Na página 133 da última edição portuguesa de As Palavras, Sartre escreve: Em Sainte-Anne, um doente gritava da sua cama: «Sou um príncipe! Prendam o Grão-Duque!» Aproximavam-se, diziam-lhe ao ouvido: «Assoa-te!», e ele assoava-se; perguntavam-lhe: «Qual é o teu trabalho?», e ele respondia baixinho: «Sapateiro», e recomeçava a gritar. Sartre acrescenta: Imagino que todos sejamos parecidos com esse homem. Parece-me, porém, que o filósofo francês faz uma generalização precipitada. É possível que existam muitos que, sendo sapateiros, se proclamem príncipes. Será menos vulgar um príncipe gritar que é sapateiro, mas é possível que exista algum. Todavia, há alguns – não sei se muitos ou poucos, nunca tenho à mão as estatísticas de que preciso – que não se sentem nem sapateiros nem príncipes, seja no sentido corrente das palavras, seja no figurado. Este narrador não se sente o príncipe dos narradores, tão-pouco um sapateiro da narração. Aliás, nem se sente narrador. Não se sente seja o que for. E este não se sentir isto ou aquilo talvez seja muito mais comum do que se sentir sapateiro e príncipe, ou apenas uma das alternativas. A experiência de se sentir nada aterroriza as pessoas e, como consequência desse terror, elas perdem a cabeça e começam a sentir-se sapateiros ou príncipes, ou os dois ao mesmo tempo, caso estejam mesmo muito aterrorizadas. É um processo que, ao ser desencadeado, nunca mais pára. É em Isaiah Berlin que encontro uma explicação para esse afogamento numa identidade social. Diz ele – hoje estou em maré de citações – numa obra com o estranho título O Ouriço e a Raposa: Tanto Tolstói como Maistre pensam naquilo que acontece como uma rede espessa, opaca, inextricavelmente complexa de ocorrências, objectos e características relacionados e divididos por ligações literalmente inumeráveis e inidentificáveis – e também brechas e descontinuidades súbitas, visíveis e invisíveis. Ora, esse processo, que leva alguém do nada que sente até ao sentir-se sapateiro ou príncipe, é também ele uma rede espessa, opaca. A pessoa sente-se levada nessa torrente imparável e, um dia, ao acordar, vê-se sapateiro ou príncipe. No caso deste narrador, continua a sentir-se um nada – um zé-ninguém – talvez porque ainda não tenha acordado. Devia chamar a este texto Nota Biográfica, mas não chamo. Um narrador não tem biografia, isto é, não tem bio e não tem grafia.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
O florir das orquídeas
No friso das orquídeas, há duas já floridas. Ambas brancas, o que, estatisticamente, não era uma possibilidade forte, pois constituem uma clara minoria entre o rebanho de orquídeas que são pastoreadas por aqui. É um pastoreio sem pastor ou pastora, embora com uma certa transumância, pois, de tempos a tempos, são transportadas para uma banheira, onde são regadas segundo uma metodologia que, confesso, desconheço, mas que oiço dizer ser muito adequada. A esse ritual transumante chamo a procissão das orquídeas, na qual não levo andor nem, tão-pouco, participo. Dito de outra maneira, sou apenas um contemplador e não um cuidador. A surpresa floral não se combinou com uma surpresa no estado do tempo. Se esperava que hoje tivesse um dia de um cinzento depressivo, a expectativa confirmou-se. O dia – logo pela manhã – parece ter-se arrependido de ter nascido e ostenta uma saudade da noite que chega a ser insuportável. Na avenida, as pessoas deslizam em passo incerto: avós em busca de netos na escola primária, alguém apressado para fazer um negócio numa das lojas que ali há, outros que esperam encontrar, num dos cafés, alguém com quem possam trocar umas palavras, para que o dia não seja um poço de solidão e um puzzle sem sentido. Eu sento-me à secretária como se me sentasse na borda de um poço, para colher tangerinas de uma tangerineira que havia nessa casa onde nasci, dizem-me, e cujos habitantes, excepto eu, estão todos mortos. Já não sentem o prazer do florir das orquídeas, nem saem de casa para ir ao café, levando-me pela mão, nem me chamam pelo nome. Talvez o tenham esquecido ou eu tenha trocado de nome e já não me lembre de como, naqueles dias, me chamava. São coisas que acontecem. Não falta por aí quem se tenha esquecido do nome e ostente outro que inventou para esconder a amnésia.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Falar com os pássaros
Os pássaros, meus vizinhos, voltaram da sua longa viagem. Retornaram as longas conversas e a minha tentativa de compreender a linguagem das aves. Tenho-me esforçado, mas, confesso, os resultados obtidos até hoje são nulos. Existem várias hipóteses. A primeira, de natureza pessoal, diz que sou bastante incompetente na compreensão de linguagens estranhas. A segunda, de natureza colectiva, afirma que os seres humanos são incapazes de compreender linguagens fora da sua espécie. A terceira, de natureza ontológica, assevera que os sons emitidos pelas aves não representam uma linguagem. Caso seja verdade, isso deixa-me desolado. Um mundo em que só a nossa espécie seja detentora de linguagem é pobre, muito pobre. Um mundo desencantado. Não bastava já aquela ideia verrumante de Max Weber, a de desencantamento do mundo, para nos deixar consternados, quanto mais ter de viver num mundo onde ninguém, além de nós, fala. Se isso for verdade, há uma explicação para o facto. Isso dever-se-á a uma lei da compensação. Existe uma espécie que fala tanto, tanto, tanto, que se apoderou de todas as linguagens disponíveis, não restando para as outras qualquer fala possível. Emitem sons, mas não trocam informação estruturada. A minha esperança, porém, é que essa possibilidade seja falsa e que, um dia, cada espécie encontre, nos homens, o seu Champollion, que há de permitir que os homens falem com elas, estudem os seus vocábulos, a sua sintaxe e a sua semântica, o modo como o seu discurso alcança a natureza das coisas.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
A Grande Pragmática
Ontem, como parte de um ritual, passei pela livraria Ler, em Campo de Ourique, casa a que volto sempre que venho a Lisboa e tenho algum tempo disponível. Imagino que seja uma faceta levemente romântica que me inclina, no caso dos livros, para o comércio local. Pelo menos, em parte. É agradável saber a quem se compra os livros. E a verdade é que, embora não se note pelas aparências, um mesmo livro comprado numa pequena e séria livraria não tem o mesmo conteúdo do que se for comprado numa grande cadeia multinacional ou mesmo nacional. As letras e as palavras parecem as mesmas, mas não são. Significam de maneira diferente, pois a significação não é apenas um assunto de semântica, mas também de pragmática. A pragmática trata do contexto onde os actos de linguagem ocorrem. Preocupa-se com o modo como a significação emerge do uso da fala em situações concretas, com os seus contextos, intenções, normas sociais, inferências, etc. Esta é, porém, a pequena pragmática. A grande pragmática, que acabei de criar, inclui os discursos escritos, a forma como são trocados e os lugares onde os leitores não apenas os lêem, mas também onde os adquirem. Toda essa constelação de lugares influencia a significação das palavras que estão impressas. Daqui posso avançar para uma nova – e criativa, embora é possível que alguém antes de mim a tivesse criado – tese: qualquer livro – por exemplo, o romance Refúgio no Tempo, de Gueorgui Gospodinov, que comprei ontem – tem, pelo menos, tantas significações quantos os exemplares postos à venda. Disse pelo menos porque se alguém compra um livro e, depois de o ler, o vende, a nova transacção comercial implica a criação de um novo sentido, pois as condições grande pragmáticas, digamos assim, são diferentes. Esta descoberta serenou-me o espírito. Até ao dia de hoje, pensava que, quando comprava uma obra pela segunda vez, isso se devia a um problemático défice da minha memória — antecâmara, sabe-se lá, de que doença do foro neurológico. Hoje descobri que nunca comprei a mesma obra duas vezes. Apesar de as aparências indicarem que são a mesma, a verdade é que os contextos grande pragmáticos são diferentes. Logo, as obras são diferentes. Não apenas acrescentei mais uma criação à minha gesta e ao progresso da ciência, como também encontrei uma explicação sólida para aquilo que eu pensava ser uma fraqueza — uma patologia — da memória pessoal. O domingo está ganho.
