sábado, 21 de maio de 2022

Traduções

Hoje o dia não começou mal. A balança decidiu, ao fim de vários meses de recusa, devolver-me um peso um pouco mais baixo, dando-me a esperança – ou a ilusão – de que a trajectória descendente se torne efectiva. Também não precisará de descer muito. A situação não é catastrófica, nunca o foi. Há uns anos ou há uns quilos atrás, em Madrid, deparo-me, já não me lembro se no Museu do Prado ou no Rainha Sofia, com uma exposição, amplamente anunciada pela cidade, do pintor Alberto Durero. Não fazia a ideia quem era esse Alberto, embora houvesse qualquer coisa no nome que não me era completamente desconhecida, tinha um ar familiar. Vamos ao museu e aproveitamos para descobrir esse Durero, disse. Quando chego, descubro de imediato que não existia nenhum Alberto Durero e que a exposição era do pintor alemão renascentista Albrecht Dürer. Na minha ingenuidade (e ingenuidade depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como dizia uma amiga), nunca pensei que mesmo os espanhóis se atrevessem a traduzir-lhe o nome. Pergunto-me como traduzirão eles Liev Tolstói. Por León Tostado? Lembrei-me dessa história porque vi, num blogue dado a efemérides, que Dürer nasceu a 21 de Maio, um dia que parece não ser mau para virem ao mundo pintores. Também a 21 de Maio nasceu Henri Rousseau, o pintor precursor da pintura ingénua. Talvez devesse usar a designação pintura naïf. As areias do Sahara retornaram. Já sabia. Esse saber evitou que ontem fosse pôr o carro a lavar. Tinha entrado nele e, olhando-o com alguma condescendência, pensei que era dia de o levar à lavandaria dos carros. Ia já a caminho, quando me lembrei que estava anunciada a visita arenosa do Sahara. Adiei. O dia tem uma tonalidade irreal, uma luz esbranquiçada, como se sofresse de anemia. A temperatura, porém, está acima dos 30 graus. Parece que tenho de ir às compras. A realidade é sempre pior do que a imaginamos.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Automóveis e adolescência

Um carro da Mercedes, do ano de 1955, foi leiloado por 135 milhões de euros. Consta que existem apenas dois carros dessa série. Nesse ano, nas 24 horas de Le Mans, o piloto francês Pierre Levegh despistou-se, tando morrido de imediato, num desses carros. A desintegração do automóvel atingiu o público tendo morrido 82 espectadores. Isto aconteceu ainda não tinha nascido, mas naqueles anos de adolescência em que era um apaixonado pelas corridas de automóveis, muitos pilotos morreram em competição ou mesmo nos treinos como aconteceu com Jochen Rindt, em Monza. Rindt, um austríaco, é até hoje o único piloto de Fórmula 1 que foi campeão mundial a título póstumo. A pontuação que tinha antes do Grande Prémio de Itália não foi alcançada por nenhum dos pilotos que lhe sobreviveram. Quando me interessava pelo automobilismo havia quatro corridas emblemáticas. As 24 Horas de Le Mans, o Grande Prémio do Mónaco, as 500 Milhas de Indianápolis e o Rally de Monte Carlo. Depois, a adolescência passou e com ela passou o interesse pelas corridas de automóveis. Nunca fui ver um Grande Prémio ao vivo e não retornei a ver passar um rally. Cheguei a ver passar o Rally TAP, que, naqueles anos, era uma das grandes competições de automobilismo de estrada. Depois, de um momento para o outro, o interesse passou, não tornei a ver um Grande Prémio na televisão e hoje em dia não faço a mínima ideia sobre o que se passa na Fórmula 1, em Le Mans ou se ainda existe um rally de Portugal, como o TAP. A adolescência é uma doença terrível, mas não é incurável. Penso eu, embora possa admitir que, nos homens, se torne uma doença crónica.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Da adequação dos nomes

É tarde e estou cansado. Descobri-o porque dei uma ordem de impressão a um documento e este recusou-se a ser impresso. Dei uma segunda ordem, a recusa manteve-se inalterada. Desisti de imprimir. Amanhã, trato do caso. Um exemplo de procrastinação. Lembro-me, perfeitamente, da injunção que, num livro da escola primária, um advogado dava a um camponês que o consultou em busca de conselhos: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Desconfio que nunca levei a sério aquele imperativo. Depois, descobri que me tinha esquecido de dar um novo comando à impressora e desprocrastinei. Como estou cansado, interessei-me por uma certa afirmação de Ludwig Wittgenstein: Sabemos muito bem que o nome “Schubert” não se encontra em nenhuma relação de adequação com o seu portador. Parece sensata a afirmação. O autor pretende mesmo justificá-la dizendo: O nome “Schubert” adequa-se completamente a Schubertnão significa nada. Não passaria de uma informação patológica sobre aquele que a dissesse. De facto, não é sintoma de boa saúde mental andar a dizer coisas que não significam realmente nada. Como posso, porém, saber que não há nenhuma relação de adequação entre o nome “Schubert” e a pessoa “Schubert”? A afirmação de Wittgenstein pretende dizer apenas que o nome da pessoa é uma mera etiqueta dada socialmente e não tem relação com aquilo que a pessoa é. Como poderei saber, porém, se aquela pessoa em vez de se chamar Franz Peter Schubert se chamasse Friedrich Wilhelm Nietzsche teria composto o que compôs ou mesmo se teria sido músico? Que sabemos nós do impacto que um nome pode ter no destino de uma pessoa? Imaginemos o seguinte: à pessoa x foi atribuído o nome Franz Peter Schubert, essa pessoa tornou-se o músico que conhecemos; por outro lado, à pessoa y, no mesmo dia, foi atribuído o mesmo nome e ela tornou-se um sem-abrigo. Não bastará isto para confirmar a justeza da teoria de Wittgenstein? Não, pelo contrário. Isto permite pensar que há atribuições adequadas e outras desadequadas. No primeiro caso, o nome conduz à realização de si; no segundo, o nome foi excessivamente pesado e a pessoa sucumbiu à carga que transportava. Talvez Wittgenstein tenha razão, e a minha mente esteja em avançado estado patológico. Amanhã, talvez tenha pensamentos menos idiotas. Há que não perder a esperança.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Do absurdo

Estive a ler, numa obra de Alexander Kluge, um diálogo completamente absurdo entre dois agentes diplomáticos britânicos em Moscovo. Não, não... não era um diálogo actual sobre a vexata quaestio da guerra na Ucrânia, mas da época em que ainda existia a URSS. É possível que, nesses tempos, todos os diálogos entre agentes diplomáticos em Moscovo fossem absurdos. Também não é inverosímil que qualquer diálogo entre quaisquer agentes diplomáticos em qualquer época seja absurdo. A única coisa que há que decidir é se a inclinação para o absurdo se deve aos assuntos a que os agentes diplomáticos se dedicam ou ao facto de possuir uma natureza absurda ser uma condição necessária para se tornar agente diplomático. Este dilema – porventura, falso – poderá não ter em consideração uma outra perspectiva mais global, ou, para usar uma palavra que começa a dar-me náuseas, mais holística. Quero dizer o seguinte: qualquer diálogo entre dois representantes da espécie humana é tendencialmente absurdo. O absurdo nascerá, caso exista, de qualquer diálogo não passar de um duplo monólogo, uma conversa onde os participantes deslizam paralelamente cavalgando cada um o seu discurso. Quanto maior fidelidade ao paralelismo, mais compensador é o diálogo. Esta é uma lei, e, como tal, tem uma aplicação universal. Isto tem, por outro lado, uma consequência interessante. Qualquer um de nós poderia ou poderá tornar-se um agente diplomático. Pelo menos, preenche uma das condições necessárias. Escrevia que a palavra holístico e a ideia de holismo começam a nausear-me. A causa, presumo, é que pressinto sempre que alguém usa holismo, holístico, etc. que aquilo a que se refere não é o velho hólos dos gregos, mas o hole dos ingleses. Não está a falar de um todo, mas de um buraco. Aliás, o diálogo mencionado referia-se a buracos ou, melhor, a perfurações. Uma conversa esburacada, além de absurda, esta.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Em contramão

Hoje seria mais um dia sem uma grande aventura, não fosse o caso de ter entrado em contramão numa rua em Lisboa, mesmo no bairro de Campo de Ourique. Vi alguém a fazer gestos, mas não percebi que era comigo. Outra pessoa repetiu esses gestos e pensei que alguma coisa estava errada. Quando vi um carro a vir em direcção ao meu tive a certeza de que havia um problema. Lá comecei a fazer marcha atrás e, aproveitando a entrada de uma garagem, fiz inversão de marcha e fui à minha vida, isto é, cortei à esquerda, na rua a seguir, que era o que deveria ter feito. O pior de tudo é que eu sei muito bem que não se pode cortar ali. Como é que o cérebro dá um comando que não devia? Estava distraído? Não. Estava cansado, mas isso não é razão suficiente. A viagem tinha sido muito cansativa, com muitos engarrafamentos a chegar Lisboa e dentro da cidade. Depois destas aventuras e feito o que tinha a fazer, retornei à minha pequena província sem infringir a lei. Bem, na auto-estrada talvez a não tivesse cumprido com excessivo rigor, como não deixaram de referir em comentário à velocidade a que circulava. Estou com fome, desculpei-me. Curioso, porém, foi a sensação de demora na viagem de retorno. Sem impedimentos, uma velocidade que não se compatibiliza com a existência de radares, e a viagem nunca mais acabava. Aventuras de um condutor que não gosta de conduzir. Com tantas coisas interessantes para ocupar o cérebro e este tem de estar atento aos sentidos proibidos, aos limites de velocidade, aos semáforos, ao pára e arranca, ao vê lá se não bates. Depois, entra-se em contramão e põe-se toda a gente a fazer sinais estranhos, como se quisessem comunicar com um extraterrestre.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Tempo perdido

Maio já atingiu o meio. A volubilidade humana é terrível. Ao mesmo tempo, quero que o tempo passe depressa e que quase não se mexa. Ele, porém, é uma personagem cruel e impávida. Segue a um ritmo de que só ele sabe a cifra. Uma longa conversa ao telemóvel interrompeu-me os afazeres. Terei a noite para recuperar o tempo perdido. Tempo perdido, esta expressão recordou-me uma promessa feita a mim mesmo de reler o romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Hesito se o leio em Francês ou se na tradução de Pedro Tamen. Talvez seja essa hesitação que me tem levado a adiar o projecto, pois ler os sete romances é mesmo um projecto existencial. Foi assim que o encarei ao lê-los, há muito, numa tradução dos Livros do Brasil, que acabei por oferecer, quando comprei as traduções de Tamen. A leitura de Proust é um daqueles casos que exige que o tempo passe muito devagar. Aquilo que tenho para fazer, todavia, seria bom que fosse feito tão rapidamente que nem desse por isso. Hoje é uma daquelas segundas-feiras em que não me ocorre nada de assinalável. Nem tortos para endireitar, nem gigantes para combater. Nada.

domingo, 15 de maio de 2022

O fim do mundo

Há muita gente que não crê no fim do mundo nem que estamos na idade negra, a alguns milímetros de cairmos no mais insondável dos abismos, o nada. Até hoje, eu fazia parte desse grupo numeroso de cépticos relativamente ao destino apocalíptico da humanidade. Até hoje, digo bem. Contudo, depois de um almoço num restaurante italiano em Campo de Ourique, alguém diz que o melhor seria dar um passeio a pé até ao Jardim da Estrela, ao que outro dos convivas responde: isso era o lugar onde os magalas iam namorar as sopeiras. Foi o momento da minha conversão. Como S. Paulo, também eu tive a minha estrada de Damasco. Passei acreditar no fim do mundo. Não porque os magalas namorassem sopeiras na Estrela, coisa sabida por muita gente, mas porque alguém, com menos de quarenta anos, não fazia ideia do que era um magala. Uma revelação de que o mundo está por um fio. Argumentou ainda que sopeira, sim senhora, sabia o que era, mas magala nunca tinha ouvido. O espanto quase me impediu de fechar a boca. O pior, o que só radicalizou a minha conversão, foi quando se explorou o conceito de sopeira. Nada nele correspondia ao conceito histórico de sopeira. O que anda esta gente a fazer nas universidades? Mestrados, doutoramentos, e não sabem o que é um magala e uma sopeira? Quando se ignoram os factos básicos da existência, isso só pode ser o prenúncio do fim do mundo. Eu creio – isto é, passei a crer – que estamos na mais negra das idades, na idade de ferro, no Kali Yuga dos hindus. Estamos na última e mais escura era do ciclo cósmico.

