envelhecidos, resmoneiam entre dentes, numa rezinga a que nem os mortais dão atenção. Refiro-me, claro, a Zeus — ou, em versão latina, a Júpiter — o deus dos deuses. Quando eu era mais novo, tenho ideia de que havia por aqui trovoadas épicas. Relâmpagos, raios e coriscos — tudo acompanhado com o ribombar exaltado dos trovões. Era uma ira magnífica, que só acabava quando as nuvens vertessem, em abundância, uma água também ela irada, que tornava as ruas num rio revoltoso. Oiço agora o rezingar de Zeus, mas uma coisa débil, sem energia, nada de relâmpagos. Apenas uma atmosfera abafada, calor ainda a esta hora, os corpos a pedir uma bela trovoada, uma grande chuvada que limpasse os corações e as mentes — poluídas que andam dos negócios da vida, pois, como se sabe, não há coisa mais poluente do que a vida. Uma possibilidade, porém, é que a antiga ira dos imortais seja mais imaginada do que real. Será que as antigas trovoadas seriam tão épicas quanto me parecem agora? Juraria que sim. Fecho os olhos e ainda as oiço e vejo. Magníficas. Todavia, o mais sensato será não jurar, para não faltar à verdade. Está um crepúsculo arrastado, um céu cinzento, uma noite que não cai. O mundo está fora dos eixos, e não é minha missão colocá-lo no lugar, nem endireitar tortos. Sou um herói sem causa, nem vilões para enfrentar, nem gesta para me elevar à glória. Comento trovoadas com recurso à mitologia, mas não descendo dos deuses. Não sou um Aquiles — mas também não tenho o calcanhar dele. Terei os meus, claro.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Procrastinar

Procrastino. Que palavra esta. Olho para ela e decido tentar perceber de onde vem. Vou consultar um dicionário, para que me informe acerca da sua origem ou, melhor, da etimologia do verbo procrastinar. É dada a informação de que vem do latino procrastināre, com o mesmo significado. Decepção. O próprio dicionário procrastinou o meu esclarecimento. Eis um sinal importante. Talvez a procrastinação não seja um problema meramente humano, mas que toda a realidade procrastine, a começar pelos dicionários. Não posso procrastinar a aquisição do sentido etimológico do verbo que traduz o meu estado em relação a um conjunto de coisas que tenho de fazer. Recorri a uma conversa com um bot. Foi muito mais esclarecedora. O prefixo latino pro indica “para diante”, “em direcção ao futuro”. Por outro lado, cras é um advérbio que significa “amanhã”. A isso adiciona-se o sufixo -ināre, comum nos verbos da primeira conjugação, que forma verbos de acção. Sinto-me, relativamente, esclarecido. A minha inclinação procrastinadora significa a acção de atirar (algo) para amanhã. Contudo, sinto-me apanhado numa armadilha: eu não quero agir, não quero praticar uma certa acção, mas, mesmo assim, pratico a acção de enviar qualquer coisa para o futuro, para amanhã. Uma injustiça. O que eu queria era não agir de qualquer forma. Haverá, no meu desejo, uma forma de pensamento mágico: em vez de enviar para amanhã a acção objecto da minha procrastinação, aquilo que em mim ressoa é o desejo de que isso, pura e simplesmente, não exista. A essência da procrastinação não está em adiar para amanhã, mas no desejo de que qualquer coisa não tivesse vindo à existência. Por hoje, chega de contributos para esclarecer a verdade que se esconde nas palavras que estão disponíveis para uso comum. Procrastino novos esclarecimentos.

terça-feira, 8 de abril de 2025

Ensaio sobre a estupidez

Não tenho a certeza, mas, não poucas vezes, sou assaltado pela crença de que a eliminação da estupidez na espécie humana seria um contributo assinalável para que todos pudéssemos viver uma vida mais decente. A incerteza nasce de gente inteligente – ou mesmo muito inteligente – ser mais capaz de causar problemas graves aos outros do que gente idiota. No entanto, podemos pensar que alguém inteligente, ou muito inteligente, pode ser um rematado estúpido, pois a maldade, em última análise, não deixa de ser uma estupidez, uma enorme estupidez. Contudo, a maldade praticada por estúpidos destituídos de um módico de inteligência é uma cruz difícil de suportar pela espécie humana. Na maldade proveniente de uma mente brilhante, por terrível que seja, há ainda um lado estético, tal como acontece num lance brilhante de um qualquer desporto. Na maldade originada apenas pela limitação da capacidade neuronal, só há desolação. Agora que há empresas que conseguem, através de manipulação genética, trazer à vida espécies que se encontravam extintas há milhares de anos, talvez se possa conceber uma manipulação do genoma humano com a finalidade de eliminar a estupidez — tanto a derivada do baixo uso neuronal, como a resultante de uma elevada qualidade do trabalho dos neurónios. Perguntar-se-á a razão deste discurso. Bem, não é difícil: basta olhar para o estado do mundo. Outra razão: não me ocorreu mais nada.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Conjugações

A minha mente, cujo controlo estou longe de possuir, é assaltada, não poucas vezes, por associações que me deveriam envergonhar. Se não a mim, ao menos a ela. Essas associações ocorrem-me sem que eu faça alguma coisa para essa ocorrência. Sofro-as. Há pouco dei com essa tal mente a que chamo minha – mas será? – a associar o Ludwig Wittgenstein do Tractatus Logico Philosophicus com o James Joyce de Finnegans Wake. Como é possível? Perguntei-me, não sem condescendência e com alguma falta de paciência. Wittegenstein no tempo em que escreveu o Tratactus devia andar a treinar para asceta. Asceta da linguagem. Limpar toda a linguagem dos seus pecados mortais e mesmo dos veniais. Esse seu tormento com as acrobacias da linguagem que diz coisas para as quais não encontramos referentes sensíveis, resume-se numa frase famosa acima de todas as frases famosas do filósofo austríaco: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Caso levasse em consideração o imperativo wittgensteiniano, não abriria a boca e os meus dedos não tocariam nas teclas do teclado para escreverem aquilo que escrevem, coisas sem referência empírica no mundo. E o Finnegans Wake? Bem, esse é o contrário. Poderíamos, a partir dele, dar uma nova versão da última frase do Tratactus: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se gritar. Sim, eu sei, o grito é deselegante, basta ver a cara da personagem de O Grito, do Edvard Munch. Dizem que ele está aterrorizado ou coisa que o valha, mas apenas está numa pose deselegante, a gritar qualquer coisa que devia ser calada, mas que ele – e eu estou de acordo com ele – julga ser importante ser gritada ao mundo. O Finnegans Wake do Joyce é O Grito do Munch em forma de literatura, centenas de páginas para contrariar o austríaco. Ou será para estar de acordo com ele? Isto é o que se passa na minha mente, quando foge à minha vigilância, o que é norma. Sonhei – um dia – em ter uma mente domesticada, uma mente à minha medida de animal doméstico, mas a cabra – que me seja desculpada a queda na linguagem baixa – furta-se ao açaime, pensa o que não deve e conjuga o inconjugável e assegura-me, pomposa, que tanto um como o outro estão mais próximo do que eu penso. Isto é a minha mente a atirar-me à cara a ignorância infinita que me pertence.