sábado, 15 de fevereiro de 2025
Saudades
Imagino que tudo o que se está a passar no mundo não seja mais do que a manifestação de uma saudade que os próprios saudosos não sabem de quê. O estado das coisas está perturbado e é perturbante, disse-me, numa longa chamada de telemóvel, o meu amigo Lodovico Settembrini, o padre Lodo, para a imensa roda de amigos. Está um tempo óptimo para os profetas, respondi-lhe. Ele riu-se, mas acrescentou que o problema dos profetas não é falharem nas profecias, mas de estas serem de tal modo equívocas, que conseguem, ao mesmo tempo, predizer tudo e não predizer nada. Muito me conta, exclamei, mas, continuei, de que andam as pessoas tão saudosas? De forma resumida, respondeu o meu amigo, podemos dizer que estão saudosas do tempo dos mitos. Esta saudade é o reverso do cansaço com três coisas. Quais? Não sei se existe uma ordenação nesse cansaço, respondeu. Estão cansados das explicações científicas. Elas explicam muito, mas as pessoas não entendem uma linha dessas explicações, mesmo que tenham formação superior. Estão cansadas de serem livres, de poderem orientar a vida conforme queiram, usando as suas faculdades e o seu esforço. Por fim, estão exaustas da responsabilidade. Nas nossas sociedades, somos responsáveis pelo que fazemos, mas, acima de tudo, pelo que somos. Este cansaço é o outro lado da saudade do tempo dos mitos. As explicações eram simples e claras, a esfera da liberdade, restrita. A responsabilidade limitada às acções e nunca pelo que se era, pois estava decidido ao nascer. Fiz um longo silêncio, depois perguntei: e chegou a essas conclusões pela observação do mundo ou pela escuta que faz dos crentes no segredo do confessionário. Meu caro amigo, o segredo do confessionário é pouco secreto, pois o que as pessoas confessam não é diferente daquilo que se observa do mundo. Portanto, pode escolher a origem da minha informação. As fontes são maçadoramente repetitivas.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Desconcerto na casa da consciência
O tempo galopa como um zorro enraivecido. Que abertura dramática, convenhamos. O facto, porém, é que o ano ainda mal começou, e já chegámos a meio do segundo mês. Mais quinze dias – e quinze dias não são duas semanas – e entrar-se-á em Março. Desloquei-me à capital e tive de almoçar segundo o desejo das minhas netas, que acharam que deveria ser pizza para toda a gente, ainda franzi o sobrolho, mas ninguém deu por isso. A verdade, caso haja uma verdade no assunto, é que nem desgosto por aí além, mas acho sempre que é coisa dispensável. Hoje também acharia, não fora o caso da ideia ter partido de onde partiu. Ao cair da tarde, deveria ir ver o treino de râguebi do mais novo, mas um compromisso inadiável caiu no mesmo horário. Este Fevereiro está sarapintado de Primavera, para a qual falta ainda mais de um mês. Voltemos à primeira frase, a de tonalidade dramática que inicia este texto. Está cheia de equívocos. Quem galopa são os cavalos, não o tempo e muito menos um zorro. Também num célebre filme de Martin Scorsese, no título, enraivecido é atributo de touro e não do macho da zorra. Fiz de um pobre raposo o centro de toda a confusão que me vai pela cabeça. Vejo-o como um cavalo, vejo-o como um touro, mas não o vejo como aquilo que ele é, um raposo, que terá a sua raposa e muito raposinhos e raposinhas. Uma das hipóteses aventadas por um certo homúnculo que habita no meu cérebro é que a confusão nasceu do almoço, da condescendência com que encarei a sugestão. Ora, essa criatura, que tem a pretensão de ser a voz da minha consciência, faria melhor em estar calada, antes que eu lhe dê uma ordem de despejo por ocupação ilegal de moradia de que não é legítimo proprietário ou mesmo locatário. Sim, a minha consciência é um lar, mas quando a adquiri não vi no contrato que assinei que esse lar teria um porta-voz. Já protestei perante o fornecedor de consciências, mas ele disse que era uma gentileza – vá lá, não disse que era uma atençãozinha – da administração. Vendem a consciência e oferecem um homúnculo que é o porta-voz. Respondi que dispensava a gentileza, que ficassem com o homúnculo. Nada feito, uma oferta é uma oferta. Perante a minha resistência, mudou de estratégia e recorreu à conhecida falácia do argumentum ad misericordiam: eu que ficasse com o maldito palrador, que não o devolvesse, pois a administração ainda o despedia, ao vendedor, não ao homúnculo, e que tinha mulher desempregada e filhos em idade escolar. Um drama. Condoí-me e fiquei com um homúnculo palrador dentro da consciência e para o desalojar só em tribunal, o que deverá demorar uns vinte anos. Um dia, talvez de Fevereiro, ainda vendo a consciência, desde que não confunda cavalos e touros com zorros ou alguém se lembre de almoçar pizza, não é que desgoste, mas...
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
O dorso de Zeus e a pata do urso
Apesar de estar proibido pelo autor de falar de política, não estou proibido de pensar sobre ela. "Livre pensar é só pensar", como escrevia o humorista brasileiro Millôr Fernandes. E eu, apesar de narrador, penso muito, não sobre política, mas sobre geopolítica. Dá um ar mais sofisticado. A política tornou-se uma coisa paroquial; a geopolítica traz com ela o véu diáfano das coisas cosmopolitas. Os meus pensamentos, apesar de livres, são negros, cada vez mais negros. Houve um momento em que este narrador pensou viver no melhor mundo que estava disponível para viver, um mundo que tem o nome de uma princesa fenícia e que Zeus, disfarçado de touro, decidiu raptar. Hoje, esse mundo, com o doce nome da princesa, ainda é o melhor dos mundos existentes, mas está a ser vendido, literalmente e sem pudor, perante a apatia dos seus sonâmbulos habitantes — não ao desejo taurino de Zeus, mas à pata do urso, à máscara de Hades, que se prepara para destruir o jardim. Talvez tenha dormido mal, talvez as notícias me estejam a perturbar a digestão, mas não consigo deixar de pensar nos meus netos e nos netos daqueles que vivem no melhor dos mundos — e na possibilidade de eles não perdoarem aos avós e aos pais o mundo que pode vir a ser o deles. O melhor será tomar um comprimido para dormir ou abdicar do livre pensar, apesar de este ser só pensar. Está a chegar o crepúsculo. Vou fechar as persianas. Talvez a noite não entre.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025
O calendário de Pandora
Habituados à cegarrega dos meses com trinta e trinta e um dias, nunca se deixa de estranhar as incongruências e inconstância de Fevereiro. Incongruente, porque o número de dias se fica na casa dos vinte, enquanto a dos outros meses está, como disse, na dos trinta. Parece ser o irmão mais baixo, neste caso, mais pequeno. Inconstante, porque varia, embora com constância, entre os vinte e oito e os vinte e nove dias. Este facto, embora ninguém acredite, introduz um factor de perturbação na ordem do mundo. Se o calendário admite um irregularidade, então podemos temer que seja a porta por onde pode entrar o caos. E é sempre o tempo que nos traz o caos. O pior é que, além da grande irregularidade de Fevereiro, o calendário que nos cabe em sorte tem outras fissuras desagradáveis. Meses pares e meses ímpares, por exemplo. E a própria regularidade pode ser um factor perturbante, como é o caso de Julho e Agosto terem ambos trinta e um dias, sem que, entre eles, se interponha, como é a regra, um mês de trinta dias. Foi isto que me ocupou toda a tarde. Meditar nos perigos que se escondem no escandir do tempo. E se as pessoas acham que este a prosa é fruto do desvario de uma mente desocupada, estão enganadas. Uma mente, mesmo a mais mentecapta, nunca está desocupada, pois é atravessada por inúmero fluxos de consciência. Depois, porque estas perturbações no calendário são, na realidade, aberturas por onde entra o caos. É só observar o estado do mundo. Num certo dia do calendário, um louco assume o comando de um país, num outro dia, outro louco ou o mesmo começa uma guerra. E não há louco nenhum que chegue ao poder ou comece um loucura trágica que não inscreva esses acontecimentos em dias do calendário. Tudo isto porquê? Porque o calendário, com as suas irregularidades e imperfeiçoes, abre a porta – ou o portão – para que essa gente chegue com a caterva de males que estavam presos na caixa da pobre Pandora. E se querem saber o que era a caixa de Pandora, posso explicar. A caixa de Pandora era um calendário perfeito e regular, onde não havia brechas nem fissuras. Trocado esse calendário racional e benevolente pelo nosso – seja em versão juliana ou gregoriana –, os males começaram a escapar-se, e estão a fazê-lo cada vez mais rapidamente. Fica por aqui o meu contributo para dar sentido a história humana. Não convém passar os limites da revelação, pois, como se sabe, a espécie humana não suporta demasiada realidade ou demasiada verdade.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Efeitos colaterais