sábado, 14 de maio de 2022

Está de ananases

No mundo da saúde, há uma hierarquia explícita, talvez um regime de castas como aquele que vigora na Índia. Na base, estão os pacientes. Melhor, os pacientes estão abaixo da base, são a poeira sob os pés de Brahma. Não interessa se são ricos, pobres ou nem uma coisa nem outra. São os intocáveis que suportam o edifício que sobre eles se ergue. Utilizo o termo paciente no lugar de doente, não por paciente significar aquele que sofre, o que é a definição correcta do termo, mas por ser necessária muita paciência. A paciência deriva não da doença, mas dos tempos de espera que um qualquer paciente é sujeito numa instituição de saúde, e não me refiro às públicas. Um médico especialista – um verdadeiro brâmane – que se preze nunca fará esperar um paciente menos de uma hora. É uma questão de estatuto e, como se sabe, os médicos nasceram da cabeça de Brahma. Hoje descobri que um técnico – neste caso de cardiologia – tem direito a fazer esperar o paciente – no caso, eu – meia-hora, apesar de me terem contactado para estar lá a uma certa hora. Fiquei grato por não ser um médico a colocar-me um aparelho que dá pelo nome, ele ou o exame, de Holter. Agora, estou ligado a um dispositivo que me vigia o ritmo cardíaco durante 24 horas. É sempre constrangedor o momento em que a menina, pois é sempre uma menina, me diz que posso fazer a minha vida normal, menos tomar banho. Imagino que ela está a sugerir que, apesar de parecer um bombista suicida, se o desejo me assaltar a vida sexual não está impedida. Não faço ideia se haverá nisto algum voyeurismo. Pressinto o técnico e o médico especialista que assina o relatório a fazerem considerações sobre a performance amorosa, talvez a aplicar alguma escala desconhecida para avaliar não as irregularidades do meu coração, mas as da sexualidade. Remeto-me, sempre, à mais rígida continência, senão mesmo à pura castidade. Por aqui está um calor de ananases. Derrete os untos. Está de escachar. E assim acabo com uma homenagem ao autor da Correspondência de Fradique Mendes.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Assédios

Estava eu numa grave crise de falta de assunto, quando leio uma notícia extraordinária. Os meritíssimos juízes de um tribunal britânico consideraram que chamar a um homem careca é uma forma de assédio sexual. Estabelecem os preclaros magistrados uma analogia na qual revelam uma imaginação não exígua. Comentar, no local de trabalho, a calvície de um homem é equivalente a comentar, no mesmo local, os seios grandes de uma mulher. Imagino que na base da analogia, a fonte que permite o transporte de uma situação para outra, será que cada uma das características é pertença de um só sexo. Assim, como só as mulheres podem ter seios grandes, também só os homens podem ser calvos. É evidente que os juízes não parecem ter grande formação em lógica informal. Há contra-exemplos gritantes que não foram tidos em conta no raciocínio analógico que subjaz à douta sentença. Há homens com seios grandes e mulheres carecas. Para lá deste pormenor, pode-se imaginar, segundo a jurisprudência agora inaugurada, que qualquer referência a uma característica especificamente masculina ou feminina – e sem contar com o próprio sexo – pode representar um acto de assédio sexual. O que vale é que hoje é sexta-feira e, ainda por cima, dia treze. Acabou de começar – esta é uma esplêndida expressão – o ensaio do conjunto da escola aqui ao lado. Não vou perder tempo com o assunto. Reparei que talvez existam adjectivos a mais neste texto. Isso não é uma boa notícia para o estilo, mas é um sinal emancipador para a classe dos adjectivos. Há que libertá-los da má fama e da sua evidente exclusão. Se os substantivos e os verbos podem ser usados sem limite, o que terão feito os adjectivos para ficar mal na fotografia? Preconceitos. Pior do que isso. Uma tentativa de cancelamento da realidade ontológica que essas palavras designam. Os inimigos dos adjectivos e da adjectivação hiperbólica são adeptos de um mundo sem qualidades. Não bastava o homem sem qualidades, temos também um mundo sem qualidades, sem determinações, sem relações.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Colapsos

Acabei de dar uma vista de olhos pela imprensa. O mundo parece ter entrado numa espiral de turbulência da qual não se vislumbra saída airosa. Não foi isso, contudo, que me prendeu a atenção. Com a minha relutância relativamente à realidade, a qual é sempre pior do que aquilo que se imagina, deixei-me levar pela notícia do dia. Trata-se da primeira imagem do buraco negro que está no centro da nossa galáxia. Tem uma massa 4 milhões de vezes superiores ao Sol, mas não faço ideia o que isso significa. Há coisas que a imaginação humana – pelo menos, a minha – não tem capacidade de processar. A fotografia é desoladora, não me parece ser um sítio onde a realidade seja melhor do que aqui. Apesar de estar no centro, tem um ar de subúrbio. Uma grande cidade, daquelas que se prezam em ser cidade, tem um centro tão atraente que só alguns podem lá viver. Já nas galáxias parece dar-se o contrário. O melhor sítio para viver é nos subúrbios, bem afastados do centro. Um buraco negro forma-se, segundo li, quando a matéria entra em colapso sobre si própria. Isto talvez queira dizer que todos nós somos buracos negros em potência. Todos podemos colapsar sobre nós próprios, embora não faça ideia do que significa a expressão matéria colapsar sobre si mesma. Quando o dia dá lugar à noite, isso significa que o dia colapsou sobre si mesmo e se tornou um buraco negro? Agora, que o crepúsculo se aproxima, vou dar atenção ao colapso do dia.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Perversões

Acabei mais uma incursão no admirável mundo novo das videoconferências. Nesta afirmação não existe qualquer censura ao facto de se substituírem encontros presenciais por virtuais. Aliás, permitiria, caso tivesse talento para isso, fazer profundas meditações sobre a virtualização do corpo, a sua redução a uma pequena imagem, quando não a sua ocultação. Influenciado pelos teóricos franceses dos anos sessenta e setenta do século passado, que, em Portugal, estiverem em moda nos anos oitenta e noventa, haveria de discorrer sobre o carácter censório desta ocultação dos corpos. A virtualização, diria, é uma estratégia para apagar os traços de erotismo que a presença corpo a corpo sempre pode desencadear. Debitaria tudo isto caso fosse dotado para o fazer. Confesso, por outro lado, que esta ocultação dos corpos atrás de um micro monitor, ao lado de outros micro monitores pedidos num monitor mais amplo, começa a ser-me bastante simpática. Talvez o virtual seja o caminho para a virtude. Por virtude não me refiro à perspectiva grega de excelência ou virtuosismo, mas à virtude que se expressa na resistência às tentações. O corpo do outro tornou-se um corpo fantasmático, e de fantasmas deve-se ter medo e não atracção erótica, o que entraria na categoria das perversões. Aqui, contra a minha tese, convém citar o senhor Jacques Lacan, um dos teóricos franceses que estiveram na moda naqueles tempos: toda a sexualidade humana é perversa, se seguirmos correctamente o que diz Freud. Ele nunca concebeu a sexualidade sem ser perversa. Isto é, para o pai da Psicanálise toda a sexualidade – incluindo a normal, esse súbito encontro entre pénis e vagina, fruto possível da posição do missionário – seria perversa. Talvez, o que cada um dos amantes deseje no outro não seja o corpo, mas o fantasma que nele se esconde. Apesar de ter alarmado as boas consciências do seu tempo com uma doutrina que falava da sexualidade, o dr. Sigmund Freud seria um conservador nos costumes, que, no íntimo, acharia que só a mais pura assexualidade não seria uma perversão. O melhor é ficar por aqui, pois não tarda e ponho-me a falar de política e de Wilhelm Reich, o autor de A Função do Orgasmo, que fez a ponte entre a psicanálise e o marxismo, coisas que a minha geração devorou, com o atraso devido a estarmos todos em Portugal, e com a inutilidade que resulta de tudo aquilo que se devora.

terça-feira, 10 de maio de 2022

S. Pedro, S. Pedro

Em tempos, Maio era um mês primaveril. Neste momento, estão 35 graus. S. Pedro enlouqueceu ou, então, foi de férias para o céu de um outro universo que não este. Podemos acordar-lhe que nós, os seres humanos, não somos particularmente virtuosos, sempre inclinados para actividades pecaminosas. É um facto. Contudo, também os santos têm um dever indeclinável com os pobres mortais. Serem misericordiosos. Sem misericórdia não há santidade, presumo. Ora, deixar que se chegue por aqui a estas temperaturas revela pouca misericórdia. Parece mais uma ameaça com as penas do inferno. Não sei se a punição será a melhor estratégia para levar os homens ao bom caminho. Desconfio que o santo proprietário das chaves precisa de fazer formação em pedagogia e psicologia motivacional. É uma impressão. A certa altura de um dos seus livros, Peter Sloterdijk escreve: Nas gravuras do século XVIII aparecem corsários do sexo feminino – de espada desembainhada, blusa aberta e peitos salientes – como que para provar que, no mar, a nova mulher age com toda a autonomia no seu papel de saqueadora. Será por isto que o S. Pedro se recusa a regular o tempo como deve ser? Estará ofendido ver mulheres dedicadas ao corso? Preocupa-o a autonomia feminina? Ficou chocado com a mulher de espada desembainhada? Ou a saliência dos peitos tê-lo-á perturbado? Seja qual for a razão, era bom que houvesse uma rápida reconsideração do estado do tempo. Sobre mim, estas temperaturas têm dois efeitos. Baixam-me a tensão arterial e elanguescem-me os neurónios, no duplo sentido de que ficam mais fracos e mais lânguidos. Neste caso, não é que eles passem a pensar em corsárias de peitos salientes, mas entregam-se a sinapses lentas e langorosas, como se houvesse um problema eléctrico qualquer. As junções sinápticas tornam-se uma coisa indecorosa e de eficiência tendencialmente nula, que se traduz em textos lamentáveis como este. Agora, tenho de me levantar e enfrentar o tórrido calor da rua.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sapiens

Uns adolescentes tentam engrossar a voz na praceta. O peso das hormonas desequilibra-os e desfigura-lhes a frágil humanidade que ostentam. Com o tempo, tudo encontrará o lugar, e eles hão-de esquecer-se das figuras que agora fazem. Talvez cada um de nós tenha de recapitular o processo de evolução da espécie, onde se incluirá por certo aqueles estádios pré-humanos que antecederam a gloriosa alvorada do homo sapiens sapiens. O que acontece, e talvez não sejam poucas as vezes, é que alguns não chegam ao segundo sapiens, ficam pelo primeiro. Outros, nem ao primeiro sapiens chegam, ficam pelo homo. Haverá ainda aqueles que, apesar da figura, não chegam sequer a homo. São hominídeos na aparência, mas não na essência. Nem vou discutir se existem ou não essências. Neste texto existem, e é isso que importa. A cidade está arqueada ao peso do calor. O sol entranha-se na pele e esta parece estilhaçar-se. Ainda vamos em Maio. Sobre a mesa tenho uma carta da Autoridade Tributária e Aduaneira. Abro-a desconfiado e vejo haver razões para desconfiança. Um imposto para pagar. Tenho tempo, penso e deixo a mensagem deslizar pelos dedos. Elenco as coisas que tenho para fazer. Respiro fundo e insulto, entre dentes, a realidade, não vá ela escutar-me. As acácias começam a cobrir-se de folhas. Ainda são árvores com um aspecto esgalgado. Daqui a umas semanas estarão todas cobertas de uma folhagem verde. Serão exuberantes. O galgo que há nelas ter-se-á ocultado. Começo a fazer associações linguísticas que, apesar de correctas, não indiciam grande sanidade mental.