domingo, 6 de abril de 2025

Da beleza

Hoje ainda não saí de casa. Há pouco, fui espreitar a Sá Carneiro, mas nem reparei no que se passava naquela avenida. Os olhos ficaram retidos no friso das orquídeas. Durante um tempo, apenas cinco estavam floridas. Quatro delas eram brancas. Não sei se este avanço – também é pujança no porte – associado ao branco é alguma antífona em honra da pureza, talvez uma proclamação sobre a eminência daquilo que não está maculado. Esta é uma linguagem esotérica que os dias de hoje não compreendem, mas isso também não será de admirar. Não cabe aos dias terem compreensão – nem os de hoje, nem os de ontem, ou de amanhã. Era isto que me ocorria enquanto observava com atenção o lento florir das outras, das que são manchadas de múltiplas cores, e concluía que o belo tanto reside no que está puro como no que está maculado, e a beleza é a coisa mais terrível que existe ao cimo desta terra. Ela toca em qualquer coisa que nos desconserta. Por isso, temos de fazer uma longa aprendizagem sobre o modo como lidar com ela. Facilmente lidamos com o bem, o verdadeiro e o justo, mesmo que façamos o mal, sejamos contumazes na mentira e agentes da injustiça. Com o belo, porém, ficamos fascinados, e esse fascínio mergulha-nos nas profundezas obscuras que habitam no fundo da consciência, naquele mar revolto a que se costuma dar o nome de inconsciente, que nos empurra tantas vezes para o mal, a mentira e a injustiça. Na beleza não há utilidade. O bem, o verdadeiro e o justo são úteis, mas a beleza não pertence ao jogo da utilidade. Por isso, será abissal, provoca-nos e afasta-nos. Nunca sabemos se o que sorri nela é a vida ou a morte.

sábado, 5 de abril de 2025

Uma chamada matinal

Acordado até às quatro da manhã. Pouco passavam das oito, quando chega uma chamada telefónica. Perdido, pego no telemóvel. Era o meu neto, em chamada-vídeo, à revelia dos pais, a perguntar-me se estava em Lisboa. Nem percebi. Não, não estou, respondi quando compreendi o ele estava a dizer. O avô está no escuro, ouvi. Acendi a luz do candeeiro. Lentamente, fui chegando à realidade. Era só para saber – informou – se o avô quer ir ao torneio de râguebi. Não devo ter pensado coisas agradáveis, mas disse que estava longe. Anuiu, depois mudou de conversa. Acabou a ler-me qualquer coisa de um livro da escola, mas informou-me que o texto tinha letras que ainda não tinha dado. A conversa prolongou-se até o pai o mandar despachar para ir ao torneio. Decidi seguir-lhe as pisadas e levantei-me. Não para ir a qualquer torneio, mas para ir fazer umas compras, antes que o hipermercado se enchesse de clientes ansiosos. Esta é uma história moral. Os netos têm um poder de dissensão sobre o mau humor dos avós poderosíssimo. Ao ver a cara dele no telemóvel, nem me ocorreu protestar, quanto mais ficar irritado. Quando declinamos, eles são a nossa continuidade e isso, descobri-o, é consolador. Descobri outra coisa. Que essa continuação por terceiros é muito mais justa e melhor do que uma continuação indefinida pelo próprio. Pode-se dizer que não tenho outro remédio. É verdade, mas não é apenas uma mera conformação com a natureza das coisas. É conceder que há sabedoria nessa natureza e acabar por amá-la, não porque seja um poder cujos decretos são irremissíveis, mas porque dela se desprende uma luz que ilumina o mundo.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Sobre um rio

Existirá — mas não estou certo — uma incompatibilidade entre a voz poética e a voz filosófica. Eliot, não muito longe do início de As Dry Salvages, escreve: O rio está dentro de nós, o mar está a toda a nossa volta. Bem, não foi isto o que escreveu, quem o escreveu foi o tradutor.  Ele escreveu: The river is within us, the sea is all about us. Dito isto, o poeta continua, como se tudo fosse uma evidência que ele, ao escrever, traz à luz para que todos vejam. O filósofo será cego, pois, de imediato, ficará preso na proposição “O rio está dentro de nós.” Meditaria sobre como ele teria entrado em nós ou se, por acaso, teria nascido em alguma parte esconsa do nosso ser. É um filósofo que já tem um apetite de cientista. Medita, mas inclina-se para a observação empírica — o que é um risco tremendo, pois, se insistir nessa inclinação até que se dê a queda, pode descobrir que não há nenhum rio que nos habite, que a proposição de Eliot tem uma natureza metafórica: nenhum rio pode estar dentro de nós. Contudo, se nos observarmos, descobrimos que em nós está qualquer coisa líquida, fluida, qualquer coisa que anseia pela foz, pelo mar onde se dissolve, fundindo águas com águas. O rio pode ser o desejo que nos habita. O desejo está dentro de nós, e o seu objecto está todo à nossa volta. Mas não foi isso que Eliot quis dizer. O que ele quis dizer foi apenas: The river is within us, the sea is all about us. Caso quisesse ter escrito outra coisa, tê-lo-ia feito. Escreveu que o rio está dentro de nós e, depois, esqueceu-se, durante toda a longa estrofe, desse rio, mergulhando no mar. Talvez o rio fosse o próprio poeta que desagua no poema. Isto, porém, são especulações ociosas de quem está a despedir-se da semana útil com as inutilidades que profetizam o fim-de-semana. A luz solar rompeu o cerco das nuvens e os raios crepitam no telhado do pavilhão da escola aqui ao lado. São pequenas explosões invisíveis, em número incontável, mas cujo efeito reverberante atinge os meus olhos e faz saltar em mim uma pequena faísca de júbilo, apesar do troar inquieto do vento nas persianas. Nas varandas do prédio em frente, uma assembleia de anjos discute, mas não consigo perceber o que dizem. O discurso tem um ritmo que anuncia a eternidade, e a voz que o pronuncia é sempre grave. São anjos barítonos e anjos baixos, nenhum deles é tenor. Sabem que eu estou a vê-los, mas não se importam. O assunto que tratam não me diz respeito e, como tal, não consigo perceber as suas palavras; jorram das suas bocas como se fossem rios muito antigos à procura de um mar profundo que as receba. Tudo isto, porém, é falso. Os anjos estão lá e discutem, mas não existe nenhum prédio em frente.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Uma autobiografia

Estava eu em estado de sonolência, quando ouvi a voz do homúnculo que habita dentro de mim a declamar um imperativo: devias escrever uma autobiografia! Uma autobiografia, eu? Sim, tu – continuou o desprezível homúnculo – e desceu à explicitação: devias escrever a autobiografia de um centauro. Respondi-lhe que não era um centauro. Um riso cavernoso – riso próprio dos homúnculos desprezíveis que habitam no desvão da minha mente – ressoou nos interstícios do meu ser, caso eu tenha um ser e este possua interstícios. A quem o dizes, retrucou ele. Bem sei, falta-te tudo para seres um centauro. Falta a parte de cavalo e a parte de homem. Não passas de uma aparência destituída de essência, um vazio recoberto por uma pele opaca – mas, por isso mesmo, podes escrever a biografia de um centauro. Quem é nada pode imaginar ser qualquer coisa.» Discordei: uma contradição na lógica do homúnculo. Se sou nada – e isso posso aceitar –, então não tenho experiência de nada. Falta-me a matéria para a biografia, mesmo para inventar uma biografia falsa. Ficou furioso, soprou como um gato assanhado, mas não me amedrontei. Até que, cansado de silêncio, atacou: Tu, que escreves tanto – uma presunção dele, pensei – sem assunto, sem matéria para escrita, estás agora com pruridos? Que diferença há entre escreveres a autobiografia de um centauro e este texto? Deixei o silêncio pairar, enquanto ouvia o tamborilar da chuva no vidro da janela. São insuportáveis – ouvi –, os limites da tua imaginação e a pequenez do teu entendimento. Se escreveres a autobiografia de um centauro, podes tornar-te um. As pessoas que escrevem autobiografias – continuou – fazem-no não porque tenham sido aquilo que narram, mas para virem a sê-lo. Anuí, mas perguntei: Por que raio hei-de eu querer ser um centauro? Aí, voltou o riso cavernoso. Se fosses um centauro, ao menos eu podia deslocar-me a galope, em vez de ir ao ritmo desses teus passos trôpegos. Uma razão como qualquer outra, pensei.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Poesia e prosa