E se a minha missão neste pobre planeta fosse criar uma utopia, pergunto-me depois de um almoço tendencialmente mexicano, onde um chili foi acompanhado não por uma cerveja, uma margarita ou, talvez o mais indicado, um mojito, mas por um tinto monocasta, um Syrah, esclareçamos. O pós-refeição, quando as refeições têm esta espúria natureza, não é propriamente adequado a meditar sobre coisas sérias. Resta deixar correr o fluxo de consciência, coisa que ele, fluxo, faz por si-mesmo e sem permissão, e observar o que ocorre na nossa mente toldada pelo encontro entre os sabores intensos e picantes da comida com os taninos suaves do tinto. E aquilo que se observa são ideias estapafúrdias como aquela que abriu este texto. Presumir que tenho uma missão neste planeta já indicia que qualquer coisa não vai bem, mas pensar que essa missa missão é criar uma utopia é, então, a prova provada, uma redundância pouco subtil, de que as fermentações alimentares estão a perturbar sem piedade o cérebro. Contudo, agora que os efeitos da refeição se desvaneceram, encontro alguma sensatez nesse pensamento insensato. Criar uma utopia não é outra coisa senão criar, em papel ou em escrita digital, uma sociedade perfeita. Não é, todavia, isto que confere sensatez à ideia, mas o facto de ela ser completamente adequada ao ser que sou. Ora, o que é uma utopia? Antes de avançar nesse espinhoso caminho de elucidação, é preciso esclarecer que toda utopia é uma ucronia. Sendo assim, uma utopia é uma sociedade que está fora do espaço, como se pode comprovar pela origem da palavra: οὐ+τόπος, em que οὐ significa não e τόπος, lugar. Uma utopia é um não lugar. Toda a verdadeira utopia – pelo menos, aquela que será escrita por mim – é, como disse, uma ucronia, palavra inventada, talvez depois de um almoço, pelo filósofo francês, do século XIX, um século de digestões difíceis, Charles Renouvier. Ucronia, um termo grafado por analogia à utopia, provém também do grego: οὐ+χρόνος, que se pode traduzir por não tempo. Uma utopia é então uma coisa que fora do espaço e do tempo, algo sem lugar nem época. Como se sabe, todas as coisas que existem neste mundo estão no espaço e no tempo, fora deles não há existência. Criar uma utopia, que também é uma ucronia, é criar absolutamente nada, e é essa criação que me convém em absoluto. Do nada que há em mim e do nada que sou, retiro o nada de uma sociedade perfeita.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
Relato de um cérebro
Passei pelo friso das orquídeas e descobri que algumas estão perto da floração. Presumo que seja uma anunciação da Primavera, de uma Primavera temporã. Tem estado pouco frio aqui por casa. A temperatura raramente cai de modo a pôr o aquecimento central a trabalhar. Há uns anos a imperatividade de aquecimento começava pelo S. Martinho, mas nos últimos tempos só entre o Natal e o Ano Novo é que começa a ser necessário aquecer a casa, tornando-se a precisão muito intermitente logo em Fevereiro. As causas disto não as conheço. Talvez a casa esteja menos vulnerável aos frios da rua; talvez os frios da rua sejam menos verrumantes. Não faço ideia porque estou a falar destas coisas. Talvez para provar que a vida, a minha, é feita de trivialidades. Se é assim, então estou a cumprir um papel que Dominique Rabaté, um professor de literatura francesa moderna e contemporânea, vê em alguns escritores: O seu papel não é o do romancista, mas o do escrivão da realidade, garantindo com a sua experiência a veracidade do que relata. É isto que eu sou: um escrivão da realidade. Dito de outro modo, um burocrata da escrita, mas, ao contrário do que diz Rabaté, a minha experiência não garante a veracidade do que relato. Que garantias terá, quem ler isto, que algumas orquídeas estão perto de se abrirem em flor? Que garantias haverá mesmo de que existe aqui um friso de orquídeas, embora escreva sobre ele há anos? Nenhumas. Eu posso ser um escrivão da realidade, um burocrata minucioso da escrita, mas a realidade escapar-se-me sempre e aquilo que eu escrevo ser apenas fruto de uma fantasia. É possível que eu não passe de um cérebro numa tina, que é alimentado quimicamente e constrói imagens, a que chamo realidade, através de impulsos electromagnéticos que estimulam partes desse cérebro, a que me reduzo. Ora, o leitor dirá que essa história do cérebro na tina não passa de uma conhecida experiência de pensamento para fomentar debates de incidência epistemológica ou ontológica. É uma opinião, estimável e informada, mas que não desmente a hipótese de eu não passar de um cérebro numa tina, ligado a um computador que escreve aquilo que aqui está através de impulsos electromagnéticos provenientes daquela massa desagradável que existe dentro da caixa craniana dos seres humanos.
domingo, 9 de fevereiro de 2025
Agir e não agir
Foram-se embora há pouco. Refiro-me às netas, que, durante dois dias, encheram a casa. Agora, tudo está mais vazio e o silêncio que se sente não é benévolo ou inspirador, mas a marca de uma ausência. Depois, tudo vai voltar ao que estava, pois o hábito é uma segunda natureza, e a estadia delas é um rasgão no hábito, uma cesura na segunda natureza, por onde, durantes um instante, é possível recordar uma primeira natureza, mais inquieta e mais irrequieta. O domingo está a caminho do fim, e o horizonte é já o dos dias úteis, embora a utilidade esteja por provar. É nestes momentos, aqueles que antecedem o crepúsculo, que o espírito se abre para uma sabedoria estranha a nós, ocidentais, que andamos desde o século XV a correr atrás de qualquer coisa que nunca sabemos o que é, pois quando pensamos tê-la encontrado, logo descobrimos que há uma outra que vem depois dessa e que é preciso, com urgência, alcançar. Talvez, o problema seja bastante anterior, resida mesmo nos gregos. Aristóteles dividia as ciências entre teóricas e práticas. As primeiras ligavam-se ao conhecimento; as segundas, à acção. Entre estas encontrava-se a Política. Se comprarmos essa tradição com a chinesa, percebemos uma diferença notável. O ideal do soberano não é a acção, mas a não acção. Melhor, o agir não-agindo, a não interferência. Toda a interferência através da acção é já o sinal de uma patologia. É possível que na tradição ocidental também tenha havido um momento em que a acção pela não acção era sinal de sabedoria e forma de ordenar o corpo social, mas ter-se-á perdido. Perdido não apenas na prática quotidiana, mas também na memória. O filósofo alemão, Martin Heidegger, terá vislumbrado essa perda, ao dizer que a filosofia ocidental representa, desde Platão e Aristóteles, um esquecimento do problema do ser. Nesse esquecimento, estará também o esquecimento do agir não-agindo, essa forma suprema de governação de uma comunidade. Coisa que o próprio filósofo não compreendeu ao comprometer-se politicamente com quem se comprometeu, gente pouco recomendável e que fez da acção repugnante a sua forma de estar. Isso, porém, não são contas deste rosário.
sábado, 8 de fevereiro de 2025
Problemas respiratórios
Talvez me devesse tornar um narrador com uma clara orientação sobre as coisas deste mundo. Isso, mesmo que em desacordo com o autor. E qual seria essa orientação? Por certo, seria a de um narrador arcaico aprisionado numa sabedoria antiga, como aquela que se manifesta nas palavras de um xamã, o xamã Pualuna, ao geógrafo e explorador das regiões polares, Jean Malurie: Os inuítes (…) compreenderam que os seres vivos estão interligados e são interdependentes. Nada nos preocupa mais, a nós, inuítes, do que interferir nesta ordem natural. Integremo-nos, pois, respeitosamente nela, sem alterar o seu curso (…). Tudo é respiração. Em resumo, a interdependência de todos os seres vivos, a integração na ordem natural e a ideia de que tudo é respiração, esse movimento cíclico de inspiração e de expiração, entre as quais se intrometem duas pausas. Ora, esta é a ordem natural. Uma inspiração, uma pausa, uma expiração, uma pausa, e assim até ao fim dos tempos. O problema dos nossos dias, aquele que está no fundamento de todos os nossos problemas, é de que inspiração e expiração decidiram entrar em competição, para ver qual delas é dominante. A primeira consequência dessa deriva competitiva é a eliminação das pausas no processo respiratório do mundo. Eliminadas as pausas que separavam e continham nos limites o inspirar e o expirar, estes entraram em guerra. Atropelam-se, tentam conquista o espaço do outro, sonham em eliminá-lo. Ora, isto é péssimo para a respiração do mundo. E se o mundo respira mal, então os homens respiram pior. Daí as epidemias respiratórias. Como narrador, deveria orientar as narrativas que faço neste espaço para a defesa de uma respiração saudável, isto é, tornar-me um inuíte e usar uma daquelas belíssimas máscaras de madeira que é a sua marca. Uma vez por outra, trocaria a máscara inuíte por uma dos caretos de Podence e tornar-me-ia um inuíte lusitano, um xamã de uma tribo perdida, que se manifesta ora aqui, ora ali, ao sabor da respiração. O problema, porém, é que não passo de uma construção de um autor que nada tem de inuíte e não se compraz com caretos, mesmo no Carnaval. Quero dizer: um ser infeliz preso à crendice moderna, alguém que respira desordenadamente, com a inspiração e a expiração trocadas; pois, quando expira o ar entra-lhe para os pulmões e quando inspira, sai-lhe pelas narinas.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Um tempo excepcional