domingo, 8 de maio de 2022

Um perplexo sem guia

Continuo a ler coisas que não deixam de aumentar a minha perplexidade. A quantidade de pessoas que deseja pôr a mão na vida das outras, de lhes dizer como devem viver e o que devem fazer, é alucinante. Esse desejo não é sequer da ordem da enunciação, mas da própria acção. Interferir na vida dos outros, dizer-lhes no que devem acreditar, tudo isso tornou-se objecto de uma militância espalhada um pouco por todo o mundo. O direito de cada um a dispor da sua própria vida como bem entender tornou-se, no delírio crescente que assola este pobre planeta, um sintoma de uma sociedade decadente e corrupta. Dito de outra maneira, ser livre é um sinal de decadência. Como tal, a liberdade dos indivíduos deve ser suprimida. Estas meditações são completamente descabidas num domingo, antes de almoço. Ocorrem, por certo, porque o almoço é mais tardio e haverá uma conexão entre a espera e as considerações mais ou menos mórbidas. O dia, porém, está luminoso, e nada indica que viva numa sociedade particularmente decadente, embora possa estar errado. Talvez devesse dedicar a tarde a ler uns textos do romântico alemão Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, a que deram, em espanhol, o título de Alba del Nihilismo. O almoço interrompeu-me a especulação em torno do livro de Jean Paul. Esqueci-me do que ia dizer, prova suprema da sua irrelevância, como a de tudo o que narro. É domingo, a tarde está a tomar aquela coloração inquietante que antecede a vinda da inutilidade dos dia úteis. Não passo de um perplexo sem guia.

sábado, 7 de maio de 2022

Sábados à tarde

Quando era estudante, havia aulas ao sábado de manhã. Nesses tempos, o sábado não era dia de descanso. Havia aquilo a que se chamava, salvo erro, a semana inglesa. Cinco dias e meio de trabalho e um dia e meio de descanso. Acontecia que, nos sábados à tarde, na pequena província a que pertenço, não havia grande coisa para fazer e lembro-me de ficar diante da televisão a ver os jogos de Rugby do Torneio das Cinco Nações. Uma competição entre a Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda, na qual se imiscuíra a França. Não que fosse, na altura, um especial adepto da modalidade, mas era o que havia para ver, no segundo canal de uma televisão a preto e branco, tal como o país. Lembrei-me disto porque há pouco apeteceu-me ver um jogo de Rugby e procurei um no Youtube, precisamente um França – Inglaterra. Os tempos mudaram, a modalidade foi capturada por um canal de desporto pago, deixei de ver os jogos e o Torneio das Cinco Nações deu lugar ao Torneio das Seis Nações, com a entrada da Itália, a qual, coitada, parece ter sido designada para bombo da festa. Nunca ganhou uma edição e não é previsível que venha a ganhar nos tempos mais próximos. Para além do jogo, tenho estado a ler o livro do historiador Mark Sedgwick, com o título extraordinário – pela sua dimensão – Against the Modern World – Traditionalism and the Secrete Intellectual History of the Twentieth Century. Não se trata de uma obra sobre teorias da conspiração, mas sobre a história dos movimentos espirituais, intelectuais e políticos tradicionalistas e perenialistas que recusam o mundo moderno e os valores do Iluminismo. É espantosa a quantidade de alucinados que existem e, pior do que isso, a influência que têm em muitos acontecimentos dos dias de hoje. Essa influência traduz-se em guerras, como aquela que decorre na Europa, atentados, violência sem fim. Sonham com o retorno do mundo a uma ordem que, muito provavelmente, nunca existiu. Caso essa gente gastasse as energias a jogar Rugby, o mundo seria um local melhor, mas não. Preferem entregar-se ao delírio da especulação e, depois, a tentar que os outros se submetam aos seus pesadelos. A minha neta mais velha veio há pouco. Está a ser sujeita a um conjunto de torturas pedagógicas, que vão do Português à Física, com passagem pelo Francês. Eu tinha a idade dela quando me entregava, nos sábados à tarde, aos jogos de Rugby. Não sei se devemos falar de progresso no mundo. Para a compensar, já marquei mesa para o jantar no restaurante de que ela mais gosta.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Em ritmo slow

Cheguei a casa mais tarde do que é hábito, mas ainda a tempo de, sentado no escritório a olhar para o vazio, ouvir o ensaio do conjunto da escola secundária aqui ao lado. Continua apostado em músicas do tempo em que os avós dos alunos eram jovens e sonhavam com bailes de finalistas ou outro tipo de entretenimento, onde um laivo de erotismo pudesse dar alguma cor aos dias. Havia, tanto quanto me lembro, uma expressão exacta que definia aquilo que era tocado, música para constituir família. Uma prova de que o sexo, naqueles tempos, ainda era visto na antecâmara do casamento, embora tudo isso estivesse submetido ao estatuto social onde se habitava. Esse tipo de música era composto por uns slows, nos quais os pares dançavam quase sem se mexerem, não fossem tropeçar uns nos outros. A coisa teve uma tal dimensão que a palavra slow foi dicionarizada em Portugal para referir tanto o tipo de dança como a música que a acompanhava. Naqueles dias, não se sabia que aquilo que parecia ser uma decisão do livre-arbítrio, uma prova da liberdade, não passava de uma estratégia da vida para se reproduzir, o engodo químico de um aparato hormonal ao serviço dessa vida. As pessoas casaram-se, tiveram filhos. Entretanto, descobriram que se podiam divorciar e tentar reencontrar esse magnífico engodo auroral. Não podem. Cada dia só tem uma aurora, o mesmo se passa com cada vida. Isto, porém, não significa que não possam existir meios-dias muito mais intensos do que a melhor das auroras, mas também bem mais próximos do crepúsculo. Há magníficos crepúsculos junto ao mar, como nos anúncios turísticos, onde a palavra slow volta a ter um peso fundamental. Não como música ou dança, mas como ritmo de um corpo crepuscular. Tudo se torna mais lento, menos o tempo que passa cada vez mais depressa, pouco interessado em slows. Ele não precisa de se reproduzir.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Quase um saudosista

Um equívoco, foi o que pensei, ao passar pela rua e ouvir alguém dizer que vamos ter um Verão péssimo. Não vamos ter um Verão péssimo, já o temos com as garras afiadas e a cair sobre os corpos que ainda ontem se cobriam com medo do frio. Imaginemos que Vivaldi vivia nos dias de hoje. Jamais comporia As Quatro Estações, quatro concertos pertencentes a uma série de doze com o título Il cimento dell'armonia e dell'inventione. Hoje teria de suprimir os concertos referentes à Primavera e ao Outono. Isto é uma prova de que Antonio Lucio Vivaldi era um homem afortunado, pois viveu numa era na qual os homens ainda não tinham começado a interferir no reino de S. Pedro e a manipular o clima. Vivemos numa época de grandes paixões climáticas, com uma inclinação para a bipolaridade. Ora calores intensos, ora frios absurdos. Na rua, por estes sítios, o flagelo do calor já está em velocidade de cruzeiro, sem que se tenha notado a existência de uma fase inicial preparatória ou incoativa. Digamos que desapareceu a harmonia e a invenção que resta é absolutamente dispensável. Que saudades desse tempo em que existiam quatro estações. Não tarda, torno-me um saudosista e começo a falar sobre o Quinto Império e o Reino do Paracleto, eu que nasci numa terra que cultua o Divino Espírito Santo. Nunca sabemos para o que estamos guardados.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Recomposição do rosto

Recomposição do rosto. Não se pense que é o título de um poema ou de um livro de poesia. Não é. Recomposição do rosto é a fase pela qual estamos todos a passar. Com a queda das máscaras, deparamo-nos com rostos que não se coadunam com aquilo que deles víamos quando se escondiam sob o disfarce imposto pelas contingências da pandemia. A emergência dos rostos à plena luz traz com ela uma sensação de inquietante estranheza. Com o passar dos dias, esses rostos inquietantes e desadequados à nossa expectativa começam a fazer sentido, a perder o ar inquietante que revestiram nos primeiros dias de libertação. Além dos rostos, também o tempo se está a recompor, e isso, no que me toca, não são boas notícias. Deve haver em mim uns genes que não são propriamente do Sul, mas de terras sombrias, onde a luz solar é exígua e o calor diminuto. Num livro de poemas encontrei uma factura de um restaurante. Procurei a data. Era de 2017, de cinco de Junho. Nela, encontrava-se o nome do funcionário, aliás excelente. Já não é funcionário nesse restaurante. Isto é uma prova de que a realidade não é imutável e que o tempo teima em não se fixar. O que acho, porém, mais indecoroso é marcar um livro com um papel como aquele, eu que possuo uma colecção de marcadores de livros, cartões de restaurante, bilhetes de cinema, quando estes eram de cartolina ou coisa no género, uma colecção, dizia, que parece não acabar. Também eu estou a precisar de me recompor. E não é pouco, murmura-me a consciência. Ora, se há alguém a quem não devemos dar crédito é à própria consciência. Agora, vou dedicar-me à videoconferência, uma modalidade existencial que nos ajuda a mantermo-nos à distância uns dos outros, o que poderá ser um contributo real para um mundo melhor.

terça-feira, 3 de maio de 2022

As vantagens da literatura

Dmitry Pissarev tinha, numa fotografia acessível por aí, um rosto curioso. Poderia ser o de um santo, poderia ser o de um sábio daqueles que só existiam antigamente. Não era uma coisa nem outra. Era um niilista russo e um revolucionário. Um anarquista. Afogou-se, em 1868, com 28 anos. Não consegui apurar a categoria do afogamento. Suicídio? Crime? Acidente? Tinha uma singular maneira de ver a realidade. Singular, não porque fosse única ou extravagante, mas porque, apesar do seu niilismo, era bastante comum, senão trivial. Ele achava que para o homem comum um par de botas conta muito mais do que as obras completas de Shakespeare ou de Puchkine. E nisto ele é acompanhado pelos milhões e milhões de homens comuns, mas não só. Também Van Gogh, que estava longe de ser um homem comum, se interessou por velhos pares de botas mais do que pelas obras completas de Shakespeare ou de Puchkine. O círculo de niilistas russos tinha ideias que não deixaram de se propagar pelo mundo. Ações directas e violentos, terrorismo. Para quê? Para pôr fim ao czarismo e depois reconstruir cientificamente a sociedade para o rebanho dos homens comuns e respectivas mulheres comuns, com os respectivos filhos comuns, isto é, a massa, terem a felicidade assegurada. Todos os séculos são cruzados por inúmeras ideias radicalmente idiotas, mas o XIX deve ter tido um fornecimento suplementar. Uns queriam chegar à pura liberdade através de uma férrea ditadura. Outras queriam assegurar a felicidade pela promoção da infelicidade. Ora, se em vez de tudo isso se entretivessem a ler Shakespeare e Puchkine, o mundo não seria pior nem os homens comuns mais infelizes. A literatura tem muitas e insuspeitas vantagens.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Problemas de afectividade