Numa brevíssima introdução à sua obra poética, A uma hora incerta, Primo Levi diz que o impulso para se exprimir em versos está presente em todas as civilizações, mesmo naquelas que não têm escrita. Admite que também ele, a uma hora incerta, cedeu a esse impulso. E acrescenta: ao que parece, está inscrito no nosso património genético. E como outros, reconhece que a poesia nasceu antes da prosa. Somos levados a pensar, então, que a nossa natureza é poética e que a prosa nasce de uma reflexão sobre a poesia. Podemos estabelecer uma analogia com as teorias do contrato e a instauração da sociedade política. O estado de natureza selvagem – impulsivo – e o estado civil como resultante de um contrato reflexivo entre os homens. Contudo, esta interpretação das teorias do contrato é ingénua. As teorias do contrato não estabelecem uma linha histórica, onde, num primeiro momento, viveríamos no estado de natureza – o homem lobo do homem – e, perante a falência da vida humana, chegaria um segundo momento, onde os homens estabeleceram o contrato. Estado de natureza e estado civil são duas possibilidades sempre presentes nas comunidades humanas. Por norma, vivemos no estado civil, mas, se o contrato entre nós falha, caímos no estado de natureza. Voltando a Primo Levi. A ideia de a poesia ser anterior à prosa será falsa. Ambas são possibilidades sempre presentes – e presentes desde sempre – no homem, pois nascem de dois impulsos que estão, por certo, inscritos no seu código genético: o de exprimir-se e o de comunicar. Mais, entre eles não há uma oposição, mas uma linha contínua, onde não existe fronteira clara entre a expressão poética e a comunicação prosaica. Como na organização das comunidades humanas, o estado de natureza e o estado civil estão sempre presentes, o mesmo se passa na linguagem: poesia e prosa são possibilidades sempre presentes. Há, porém, uma diferencia essencial. Passar do estado civil ao estado de natureza é uma queda de funestas consequências, mas transitar da comunicação prosaica para a expressão poética é, não uma queda, mas uma elevação, o sinal de um desejo de ascensão.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Do começo

Tinha três começos possíveis para este texto. No primeiro, em louvor da tradição, falaria dos adolescentes que lá em baixo jogam às escondidas, parecendo-me o jogo sem inovações relativamente ao tempo em que eu o jogava. No segundo, em louvor da trivialidade, começaria com o facto de estarmos em Abril, com a referência às águas mil, para prosseguir com o Dia das Mentiras, pois a minha reserva de banalidades e lugares-comuns é inesgotável. No terceiro, em louvor da autocomiseração, descreveria a tentação que tive, ao datar no Word este post, de escrever 1 de Abril de 2024. Sim, preocupou-me a associação entre o mês quatro e o ano de 24. Não creio que seja um acto falhado, explicável pela teoria do Dr. Sigmund Freud, mas de um deslize neuronal que não me agrada, e os motivos do desagrado não são estéticos. Acabei por não começar com nenhum deles, mas pelo anúncio de que os tinha. Comecei com uma afirmação de propriedade. Pelo verbo ter. Melhor, o verbo ter permitiu-me manifestar uma tenência. Há muitas pessoas que têm a angústia do começo. Estão piores do que eu. Também elas têm qualquer coisa, a angústia, mas eu tenho os começos. Um dia, talvez em breve, poderei montar um negócio de venda de começos, criar uma start-up. Venderia começos para cartas de amor, mas já ninguém escreve cartas de amor, nem sequer emails ou SMS. Enviam um emoji, e para isso não tenho começo. Poderia oferecer – no mercado, claro – começos para cartas de condolências. Caíram em desuso, um azar. Comercializaria começos para cartas comerciais, o que estaria adequado. A concorrência, porém, é muito forte. O ChatGPT faz isso melhor do que eu e pro bono. Poderia mercadejar começos para grandes romances ou poemas sublimes. A prospecção de mercado indicou-me que não teria comprador. Ainda pensei em começos para tratados de Física, de Neurologia ou para preâmbulos de decretos-lei. O meu consultor financeiro dissuadiu-me; se for para inícios de horóscopos, talvez se arranje qualquer coisa. Desisti. Resta-me guardar os começos para mim, antes que a angústia me apanhe e não consiga chegar ao fim do texto porque não lhe descobri o começo.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Um dia com a Primavera

Saí de casa, de manhã, vestido para enfrentar a Primavera. Não falhei. Estava mesmo na rua, esperava-me. Olhou-me nos olhos e, se nos meus existia uma vontade de guerra, os dela eram habitados pela mais pura benevolência. Isso dissuadiu-me e, de imediato, me dispus a um pacto. Andámos juntos o dia inteiro. Não sei se fui boa companhia, mas ela foi excelente. Custou-me, ao voltar para casa, deixá-la na rua. Convidei-a, mas recusou sem acinte. Que não podia entrar, uma estação de ano, disse-me, habita na rua, é um sem-abrigo, acrescentou, rindo-se. Depois, referiu, como por acaso, que não sabia se ia estar nos próximos dias. Também ela tem afazeres fora de portas e é possível, disse, que vá primaverar para outras paragens. Não comentei, mas, chegado a casa, fui ao site meteorológico. A vida é o que é. Uma boa amizade e logo ela tem de ir dar uma volta sabe Deus para onde. No seu lugar, haverá chuva e mais chuva, numa saudade invernosa. Não se desse o caso de ele estar morto, era com o Inverno que iria conflituar. Assim sendo, resta-me aceitar o que vier, sem protestar nem reivindicar seja o que for. As estações do ano são deusas volúveis e a sua vontade depende de um arbítrio que nem os meteorologistas conhecem.

domingo, 30 de março de 2025

Um domingo mais

Saí depois de almoço. A cidade estava iluminada por um sol dominical. Tudo nela cheirava a um domingo de província. Senti-me em casa, pois é na província que os provincianos se sentem chez-soi. A expressão francesa foi para dar um ar de culto. Uma aparência, é mais exacto do que ar. Movemo-nos no mundo ostentando as aparências que construímos. O que é uma aparência? Eis uma pergunta ontológica. Qual o ser da aparência? Ora, o ser da aparência é aparecer. Aparecemos como uma persona – uma máscara – envolta numa história que não cessamos de contar, de inventar, de alterar. Não fora o caso de eu ser finito, a história que inventaria sobre mim seria infinita. Sempre a contar uma coisa diferente da anterior, a reescrever a biografia, para que ela fosse cada vez mais exacta, isto é, para que ela fosse cada vez mais uma melhor falsificação. Há falsificações tão boas que aparecem aos olhos dos especialistas como verdadeiras. O grande falsificador da sua biografia é aquele que torna a falsificação verdade. Não devia pensar estas coisas num domingo de província, mas o pudor que me devia conter sumiu-se. Uma coisa que acontece muito neste mundo, o sumiço das coisas. Elas estão aí, muito seguras de si, muito exuberantes na sua dimensão ontológico e, como por encanto, evolam-se, perdem o ser. Foi o que aconteceu ao meu pudor. Isto está de acordo com a ordem do mundo. O pudor perdeu a boa imprensa. Quem, nos dias que correm, acha dignidade no pudor? Ninguém. Perdi-o, também, e agora falo de coisas da minha biografia, embora, desconfie que não tenho biografia. Porém, o facto de ter usado a expressão chez-soi e ter-me confessado um provinciano – isto é, um homem sem mundo – poderá ser um indício forte que tenho uma biografia, embora falsa, o que é a mais verdadeira das biografias. Os domingos na província – mas também nas capitais – dão nisto.