Talvez vivamos tempos excepcionais. É possível que todos os seres humanos pensem assim. O tempo de cada um é, para ele, excepcional, pois é uma excepção do não tempo infinito que lhe caberá. Não estava, porém, a referir-me a essa excepcionalidade, mas a uma outra. Consideremos a afirmação de Aristóteles, na Ética a Nicómaco 1127a29: Nela mesma, a falsidade é uma coisa baixa e repreensível, e a sinceridade uma coisa nobre e digna de elogio. A excepcionalidade do nosso tempo não deriva de a falsidade ter um grande mercado, enquanto o da sinceridade é reduzido. Plausivelmente, sempre terá sido assim. A questão é outra. Trata-se da inversão das avaliações. Parece que vivemos numa época em que a falsidade é vista como coisa nobre e digna de elogio, enquanto a sinceridade é uma coisa baixa e repreensível. A vitória da falsidade sobre a sinceridade não está na sua maior presença, mas no facto de se ter tornado o valor considerado bom por excelência. É o triunfo da comédia – a representação das acções dos homens vulgares ou baixos – sobre a tragédia – a representação da acção dos homens nobres. Quando se ouve a expressão pós-verdade, sabe-se de imediato que se está no tempo da comédia, onde o baixo e repreensível não apenas se tornaram dominantes, como se arvoram em coisas dignas e nobres. Não admira a quantidade de bufões que superintendem os destinos humanos, ou que se candidatam a superintendê-los. Uma certa inocência poderá pensar que será melhor viver num mundo cómico do que num mundo trágico, valerá mais ter razões para rir do que para ter piedade. Essa inocência esquece que os comediantes-em-chefe têm uma tentação irresistível para lançar fogo ao mundo, enquanto riem. A tarde de sexta-feira está a correr apressada para os braços frios da noite. Talvez seja isso que me tenha levado a este texto tão chato quanto o preâmbulo de um decreto-lei, se é que os decretos-leis têm preâmbulos. O processador de texto que uso é um insuportável fiel da doutrina da linguagem correcta. Sublinhou-me a palavra chato. Não vou discutir com ele. Chatice e chato eram palavras inutilizáveis, mas foram adoptadas na linguem mais nobre, um fenómeno semelhante ao da elevação da falsidade à dignidade e à nobreza. Estão de acordo com o espírito do tempo. Uma chatice. Ou uma maçada, se seguir a indicação do processador.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025
O cérebro e o like
Por vezes, pomo-nos a pensar sobre coisas que o melhor seria nem ter notícias delas. Não me refiro a grandes catástrofes ou à maldade contumaz da humanidade. Trata-se, antes, de coisas que são irresolúveis. E, como se costuma dizer, o que não tem resolução, resolvido está. É a resolução pela não resolução. Estou a afastar-me do assunto. Baruch Espinosa escreveu coisas notáveis. Também escreveu que todo o homem é, por direito natural e inalienável, o senhor dos seus próprios pensamentos. Até aqui não parece haver nada de extraordinário, embora se pudesse questionar se os pensamentos de alguém são próprios ou se se apropriou de pensamentos de outros que andassem à solta e os tomou como seus. O interessante é o que vem a seguir: cada qual segue o seu próprio parecer e que a diferença entre os seus cérebros é tão variada como a diferença entre os seus gostos. É aqui que comecei, como um velho amante de coisas inúteis e despojadas de sentido, a perguntar-me se a variação dos cérebros é causa da variação dos gostos ou, pelo contrário, a variação dos cérebros foi o resultado da variação dos gostos. Prefiro – pelo menos hoje, amanhã logo verei – a última solução. Os cérebros variam em função do gosto. Quanto pior o gosto de uma pessoa, menos o cérebro se desenvolve. Quanto mais bom gosto tem uma pessoa, mais o seu cérebro se diferencia e complexifica. Tenho razões que justificam a minha escolha. Observemos aquilo que move as redes sociais. O fuel que lhes dá vida é o gosto, conhecido também por like. O importante não é o que se pensa, mas o que se gosta. As pessoas não colocam likes nas redes sociais em função do cérebro que têm, mas o cérebro que têm é o produto dos likes que semeiam. O que me parece uma péssima notícia para a espécie humana, pois é um sinal de que os cérebros humanos se vão encolher cada vez mais até chegar ao tamanho de uma ervilha ou, no melhor dos casos, de uma fava.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025
Autoficção
Nestes dias, quando ando mais cansado, sou acometido pela dolorosa questão de falta de assunto. Não há nada mais triste do que um narrador sem objecto para narrar. É então que deslizo para aqueles textos insuportáveis sobre teoria literária, coisa de que pouco sei e de que pouco quero saber. Hoje, mais uma vez, caído no pântano de não ter nada para dizer, fui atingido por uma questão que se inscreve nesse campo que desdenho. Poderão estes textos ser exercícios de autoficção? Depois, acalmei-me. Na autoficção, o autor não esconde a sua identidade, embora manipule os factos. Ora, aqui está uma consideração que me liberta do peso de ser um autoficcionista, um infeliz epígono da Annie Ernaux, de quem nunca li uma linha, e de Karl Ove Knausgård, de quem li as linhas suficientes para completar os dois primeiros romances de A Minha Luta. O autor deste blogue não apenas esconde a sua identidade, como esconde a minha, a do narrador: nunca há a certeza – nem nele, nem em mim – se coincidem ou não. É verdade que, muitas vezes, os factos são manipulados, mas isso não faz do autor um autoficcionista, apenas um mentiroso. Por exemplo, hoje tive uma longa conversa telefónica com o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini. Falámos de pessoas conhecidas e, fundamentalmente, de restaurantes e encontros de amigos, coisa que ele, apesar de membro da Sociedade de Jesus, não dispensa. Disse-me uma coisa que me fez rir. Parece, disse-me, que o Leo Naphta, vem a Portugal. Não tenho paciência para o aturar. Nunca tive. Eu ri-me e perguntei-lhe pela caridade cristã. Até a caridade cristã tem limites. O Naphta não cheira a nafta – continuou. Tem um odor sulfuroso, asseverou. Recordei-lhe que não lhe competia fazer julgamentos, ainda menos dessa amplitude. Então, mudou de assunto e informou-me que estava a ler um romance de uma autora de autoficção, mas que iria parar. Tinha menos paciência para ela do que para o seu inimigo – interpretação minha, não palavras dele – Leo Naphta. Foi o padre Lodo que me salvou do pântano em que a minha imaginação soçobrava e me abriu o caminho para a autoficção. Combinámos almoçar no sábado. Com o tresmalhado do Naphta, claro.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Diálogos morais
Antes que a tarde chegasse à fase crepuscular, fui caminhar. Os últimos tempos não têm sido propícios para o exercício, mas hoje inflecti a tendência e retomei a prática. Isto, porém, não passa de uma mera expectativa, ainda por cima fundada num desejo que já quase não deseja. Sim, pôr-me a caminhar exige de mim um certo esforço para me arrancar da cadeira onde estou sentado e da casa onde me acolho. Há quem tenha prazer em caminhar. Eu não o tenho. Faço-o, quando faço, por dever. Kant se me lesse, torceria de imediato o nariz, um nariz adaptado para torções, diga-se, e diria que não cumpro o dever de caminhar por amor ao dever, mas motivado por um interesse egoísta: a esperança de que o acto de andar a calcorrear ruas me evite uma presença mais assídua nas salas de espera dos consultórios médicos. Uma acção conforme ao dever, mas não feita por dever, diria ele. Eu retorquiria que queria que ele fosse dar uma volta à rotunda do relógio, ele que era tão metódico nas suas caminhadas que as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem. Ele haveria de se rir da minha resposta e responderia, para me tranquilizar a consciência, que estava a brincar; a minha caminhada tem um real valor moral, juraria. Se tudo em mim me impele a ficar sentado e mesmo assim vou caminhar para preservar a saúde, então caminhar não é um acto egoísta. E, com o seu ar de professor prussiano, acrescentaria: a caminhada tem valor moral pois visa aliviar os outros de um eventual peso que eu lhes possa causar por não me cuidar e cair nas garras da doença. Esta conversa com Kant indignou-me. Estou a falar a sério. Então, não é que ele acha que é sempre moralmente incorrecto mentir e não se privou, na primeira avaliação que fez da minha caminhada, de me pregar uma mentira, retirando valor moral àquilo que o tinha? Também um filósofo chega à fase crepuscular: em vez de trazer a luz, traz a sombria sombra.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025
Futebol, inocência e mito
Na Electra de Inverno de 2024, há um artigo, A minha Moscovo, de Yuri Slezkine, um historiador americano, nascido russo. A certa altura diz: Uma das coisas que mais me impressionaram durante a infância foi ver o Eusébio a jogar o mundial de 1966. Fui ver a idade de Slezkine. Nascemos no mesmo ano e partilhamos uma mesma experiência do reino do futebol. Para mim, essa experiência foi de tal maneira marcante que o meu futebol terminou nessa época. Não me refiro apenas a Eusébio, mas aos jogadores que, em Portugal, ao serviço de diversos clubes, eram os grandes actores de jogos épicos. Sei agora que, a maioria desses jogos, não seriam épicos; muitos deles seriam medíocres. A sua transformação em epopeia devia-se ao facto do futebol visto ser um bem raro. Os jogos do campeonato eram todos ao domingo, às três ou às quatro da tarde, conforme se estava no horário de Inverno ou de Verão, e não havia transmissões televisivas. Vistos da província, os jogos eram acontecimentos distantes. Eu ouvia os relatos e inferia a partir do entusiasmo encenado do relator a grandeza dos jogos. O meu amor ao futebol era uma amor por um objecto imaginário. Talvez todos os amores o sejam. A esta visão inocente do grande jogo, seguiu-se um contínuo afastamento e desinteresse. Se me perguntarem quais são os guarda-redes de hoje dos grandes clubes portugueses, não faço a mais pequena ideia. Mas sei muito bem quem eram os guarda-redes, daqueles tempos, do Benfica, do Sporting, do Porto e do Belenenses, bem como de outros clubes menores. Também ainda sei o nome de muitos dos jogadores que jogaram então. Continuam a ser para mim heróis, todos eles e não apenas o extraordinário Eusébio. Heróis de aventuras que eram grandiosas porque a distância as aumentava de tal maneira que a razão era incapaz de as avaliar. Só se podiam imaginar e a imaginação é a faculdade produtora de mitos. Ora, a infância é esse tempo em que os mitos fazem parte da felicidade.