Deveriam existir dias feriados de compensação. Compensar o quê? Os feriados que calham ao fim-de-semana, como aconteceu ontem, coisa de qua ainda não estou recuperado. Dever-se-ia também incluir o domingo de Páscoa. E então a produtividade nacional, perguntar-se-á. A minha hipótese é de que ela aumentaria. Os corpos e as mentes precisam de um certo tempo de recomposição e aquele que é dado parece-me exíguo para quem quer obter grandes performances. Acabei de dar uma vista de olhos pelos jornais. As novidades são muito cansativas. Estão sempre a repetir-se. A grande novidade seria a da anunciação de que a partir de agora os homens deixariam de ser homens e tornar-se-iam outra coisa. Por exemplo, seres civilizados. Contudo, a palavra civilização – de onde nos chegariam os seres civilizados – não me parece muito promissora, pois tornou-se moda fazer guerra e matar em nome da civilização. De tudo o que vi, a única esperança num mundo levemente mais decente foi a proposta, no parlamento português, de se fazer uma experiência de semanas de quatro dias de trabalho. Parece-me decente, mas inviável. Não porque o seja economicamente, não o é, mas por um motivo sentimental. As entidades empregadoras têm imensas saudades dos seus empregados. Gostam de os ver, de os ouvir, de trocar dois dedos de conversa com eles. Durante o fim-de-semana, quase morrem – e falo literalmente – de saudades deles. Não fosse a tirania do Estado, e elas, as entidades, haveriam de conviver com os empregados sete dias por semana. Como é que iriam suportar estar três dias por semana sem aquela doce companhia? Adoeceriam e entupiriam o serviço nacional de saúde ou os hospitais privados, talvez mais adequados. Como se vê, uma tão boa ideia choca de imediato com a realidade, o bem-estar das entidades empregadores e a saúde pública. O autor está furibundo com este pobre narrador. Que este texto cheira a política. Eu esclareci-o que era falso. Trata apenas da saúde e dos afectos. É um texto cheio de afecções. Se não a semana de quatro dias, ao menos os feriados de compensação.

domingo, 1 de maio de 2022

Animais humanos

Chegou o mês que, por tradição, traz os calores despropositados. Ainda não serão dias de quarenta graus, mas a anunciação do inferno já se fará sentir. Sem se dar por isso, um terço do ano está cumprido. Nestes quatro meses, vimos começar uma guerra aqui ao lado, perigar a segurança a que nos tínhamos habituado e ainda pôr de lado, por cansaço e habituação, a pandemia que nos tolhe a vida há dois anos. São tempos para especulações escatológicas. Estas têm sempre um mercado razoável e nunca falta uns tresloucados prontos para alimentar os temores e as meditações negras. Em tempos, esteve na moda caracterizar o homem como um animal racional. Pertenceria ao género animal, era um ser com anima (alma, princípio de vida), e a racionalidade era a diferença específica que o separava dos animais não humanos, como se tornou uso dizer. A questão, porém, é que o casamento entre a animalidade e a racionalidade não parece ser coisa particularmente benéfica. A razão deu aos animais humanos um poder destrutivo que não teriam, caso fossem dela privados. Não apenas seriam incomensuravelmente menos destrutivos, mas também muito mais felizes. Regulados pelo instinto, agiriam de acordo com os ditames da natureza ou de Deus – conforme a crença do leitor – e não teriam qualquer meta a alcançar, qualquer ideia que os tornasse desavindos consigo mesmos. Pensou-se que a razão seria uma estratégia para aplacar a nossa animalidade. O que se vê, porém, desmente essa pretensão. A razão é o modo como um animal frágil se torna um terrível predador. Agora que já me conferi o direito de tratar da bílis em público, volto para a música de Orlando di Lassus, os Salmos Penitenciais de David, na interpretação do The Hilliard Ensemble. Tendo esta música sido escrita e interpretada por seres humanos, desconfio que, apesar de tudo, o animal racional que há em nós ainda não estragou tudo. É uma suspeita. O pior será o calor que nos espera, caso não nos espere coisa pior.

sábado, 30 de abril de 2022

Cifras e decifrações

O teólogo metodista argentino Pablo Rubén Andiñach começa a introdução à sua obra El Libro del Éxodo com a seguinte proposição: Todo o texto é um enigma a decifrar. O espantoso é a inexistência de um adjectivo que restrinja a amplitude da afirmação. Poderia ser por exemplo todo o texto sagrado, ou todo o texto bíblico, ou todo o texto literário. Não é isso, porém, que Andiñach diz. Qualquer texto é enigmático. Imaginemos um texto trivial: passa pelo supermercado e traz limões. É um texto, logo, segundo a proposição exposta acima, é enigmático e precisa de ser decifrado. Coisa que qualquer um de nós achará ridícula. No entanto, só podemos imaginar que um texto como passa pelo supermercado e traz limões não é enigmático porque estamos na posse da cifra que permite decifrá-lo. Uma pessoa, mesmo sem sair da trivialidade e apesar de entender o texto, pode perguntar: qual supermercado e quantos limões? Ou então, quando deverá passar pelo supermercado? O carácter enigmático de qualquer texto reside na sua autonomia relativamente ao momento da sua produção. Ficam ali aquelas palavras que, por mais que as interroguemos, dirão apenas o que lá está. O que lá está é, pelo menos, duplamente cifrado. Representa a cifragem da intenção de quem o escreveu e a cifragem do texto abandonado a si mesmo, limitado por aqueles elementos que o constituem. Em vez de escrever estas palermices poderia estar a ver a corrida da Fórmula E, que está a passar num canal desportivo, uma competição em que os carros são eléctricos. Isso tem um tremendo impacto na musicalidade do automobilismo. Enquanto na Fórmula 1, os carros roncam poderosamente, na Fórmula E, zumbem como insectos gigantes ou balas à procura do seu alvo. O que se pode perguntar é se o roncar de uns e o zumbido de outros será transformável em texto que mereça ser decifrado. Há uma grande preocupação musical com a linguagem dos pássaros, mas deveríamos também dar atenção à linguagem dos objectos. Comporão, por certo, textos enigmáticos à espera do decifrador certo. Hoje acaba Abril e a minha imaginação continua sem dar sinais de melhoras.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Ignorância e presunção

Confirmei agora que os meus vizinhos pássaros voltaram das férias que foram passar mais ao Sul. Já tinha escutado umas conversas, mas isso não era uma prova definitiva do retorno. Poderiam ser alguns batedores que vieram mais cedo para inspeccionar as casas e o território, assim como o estado climatérico, pois não sou só eu que se interessa pelas metamorfoses do tempo. Os pássaros também necessitam de boletim meteorológico e é provável que possuam uma app orgânica para o consultarem. Depois, devem enviar informação, talvez em código morse, para os bandos que esperam para retornar aos lugares do passado. Há neste nomadismo das aves uma coloração conservadora, um desejo de retorno aos mesmo lugares. Tudo isto, porém, é imaginado por mim, pois a ornitologia é uma das incontáveis coisas de que nada sei. Sempre poderia usar aqui o velho aforismo socrático, só sei que nada sei. Isso, porém, seria de uma presunção desmedida. Não por me equiparar ao velho Sócrates, o marido de Xantipa, o mestre de Platão, mas porque a frase é absolutamente presumida e se Sócrates realmente a pronunciou, então ela era o maior dos presunçosos. Pior do que presumir que se sabe tudo é presumir que não se sabe nada. O que me preocupa, todavia, é o que se passa no friso das orquídeas. Só cinco estão floridas. Já foram seis, mas uma deve ter tido uma moléstia qualquer que as flores, belíssimas, mirraram rapidamente e caíram. Flores mortas. Chego sempre às sextas-feiras com défice de assunto, pareço-me, nesses dias, com um orçamento do Estado, sempre deficitário. Se por acaso orçamento do Estado for assunto político, então retiro a analogia. Acho que vou dormir um pouco para compensar as noites mal dormidas. Aliás, são todas mal dormidas. Recebo uma mensagem no telemóvel para aderir a um certo Challenge. O prémio, um telemóvel. A vida tornou-se uma viagem dentro do telemóvel. Não estou para desafios.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Traduções do diabo

Um dia votado a tentar resolver coisas quase irresolúveis. Como se costuma dizer, o que não tem solução solucionado está. A verdade, porém, é que quase irresolúvel não é a mesma coisa do que sem solução. O quase irresolúvel pede tempo para se tornar solúvel e ser dissolvido. Num livro que tenho entre mãos descubro uma palavra extraordinária: inegalidade. O termo, claro, não existe no nosso léxico, mas no do tradutor de uma obra escrita em francês. O autor escreveu inegalité, o que se traduz por desigualdade. Com boa vontade poder-se-ia verter por inigualdade, o que seria uma negação de igualdade. Seria vocábulo possível dentro das regras de formação de neologismos, penso. Espantado com a tradução, procurei pelo nome do tradutor. Novo espanto. Não tinha. A tradução era atribuída de forma genérica à editora nacional. Que eu saiba nenhuma sociedade comercial, industrial ou de serviços, mesmo que seja uma editora de livros, consegue fazer traduções. Estas são feitas por seres humanos ou, hoje em dia, pelos tradutores automáticos baseados na Inteligência Artificial, que depois é corrigida pelos seres humanos. Perante isto, a minha vontade é deitar o livro fora e comprar a edição original. Ainda por cima, para poupar no papel, a nossa editora encolheu o tamanho das letras a níveis impensáveis. Devo estar com mau feitio. Deve ser fruto das coisas quase irresolúveis que tenho pela frente. E essas nada têm a ver com traduções assombrosas e a invenção lexical como solução da ignorância. Quanto ao tamanho das letras, talvez tenha de mudar de lentes.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Sarabanda

Um concerto de moto-serras e corta-relvas. Os transeuntes passam indiferentes ao agrupamento musical que opera com zelo na praceta aqui em baixo. Também é verdade que eles não puseram um boné no chão ou estenderam um lenço para recolha de moedas. Estes concertos têm lugar, muitas vezes, ao sábado de manhã. Por volta das oito horas lá começa a sarabanda, não sem antes haver afinação de instrumentos. Uma forma de terrorismo psicológico. Já era tempo dos inventores dados à criatividade conceberem instrumentos destes que não fizessem ruído. Eu sei que os admiradores de música poderiam acusá-los de destruir sonoridades tão peculiares. Contudo, posso argumentar, também o silêncio faz parte da música. Se o ciclo sonoro fosse mais curto diria que estávamos perante um concerto de música minimal repetitiva. Contudo, o fraseado é sempre o mesmo, mas não tem efeito hipnótico. Agora, tenho de sair. Esperam-me e não devo chegar tarde. Esse é o meu hábito, mesmo que a minha vontade seja de chegar muito tarde ou, mesmo, de não aparecer. Mas lá estarei à hora. Nisto não há qualquer grandeza moral. Haveria, se isso se devesse ao meu livre-arbítrio, mas deve-se apenas a um hábito, e os hábitos, como se sabe desde Aristóteles, são uma segunda natureza. Logo, regidos pela estrita necessidade.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Mudança de paradigma