sábado, 29 de março de 2025

Ir ao teatro

Mais logo, depois de jantar, irei ao teatro. Confesso que o apetite é nulo. Nem sei o nome da peça. Por vezes, temos obrigações, e as obrigações funcionam como um imperativo: obrigam. É o caso. Não que houvesse qualquer problema em faltar a essa obrigação, mas seria deselegante. Na verdade, trata-se de uma obrigação estética. Evitar ser deselegante com terceiros. Há a possibilidade desses terceiros nem darem por isso, mas é tarde, para mudar de ocupação neste sábado à noite. Sempre podia ficar em casa e dormitar em frente ao computador. Era uma opção razoável, mas menos elegante. Não tenho qualquer conflito com a arte dramática. Pelo contrário. Talvez um sábado de Primavera não seja o mais indicado para assistir a uma peça, ainda por cima a uma peça de que não sei o nome, tão pouco o autor. Não, não é Shakespeare, nem Sófocles ou Eurípides. Nenhum clássico antigo ou moderno. Nenhum clássico contemporâneo. Nenhum contemporâneo que possa tornar-se um clássico. A partir de certa altura da existência, comecei a cortar os laços sociais, o que me trouxe alguns benefícios, como a diminuição do número de eventos a que teria de ir por boa educação. Como se prova pela noite de hoje, esse corte foi apenas parcial. Serei um misantropo? Não. Não alimento qualquer ódio à humanidade, apenas uma consideração realista da sua natureza. Onde a aprendi? No lugar mais indicado para fazer essa aprendizagem: em mim. Em mim, vejo os outros. Nem comigo me desavim, ao contrário do que aconteceu com Sá de Miranda, mas olho-me com condescendência e é esse olhar condescendente que espalho sobre a humanidade em geral, enquanto penso que a realidade é aquilo que é e não aquilo que desejo. Fico sempre espantado quando oiço alguém dizer que não queria ser outra coisa. Penso longo que sofre de um défice acentuado de imaginação. Eu não sou aquilo que desejo, mas apenas o que sou. O meu desejo é infinito e o meu ser é finito. E é por causa dessa finitude que logo vou ao teatro.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Cansaço de santo

Caso não se trave o ânimo primaveril, não tarda e estamos em pleno Verão. Já hoje tive calor e pensei que me tinha enganado na roupa. O que me perturba, porém, é S. Pedro. Foi-lhe atribuída a função de regular o clima, mas ele está cansado da tarefa. Constou-me que já se quis reformar, mas foi-lhe recusada a aposentação. O cargo é vitalício, disseram-lhe. E se um santo conquistou a vida eterna, então o seu cargo é para toda a eternidade. Talvez tenha ficado atarantado com a ordem das coisas e começou a descurar a função. Há quantos anos desapareceu aquela idílica regularidade com que as estações coincidiam com o calendário? Há tanto tempo, que nem eu já me lembro dela. Parece, por outro lado, que é imune a preces e procissões para restaurar a velha ordem. Não quer ser acusado de corrupção e participação em negócio ilícito. Não cederá, por mais que o tentem demover através festas e orações. Consta que passa anos e anos a olhar cá para baixo, tentando reconhecer o sítio onde nasceu, onde viveu, onde conheceu o Mestre. Sofre de nostalgia, disseram-me. Não quer saber se o Verão chega na Primavera ou no Inverno. Queria reformar-se e cultivar, sem preocupação, as memórias, antes que desapareçam, pois mesmo para um santo mergulhado na vida eterna, as memória são passageiras.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Nada

Acabei de chegar de uma caminhada, pequena, não vá ficar com uma preparação para as olimpíadas. Tornei-me um aristotélico inveterado. O lema é: nada em excesso! Escrito isto, pergunto-me se o uso do ponto de exclamação não será já um excesso. Não será o ponto de exclamação um extremo, que tem no outro lado do eixo o ponto de interrogação? O excesso de enfatização, de um lado, e o excesso de dúvida, no outro. O sinal gráfico aristotélico, por excelência, seria então o ponto. Nem a dúvida dos cépticos, que não param de colocar pontos de interrogação, nem a certeza exuberante dos fanáticos, que cultivam a exclamação. Isto significa que a afirmação nada em excesso! É já um excesso. Deveria ter escrito apenas: nada em excesso. Estava eu tão pronto para falar da minha moderada caminhada, do pecúlio de pontos cardio – aqueles que sobre os quais a OMS diz terem o poder de prolongar a vida, caso se atinjam 150 por semana –, das árvores que começam a florir, e eis que a minha mente, como um macaco enjaulado, me desvia, com um salto mortal, o pensamento para a questão da moderação no uso dos sinais de pontuação. Coisa que não interessa a ninguém, nem a mim próprio que, apesar do justo meio – ou da mediocridade, para ser mais exacto –, sou dado, em certo dia da semana, à hipérbole. Se se tivesse paciência e espírito de entomologista ou botânico, depressa se descobriria que o uso de figuras de estilo – ou tropos – varia conforme os dias da semana. Há dias específicos para se ser hiperbólico. Outros para usar metáforas. As sextas-feiras são-me propícias para os oxímoros. Também há dias próprios para as anáforas, bem como para as metonímias. Tudo usto entre segunda e sexta. Sábado e domingo são dias de descanso e as figuras de estilo também têm o seu direito ao repouso. Todo o discurso é, nesses dias, despido de desvio, quero dizer: uma procissão de catacreses, que é como quem diz metáforas mortas. Até ao último ponto final escrevi 332 palavras para dizer o que disse, isto é, nada. Mas não é este o destino da linguagem humana? Coloquemos o caso do seguinte modo. Imaginemos que Deus existe e usa a linguagem. Então, Deus diz laranjeira, e logo surge uma bela árvore carregada de laranjas. Eu digo laranjeira, e não surge nada. O que prova que não passo de um mortal com uma linguagem virada para nada.

quarta-feira, 26 de março de 2025

De vício a virtude

Está confirmado. Estamos na Primavera. O tempo hesita entre o frio e o calor. Isso tem repercussão sobre o meu corpo, mas guardo para mim as dores, pois são mais desagradáveis do que dolorosas. Estive a ouvir o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd sobre a relação entre as formas de família e os regimes políticos. Estes são, de alguma maneira, uma emanação do modo como as famílias se organizam. Estas transportam em si valores culturais e políticos, que se manifestam na organização dos Estados. Todd põe em causa a ideia de um regime universal, isto é, idêntico em todos os lados. Quando determinadas potências tentam transferir regimes políticos para outras paragens, por norma não são bem sucedidas, pois não têm em conta aquilo que ele denomina por inércia antropológica. Bastava esta expressão para ter valido a pena ouvir o antropólogo francês. É verdade que temos também uma mobilidade antropológica, mas a inércia talvez seja mais persistente. Quando era lamentavelmente jovem e verde, habitava-me a mobilidade. Na adolescência, esse amor à mobilidade centrava-se nos grandes-prémios de Fórmula 1, nas míticas 24 Horas de Le Mans ou nas 500 milhas de Indianápolis. Era a minha forma de amar a mobilidade, sentado em frente ao televisor ou a ler as reportagens num jornal ou revista da especialidade. Isso, a mobilidade, teve, numa certa altura, uma tradução política, coisa que não vem para o caso. Olhando a partir dos dias de hoje, constato que as corridas de automóveis não me interessam há décadas, nem a tradução política da mobilidade, mas a inércia antropológica foi tomando conta de mim. Não, totalmente. Ainda caminho e, acima de tudo, mexo os dedos para digitar estes textos, mas a palavra inércia soa-me cada vez mais a virtude e cada vez menos a vício.