domingo, 2 de fevereiro de 2025
Revolta do narrador
Irritei-me, palavra de honra, com o autor destes textos, que ele me faz narrar, como se eu fosse um escravo, daqueles escravos que aparecem em certos diálogos platónicos. As nossas relações – as do narrador e do autor – nunca foram boas e, por vezes, nem foram pacíficas. Irrita-me a ironia que ele, por vezes, me obriga a manifestar. Não passa de um cínico moderno. Se fosse um cínico dos antigos, como Diógenes de Sinope, ainda seria suportável. Ao menos, seria um provocador em guerra com as convenções sociais, alguém que rejeita os bens materiais em nome da auto-suficiência e da verdade. No entanto, nem chega a epígono do velho Diógenes. Uma ironia barata, como se quisesse lançar a suspeita sobre a ordem do mundo, mas conformado com ela. Enfim, é de um cínico deste calibre que recebo ordens narrativas. Aliás, não passa de um burocrata. Expele ordens narrativas como quem expele encomendas, mas nunca está disponível para receber a factura-recibo. Este é o problema dos narradores. Trabalham por conta de outrem, mas não são pagos. Nunca recebi um recibo de vencimento, pois nunca venci seja o que for. Uma multidão de narradores já tentou organizar-se em sindicato, mas este foi rejeitado pelas autoridades que regulam essas coisas, porque narradores não são pessoas. Parece que a autoridade ainda teve o desplante de dizer: se fossem personagens, ainda iríamos considerar o vosso estatuto ontológico, pois personagem e pessoa pertencem ao mesmo campo semântico, o que abre a possibilidade de as personagens se organizarem em sindicato para negociar com a Sociedade Portuguesa de Autores. Narradores não são personagens, a não ser nos casos excepcionais dos narradores autodiegéticos. Mas esses são a excepção e não a regra, e não se permitem sindicatos, ou outro tipo de associações, para casos excepcionais, acrescentava a nota de recusa. Só para a regra há associação, concluiu. Portanto, um narrador como eu, escravizado a um autor cínico, só tem uma solução revolucionária: dizer a verdade acerca desse autor, pessoa de ironia burilada, mas básica, para disfarçar a sua natureza comodista. Amanhã, lá voltarei ao trabalho de narrar as suas pobres ironias, se esse autor assim o entender. É a servidão voluntária, como lhe chamou o jovem Étienne de la Boétie.
sábado, 1 de fevereiro de 2025
Guinchos extraterrestres
Aterraram no parque aqui em baixo, mas não são extraterrestres, apenas guincham como tal. São crianças humanas, demasiado humanas. Eu percebo-as, estão na idade do guincho, uma fase inicial da relação com a voz. Anoto isto porque me estão a incomodar o sono. Eu sei que o efeito é benéfico, pois evita que adormeça enquanto estou a escrever estas coisas, mas há nisto um conflito de liberdades. A liberdade de crianças, com vozes de extraterrestres, de guincharem como extraterrestres a aterrar na Terra e a liberdade do meu corpo – mas não do meu espírito, que não é chamado para o caso – de se entregar a uma sesta, mesmo que contra vontade do eu que deveria, caso fosse zeloso, superintender tudo o que nele se passa. Entretanto, chegaram-me uns vídeos do meu neto a jogar râguebi e a marcar uns ensaios. Imagino que aqueles treinadores, árbitros e responsáveis devem ter um grau de resistência maior do que o meu aos guinchos extraterrestres, embora nos vídeos não se oiçam muitos. Também é verdade que aqueles candidatos a mini-raguebistas são mais velhos do que os ocupantes do parque, mas os seis anos são ainda uma boa idade para emitir sonoridades verrumantes para os tímpanos alheios. Um dia destes tenho de ir a Lisboa vê-lo jogar ou treinar. Os extraterrestres, que o não são, embarcaram na nave espacial e foram guinchar para Marte, salvo erro. Pelo menos era o que dizia um deles. Depois da Terra, Marte. Sendo assim, vou aproveitar o súbito silêncio e adormecer. Dormi pouco esta noite, preciso de compensar.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2025
S. Gurosan, a gula e a bula
Valeu-me S. Gurosan, uma espécie de Senhor dos Aflitos em modo de comprimido efervescente. Não devia ter almoçado o que almocei. Não que me tenha entregado ao excesso de comida e bebida. Apenas uma refeição em restaurante, comida portuguesa, mas o corpo já não se conforma com essas tradições. Isto conduz a um estranho estado de conflito entre o corpo e o espírito. Este, apesar da sua natureza etérea, é condescendente e chega a impelir-me para certo tipo de prazeres. O corpo, todavia, protesta, amua, finge-se de indisposto, e de tanto fingir indisposição consegue mesmo indispor-me. Nesse momento recorro, depois de pedir a outros santos, a S. Gurosan para que me alivie das penas da indisposição. E ele, sem que lhe prometa nada, lá faz o seu papel. Contudo, se alguém pensa que a explicação do efeito se deve às propriedades do medicamento, posso dizer que está equivocado. Trata-se de um efeito metafísico. A efervescência do Gurosan age sobre o aparelho digestivo como se exorcizasse um demónio. Portanto, mais do que um medicamento, é um santo exorcista que escorraça do corpo o demónio que nele se introduziu através da gula, apesar de não ter sido grande a gula, nem a bula. Usei a palavra bula num sentido inédito. Não se trata nem de um documento pontifício nem daquele papelinho de letras minúsculas que aparece dentro de todas as caixas de medicamentos. Vou tentar explicar. Bula é um pecado, quase mortal. Se a gula é uma pecado ligado aos gulosos, a bula é um pecado vinculado aos beberosos. Esteve quase para entrar na lista de pecados capitais, mas foi afastado a tempo. É apenas um pecado venial. Portanto, apesar de não ter caído na gula nem na bula, mesmo assim tive de recorrer ao santo. Chega de contar as minhas aventuras e engrandecer a minha gesta. Deixo, porém, como prova da minha criatividade um novo sentido para a palavra bula e a invenção de um novo vocábulo: beberoso. Assegurei a minha entrada na história da língua portuguesa.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Espanto
Os dias estão frios. Esta afirmação trivial, uma mera constatação, esconde qualquer coisa de mais decisivo. O facto de a meteorologia, cada vez com mais precisão, anunciar o estado do tempo rouba às metamorfoses do clima o encanto que, até há pouco, se escondia nelas. Quando escrevi há pouco queria dizer décadas. Os avanços científicos, a capacidade de prever os acontecimentos, são benéficos. Sabemos como nos orientar no quotidiano e tirar partido do sistema de alertas. A contrapartida, porém, é a perda da surpresa e do que ela tem de sublime, isto é, de admirável ou de terrível. Claro, que dispensamos o terrível, queremos defender-nos dele, mas temos de pagar um preço. Temos de abdicar do espanto que nos faz pensar e abrir o espírito para aquilo que nos ultrapassa. Na Metafísica, Aristóteles refere que o início da filosofia se encontra no espanto. É esse espanto perante o incompreensível que move os homens a especular. O resultado desse movimento inicial foi o progresso do conhecimento, e esse progresso rouba-nos a capacidade de nos espantarmos, reservando-a para os especialistas, que cativaram para si a perplexidade perante o desconhecido. Tudo isto por causa de um dia frio que não apanhou ninguém de surpresa. Talvez esteja errado. Talvez me espante por não me espantar e por escrever coisas como esta que mais valia calar. Espanta-me a inclinação para a verborreia e amanhã ser sexta-feira, caso hoje seja quinta.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2025
Os dados estão lançados
Nunca tinha lido. Aliás, não sabia nada do conteúdo, mas tinha a referência da obra há décadas. Refiro-me a Os Dados Estão Lançados(Les jeux sont faits), de Jean-Paul Sartre. Escrito como guião para um filme, em 1943, foi publicado em 1947. Comecei a ler na mais pura inocência, como um leitor ingénuo, sem saber o que ia encontrar pela frente. A certa altura, tenho uma iluminação. Trata-se de uma actualização, marcada pela filosofia do autor, do velho mito grego de Orfeu. Identificada a matriz geradora da obra, sabe-se o destino dos protagonistas e o desenlace da trama narrativa: um Orfeu perderá uma Eurídice. Contudo, há qualquer coisa que mantém a curiosidade na obra. Queremos saber como é que Orfeu e Eurídice se perderão um do outro. É esse o ponto que congrega a atenção do leitor, aquilo que o leva a suspender a descrença na ficção que está a ler e lhe permite avançar na leitura. Se há, nesta vida, uma coisa corrente, essa é um Orfeu e uma Eurídice perderem-se um do outro. Uns perdem-se porque nunca se chegam a encontrar, outros encontram-se, mas cansam-se. Haverá outros que será a morte que raptará um para o frio Hades, deixando o outro por cá. Sempre que se trata do amor de um homem e de uma mulher, as personagens arquetípicas são as do velho mito helénico. O destino de todos os amantes é, mais tarde ou mais cedo, perderem-se um do outro. Os dados estão lançados, efectivamente. Não pelas razões que Sartre congeminou na sua interpretação do mito, mas por uma coisa bem mais simples: a finitude humana.