O feriado desliza lentamente para o seu fim. A ordem do mundo seria menos cruel se todos os dias fossem feriados. As pessoas não precisariam de trabalhar, nem de fazer guerra, apenas colher aquilo que a natureza enviasse como dádiva. Contudo, um problema intrometeu-se nesse estado paradisíaco. O problema não é muito claro. Não se consegue perceber se a natureza não é assim tão dadivosa ou se os homens querem muito mais do que lhes seria permitido. Nos dois casos temos um problema de egoísmo. Ou a natureza é egoísta ou são os homens. Independente da resolução deste quebra-cabeças, o facto é que os dias feriados são excepções e não a regra. A regra é fazer alguma coisa pela vida. Para além destes lugares comuns não me ocorre mais nada para escrever. Poderia falar sobre a natureza do feriado, mas como ele é de índole política, estou proibido de falar desse assunto. Poderia falar do estado do tempo, mas isso começa a ser uma trivialidade excessiva. Não posso escrever todos os dias sobre se há ou não nuvens no horizonte, embora todos saibamos que existem sempre nuvens no horizonte, mesmo que não as vejamos, pois, o horizonte é uma metáfora de largo espectro. Tão largo que sempre se hão-de encontrar nuvens em algum sítio. Esse será o horizonte ou a linha do horizonte. Podia também falar sobre paradigmas, pois é coisa de que toda a gente fala. Não há cão nem gato que não esteja disposto a mudar de paradigma. Também a mim me faria muito bem mudar de paradigma, mesmo quando falo de feriados e da ordem do mundo. Falece-me, porém, o instinto revolucionário para provocar uma mudança paradigmática. Neste momento do feriado só conheço dois paradigmas. O estar a dormir e o de estar com sono. Uma revolução sempre me haveria de conduzir da sonolência ao sono profundo. Seria a minha mudança de paradigma. Quanto à mudança de paradigma ocorrida há 48 anos, não posso falar sobre ela, proibido que estou pelo autor, mas confesso que me soube muito bem e essa não foi a transição entre a sonolência e o sono, mas o fim de um estado de sonambulismo atávico. Quero que o autor se…

domingo, 24 de abril de 2022

Desavença consigo

Tem estado um Abril frio, oiço dizer, mas como continuei a andar não sei a sequência da conversa. Talvez a frase escutada fizesse parte de uma belíssima narrativa que perdi devido à minha pressa de chegar a algum lugar. É assim que se esbanjam as oportunidades da vida. Passamos por elas, mas como estamos apressados não damos por aquilo que dissipamos. Isso também acontecerá para as más, digo-me, mas estou longe de concordar comigo. É uma coisa que sucede a muito boa gente, o estar desavinda consigo. Isto recordou-me um belíssimo poema de Sá de Miranda. Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Existem pessoas que ostentam como um grande troféu a coerência. Tiro-lhes o chapéu, mas desconfio que a sua coerência nasce de uma amputação. Foi-lhes retirada uma parte e assim não apresentam desavença consigo, o que lhes permite apresentarem-se no teatro do mundo como sendo fiéis a si mesmas, de dizerem hoje o que disseram ontem. Os não amputados, porém, têm de viver constantemente em perigo, pois habita-os uma discórdia que traz para dentro de si uma guerra civil. Assim, como estratégia de sobrevivência, dizem hoje uma coisa e amanhã, uma outra. Se o início do poema de Sá de Miranda é magnífico, não o é menos o fim de um soneto do mesmo autor: Então não tem lugar certo onde aguarde / Amor; trata de traições, que não confia / nem nos seus. Que farei quando tudo arde? Este soneto que acaba com uma das mais belas frases interrogativas da língua portuguesa tem também por motivo a dissensão dentro de si, a luta entre o amor e a razão. Em resumo, há boas razões para qualquer um estar desavindo consigo, um mal que vem por bem, pois as pessoas que, movidas por um inultrapassável acordo consigo, são aquelas que não hesitam em incendiar o mundo, aquelas que nos fazem perguntar: Que farei quando tudo arde? Hoje é domingo de Pascoela e já me imaginei a caminhar pelas ruas, onde estão pessoas que contam história interessantes, das quais capto pequenos excertos para vir aqui narrar.

sábado, 23 de abril de 2022

Segredos

Chegámos ao penúltimo sábado de Abril. A aplicação do telemóvel afirma, peremptória, que há 83% de probabilidades de chover. A verdade é que não se vislumbra água que possa precipitar-se dos céus. Continuo com falta de assunto. Resta-me apenas escandir o calendário e o clima. Estas duas palavras, que significam coisas tão diferentes, poderiam ser ambas substituídas pela palavra tempo. Esta, umas vezes, significa as condições meteorológicas num certo lugar e numa determinada altura ou, outras vezes, um certo período onde se dão acontecimentos. Sendo hoje sábado, penso não ser propício dedicar-me a uma meditação sobre a polissemia das palavras. Numa daquelas leituras estapafúrdias a que me dedico recebo a informação de que em 1900, metade dos membros da Câmara de Deputados de França era maçon, o que se celebrava numa anedota de gosto popular que insinuava ser a Maçonaria a Igreja da República. Há em todas as organizações secretas um reflexo da infância, daquele tempo em se brinca às escondidas ou que se cultiva o segredo como forma de afrontar os outros. Talvez esta tendência para o velamento e o segredo tenha sido uma vantagem competitiva na evolução da espécie e, por isso, os homens continuam a jogar às escondidas e a brincar aos segredos, muitas vezes de polichinelo. Os pássaros meus vizinhos estão cada vez mais audíveis. Conversam longamente, mas ainda não consegui traduzir-lhe a linguagem. Falta-me uma pedra de Roseta. Também é um facto que não sou um Champollion, mas ele também não seria o Champollion que é caso não tivesse tido o encontro com a pedra de Roseta. Não se pense que a pedra pertencia a alguma Rosa que tratavam pelo desagradável diminutivo de Roseta, em vez de Rosita ou de Rosinha. Não era. Roseta é o nome de um dos braços do delta do Nilo. Nem tudo o que parece é e a polissemia nunca deixa de nos perseguir. O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado reverbera sob a inclemência dos raios solares. Não vai chover. Os 17% ganharão aos 83%.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Universos e informações

Consta que chegou o fim-de-semana, e que será alargado. Assim como o universo – ou um universo – se expande, também é verosímil que os fins-de-semana se expandam. O problema é que, ao contrário do universo, sofrem logo a seguir uma súbita contracção. O mais dramático de tudo isto é que o venerável S. Pedro – santo titular da cátedra do clima – decidiu não emparelhar a expansão do fim-de-semana com a manifestação do bom tempo. Segundo me contaram, terá dito que andavam a queixar-se com falta de água, as barragens vazias, as culturas a morrer de sede, e que, para atender às súplicas, tinha de trabalhar por estes dias. Que não pensassem, por aqui, que era maldade sua. É um mal permitido por Deus, acrescentou, porque dá lugar a um bem maior. Por mim, aceito as explicações do santo e não protesto. Aproveito, para ir à janela ver chover, enquanto o dia se vai desvanecendo, perdendo o fulgor, deixando um rasto de tristeza nas ruas. Volto à questão dos títulos. Numa entrevista ao neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, o Público puxou para título a seguinte frase: Para o Universo adquirir a sua existência, precisou de um narrador. De um momento para o outro, a minha função de narrador está justificada. Faço vir à existência um universo. Não será um grande universo, mas também eu não sou grande narrador. Deixemos o meu pequeno universo de lado e concentremo-nos no outro, naquele que se expande. O que será esse universo, caso não exista um narrador? Será apenas, diz o neurocientista, uma gigantesca massa de informação potencial. Caso exista um cérebro, então este capta essa informação para gerar representações. Um teatro, digamos assim. Todas essas belas paisagens, todos esses luares, sob os quais os amantes passeiam incógnitos, de mãos dadas e com o coração a fervilhar, não passam de informação. Só existem para nós. Uma decepção. Há muito que me parecia que a realidade não era coisa que se recomendasse. Por mim, prefiro aquela narrativa em que existe um S. Pedro que comanda o clima e que hoje está a fazer chover – chuva autêntica e não informação potencial – sobre narradores e sobre os lugares onde não existem narradores. Ah… parece que a chuva também é uma representação a partir de informação potencial. Vou-me calar. Bem, uma última questão: será que a informação potencial está em expansão ou é apenas a nossa narrativa produzida pelo nosso cérebro?

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Título

Muitos dos títulos que Hans Kluge atribui aos seus textos na Crónica dos Sentimentos são por si só pequenas obras-primas. Este, por exemplo: Ela queria ser tratada pelo menos com a atenção que é dedicada às coisas. Está-se praticamente no grau zero da exigência de reconhecimento. Ela nem sonha em ser tratada como um ser racional entre outros seres racionais. Também terá desistido de merecer a atenção de um animal ou mesmo de uma planta. Resta que a reconheçam como uma coisa. Talvez existisse nela uma desmedida e um sonho extravagante. Muita gente dá uma atenção sem fim a certas coisas. Por exemplo, dispositivos técnicos como carros, objectos de colecção, coisas da própria natureza. Muitos de nós têm pouca capacidade de olhar para os seus semelhantes, concentrando-se quase por completo nesse domínio silencioso que são as coisas. O título de Kluge torna-se então ambíguo. Aquela mulher estava a exigir o menos possível ou, pelo contrário, a fazer uma exigência extraordinária. Não é relevante saber o que o texto diz. O importante é que o título contém em si múltiplos textos possíveis. Isto conduz-nos a um tema interessante. A relação entre o título e a obra. O título será sempre – mesmo se descritivo – uma abertura de possibilidades. A obra, pelo contrário, é o exercício em que todas as possibilidades são descartadas com excepção de uma. Quantas histórias seriam possíveis sob a designação de Os Maias? Imensas, mas o génio de Eça de Queirós liquidou-as a todas, menos uma. Talvez escrever seja isso. Escolhe-se – ainda que inconscientemente – um título e, depois, começa-se a limitá-lo, desbastando-lhe os conteúdos possível, tal como faz o escultor com a pedra intocada pela sua arte ou o pintor com o branco que o pincel vai limitando. A arte seria assim um exercício de destruição e não de criação. Destruição dos possíveis para que fica apenas um que pareça irremediavelmente necessário. A luz de quinta-feira, uma luminosidade cinzenta e ameaçadora, parece não estar a fazer-me bem. O que vale é que logo terei uma consulta. Mesmo que nada tenha a ver com os efeitos luminosos, como é o caso, só a presença da autoridade médica me disporá, por certo, a pensar em coisas menos inúteis do que títulos.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Sintonia fina

Agora, se me sento a seguir ao almoço, adormeço. Não se pense que são lautos almoços copiosamente acompanhados por vinho. Não são. São refeições frugais, sem álcool. Há coisas que não parece possível contrariar. Depois, ao acordar, não estou com o melhor dos humores e a vontade de fazer alguma coisa é tendencialmente nula. É uma lenta aproximação à realidade, como se o corpo necessitasse de se sintonizar com ela, mas o processo fosse demorado e irregular. Isto recordou-me um rádio que havia em casa dos meus pais, um Blaupunkt. No painel dianteiro existiam dois botões, um para ligar, desligar e controlar o som. O outro movia o sintonizador, um ponteiro que deslizava num painel onde estavam inscritos uns números que, imagino, indicariam os comprimentos de onda. Era com esse dispositivo que se procuravam os postos emissores. A Emissora Nacional, o Rádio Clube Português e os que na época existiriam. A Emissora Nacional tinha dois programas, um mais popular e outro de música erudita, ambos sem publicidade, ao contrário do Rádio Clube, na altura bastante popular. Isto a propósito da dificuldade de sintonizar, em sintonia fina ou precisa, o corpo com a realidade, após uma sesta involuntária. Também a sintonia das diversas emissoras estava longe de ser automática. Havia que treinar para ganhar precisão. Imagino que se poderia fazer uma história do século XX português através dos meios de comunicação. Telefone, rádio, televisão, internet. Uma das coisas mais extraordinárias era o telegrama. Caro, pago à palavra, o que implicava textos curtos com uma sintaxe com cortes idênticos aos orçamentos de Estado. Era radiotelegrafado, o que permitia uma comunicação quase instantânea, em que o quase poderia significar umas horas de diferença entra a emissão e a recepção. Dependia da disponibilidade do boletineiro. Nem sempre era saudável receber um telegrama, um veículo de más notícias. Juro que durante a sesta não sonhei com meios de comunicação.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Aparências