terça-feira, 25 de março de 2025

Um demónio que é um daimon

Alemão é uma das muitíssimas coisas que ignoro. Não vou, porém, escrever sobre o oceano infinito da minha ignorância, mas da minha possível adicção à compra de livros. Não sei bem a razão, mas tomei conhecimento da existência de um poeta alemão de nome Durs Grünbein. Agradou-me o que soube dele. Faço umas pesquisas e decido comprar – num livraria online de livros usados – cinco das suas obras. Todas em alemão. A minha expectativa é de ir traduzindo os poemas com recurso a essa demónio dos tempos  modernos denominado inteligência artificial. A verdade é que a tarefa nem me parece estar a correr mal. Entre mim e o tal demónio estabelece-se um diálogo frutuoso que me permite não apenas compreender os poemas, mas chegar a traduções que me parecem interessantes. O demónio faz apenas uma primeira tradução literal, meramente funcional. A partir daí funciona como uma espécie de dicionário-gramática de largo espectro, com o qual discuto sobre o sentido das palavras e dos versos. O primeiro livro que estou a enfrentar denomina-se, em português, Porcelana. Poema sobre a queda da minha cidade. Os primeiros dois versos do primeiro poema dizem: Para quê lamentar-se por nascer tarde? Há muito desaparecera / A cidade-natal, amigo, quanto a tua pequena pessoa chegou. A cidade é Dresden. A porcelana do título remete de imediato para a fragilidade das coisas belas. A beleza de Dresden desaparecera dezassete anos antes do poeta nascer. Eclipsara-se nos bombardeamentos de 1945. A beleza antiga de Dresden é irrecuperável, como é a de Lisboa anterior ao terramoto de 1755. Contudo, há belezas que estão perdidas em línguas que nos são estranhas, mas os tempos modernos que trouxeram os aviões e os bombardeamentos aéreos também trouxeram esse demónio – melhor, esse daimon (δαίμων) – que nos permite, com paciência e humildade, encontrar a beleza que está enterrada nos escombros de uma língua que desconhecemos, pois qualquer língua desconhecida não passa, para o ser humano, de escombros de uma comunicação que se distorceu.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Animal ritual

Somos animais ritualistas. Talvez eu esteja a fazer uma generalização precipitada. Deveria antes afirmar: eu sou um animal ritualista. Dei por mim a cumprir um ritual que alimento há muito. Retiro com todo o cuidado, da contracapa de um livro, a etiqueta com o preço e colo-a no interior da badana da capa dianteira. Caso não exista esse prolongamento da capa e da contracapa, colo-a no verso da capa. Por que razão faço isto? Não faço a mínima ideia. Talvez o tenha feito uma vez por acaso e, sem motivo aparente, repeti o feito até que se tornou um hábito. Irrito-me, se a etiqueta se rasga e fica sem préstimo para a transferência. Poderia dizer que é para memória futura, para um dia poder comparar o preço dos livros, mas isso não faz sentido, pois cada vez será mais curto esse futuro e a comparação exigiria um cálculo da inflação entretanto ocorrida, o que me parece uma tarefa inútil. Se a minha generalização não for precipitada, se, de facto, formos animais dispostos para o ritual, talvez pudéssemos trocar a tradicional definição de homem como animal racional por homem como animal ritual. Somos mais propensos a rituais do que ao uso da razão. Se eu fosse um verdadeiro animal racional, evitaria escrever estes textos, cuja razoabilidade deixa muito a desejar. Mas não, eu sou um animal ritual. Habituei-me a escrevê-los. E todos os dias – ou quase – entrego-me ao rito. Escrevo textos como transfiro etiquetas da contracapa para o interior da badana da capa de um livro. Sem razão. Claro que o dr. Sigmund Freud não estaria de acordo comigo. Diria que sou movido por causas inconscientes. Um trauma de infância que me leva ora a escrever, ora a transferir etiquetas. Talvez ele tenha razão, mas não me ocorre qualquer trauma infantil. Claro, que não, diria o ilustre médico vienense, o trauma reside no fundo do inconsciente, está guardado no mais inacessível que há em si. A prova que o trauma existe, continuaria, são os seus rituais aparentemente sem sentido. Eu, então, olharia para o dr. Freud e no meu olhar haveria piedade e um clarão zombeteiro. E calava-me.

domingo, 23 de março de 2025

Meditações climáticas

Já em casa, olho pela janela e penso que a Primavera chegou hoje. Algumas nuvens pairam no céu, mas a luz solar cai, ainda indecisa, sobre a cidade. É esta indecisão que marca as estações benévolas. O Inverno e o Verão pautam a sua existência por uma dogmática contumaz. São o que são, afirmam. Não quero dizer que sejam sempre fiéis a si mesmos, mas são-no aos dogmas climáticos que os orientam. Isso acontece com todos os dogmáticos. São mais fiéis aos dogmas do que a si mesmos. Não me quero desviar do assunto. A Primavera – também o Outono – são marcados pela indecisão, por uma hesitação estrutural que os faz balançar entre Inverno e Verão. Meditam longamente sobre a sua natureza, mas nunca sabem muito bem o que são. Essa ignorância é benfazeja, uma graça benévola para os seres humanos. É uma douta ignorância. Primavera e Outono sabem que não sabem, enquanto o Inverno e o Verão, apesar de ignorantes, estão convencidos de que são sábios e por isso geram um clima cheio de moléstias. Nos quase quinhentos quilómetros que fiz hoje, apanhei, aqui e ali, Inverno, mas a generalidade da viagem foi feita sob os auspícios da Primavera. Talvez devesse falar de outra coisa, mas não me ocorreu nada. Talvez um protesto contra os gritos que as crianças emitem no parque infantil aqui ao lado, mas isso seria injusto. Se não gritarem agora, movidas por um entusiasmo autêntico, quando o poderão fazer? Nunca? Quanto o seu entusiasmo for já apenas uma encenação? Também elas têm direito a festejar a indecisão da Primavera, neste primeiro dia em que ela chega, ainda um pouco estremunhada. Como eu.

sábado, 22 de março de 2025

Pulgões saltitantes

Quase 500 km debaixo de chuva para ver o neto jogar rugby. Não num jogo importante, pois nada idade dele jogos são jogos, sem classificação de importância, mas naqueles torneios que servem de convívio entre criançada de diversos países. Vindo ontem, hoje vi dois, dos três jogos – o primeiro foi demasiado cedo. As partidas são de 15 ou 20 minutos. A equipa portuguesa a que ele pertence, o CDUL, está a milhas de distâncias das espanholas com que jogaram. Os sub-oito espanhóis são mais altos, possantes e tecnicamente muito evoluídos. Os portugueses pareciam pulgões saltitantes perante miúdos bem mais adultos no jogo. Num dos jogos, a certa altura, o meu neto, nos seus seis anos e meio, é abalroado por um adversário bem mais alto e muito mais pesado. Conseguiu parar a jogada, mas nem percebeu o que lhe aconteceu. Levantou-se, choramingou, foi substituído e passados uns minutos entrava de novo. Pensei que tudo aquilo lhe fazia muito bem. Aprender a lidar com a dor, a resistir às contrariedades. Isto para além do convívio com colegas e adversários, bem como com as regras que qualquer desporto impõe, e que o rugby não é excepção. Pelo contrário. Depois, ele desapareceu com a equipa e os avós e os pais foram tratar da vida sem rugby. S. Pedro foi benévolo com os jogadores. Numa Espanha inundada, não enviou chuva durante toda a competição. Reservou o seu ímpeto lacrimoso para a tarde. Em vez de estar por aí a passear, estou confinado a escrever, enquanto oiço a avó a falar como uma outra neta, indicando-lhe não sei o quê sobre a escola, esse martírio que a espécie humana inventou para massacrar as novas gerações, com a esperança – infundada, diga-se – de as civilizar, como se entre escolaridade e civilidade existisse uma relação de causa-efeito. Não há. Haverá uma correlação, mas talvez nem seja muito forte. Espero que a chuva dê tréguas, pois o que me apetece é deambular por aí, sem destino, ao sabor da gramática da cidade. S. Pedro tem piedade destes portugueses – não são poucos – que vieram atrás dos filhos e dos netos.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Intervalo