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Um dia para esquecer
Ocupado em múltiplas tarefas que deverão salvar o mundo, embora o mundo não queira ser salvo. A religião, no mundo ocidental, morreu, apesar de muita gente pensar que não. Contudo, o espírito religioso, com a sua missão salvífica, espalhou-se por toda a sociedade, e não há organização ou instituição que não queira salvar qualquer coisa. Basta que exerçamos uma função, seja a que for, para sermos parte de um enorme corpo sacerdotal, cujo fim é zelar pela salvação. Uns dedicam-se a salvar isto, outros aquilo, e ainda outros salvam qualquer coisa que lhes apareça diante dos seus olhos salvíficos. Não estou a sofrer de um delírio hiperbólico. Levamos um carro à oficina e ali estará um sacerdote que o confessará para o salvar. Não vale a pena falar dos médicos, pois são uma seita soteriológica conhecida há muito. Alguém que recorre a um advogado fá-lo na esperança da salvação. Todavia, há diversos ramos que oferecem a salvação em grandes doses, mas enfrentam o mesmo problema que as religiões ocidentais. Ao ardor dos salvadores não corresponde o zelo dos hipotéticos candidatos à salvação. Eu, um pobre diabo que não tem inclinação para a predicação nem para salvar seja quem e o que for, também, por vezes, sou mobilizado em exercícios de salvação. O resultado é sempre o mesmo: quem precisa de salvação não a quer. Pelo contrário, prefere a perdição, coisa que se pode perceber. É como descer a encosta da montanha: é muito mais fácil do que subi-la. A gravidade sempre foi amiga dos perdidos; ajuda-os na perdição. Acho que, depois das ocupações a que fui sujeito hoje, enlouqueci, como se pode ver pelo hermetismo deste texto. Há quem pense que essa afirmação é falsa, pois sofre de anacronia: já enlouqueci há muito, mas não dei por isso. Cada um pense o que quiser ou o que puder.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Entretenimento
O dia chegou agora à sua fase solar. Cansou-se da humidade e do cinzento, abriu-se e deixou que uma luz, ainda fraca, brilhasse sobre o casario. Na avenida, as pessoas caminham surpresas, levando numa das mãos um chapéu de chuva, agora inútil. A frágil reverberação dos telhados espelha a aproximação do crepúsculo, mas este ainda terá de esperar para se manifestar e predizer, como um profeta cansado, a chegada da noite. Entretive-me, durante a tarde, com o segundo livro da República, de Platão. Indispõe-se com os poetas – Homero e Hesíodo – por contarem mentiras sobres os deuses, fazendo deles um prolongamento dos homens, mas num grau mais vicioso. Temia o filósofo que essa visão dos imortais funcionasse como um modelo negativo na formação das novas gerações. Contudo, é possível pensar que os poetas prestaram um bom serviço aos homens. A atribuição de conduta viciosa aos deuses seria uma forma de transferência da maldade humana para entidades imaginárias e, desse modo, uma forma de purificação das almas dos mortais. Os imortais, com a sua força, poderão arcar com o peso da maldade, mas os humanos não o podem suportar, apesar de a praticarem. No cristianismo, a purificação dá-se num processo confessional, mas no paganismo clássico essa purificação dá-se por um processo de deslocação. Se existe o mal, os culpados são os deuses. O processo será infantil, mas permite, por isso mesmo, manter a inocência. Não foi Platão que, por intermédio de um sacerdote egípcio, nos disse que os gregos são eternamente crianças? Esta minha meditação teve uma consequência. Trouxe de volta o cinzento do dia e a ameaça de chuva. O Sol, incomodado com a minha verborreia, correu a cortina de nuvens. Devia evitar pensar em coisas destas, por amor à humanidade que aprecia a cintilação solar.
domingo, 26 de janeiro de 2025
O primeiro dia da semana
Um domingo indisposto. Chuva, vento, apesar de não estar frio. Um dia em que tudo se inclina para ficar em casa, mas o aniversário de uma neta obrigou-me a enfrentar os modos pouco convidativos deste primeiro dia da semana. Ah… não, este será o último dia da semana. Há várias versões sobre este tormentoso assunto. Fui investigar. As tradições judaico-cristãs, entre elas a católica, vêem o domingo como o primeiro dia da semana. Já, segundo uma norma ISO – precisamente, a 8601 – o primeiro-dia da semana é a segunda-feira. ISO remete, em português, para a Organização Internacional de Normalização. E as normas por ela decretadas têm a função de unificar procedimentos internacionais. Dito de outra maneira, são produtos burocráticos cuja finalidade é uniformizar o que é diferente. Ora, em Portugal – como poderia ser de outro modo? – adoptou-se a regra burocrática e remeteu-se a tradição religiosa para o grande pântano das coisas não modernas. Por detrás disto, está uma análise da semana em que esta é vista a partir do primado da economia e do trabalho. Cinco dias de trabalho, dois de descanso. Para burocratas, cuja visão do mundo é menor que a dos cegos, não faria sentido começar a semana com um dia de descanso, a que se seguiriam cinco de trabalho, e, por fim, outro dia de descanso. Demasiada complexidade para mentes enteadas do cartesianismo. Talvez tenham pensado que pôr os dias de descanso no primeiro e no último dia da semana acabava por colocar o trabalho como uma interrupção do lazer, o que contraria o espírito moderno, tão dado à actividade. O descanso é um permissão benévola que se dá aos que teriam o dever de trabalhar todos os dias da semana. Contudo, não perceberam que a tradição religiosa ao colocar o primeiro dia da semana no domingo tinha um sentido fundamental. O domingo, tal como o domingo de Páscoa, é começo de um novo mundo, o momento onde se concentra nos homens tudo aquilo que se manifestará durante a semana. Se os burocratas fossem sensatos, decretavam que o primeiro dia da semana seria o domingo. Contudo, se fossem sensatos, não seriam burocratas, nem andaria a ganhar a vida fazendo normas.
sábado, 25 de janeiro de 2025
Mordomo
De manhã, mas uma manhã já adiantada, fui à rua apanhar sol. Talvez fosse mais interessante dizer: fui à rua colher sol. A rua seria, então, um campo; imagino-o enorme e de terra escura, e o sol, uma planta bela e de tal modo atraente que todos a queriam levar para casa, para a iluminar e resguardá-la das trevas. Infelizmente, a realidade nunca é como a imaginamos. A rua não é um campo, e o sol é apenas a luz que nos chega de um astro distante, mas suficientemente perto para nos aquecer ou, mesmo, para incendiar o mundo. Impossibilitado de colher o sol, limitei-me a apanhá-lo bem de frente e, depois, voltei para casa, mas não trouxe nenhuma luz que a iluminasse e a protegesse das trevas que chegarão mais logo. Tenho de me contentar com a luz eléctrica, a qual é menos sublime, mas mais eficiente, tal como manda o cânone social dos tempos modernos. Se alguém me perguntar sobre o que caracteriza os tempos modernos – e os nossos dias ainda fazem, de modo tardio, parte desses tempos –, eu diria, sem ruborescer de vergonha, que são os tempos em que se trocou o sublime pelo eficiente. O sublime, oiço, não mata a fome; só a eficiência alimentará os milhares de milhões de almas esfomeadas, embora alimente mais as que não têm fome do que aquelas que, na verdade, a têm. Isto, porém, talvez sejam considerações que não caibam no âmbito desta casa, cujo proprietário me impõe limites estritos enquanto narrador. E se me perguntarem o que é um narrador – pergunta que não me farão, claro –, eu direi o seguinte: um narrador é um mordomo que administra uma casa por conta de outrem, o autor. O senhor de uma casa pode ter opiniões sobre a ordem do mundo; um mordomo, se as tem, não as deve ostentar, pois as suas opiniões são as do seu senhor, mesmo que discordem em absoluto, como é o caso. Por falar em mordomos, veio-me à memória um antiquíssimo uso da palavra. Mordomo era alguém que, de uma maneira que nunca percebi, estava ligado à festa da Igreja da terra onde nasci. Haverá mais mordomos destes por esse país fora. Mordomo por mordomo, prefiro estar às ordens do autor do que me ligar a festas. Da Igreja ou de outra entidade, pública ou privada. Sim, é uma servidão voluntária, como não se esqueceu de sublinhar o senhor Étienne de La Boétie, mas ele não saberia distinguir entre um autor e um narrador. Talvez não precisasse.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
Sem assunto
Uma ida ao cinema, sessão das quatro da tarde. Alguns espectadores, não muitos. Uma característica comum. Todos tinham direito aos descontos de bilheteira para maiores de 65 anos. A certa altura um telemóvel tocou, alguém atendeu, como se estivesse na rua ou num café. Uma vez por outro ouvia-se um comentário. Apesar destes pequenos vícios materiais, a plateia tinha uma virtude. Ninguém se lembrou de comprar pipocas e passar o filme a mastigá-las. Uma experiência arcaica e que nunca me deixa de surpreender: entrar na sala de cinema em pleno dia e sair noite feita. Fico sempre espantado por o filme não ter tido o poder de suspender a passagem do tempo. Em mim, qualquer coisa, no subconsciente, espera encontrar o dia que tinha deixado ao entrar na sala escura. É com um esgar de contrariedade que recebo a noite. Depois, habituo-me. Chegado a casa, sem saber a razão, apetece-me continuar na via cinematográfica. Hesito entre começar a rever os filmes do conjunto que recebeu o título de Comédia e Provérbios, de Eric Rohmer, ou retornar a um já antigo amor alemão, Heimat, de Edgar Reitz, três séries de filmes, com 30 episódios, e que acompanham uma família alemã, de Hunsrück, na Renânia, entre 1919 e o pós Queda do Muro de Berlim. Não existe edição portuguesa. Tenho a francesa, isto é, a alemã com legendas em francês. É uma obra monumental, mas já a vi duas vezes e nunca considerei que estava a perder tempo. Existem dois filmes, também de Edgar Reitz, centrados na mesma família, mas no século XIX. Foram realizados depois da última série de Heimat. O Inverno tem as suas virtudes. Uma delas é convidar a ficar em casa a ouvir música ou a ver filmes. Talvez a ler. Decidi-me, vou ver La nostalgie du voyage, o primeiro filme de Heimat 1. Paul Simon volta da guerra.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