Nunca devemos avaliar as coisas pelas aparências. E o que é o título de um livro senão uma aparência? Ora, a editora Relógio d’Água publicou, no ano passado, uma tradução do livro Ararat, da poetisa norte-americana Louise Glück. Imagina-se que, caso exista alguma citação em epígrafe, ela haveria de ser do Génesis bíblico, uma referência ao Monte Ararat onde, depois do dilúvio que caiu sobre este pobre planeta, aportou a Arca de Noé, para que a vida repovoasse a Terra. Pura ilusão. A obra, de facto, possui uma epígrafe, mas do Banquete, de Platão. Diz-nos o seguinte: “… a nossa primitiva natureza era uma e nós constituíamos então um todo. Ora, é essa aspiração ao todo, essa busca incessante, que tem o nome de amor.” Nada de dilúvios e de arcas pousadas num monte, a não ser que o amor não passe de um dilúvio e os amantes devam ser recolhidos numa arca, para que a espécie seja conservada durante a tempestade. As acácias da praceta já têm algumas folhas, pequenos tufos pela ramagem. Tenho muitas coisas para fazer e pouca energia para as realizar. Esta é a verdade crua. Sobre isto não fala o Banquete nem o Génesis, nem há poema que recolha a falibilidade que se apodera dos corpos e os arrasta para a penumbra da existência. Como me acontece muitas vezes, não sei o que fazer à realidade, com a gravidade dos seus imperativos e a inutilidade que confere a tudo em que toca. O vento continua agitado, como o mundo. Talvez estejam, o vento e o mundo, cansados da nossa espécie. Lá terão as suas razões.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Retorno

Retornei a casa, anunciação de retorno à realidade. Por aqui, sol e vento cruzam-se num tumulto embaraçado que faz rodopiar e brilhar, ao mesmo tempo, as folhas do arvoredo. Em mim, alguma coisa murmura: o arvoredo não tem folhas, tem árvores. São estas que têm folhas, mas não é condição suficiente ter folhas para se ser árvore. Os arbustos têm folhas. Também as têm as alface e couves e ninguém se lembraria de dizer que são árvores. Ao escrever alface sinto um ricto de desgosto na testa. Não gosto, de facto, dessas plantas herbáceas do género Lactuca. Talvez porque a nossa alface tenha um gosto árabe – al-khass – muito diferente da espanhola, lechuga, da francesa, laitue, da italiana, lattuga, ou mesmo da inglesa, lettuce. Todas estas alfaces têm um sabor latino e um aroma clássico, enquanto as nossas, na verdade, não passam de alfaces. Já os alemães usam para alface um termo tétrico, vi-o num tradutor automático, Kopfsalat, que com bonomia se pode traduzir por salada do chefe, mas alguém mais dado à literalidade pode ser tentado em traduzir como salada de cabeça. Um nojo. Certamente que não seria sobre alfaces que queria escrever, mas a coisa propiciou-se. Poderia escrever, por exemplo, sobre a incapacidade dos médicos de cumprirem o horário das consultas. Deve fazer parte do juramento de Hipócrates e, portanto, um dos elementos da arte médica. Hoje, ao acompanhar alguém, tive direito a três quartos de hora de espera para além da hora marcada. Contudo, não vou escrever sobre isso, pois pode ser apenas uma experiência minha e eu esteja a fazer uma generalização precipitada. A rua está tristonha, ainda presa ao tempo quaresmal. Ouve-se um cão ladrar, mas tudo parece incerto, como se o dia hesitasse entre estancar a marcha ou precipitar-se para a noite.

domingo, 17 de abril de 2022

Deambulações ao entardecer

Um domingo de Páscoa com parte da família. Na praia, lugar em que raramente ponho os pés, tive de correr atrás do meu neto. Está naquela idade em que os ouvidos não estabelecem relação entre os estímulos exteriores e o cérebro. Em casa, andou a explorar o exterior. Perante um insecto na parede, perguntou o que era. Um bicho, respondi. Vou matar, propôs-se. Não. Então, posso fazer uma festa? Também não, adverti. Tem uma certa inclinação para fazer coisas que não deve. O dia tem estado, por estes lados, nublado. Junto ao mar corre uma nortada fria, e as águas começam a estar encapeladas. Mar de Abril, oiço dizer. Agora, estou dividido entre ir caminhar ou ficar a ler o livro que tenho entre mãos. O mais provável, porém, é recostar-me e adormecer. Uma das últimas coisas que li foi um conto – embora esteja incluído na colecção de ensaios – de George Orwell. Nessa altura, o autor ainda não usava o pseudónimo por que ficou conhecido. O texto é de Eric Blair, o nome de Orwell. A narrativa tem por título O Albergue e conta a experiência num albergue para mendigos. Um texto cru sobre uma realidade cruel. Essa crueldade é menos patente na instituição e na sua superintendência do que no enigma de muitos de nós caírem na situação que conduz ao albergue. Poder-se-ão encontrar muitas e interessantes explicações para esses casos, de natureza psicológica, sociológica, económica ou política. Todas elas parecem falíveis e, na verdade, risíveis. A mendicância, a pobreza visceral, o ser sem-abrigo, todas essas figuras parecem ser emanações metafísicas que manifestam com crueza a dimensão das nossas fantasias sobre o mundo. Entardece.

sábado, 16 de abril de 2022

Modelos

Benjamin Constant teve um preceptor alemão de nome Stroelin. Este tinha alguma criatividade pedagógica e propôs ao pequeno Benjamin, então com cinco anos, que inventassem uma língua que apenas os dois compreendessem. Começaram pela criação de um alfabeto, que era, na verdade, o grego. Depois, passaram à invenção de palavras, gregas, claro, construindo um dicionário. Por fim, a criança começou a dar às palavras leis gerais, que não eram outra coisa que a gramática grega. Tudo se gravava na mente do pequeno de modo maravilhoso, como ele conta. O problema foi que o preceptor não era apenas inventivo pedagogicamente, era também alemão e achava que bater desalmadamente na criança fazia parte da sua função. Foi despedido ou como escreve o próprio Benjamin, em Le Cahier Rouge, fut chassé. Este destino também o teve M. de la Grange, um francês, mas por outros motivos. Transcrevo: Il voulut séduire la fille d’un maître de musique chez qui je prenais des leçons. Il eut plusieurs aventures assez scandaleuses. Enfin il se logea avec moi dans une maison suspecte, pour être moins gêné dans ses plaisirs. Mon père arriva furieux de son régiment, et M. de la Grange fut chassé. Agora não vou contar a história do terceiro preceptor de Constant, um ex-advogado francês, de nome Gobert, mas ela é tão edificante quanto as anteriores. O que me interessa, porém, é a conclusão que ele então tirou: aqueles que eram encarregados de o instruir e de o corrigir eram homens muito ignorantes e muito imorais. Talvez, penso eu, uma educação feita por esse tipo de pessoas tenha um efeito contrário. Quantas vezes uma instrução dada por instrutores sábios e moralmente probos gera pessoas ignorantes e corruptas? Mais do que aquilo que se poderia desejar. Talvez os modelos sejam importantes na educação das crianças, mas há que meditar se o efeito mais poderoso não virá de contramodelos. As novas gerações têm uma certa propensão para fazer o contrário da geração anterior. Se o modelo for péssimo, é plausível que o resultado seja óptimo. Contudo, é preciso dar um amplo desconto a este meu devaneio sobre a pedagogia, assunto sobre o qual pouco ou nada sei. Isto, apesar de eu saber uma multidão de coisas inúteis. Hoje é, no calendário que nos rege, Sábado de Aleluia.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Caos e cosmos

Hoje já caminhei quase oito quilómetros. Devo estar a acumular quilometragem para os dias em que pouco ou nada me movo. Não sei, todavia, se isso será como aquelas promoções em que se acumulam pontos que, depois, podem ser trocados sabe-se lá por quê. Quando saí de manhã – embora já não fosse tão de manhã quanto isso – o céu estava completamente nublado, mas, ao chegar a casa, ele brilhava liberto do véu das nuvens. Mais tarde fui a uma esplanada numa ilha que, na verdade, é uma península. A realidade é feita destas incongruências. A ordem do mundo não passa de uma desordem. Aquilo a que chamamos cosmos é um caos. E quando o caos aparece disfarçado de ordem, logo surge quem torne patente que não nos devemos iludir. Basta dar uma vista de olhos pela comunicação social, essa mensageira do caótico. Talvez não devesse assim classificar esses órgãos que velam noite e dia para nos manterem informados. Quando eu era novo e ingénuo, a informação era creditada como uma porta para a verdade e esta seria o combustível para um agir moralmente correcto. Eu acreditava em tudo isso, talvez por ser novo, talvez por ser ingénuo, talvez por ser idiota e pronto a crer no que me diziam. Hoje já não creio no que me dizem. Fiquei curado de ser novo (uma doença que passa depressa), eventualmente, de ser ingénuo e, apesar de ser desconfiado relativamente ao que me dizem, não é pacífico que tenha ficado curado da idiotia. Esta é um mal que tem muito de incurável. Hoje, no molhe, havia muitos pescadores. Como é habitual, não vi, durante a minha travessia, nenhum que tivesse apanhado um peixe. Julgo mesmo que eles só vão para ali para mostrarem as canas de pesca e mergulharem os anzóis na água fria do mar, enquanto o tempo passa e não é horas de ir para casa. Talvez sejam pescadores amigos dos peixes. Imagino. Isso reconcilia-me com o caos que o cosmos é. Agora, vou acabar de ler um ensaio sobre o velho Sigmund Freud, personagem que deveria saber alguma coisa do caos.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Indulgentĭa

Ontem, pela tarde, instalei-me, por uns dias junto ao mar. Tem sido um fartote de pontos cardio. Mal chegado, fiz uma caminhada de 6 km. Hoje de manhã, repeti o exercício. A parte mais espantosa é caminhar pelo molhe, que tem 600 metros e termina num farol. Isto significa que um quinto da caminhada é feito com água dos dois lados. Também há barcos a passar, outros ancorados, surfistas, pescadores – embora ontem e hoje não tenha visto nenhum – gaivotas e gente que, como eu, está preocupada com os pontos cardio. Hoje, em parte do trajecto, fui acompanhado pelo cão das minhas netas. Não é um mau caminhante, mas é fascinado em postes. Tem de parar em todos para alçar a perna. Tive de o deixar para trás ao cuidado da avó das netas. Após esta experiência, constato não haver compatibilidade entre pontuação cardio e passeio com cães, pelo menos se ainda estão na fase de serem cachorros, pouco experimentados no mundo e pouco conhecedores de postes. Hoje é quinta-feira de Endoenças. A palavra deriva da latina indulgentĭas. Estaremos, então, num dia de remissão de penas, de perdão, mas também de tolerância e de bondade. Seria interessante meditar sobre as quatros palavras – remissão, perdão, tolerância e bondade – mas falta-me a disposição. Estamos em pleno Tríduo Pascal, mas, apesar de Portugal ser tido como um país católico, isso não terá outro efeito senão dar lugar a umas pequenas férias. O que é sempre bom para o turismo, e como se sabe a vocação portuguesa é o turismo. Somos um povo com propensão para velar pelo descanso dos outros, mesmo que isso implique não ter descanso. Talvez estas considerações rocem a política, e esta, como tenho referido por diversas vezes, foi-me interdita pelo autor. Um narrador não se mete em política. Obedeço e será nisso que reside a grande diferença literária entre o autor e narrador, os autores têm opiniões políticas, mas os narradores são obrigados à omissão. Estou a precisar de indulgentĭa.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Sem começo nem fim

O poeta Rui Cóias, em A Ordem do Mundo, começa o poema 15 com o seguinte verso: Nada existe que não tivesse começada. E se esta declaração fosse falsa, se existissem coisas que não tiveram começo? Não serão começo e fim apenas a confissão de que nós, seres humanos, não conseguimos compreender a realidade? Se todas estas divisões entre seres, das quais nasce a crença de que uns são a causa de outros e, por isso, tiveram um começo, não passar de uma ilusão a que somos conduzidos pelos limitados poderes de compreensão com que fomos dotados? Se fosse poeta talvez começasse um poema com o seguinte verso: Tudo o que existe não tem começo nem fim. Isto colocaria o leitor perante uma perplexidade. Esta, porém, não clama para que se demonstre a verdade ou a falsidade do verso, mas que se entre dentro dele e, ao mesmo tempo, se se deixe contaminar por ele. Um verso não é uma proposição lógica. Será mais parecido com um Koan, da tradição Zen. Ele não será, em última análise, acessível à razão. Caso seja assim, talvez o verso de Rui Cóias não diga aquilo que a razão nele lê e, por isso, não seja diferente daquele que eu escreveria caso fosse poeta. Como se vê, o sol desta quarta-feira não me terá feito bem. Ou talvez a missão que tive de cumprir esta amanhã me tenha predisposto para meditações falhas de sentido. Foi uma daquelas missões cujos resultados são nulos, mas que mantêm as pessoas ocupadas, enquanto a terra gira à volta de si mesma e volteia em torno do Sol, e este se desloca pelos espaços siderais, levado num dos braços da nossa galáxia. Princípio e fim serão apenas percepções nossas para darem um aspecto dramático à vida. Amanhã será Quinta-Feira de Endoenças.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Alvoroços