Chegou o fim-de-semana. Existe neste um problema estrutural. É curto, demasiado curto, uma espécie de intervalo entre as duas partes de um jogo de futebol soporífero, a que o espectador assiste por dever ou devoção clubista. A vida semanal não passa desse jogo, em que uns participam por dever e outros por devoção, ambos movidos pela necessidade. Ora, o problema é que a necessidade é o que se opõe à liberdade. Sempre que alguém se move por necessidade está a negar a sua liberdade. Não há, porém, ser humano que não esteja submetido a um império de necessidades, isto é, que não esteja escravizado à necessidade que o habita. O fim-de-semana é apenas o vestígio de um tempo mítico onde nós, os sapiens sapiens, vivíamos no Éden. Contudo, não descansámos enquanto não arranjamos motivo para cartão vermelho. O árbitro, impávido e implacável, não se fez rogado. Expulsão. Não houve tribunal da relação para apelo. O fim-de-semana é apenas o resultado de um acto de misericórdia desse mesmo árbitro, que se condoeu dos jogadores expulsos, mas não revogou a sentença. Onde me encontro não chove. Vou entrar nesse espaço onde a necessidade se suspende e a liberdade reina por algumas horas. Intervalo.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Um grande descoberta

Consta que começou a Primavera, mas o Inverno insiste em continuar vivo. Não se pode recorrer à eutanásia, perguntei. A pobre estação contorce-se de dores, geme e grita como uma perdida. Alguém me disse – não vi quem: há dois problemas para eutanasiar o Inverno. Um de ordem religiosa e outro de ordem jurídica. A eutanásia é um pecado, por um lado; pelo outro, não foi legalizada neste país. Não quis entrar em controvérsia sobre religião ou política com quem não conheço, mas não me coibi de responder, embora sem ver a face do interlocutor, caso existisse algum. Respondi impante: Do ponto de vista religioso, não há qualquer problema. Uma estação do ano é destituída de alma, logo é permissível matá-la. Quanto ao aspecto jurídico, o problema ainda é mais fácil de resolver. Além de não ter alma, o Inverno também não tem corpo. Se for eutanasiado, não haverá qualquer problema com o corpo de delito. O que me espanta em toda esta história é a estação que já devia ter morrido continuar por aí, ainda por cima sem alma e sem corpo. Chegámos ao ponto fundamental desta comunicação, um ponto onde a falta de seriedade do assunto aterra num problema de ontologia fundamental. Tínhamos por um lado os seres corporais, tínhamos por outro os seres espirituais, puras almas, tínhamos, ainda, os seres compostos, aqueles que têm ao mesmo tempo corpo e alma. E isto completava o conjunto de seres possíveis. Ora, acabei de abrir uma brecha na muralha ontológica. Além desses seres que todos conhecemos, temos uma outra classe, a dos seres que não têm corpo e não têm alma, mas existem. A prova é eles manifestam-se. E se se manifestam, logo existem. É o caso do Inverno. Nunca ninguém lhe viu corpo, nunca religião alguma descobriu nele alma, mas mesmo assim ele existe, e, no caso actual, persiste, recusando-se a entrar para o túmulo onde deveria ser sepultado para toda a eternidade.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Os abominadores da modernidade

Por motivos que não vêm ao caso, detive-me na leitura de análises sobre duas obras literárias distintas. O livro de poemas Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, e  o romance A Parede, de Marlen Haushofer. Ora, um dos pontos comuns na leitura analítica dessas obras é representá-las como críticas da modernidade. Esta crítica da modernidade é recorrente na literatura e noutras artes. Pode-se mesmo afirmar que se há um tema que percorre a arte moderna é o da crítica à modernidade. Esta crítica que é um exercício de lucidez, pois torna patente aquilo que os tempos modernos têm de limitado e mesmo de malsão, é ao mesmo tempo um exercício de cegueira. A modernidade é investida com um aura luciferina, que está muito longe de ser ajustada à realidade. O que os artistas e a militância antimoderna não percebem é que sem essa modernidade, esses artistas e esses críticos não seriam nada, não passariam de artesãos e pregadores, segundo uma ordem que jamais dependeria do seu livre-arbítrio. Antes dos tempos modernos, o que existia era a idade média. E aquilo que estamos a começar a descobrir nesta aurora dos tempos pós-modernos parece pior do que as piores visões que foram pintadas sobre esses tempo pré-moderno. É provável que no espírito de todos os abominadores dos tempos modernos exista uma fantasia: os benefícios que usufruem trazidos pela modernidade seriam possíveis sem que se tivesse de pagar por eles. Esta doce fantasia pode ser uma porta aberta – já está a ser, basta olhar com atenção para o perceber – para que se percam os benefícios e no seu lugar não seja posto nada de mais saudável do que a loucura colectiva ateada por incendiários.

terça-feira, 18 de março de 2025

O indivíduo

A certa altura do romance Fuga sem fim, Joseph Roth escreve: Porém, Tunda também a aborrecia – era um homem sem energia, reincidente na ideologia burguesa, facto esse que se evidenciava notoriamente através da sua disponibilidade sempre mais forte para fazer amor. A aborrecida era Natacha, que de seguida partiria para Kiev, onde nascera. Há uma ironia em Roth: essa disponibilidade sempre mais forte para fazer amor é interpretada não como um excesso de energia, mas como falta. Natacha exigia-lhe uma transferência energética do sexo para a transformação social, mas Franz Tunda não se comove com os sonhos revolucionários e centra-se no prazer individual. Daí a acusação de ser reincidente na ideologia burguesa. Ora, esta só em aparência está ligada a uma classe social ou a uma casta, mas antes à afirmação do indivíduo, da sua singularidade. A busca do prazer sexual que fere a pobre Natacha é uma manifestação dessa afirmação do indivíduo sobre o todo. Talvez o melhor exemplo disso seja a obra do Marquês de Sade. A forma hiperbólica que nela toma a sexualidade – o exercício de uma pornografia orientada pela razão como processo de aumento do prazer do indivíduo – é o outro lado, embora muito mais radical, uma espécie de Terror erótico, da afirmação do indivíduo com a vitória do terceiro estado na Revolução Francesa, que não dispensou o exercício da guilhotina. A questão sexual é sempre muito perturbante porque ela representa a afirmação da singularidade radical do prazer do indivíduo em detrimento das construções sociais. O problema, na verdade, não é o sexo. É o indivíduo.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Santa ignorância