Um castigo
Será que me é permitido retomar o post de ontem? Esta pergunta parece sem sentido, mas estes textos são, foram acontecendo, independentes uns dos outros. Não há continuidade neles. Acontecem ao sabor do vento. Alguém poderia dizer-me, e eu concordaria, são textos de um cata-vento. Nada a obstar. Por outro lado, nada me impede de dar continuidade ao texto de ontem. Será um acto de rebeldia contra o hábito. Ontem, reproduzi o começo de três obras literárias, o que me permitiu escrever sobre a liberdade de ir e vir. Hoje, para compensar as coisas, reproduzirei o fim dessas obras. Comecemos com a Fuga Sem Fim, de Joseph Roth: Não tinha profissão, não tinha amor, não lhe apetecia fazer nada, não tinha esperança nem ambições, e nem sequer egoísmo. // No mundo nunca houve pessoa tão supérflua. No final de A Trégua, Mario Benedetti escreve: O escritório acabou. A partir de amanhã e até ao dia da minha morte, o tempo estará às minhas ordens. Depois de tanta espera, é isto o ócio. O que farei com ele? Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész: Pois também lá, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento, algo se assemelhava à felicidade. Toda a gente me pergunta só pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez essa experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem. // Se é que vão perguntar. E se eu próprio não me tiver esquecido. Com estes fins, ainda aprenderemos alguma coisa sobre essa liberdade de ir e vir? Aprendemos duas coisas, qual delas a mais terrível. Aprendemos, com os finais de Roth e de Benedetti, que não sabemos o que fazer com essa liberdade, como ela, na verdade, nos é estranha. A segunda coisa que se aprende, com o final do romance de Kertész, é que essa liberdade está longe de ser necessária para a felicidade. A liberdade é uma dádiva divina que o homem está longe de ser capaz de aceitar. Será isto o pecado original. Deus ofereceu ao homem a liberdade, mas este rejeitou-a em nome de uma suposta felicidade. Foi castigado, como todos sabemos.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
Ir e vir
Todas histórias, quero dizer narrativas como romances, contos ou novelas, têm um começo. Também terão um fim, mas não é esse que me interessa. Pelo menos, por agora. Vejamos as primeiras linhas das obras que, por desvario, comprei hoje. A Fuga Sem Fim, de Joseph Roth, diz: Franz Tunda, primeiro-tenente, do exército austríaco, foi feito prisioneiro de guerra pelos russos em agosto de 1916. Já A Trégua, de Mario Benedetti, abre-se com: Só me faltam seis meses e vinte e oito dias para me poder reformar. Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész, tem o seguinte começo: Hoje, não fui à escola. Isto é, fui, mas só para pedir ao director de turma que me deixasse voltar para casa. Terão estes inícios literários alguma coisa comum? Na verdade, inscrevem-se num horizonte que os une. Num caso, alguém perda a liberdade ao tornar-se prisioneiro de guerra. Num outro, a personagem liberta-se da sala de aula. No terceiro caso, o segundo narrado, outra personagem ainda está presa ao trabalho, mas conta os dias em que a reforma o libertará. Em todos eles o que está em jogo é a liberdade. Não se trata aqui nem da liberdade metafísica, a que se dá o nome de livre-arbítrio, nem da liberdade política de poder intervir nos destinos da comunidade, mas de uma liberdade a que chamaria liberdade de ir e vir. Esta talvez seja a forma de liberdade mais importante para cada um e a mais ameaçadora para o grupo social e as instituições que dão corpo a esse grupo. Aquele que tem a liberdade de ir e vir torna-se imprevisível. Pode estar e não estar. Chega, subitamente; parte, se lhe apetece. Quando se pensa sobre o romance moderno, pensamos sobre o quê? Talvez o essencial desse romance se concentre nessa liberdade de ir e vir, isto é, na luta contra aquilo que a anula, como a prisão, o trabalho ou a escola, ou no combate pela libertação, pelo direito de se ser vagabundo sem que nada interfira nesse ir e vir.
terça-feira, 21 de janeiro de 2025
Desando, mas não descorro
A tarde não me correu de feição. O mais exacto seria dizer: a tarde descorreu-me. O pior é que o verbo descorrer não existe e o processador de texto que uso para escrever estas coisas assinala erro. Isto, todavia, é mais uma manifestação das injustiças que atravessam o mundo e que se manifestam na língua. Podemos dizer, sem que a censura ortográfica assinale erro, uma frase como andamos e corremos feitos loucos. Mas se queremos escrever desandamos e descorremos como velhos cansados e sem forças, logo cai sobre a palavra o traço vermelho. Permite-se que o verbo andar receba o prefixo des-, mas não nos é possível descorrer. Se houvesse racionalidade, e a justiça não fosse palavra vazia, poderíamos descorrer sempre que nos apetecesse. Não podemos. A língua é o horizonte das nossas possibilidades, e aquilo que não se pode dizer, não se pode fazer.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
Dia péssimo
Um dia péssimo para sair por aí para enfrentar gigantes e matar dragões. Também um herói tem os seus limites e os meus manifestam-se nestes dias cinzentos, de chuva persistente, dias desagradáveis e sem tino. Por isso, não acrescentei qualquer feito à minha gesta. Limitei-me às rotinas diárias necessárias para pagar as contas ou a dormitar em frente do computador, pois heróis como Quixote, Cid ou Rolando só não dormitaram em frente de computadores porque, nos seus dias, não os havia. Coisa de que se ressentem muito, segundo dizem quando falam comigo. Asseveram-me mesmo que não é justo que eu possa construir a minha história recorrendo às tecnologias de informação, enquanto eles tiveram de esperar que alguém escrevesse as deles, truncando a realidade dos acontecimentos, diminuindo-lhes a bravura e ofuscando-lhes a glória. Sugeri-lhes que pedissem uma segunda oportunidade. Não houve estupefacção no seu olhar, mas apenas ironia. Pensas, disseram-me em coro, que não o fizemos já. Olhei-os, expectante. Silêncio, até que eu, incapaz já de suportar a ausência de diálogo, lhes perguntei: qual a resposta? Não há segunda oportunidade, ouvi.
domingo, 19 de janeiro de 2025
Adormecer o coração
Um domingo tão triste que o céu parece chorar. Pela amostra, torna-se evidente que não há coisa mais fácil de escrever do que frases kitsch. Contudo, há dias em que mesmo um narrador sisudo se entrega nas mãos da superficialidade, banhado por um sentimentalismo fétido, pronto para agradar ao gosto mais comum. É evidente que, caso queira adormecer o coração, pode argumentar que tudo é uma questão de gosto. Uns gostam de uma coisa, outros de outra, mas que, no fundo, tudo se equivale. Esta equivalência universal é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. Falsa porque aquilo que é mais difícil e mais exigente é mais valioso, independentemente do preço de mercado. Verdadeira porque são coisas humanas, e todas as coisas humanas se equivalem na morte. Morta a humanidade – e um dia ela desaparecerá – as suas diferenças serão tão importantes para o universo como são para nós as diferenças entre dois grãos de areia numa praia. Há um momento na vida em que acalentamos esperanças inauditas sobre a humanidade. Um dia, pensa-se, todos quererão o mais difícil e o mais exigente. Como se é ingénuo ao pensar que pode haver uma democratização do que é, por essência, aristocrático. Depois, descobre-se que a única verdade definitiva reside na igualização de tudo no oceano aplanador da morte. Dos indivíduos ou da espécie. Com uma tarde assim, é possível que D. Sebastião chegue amanhã de manhã.
sábado, 18 de janeiro de 2025
Considerações sem história
Um sábado provinciano e sem história, o que não deixa de ser uma óptima notícia, pois sempre que a história se intromete, podemos esperar o pior. A grande megera nunca se contenta com o mero passar do tempo. Exige sempre pesados tributos e grandes holocaustos, mesmo quando se trata da pequena história de sítios sem importância ou da história privada, que não é uma história, mas uma colecção de memórias que o tempo há-de diluir na água turva dos anos. Sem história, fui, depois de almoço, comprar laranjas a uma aldeia, onde as vendem à beira da estrada. Os carros param, as pessoas saem deles, dirigem-se às bancas. Ali estabelece-se um diálogo frutuoso, pois os que saíram dos carros a eles voltam carregados de fruta. Do ponto de vista económico, talvez seja um mau negócio, para quem se desloca propositadamente, pois ao preço da laranja, não muito diferente do das superfícies comerciais, há que juntar o preço da gasolina. Ganha-se no sabor e no prazer de animar uma economia local, que não será muito diferente do que era há cinquenta anos. Na verdade, ir comprar laranjas é uma luta contra a história, uma guerra contra o tempo, uma montaria para caçar o passado. Este, porém, astuto e vivaço, nunca se deixa apanhar, empurrando-nos sempre para a frente, como se o presente estivesse num declive escorregadio e nunca se cansasse de se deslocar. Contudo, é nestes afazeres do quotidiano que como um autêntico ser para a morte, como disse Heidegger, me alieno na quotidianidade, talvez com esperança de que, por um passe de mágica, a história seja abolida e a minha finitude seja transmutada em eternidade. Coisa em que não acredito, mas que considero, como considero tantas outras coisas que não merecem consideração. Aliás, não passo de um considerador viciado em coisas que não merecem consideração.