A comunidade científica que trabalha em física de partículas está em alvoroço. Consta que descobriram que o bosão W tem uma massa superior em 0,1% ao que o modelo-padrão (imagino que seja o quadro teórico que superintende esta área) propõe. Caso se confirme que o modelo-padrão está errado, isso será uma grande notícia para a física, adianta um reputado físico teórico português. Como eu dizia, um alvoroço. Pelo que parece, os bosões são partículas que têm essa capacidade de alvoraçar os sensatos sábios que a eles se dedicam. Quando foi confirmada a existência da partícula de Deus – expressão que em vez de alvoraçar os físicos os irrita solenemente – foi também uma grande emoção. Ora, a partícula de Deus tem pouco a ver com Deus e não é outra coisa senão o bosão de Higgs. Os cientistas detestam que se confunda ciência com teologia. Elas lá terão as suas razões. É provável que os teólogos sofram de mesmo mal e não gostem que se confunda teologia sistemática com física de partículas. Voltando ao bosão. Por que razão esse tipo de partículas possui tal nome? Segundo deduzo de um conhecido dicionário de língua portuguesa, foi assim baptizado em honra de São Bose. Um santo? Não. Nada de teologia, é preciso não esquecer. Tratava-se de um físico indiano muito importante. Aqui que ninguém nos ouve, não percebo por que raio o dicionário lhe dá este nome de beato canonizado. O nome dele era Satyendra Nath Bose. Como não tinha qualquer aventura relevante para narrar, recorri ao que tinha disponível. Calhou ser um bosão. Poderia ser, por exemplo, Neptuno. Outro caso em que a realidade insiste em comportar-se de forma diferente daquilo que estava previsto. O pobre planeta entrou há vinte anos na sua estação de Verão – imagine-se o que será um Verão em Neptuno – e, ao contrário do que acontece quando se entra no Verão, ele está a arrefecer e arrefece de forma muito rápida. Já agora uma informação que pode ser útil a qualquer um. Um ano de Neptuno equivale a 165 anos terrestres. Se deseja emigrar para lá, pense bem. Moral da história. Seja o bosão W, seja a temperatura estival de Neptuno, a realidade continua com o gosto perverso de ofender as nossas expectativas. Talvez fosse mais seguro, apesar de frio, ir para Neptuno.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Causas e motivos

A fragilidade da condição humana. Foi esta frase que, há pouco, me veio ao pensamento, mas já não consigo saber o que a terá motivado, que estímulo a desencadeou. Estamos habituados a que não existam efeitos sem causas e repugna-nos que uma frase dance na nossa consciência sem um motivo. Quando este não é aparente, existe um truque. Diz-se que foi uma motivação inconsciente. Não a conhecemos, mas ela existe escondida no mais recôndito do nosso ser. Assim como, na sequência de Aristóteles, os escolásticos afirmaram que a natureza tem horror ao vácuo, também nós temos horror ao imotivado e, ainda mais, ao incausado. Se um pensamento sem motivo nos perturba, muito mais perturbará um acontecimento sem causa. E se tudo fosse imotivado e incausado? Se motivos e causas fossem apenas grelhas de leitura que o nosso cérebro estabelece para podermos viver do modo mais sereno possível? Por exemplo, o cansaço que, neste momento sinto, seria muito mais perturbador se eu achasse que não tinha qualquer causa. Encontrar para ele uma causa permite-me descansar sobre o assunto. Está um dia de autêntica semana-santa. As minhas netas parecem agitadas. O cão com que foram presenteadas parece ser a causa desse estado febril. Ele, porém, é um cultor exímio da serenidade. De preferência, evita mexer-se e não me parece ser adepto da agitação com que elas o envolvem. Imagino que ele prefira meditar sobre a ausência de motivos e causas do que ser motivo ou causa de tanto alvoroço. Se a condição do homem é frágil, o que se há-de dizer da condição canina às mãos de uma humanidade frágil? Um sol triste ilumina uns adolescentes que correm atrás de uma bola nos campos de jogos da escola aqui ao lado. Ela foge-lhes e eles correm atrás dela sem se interrogarem por motivos e causas. O importante é marcar golos.

domingo, 10 de abril de 2022

Amêndoas e laranjas

Chegado ao Domingo de Ramos, Abril completou um terço da sua existência. Em vez de meditar sobre a velocidade de Cronos, talvez deva falar de amêndoas. Refiro-me às da Páscoa. Não aquelas envoltas em açúcar empedernido, mas umas cobertas de chocolate e polvilhadas de canela. São essas que conspiram contra mim. Perante o perigo iminente, reajo e como-as. Não devia, mas as coisas são o que são, e a vontade é fraca. Quanto à amêndoa propriamente dita, essa nunca me convenceu. Quando o chocolate chega ao fim e apenas sobra o fruto, sinto uma decepção. Assim como há café sem cafeína e cerveja sem álcool, também deveriam existir amêndoas pascais sem amêndoa. Talvez existam, mas se já experimentei, não me lembro. Por aqui, estou certo, não as há. Acabei de chegar de uma visita à aldeia onde se vendem laranjas à beira da estrada. Talvez as minhas netas cheguem hoje e gostam daquelas laranjas. Os dias começaram a aquecer. Não tarda e o inferno transfere-se para aqui ou, talvez seja mais apropriada, reabre uma delegação. Entrego a tarde à escuta da música da violoncelista clássica alemã Anja Lechner e do pianista francês de jazz François Couturier, um duo que a grande criatividade da ECM records nos dá a conhecer. A generalidade do catálogo desta editora alemã é recomendável. O meu telemóvel informa que me faltam 25 pontos cardio para perfazer os 150 semanais recomendados pela OMS. Parece que tenho de me pôr a andar.

sábado, 9 de abril de 2022

Maldita homofonia

Meu Deus! Ontem, passado umas horas de o ter publicado, reli o post e descobri, de imediato, um terrível erro, onde confundia um monge com uma munição. Não é de bom tom trocar um projéctil cuja função é matar com um religioso que dedica a sua existência à silenciosa salvação da alma e à redenção do mundo, caso este tenha redenção. A causa do erro era fácil de descortinar, a maldita homofonia que ataranta os escreventes pouco cuidadosos e os faz cair no pecado de tomar a absoluta identidade sonora como razão para uma absoluta identidade ortográfica. Em síntese, e para abreviar razões, em vez de escrever cartucho escrevi cartuxo. Quanto aos cartuchos munições não tenho qualquer experiência deles, mas lembro-me bem de outros cartuchos onde se embrulhavam mercearias. Eram de papel e, em nome do progresso infinito em direcção futuro, foram substituídos por sacos de plástico. Contudo, os cartuchos mais extraordinários são os que os vendedores de castanhas fazem com folhas de papel de jornal. Julgo que fazem, pois há muito que não compro castanhas assadas. Nem sei a razão. Talvez por já não haver por aqui quem as venda. Esses vendedores não são bons apenas a fazer cartuchos cónicos de papel. Castanhas assadas? Só as deles. O resto não passa de pobres arremedos de diletantes da assadura da castanha. Não compreendo por que razão a Câmara daqui contrata empresas para tratar dos jardins e espaços verdes sem que lhes imponha uma cláusula que as impeça de trabalhar aos fins-de-semana e feriados. Há não sei quantas horas que oiço o trabalhar dos corta-relvas. Uma tortura para um sábado de manhã. Nem a chuva os dissuade. Deveria cair um aguaceiro dos antigos. Mesmo que eu quisesse tornar-me um cartuxo e dedicar-me ao silêncio, não podia.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Guerra com a semântica

Talvez hoje seja sexta-feira e eu nem tenha dado pelo passar dos dias, apesar de eles serem pesados como chumbo. Isto prova que o chumbo tem o poder de se deslocar rapidamente. Por isso, imagino, é usado nos cartuchos para caçadeiras. Outros metais mais nobres teriam menos propensão para a velocidade. Apertado o gatilho, a prata ainda haveria de correr, mas devagar, o ouro iria em passo lento, embora majestático, e a platina nem se dignaria começar a movimentar-se. Ficaria onde estivesse, afirmando que o estar imóvel é a antecâmara da eternidade. Devido a estas propriedades do chumbo, não há estátuas desse veloz metal. Uma estátua deve ser imóvel. Por isso, recorre ao bronze que, apesar de não ser majestático, não tem propensão para se deslocar. Talvez sofra de preguiça. Como eu. Chego às tardes de sexta-feira e acomete-me uma ignávia acintosa. Há dias em que tenho inveja dos poetas surrealistas, de poder escrever o dorso de cabedal da minha carteira voa para pousar sobre o diamante do meio-dia, desfraldado na acrópole das tuas mãos. Um floco de azeviche cai da asa de um anjo embebido em terbentina, feita do sangue derramado pela árvore do entardecer. Não sou, todavia, nem poeta nem surrealista. Acho mesmo o surrealismo uma ameaça. Já o realismo e a realidade são corveias tão pesadas, quanto mais um sobrerrealismo que, por certo, há-de esconder no invólucro azul dos seus princípios uma sobrerrealidade, pesada como o diabo que a carregue. Mais pesada que o chumbo, mais pesada que a velocidade dos dias da semana. Mais pesada que a minha incapacidade para escrever alguma coisa que faça sentido. Estou em guerra com a semântica. Só isso. Sim, hoje é sexta-feira.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Mitos

Não sei se os dias devoram a vida das pessoas ou se é a vida destas que devora os dias. Os mitos têm uma exactidão que a razão não consegue ultrapassar ou, tão pouco, igualar. O mito de cronos devorador dos filhos possui um rigor insuperável na descrição daquilo que o tempo faz aos seres. Trá-los à existência e devora-os sem piedade. O facto de Zeus, devido à astúcia da mãe, ter sido subtraído à fome ou ao temor cruel do pai torna manifesto que a luta entre o tempo e o ser acaba por ser favorável a este, mesmo que o tempo vá devorando cada um dos seres que vêm à existência. Também o mito bíblico da Queda parece mais útil para a compreensão dos homens que as diversas teorias racionais sobre a nossa espécie. As teorias racionais têm o condão de escavar na realidade para encontrar explicações que, talvez, se vão aproximando da verdade. A verdade do mito, porém, é de outra ordem. Não nos contam factos, não são teorias que descrevam ou expliquem a realidade. São formas de compreender a situação existencial do homem no mundo. Neles, a imaginação mostra-nos o que é, para nós, a realidade e o que somos. O tempo que me trouxe devorar-me-á. A minha finitude – é isso que a queda adâmica torna manifesto – mostra-me como sou falível. Procuro, agora, a razão por que, a esta hora do dia, fui levado a escrever sobre os mitos. Não a encontro dentro de mim, apesar do escrutínio a que me entrego, não a encontro fora de mim. Tudo o que vejo e oiço é meramente prosaico, e estamos convencidos de que os mitos emanam de um fazer poético inimigo feroz da prosa. Talvez esse convencimento seja fruto de um engano, e os mitos nasçam daquilo que há de mais trivial na vida. Olho para a rua lateral e dou-me conta da existência insólita de um sinal de trânsito de sentido obrigatório. A rua tem dois sentidos e o sinal serve apenas para quem sai de uma garagem de um dos prédios vizinhos. Parece pretender impedir que quem dali saia volte à direita, o que é manifestamente absurdo, pois a rua permite esse sentido e essa decisão não trazer qualquer risco. Pelo contrário. Imagino que alguém se enganou ou que o sinal estava ali antes dos prédios serem contruídos e se esqueceram dele. Um dia, transformar-se-á em mito, onde se narrará a nossa condição de seres submetidos a ordens absurdas.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Maus sinais