A ignorância é o mais vasto de todos os oceanos, e, como se sabe, um oceano que se preze é excessivamente vasto. A ignorância que refiro é a minha, e o que desencadeou o seu reconhecimento foi não saber quem é – ou quem foi – Dag Solstad. Já não é, pois morreu na passada sexta-feira. E o que não sabia eu de Dag Solstad? Tudo. Não imaginava que existia alguém com esse nome. Para piorar as coisas, esse alguém foi um escritor norueguês, para tornar ainda pior o que já era mau, consta que é um génio literário, um digno sucessor de Knut Hamsun, talvez um rival Karl Ove Knausgaard. Tudo isso, até hoje, era para mim nada. Vejo-lhe a biografia na peço necrológica e, na verdade, noto alguns pontos de contacto com Hamsun. Uma certa inclinação para regimes políticos pouco dignos de consideração, mas de sinal contrário. Suspeito, porém, que Solstad se foi afastando dos delírios da juventude, coisa que acontece a muita gente boa e honrada, que não evitou certos pecadilhos quando as hormonas estavam carregadas. A nota necrológica aponta para dois autores com os quais partilha a sua forma de escrever. Um é o referido Knut Hamsun; o outro, o austríaco Thomas Bernhard. Ambos pertencem ao meu Olimpo literário. Será que Solstad também merece fazer parte dos olímpicos? Acabei de encomendar um dos seus romance. Eis um caso para resolver no futuro. Talvez não entre no meu Olimpo como um deus efectivo, mas, pelo menos, poderá passar lá algumas temporadas. Refiro-me, agora, ao egípcio Naguib Mahfouz. Em Entre os dois palácios, somos conduzidos numa visita à sociedade do Cairo durante e após a primeira guerra mundial. Mahfouz fixa o olhar numa família da classe média e, com a paixão de um naturalista, mostra-a no seu devir existencial – que expressão mais sem tino – e, a partir dela, leva-nos a suspeitar como será aquele mundo, cujos princípios nos são quase estranhos. Não descodifico aqui o quase, mas recordo que estamos em Portugal. E com este enigma edulcoro a minha ignorância, enquanto deixo que o crepúsculo me invada os olhos para anunciar o reino da Rainha da Noite, cuja área na Flauta Mágica, de Mozart, nunca me cansa.

domingo, 16 de março de 2025

Causas perdidas

O domingo deslizou em silêncio, e eu, sonâmbulo, deixei-me levar sem que uma resistência tenha erguido contra o despudor do tempo. A luta seria inútil, dir-se-á. Sim, é verdade, mas talvez as únicas causas que mereçam a luta são as que estão perdidas. Pode-se fazer um esboço de taxionomia das causa perdidas. Estas podem ser classificadas em duas grandes categorias. As que estão possivelmente perdidas e as que estão necessariamente perdidas. Grandes são os heróis que triunfam nas causas que estão possivelmente perdidas. Mas que maior heroísmo existirá do que combater em causas que estão necessariamente perdidas? Combater o tempo é uma dessas causas necessariamente perdidas. Não se trata sequer de aniquilar esse inimigo, mas de o reter um pouco, atrasá-lo, evitar que o desenlace se aproxime na hora que Cronos lhe destinou. Mesmo este combate está necessariamente perdido. Fosse eu um herói, como o foi Heitor ao defrontar Aquiles, teria acordado do meu sonambulismo e erguido uma muralha contra o tempo, o seu despudor, a sua argúcia inexorável. Contudo, preferi ir caminhar, deixar-me levar pelas fantasias que a corrente de consciência não se detém em trazer-me, para que eu me esqueça desse inimigo mortal que não pára nunca de trabalhar. Não fui talhado no mármore dos heróis. É uma pena, mas também não fui que me talhei ou escolhi a matéria de que sou feito.

sábado, 15 de março de 2025

Bocejos e espirros

Bocejo. O pós-almoço tornou-se um tempo difícil. Também o dia se endificultou. Que pena não existir o verbo endificultar. Dificultar diz-nos que algo se tornou difícil, mas se lhe juntar o prefixo en- dizemos o processo pelo qual uma coisa – neste caso, o dia – se tornou difícil. Quando saí de manhã, o dia não estava difícil, nem para mim nem para ele. Havia luz solar e um suave calor acompanhava os passos perdidos dos transeuntes por ruas, praças e avenidas. Depois de almoço, a disposição mudou e foi aí que o dia começou a endificultar-se, enquanto eu ia bocejando. Céu cinzento, chuva, algum vento frio. Tudo dificuldades desnecessárias. O sábado decretou-se, assim, como tempo de confinamento. Talvez esteja com saudades daquela época, tão longínqua, em que nos confinávamos em casa por causa de um vírus. O melhor é deixar essa memória retida nos arrabaldes da consciência, isto é, no subconsciente. Tê-la aí é útil por dois motivos. Em primeiro lugar, evitamos andar com a consciência viva do que foi uma coisa pouco agradável. Depois, é melhor que essa memória esteja à mão no subconsciente do que recalcada no inconsciente, que era como se não existisse. Se precisarmos dela, com facilidade retiramos de onde está e a trazemos para a consciência, para a usarmos, em caso de necessidade. Continuo a bocejar, os olhos querem fechar-se, nenhuma ideia me ocorre, a não ser coisas sem sentido: invenção de palavras, associações espúrias, memórias avulsas. Quando bocejo, o pensamento torna-se uma assembleia de assuntos avulsos (eis a assonância em exercício), coisas que saltitam na consciência e cuja finalidade não descortino. O melhor é ir dormir uma sesta. Acabei de espirrar. Talvez me tenha constipado. Ou talvez esteja a sonhar que me constipei. Devia evitar o uso de talvez. Há que fingir que se tem certezas e que elas resistem aos assaltos da dúvida, por metódica que seja.

sexta-feira, 14 de março de 2025

O caminho do Golgotá

Antigamente, era às quartas-feiras à tarde. Agora, o ensaio do grupo musical da escola aqui ao lado – parece um conjunto de animação de antigos bailes de província – passou para as tardes de sexta-feira. Um saudosista desfilar de músicas dos anos sessenta e setenta do século passado. A certa altura, comecei a ouvir We don't need no education / We don't need no thought control… Teacher, leave them kids alone / Hey! Teacher! Leave them kids alone! Pensei, levado pela ingenuidade – mas, como uma amiga salientava, ingenuidade depois dos 40 não é ingenuidade é burrice – que não seria a canção mais adequada para estar a ser cantada por professores numa escola. Depois, mudei de opinião. Os professores que formam o grupo têm uma idade tal que só saberão francês. Não sabem o que estão a cantar. Achei a explicação satisfatória – mais uma vez a questão da ingenuidade – e esperei que o ensaio acabasse, para poder abrir a janela e deixar o ar entrar, numa renovação que anuncia a Primavera. Entrou ar e sol, a música dos Pink Floyd foi tragada por coisas mais decisivas. Ontem, morreu Sofia Gubaidolina. Vai acompanhar-me este fim-de-semana. Como estamos na Quaresma, começo pela Paixão segundo S. João. Já há muito que não ouvia a sua música. Numa nota necrológica leio uma frase da compositora russa: a vida reduz o homem a tantas peças que não conheço outra missão mais séria do que ajudar, através da música, a reconstituir a sua integridade espiritual. Muitos são os caminhos da arte, mas nenhum será mais decisivo do que essa ajuda à reconstituição da integridade espiritual do homem. Haverá quem argumente que isso será atribuir à arte uma finalidade estranha a ela própria, um ataque à autonomia da arte. Ora, a arte é uma das manifestações essenciais do espírito humano, e se arte se põe como fim ajudar essa restituição da integridade espiritual, ela está a ajudar-se a si mesma, a procurar a sua integralidade, a enfrentar a fragmentação que a conduz a uma irrelevância no destino dos homens. Os dias estão já bastante grandes. Uma luz amistosa desce sobre a praceta. Adolescentes jogam à bola e eu oiço a Paixão. Um baixo, um barítono e dois coros encenam o caminho de Cristo para o Gólgota.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Palavras