Os sinais não são os melhores. Acabei agora uma longa conversa telefónica com um velho amigo dos tempos de faculdade. Foi, literal e metaforicamente, uma conversa de velhos. Aferimos as ameaças que se erguem no horizonte, a forma como o mundo parece estar a enlouquecer, o modo como os loucos, com ideias de grandeza, em vez de serem internados em hospícios, são eleitos para condutores de povos, como uma certa visão do mundo civilizada está a dar lugar a coisas insistentemente perigosas, a delírios que se não conduzissem a tragédias inomináveis seriam motivo de umas boas gargalhadas. A verdade, dizia-me ele, é que nunca estamos predispostos a admitir que gente enlouquecida pode chegar ao poder. Uma ingenuidade. Nessa altura lembrei-me de um dito de uma pessoa com quem trabalhei há umas décadas. Ingenuidade depois dos quarenta não é ingenuidade, é burrice. É isso que sinto. Fui demasiado burro ao crer que as coisas no mundo sempre se podem compor. Não podem. Uma conversa de velhos. O pior foi, porém, outra coisa. Quando fui à cozinha dei com uma chávena de café cheia ao lado da respectiva máquina. O café estava frio. Comecei a tentar perceber quem se teria esquecido de tomar café depois de almoço. Terei sido eu, perguntava-me, mas não sabia. Há pouco fui informado de que o esquecimento era da minha autoria, aquele café era meu. Não faço ideia por que razão o deixei ali. Hoje esqueci-me de tomar um café já tirado. Não tarda e esqueço que bebo café. Os tempos andam interessantes e isso está longe, muito longe, de ser uma boa notícia.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Um pouco de hipocrisia

O que vou escrever a seguir, note-se, não é uma incursão na política. Longe de mim emitir opinião nesse campo tão minado. Parece que o ministro irlandês das Finanças e presidente do Eurogrupo, quando esteve a última vez em Lisboa, foi levado pelo incumbente português da altura a visitar um museu. Achou o simpático irlandês que era o de Fernando Pessoa e que nele tinha conhecido a viúva do poeta, um notório não casado, nem, quanto se sabe, amancebado, nem com inclinação para conúbio com alguém que se pudesse tornar viúva dele. Na minha opinião, vale o que vale, o pobre do ministro teve pouca sorte. Tivesse ido numa outra altura e teria conhecido várias viúvas. Imaginemos que a cada heterónimo, semi-heterónimo, pseudónimo ou alcunha pessoanos correspondia uma viúva, não faltariam viúvas para conhecer. Calhou-lhe só lá estar a do ortónimo. Azar. Provavelmente, a viúva seria a de Saramago e este, tanto quanto se sabe, não era um heterónimo de Pessoa, mas não juro. O mundo não está para graças, mas não deixa de ter a sua graça. Estas gentilezas para fazer sala têm sempre os seus inconvenientes. Há uns anos, num município das redondezas, o então presidente da Câmara disse-me, com amável sinceridade, que continuava a gostar imenso dos artigos que eu escrevia num jornal daqui. Agradeci e omiti a informação de que já não escrevia há bastante tempo. Temos aqui matéria para um debate senão teológico, pelo menos moral. O que é pior, a gentil mentira do presidente ou minha não menos gentil omissão da verdade? Talvez eu me tenha, do ponto de vista moral, portado pior. Do ponto de vista civilizacional, porém, ambos nos portámos muito bem. Não há nada como um pouco de hipocrisia para tornar a vida mais saudável.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Um dia quaresmal

Está uma segunda-feira quaresmal. Um sol raquítico, algum vento quase frio, um sentimento de tristeza pelas ruas, as gentes sem ânimo a caminhar pelos passeios. O processador de texto onde escrevo insiste que devo grafar o nome dos meses com inicial minúscula. Sempre que opto pela maiúscula, ele, sem que eu lhe peça opinião, coloca um traço azul sob a palavra e dá a sugestão em letra minúscula. Ora, não me apetece segui-lhe a orientação. Os meses são entes importantes e, caso olhemos para uma vida, mesmo longa, não são coisas que abundem como grãos de areia. São sempre poucos e, por isso, preciosos. Logo, devemos dar-lhe um tratamento diferenciado, caso tomemos por comparação os dias da semana. Um carro azul flamejante passa devagar na rua, depois fica um vazio que demora a ser preenchido. Não há outros carros, nem bicicletas, nem pessoas, nem animais. Passados longos instantes, uma ambulância do 112 ocupa a estrada, vai vagarosa, mas também ela é engolida por aquilo que não vejo. De dentro de um carro cinzento, sai um homem. Devia ali estar há muito. Talvez a enviar mensagens no telemóvel. Sai e com passo decidido desaparece. A rua de que falo é uma lateral pouco concorrida da avenida. Num dos passeios erguem-se quatro acácias, ainda de ramos despidos. Não se ouve ninguém. Não haverá nada para ouvir, imagino.

domingo, 3 de abril de 2022

Luzes que não iluminam

O argumento não me parece muito bom, mas compreendo, respondi ao padre Lodovico, na longa conversa que tivemos esta manhã. Está muito abalado pelos acontecimentos na Ucrânia. Se queremos uma prova sobre a verdade de facto, e não meramente simbólica, da queda adâmica, basta olhar para o que se passa naquela terra, argumentou ele, quase irado. Disse-lhe que essa interpretação não se coaduna com a tradição iluminista da sua família e dele próprio. Ao diabo o Iluminismo, respondeu. Ele agora não serve de nada, quando as forças da escuridão avançam, As Luzes não deitam luz nenhuma sobre as trevas. Nem a (palavrão não publicável) de um raio. Respondi-lhe que talvez ele estivesse a blasfemar sem ter consciência disso. Por certo que um historiador como Tom Holland não deixaria de ver As Luzes, apesar das tropelias de um Voltaire, como uma consequência do cristianismo. Talvez mesmo um reflexo da abertura do evangelho de João, atrevi-me. Ele riu-se, imagino que se tenha persignado ao ouvir o nome de Voltaire, e mudou de assunto. Começou a contar-me a última consulta médica, por causa do coração, e enumerou as drogas (sic) que lhe são impingidas diariamente. Isto de uma pessoa se manter viva exige uma autêntica ascese, comentou. Por causa disso, confessou, depois de dizer a Missa do meio-dia, vou almoçar com uns amigos e enumerou-os. Gente que não se coíbe de não respeitar o jejum da Quaresma, disse-lhe eu. Claro, mas já basta a tristeza do mundo e o domingo está, em Lisboa, com uma luz esplendorosa, que merece o sacrifício de um pecadilho. Uma ascese ao contrário, comentei. Isso, respondeu e despediu-se. Ao contrário do padre Lodo, eu vou entregar-me, neste domingo, à frugalidade. Já bastou o jantar de família ontem, no qual talvez não me tenha portado lá muito bem. Continuo a ouvir música da Renascença, de várias origens nacionais. Penso na alegoria de Abel e Caim. O mundo nunca terá descanso. Não haverá Renascimento nem Iluminismo que nos valha. O projecto de Paz Perpétua de Kant há-de sempre esbarrar no Caim que cada um traz dentro de si. Uns mais que outros, acrescento.

sábado, 2 de abril de 2022

Chocolate picante

Até que enfim. Após uma longa ausência – porventura, desde antes do início da pandemia – um dos meus chocolates preferidos, tornou a aparecer por aqui. Trata-se de um chocolate preto com piripíri, de uma conhecida marca austríaca, cujo nome omito, não se vá pensar que estou a soldo de alguma multinacional. Também existe um chocolate semelhante de uma marca nacional, mas, tal como o austríaco, levou sumiço das prateleiras da superfície comercial onde me abasteço. Durante este tempo e sempre que ia demanda, sempre frustrada, do santo Graal, considerava que, sendo esta uma cidadezinha provinciana, não haveria mercado para essa combinação entre o chocolate e o picante. Hoje reconciliei-me com o mercado, com a cidadezinha e com a própria superfície comercial.  Seja como for, este meu gosto por chocolate preto, aliado ao prazer que tenho no sumo de toranja e no café sem açúcar, segundo alguns estudos, indicia uma personalidade psicopata. Parece que não é bom sinal preferir alimentos e bebidas agrestes, embora nunca tenha detectado em mim tendência para a psicopatia. Não serei das pessoas mais sociáveis ao cimo da terra, mas mantenho relações de cordialidade com toda a gente que me rodeia. Não desistirei nem do chocolate negro, se for picante, melhor, nem do café sem açúcar. O sumo de toranja, porém, é um prazer que me foi vedado devido a uma incompatibilidade extrema com a medicação que me coube em sorte. A partir de certa altura da existência, os pequenos e os grandes prazeres começam a sofrer uma censura atroz. Hoje é sábado, tenho muito para fazer, mas troco os deveres por ficar a ouvir música para alaúde de um compositor do século XVI, John Dowland. Gosto bastante da sonoridade do alaúde. Talvez isso prove que, apesar dos meus gostos gastronómicos, não serei um psicopata, mas ninguém é bom juiz em causa própria.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Do tempo do yé-yé

Acabou. Refiro-me não ao mês de Março, mas ao ensaio da banda – do conjunto pop/rock – da escola aqui ao lado. Pelo tipo de música que me chega aos ouvidos, caso o vento esteja favorável, presumo que não deve haver alunos entre os instrumentistas. As canções são ainda aquelas que animavam os bailes de finalistas na década de setenta, logo os músicos deviam ser alunos por esses anos. Tudo isto é presunção minha, embora fundada em alguma evidência. O vocalista foi meu colega, em certa altura do percurso escolar. Os outros membros da banda não sei quem são. O facto de estar a falar disto a uma sexta-feira prende-se com uma alteração radical nos hábitos trazida pela pandemia. Os ensaios, bem me lembro, eram às quartas-feiras, à tarde. Depois, veio o silêncio pandémico. Cansados da pandemia, os músicos voltaram aos anos setenta, mas à sexta-feira. Fazem parte de uma onda revivalista que grassa por aí. Costumo encontrar, num certo restaurante a que me afeiçoei, um outro vocalista. Um rapaz mais velho do que eu uns dez anos. Fazia parte de um conjunto musical aqui da zona, no tempo do yé-yé. Presumo que fosse um yé-yé tardio, mas animava as pessoas e parecia trazer um ar de modernidade e cosmopolitismo a uma província enterrada num país periférico, fechado ao mundo e mergulhado numa guerra. Contou-me ele há tempos que retomaram – os que estavam vivos – o grupo e que ensaiam todas as semanas. Serve para descansar dos negócios, disse-me. Foi na voz dele que ouvi pela primeira vez um tema pouco Yé-yé, Guantanamera. Nunca esqueci o facto e, confesso, continuo a gostar dessa bela cançoneta latina. Tudo o que escrevi hoje é a mais pura verdade. Recuso-me às mentiras de 1 de Abril. Estas, contudo, eram um motivo de animação social ao lado do Festival da Canção e dos jogos de futebol ao domingo, pelas três da tarde. As pessoas entretinham-se em descobrir qual a mentira contada pelo seu jornal, caso tivessem um. Vivia-se então numa grande mentira anual disfarçada numa mentirinha de primeiro de Abril. Isto, porém, são considerações que o autor não me permite explorar, pois proibiu-me, literalmente, qualquer comentário político. Obedeço.