Fechei as janelas e a noite ficou a dormir lá fora. Aqui é como se dia fosse, mas de luz temperada, nada de excessos, sóis de brilho cauteloso, não vão os olhos ficar ofuscados e nem capaz seja de ver aquilo que escrevo. E se há coisa conveniente neste mundo – e talvez noutros – é ver bem aquilo que se escreve, não vão as palavras arrastar uma sombra ou mesmo um véu negro, talvez uma mantilha escura como breu. Há uma diferença fundamental entre as palavras ditas e as escritas. As que saem da boca, o vento leva-as. Mesmo se alguém as ouve, elas perdem a solidez, tornam-se vestígios agarrados na memória, e não há coisa menos digna de confiança do que a memória. As palavras escritas, porém, enquanto permanecerem escritas, ficam ali, firmes, sólidas, prontas a ser reactivadas por quem as lê, e até a má literatura encontra quem a leia. A minha descrição da liquidez da oralidade só numa primeira aproximação faz sentido. Se eu estivesse em disputa comigo mesmo, diria: e se as palavras ditas forem gravadas? Não ganham elas a solidez da escrita? E teria de concordar que as palavras podem tornar-se sólidas, mesmo no estado gasoso. Os dispositivos de gravação de sons são, deste modo, formas de solidificação das emissões sonoras e, entre estas, de cada flatus vocis a que se dá o nome de palavra. Moral da história: quando se trata de palavras, todo o cuidado é pouco, mesmo se elas são ditas e não escritas. Não vá alguém estar a gravá-las. Temos de pensar nas múltiplas possibilidades e nas ameaças que se escondem nelas.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Falar consigo mesmo

Fui apanhado. Estás a falar com o espelho, escutei. Desmenti. Não que eu vi bem, estavas a falar com o espelho. Silêncio. Ao desmentir não estava a mentir. Não estava a falar com espelho. Estava envolvido num diálogo comigo. O facto de estar em frente ao espelho foi um acaso. De há uns tempos para cá, dei por mim em diálogos comigo mesmo. Toda a gente dialoga consigo mesma mas essa conversa fica retida dentro de si, sem transparecer para o exterior. Fui apanhado. Não por estar a falar com o espelho, mas por falar sozinho comigo mesmo. Vais enlouquecer, ouvi. Talvez, repliquei. Ou talvez já tenha enlouquecido, atrevi-me a informar. Para Platão, pensar é um diálogo interior e silencioso consigo mesmo. O meu problema é que o diálogo interior e silencioso comigo mesmo está a perder algumas características que me permitiam parecer saudável. Está a exteriorizar-se e a tornar-se menos silencioso. Acabarei a falar sozinho pelas ruas? Quem me garante que não o faço já? Estes diálogos interiores e silenciosos que se exteriorizam e se tornam quase vocálicos são interessantes, pois sucedem à volta de coisas que me preocupam ou que me irritam, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Nessas conversas comigo, o meu pobre ego é um herói, impante, destemido, glorioso. O interlocutor – o si mesmo – é pouco vocálico, parece perdido no discurso do ego, incapaz de o mandar calar. Por vezes, consegue uma aberta e sublinha que o melhor é prestar atenção ao que se está a fazer e, quando se está atento ao que se faz, não se fazem figuras tristes ao falar consigo mesmo, pelo menos de modo a ser apanhado desprevenido. A verdade é que gosto cada vez mais de falar comigo mesmo, e as conversas que entretenho comigo são as mais exaltantes. Estou a exagerar, mas tenho uma certa propensão para a hipérbole. Ora, falar consigo mesmo e ser hiperbólico não é cartão de visita que se apresente. Talvez já não existam cartões de visita, uma coisa extraordinária que houve em tempos, mas que nunca tive. Para me visitar, basto-me eu. A conversa será animada e, se descambar em disputa, a minha vitória está certa — também a derrota, mas o mundo está longe de ser uma coisa perfeita. Talvez devesse experimentar falar com o espelho; a ideia nem é má. Entre mim e a minha imagem especular há uma diferença tal que raramente reconheço naquele simulacro um reflexo meu.

terça-feira, 11 de março de 2025

Os aplausos

Passei há pouco diante da televisão e percebi que estava a decorrer um ritual litúrgico em torno de um qualquer drama nacional. Alguém se levantava, falava e, quando acabava, o grupo de onde se erguera aplaudia. Talvez por rivalidade mimética, de um outro grupo, alguém se levantava, falava e, quando acabava, era o seu grupo que palmejava. Isto fez-me lembrar o que se passava na época de Estaline. Quando ele acabava de discursar, os aplausos irrompiam com estrondo e continuavam... continuavam... continuavam. O problema que se colocava a cada um dos apoiantes era o de não ser o primeiro a parar o aplauso. Suspeitava que a vida se podia enegrecer devido à fraqueza dos braços ou à falta de energia para mover as mãos uma contra a outra. Nisto não estou a entrar no campo minado da política, mas no âmbito da antropologia. Há uma clara superioridade na rivalidade mimética. O importante, para os falantes que vi na televisão, é a quantidade de aplausos que recebem ser maior do que a do seu rival. Para isso, basta que fale em último lugar, depois de ter medido a ovação do outro lado. O grupo prolonga a sua por mais uns segundos e tudo fica resolvido, sem dramas para os braços, tortura para as mãos ou vidas enegrecidas devido a uma constituição débil. É muito mais difícil quando a rivalidade é suprimida. A claque fica com um problema entre mãos, para o qual nenhum cronómetro terá a astúcia suficiente para sugerir uma solução.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Um verbo de outros tempos

O que é envelhecer? Talvez seja contar, uma e outra vez, as mesmas histórias, entregar-se à repetição de peripécias, navegar num oceano de iterações. Tudo isto a propósito da história que contei ontem sobre livros e mercearias. Quantas vezes a terei contado nestes textos? Não sei, mas a possibilidade de serem várias funda-se no simples facto de este ser o segundo milésimo ducentésimo décimo nono post. Não vou agora discutir a vexata quaestio da denominação do ordinal 2219.º. Há várias possibilidades, suportadas por especialistas. Como não sou especialista de nada, e muito menos de denominações de números ordinais, uso aquela que mais me agrada: uma questão de gosto e não de rigor na nomenclatura. Com isto, desviei-me do assunto que abriu o escrito: envelhecer. Jacques Brel – enfim, falar de Brel é uma prova de que sou de um outro tempo, que poucos já conhecem – tem uma canção, de 1963, com o título Les Vieux. A canção é belíssima e terrível. Traduzo a primeira metade da primeira estrofe do poema: "Os velhos não falam ou, então, por vezes, fazem-no com o olhar. / Mesmo ricos, são pobres, já não têm ilusões e têm apenas um coração para os dois. / Nas suas casas cheira a tomilho, a limpeza, a alfazema e ao verbo de outros tempos./ Que se viva em Paris, vive-se sempre na província quando se vive demasiado tempo. Os versos são longuíssimos, tão longos como a vida dos velhos de que fala Brel. Em 1977, o cantor belga, pouco antes de morrer (Outubro de 1978), edita um último álbum. Uma das canções, de uma ironia amarga, denomina-se Vieillir. O refrão diz, traduzido para português: "Morrer, isso não é nada. / Morrer, que grande coisa! / Mas envelhecer, oh, oh envelhecer..." Ora, Brel tinha 49 anos quando morreu. A sua casa nunca chegou a ter o cheiro do tomilho e da alfazema, nunca terá contado histórias repetidas ao mesmo auditório. Envelhecer é o processo onde nos repetimos, onde ainda falamos, usamos as palavras e repetimos aquelas que mais amamos. Talvez tudo isto seja apenas uma luta contra o silêncio, quando já ninguém tem paciência para ouvir as nossas histórias ou nós perdemos o interesse de as contar. Quem as perceberá, se o nosso verbo é de outros tempos?