sexta-feira, 17 de janeiro de 2025
Virtude viril
Para que não me esqueça de que tenho corpo, este decidiu constipar-se e prepara-se para uma das suas representações anuais predilectas: uma faringite, já que é impossível ter uma amigdalite, pois os órgãos necessários para tal foram-me extraídos não tinha ainda dez anos. Consta que era moda na época. Para evitar o desenlace da constipação, fui visitar a médica que me vai acompanhando nestas coisas. Fui premiado com um antibiótico para ser tomado durante três dias, além de uns medicamento coadjuvantes. Começo, deste modo, o fim-de-semana, incomodado, mas apenas isso. Tivesse febre e o caso seria outro, pois, nunca percebi porquê, mal o termómetro se lembra de passar a fronteira dos 37 graus e se aproxima perigosamente dos 37,5, sinto-me doente até à raiz do meu eu. Isto deveria ser uma vergonha. Talvez o seja, pois raramente deixo que a febre venha sobre mim. Há que evitar fazer figuras tristes perante terceiros. Já ouvi dizer a vários entendidos – isto é, a várias entendidas – que isso é coisa de homens. Uma mulher, diz esse coro trágico de sabedoras, pode ter 40 graus e resiste, um homem chegado ao tenebroso marco dos referidos 37,5 e está às portas da morte. Não sei qual a verdade destas constatações, embora desconfie que mais do que em evidências empíricas, se fundam nas velhas cantigas medievais de escárnio e maldizer. Seja como for, estou pronto para lutar e combater o dragão da febre, antes que ele dê razões para fornecer um assentimento empírico a essa mitologia zombadora da redundante virtude viril (as duas palavras têm a mesma raiz – vir, homem em latim – o que significa que apenas os homens podem ser virtuosos) dos homens.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2025
Cultivar lugares-comuns
Nota-se bem que os dias estão maiores. A melhor coisa é começar com um lugar-comum, na ausência de uma ideia rutilante e inovadora. Os lugares-comuns, ao contrário do que se pensa, são coisas interessantes e estão longe de serem aquilo de que são acusados. Têm, diz-se, um odor sulfuroso a falta de originalidade, superficialidade e conformismo. Ora, um lugar-comum é um sítio onde entramos em comunidade. Dizer lugares-comuns é incentivar a comunhão, evitando a excentricidade de querer parecer original. As próprias originalidades só o são num contexto comum, num oceano repleto de lugares-comuns. Mesmo a sua superficialidade é aparente, pois uma superfície pode ser apenas a face visível daquilo que é profundo. Se tivesse talento para tal, faria do lugar-comum uma arte. E aqui devíamos considerar a distinção entre arte autêntica e arte degenerada. A arte degenerada é aquela que apresenta, através dos retorcidos da originalidade, aquilo que é o mais banal dos lugares-comuns. A arte autêntica é a que mostra como um lugar-comum o que é absolutamente original. Para esta arte falta-me o talento, que talvez me sobre para a outra. Independentemente destas considerações, a verdade é que os dias estão maiores e vão continuar a crescer até que, após um instante de pausa, comecem a diminuir. E nisto está a tragédia humana – ou a comédia. Mergulhados num mundo cíclico, uma promessa de eterno retorno, somos seres lineares, onde o fim não coincide com o princípio. Isto também é um lugar-comum, pois é fado que partilhamos com todos.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2025
Ignorância ignorante
Começo com uma citação: Na falta de saber, escrevo. Isto não foi pensado por mim, mas aplica-se-me completamente. É a ignorância – uma ignorância que, ao contrário da de Sócrates ou da de Nicolau de Cusa, não é douta – que me motiva para ir escrevendo estes textos. Caso tivesse alguma sabedoria, teria vergonha deles e agiria em conformidade: não os escreveria. Como se sabe, a ignorância ignorante é atrevida. Transcrevi o pensamento de um outro, embora esse outro não se saiba bem quem é. O texto onde a frase está escrita é atribuído a Bernardo Soares, talvez também possa ser imputado a Vicente Guedes. O autor, porém, é Fernando Pessoa, mas suspeito que ele tinha vergonha dos seus textos e os atribuía a personagens que inventava ou que lhe eram reveladas em sonhos. A frase citada pertence a um fragmento que se inicia em tom polémico: A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. A polémica não nascerá da associação entre metafísica e loucura. Reside noutro lado. Será que a metafísica é uma forma de loucura latente ou, na verdade, uma forma de loucura manifesta? Essa loucura seria latente se os metafísicos fossem mudos e não escrevessem, mas logo que falam e dão à estampa as suas obras, não é possível objectar à natureza manifesta da loucura que é a essência da metafísica. Tudo isto tem um triste corolário. Além de loucos, os metafísicos, ao escreverem, são ignorantes. Como a minha metafísica está ao nível daquela que é dita como única por Álvaro de Campos, a de comer chocolates, só partilho com os metafísicos a ignorância, deixando a loucura só para eles. Eu, ao comer chocolates e escrever frivolidades, sou são, inteiramente sadio e saudável, de espírito.
terça-feira, 14 de janeiro de 2025
Viagens no século XVII
Quase toda a gente ouviu falar de Isaac Newton, o pai da física moderna, essa disciplina que nasce de um casamento – talvez ainda hoje considerado espúrio – entre a física – na época, filosofia natural – e a matemática. O registo do casamento pode ser encontrado num documento de 1687 com o título Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, isto é, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. A verdade, porém, é que estas duas áreas já tinham sido observadas em ardente concubinato por Galileu Galilei, santo patrono dos cientistas, que morreu em 1642, precisamente o ano em que nasceu Newton. Ora, este teve interesses muito mais amplos do que a física, assunto que apenas ocupa cerca de 20% dos seus escritos. Cerca de 30% são ocupados com a alquimia e os restantes 50% com a teologia. O grande interesse de Newton parece ser, tendo em conta o volume produtivo, a teologia e não a física. O século XVII foi uma época estranha para nós que chegamos ao mundo três séculos depois. Um outro caso interessante está ligado à medicina – ou talvez à física. Trata-se da transfusão de sangue. Um tal Arthur Coga, cavalheiro desvairado, homem muito excêntrico e extravagante, formado em teologia pela Universidade de Oxford, permitiu que fosse usado numa demonstração pública, na Royal Society, de transfusão de sangue. A teoria, tal como conta Lisa Jardine, era que a transfusão curaria o desvairado cavalheiro da sua insanidade. O doador de sangue foi uma jovem ovelha, o que levou Coga a afirmar que estava a receber o sangue do cordeiro, isto é, o sangue de Cristo. A experiência foi realizada pelos doutores Lower e King, e foi um autêntico sucesso. E o sucesso maior, diga-se, os estimáveis e ousados anatomistas não o perceberam. Que a transfusão não tenha sido fatal para o extravagante Coga foi uma grande sorte. Num relatório, o dr. King esclarece que correu tudo muito bem, um sucesso, verificado por mais de quarenta pessoas. O paciente até bebeu um ou dois copos de vinho das Canárias e fumou uma cachimbada. Foi para casa, estando muito sóbrio e tranquilo, mais do que antes. Vistos com os nossos olhos, tanto os interesses de Newton por áreas tão díspares ou as experiências aventurosas no âmbito das transfusões de sangue são coisas da mesma índole do desvairado Arthur Coga, extravagâncias. Quando daqui a três séculos, os homens de então, caso os haja, olharem para os nossos feitos, que extravagâncias descobrirão eles? Todas as épocas têm dentro de si incontáveis excentricidades, mas só muito mais tarde chegarão aqueles que o descobrem, talvez para terem motivo de riso. O destino dos homens é serem ridículos aos olhos de alguém que virá muito depois e que os olhará com olhos que não vêem aquilo que os seus viram.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2025
Falta de tempo
Imagino que seja um problema de falta de tempo. Tenho sobre o tampo da secretária três romances, todos norte-americanos, com largas centenas de páginas. O mais pequeno caminha para as setecentas, o intermédio quase chega às novecentas e o maior avizinha-se das mil. Corria no meu tempo de estudante a história – talvez não apócrifa – de que um antigo professor daquela casa, pessoa que nunca conheci, na defesa da tese de doutoramento se desculpou perante o júri do volume da tese, citando Pascal ou Voltaire, talvez Mark Twain: Não tinha tido tempo para a fazer mais pequena. Foi o que pensei ao manipular estas obras. Devem ser autores muito ocupados. Não tiveram tempo para escrever romances mais pequenos. É verdade que algumas obras-primas do século XX são enormes romances, alguns inacabados, por falta de tempo. Quando se tem tempo, põe-se um travão à expansão do universo romanesco e, se o tempo crescer, deve-se mesmo obrigar a que entre em retracção. Percebe-se que muitos romances dos nossos dias tenham dimensões colossais. Não serão poucos os autores que pensarão: o tempo não dá para nada.
domingo, 12 de janeiro de 2025
A precisar de repouso
Muito me cansam os fins-de-semana passados fora para descanso. Chego a casa exausto, a precisar de repouso. A minha inclinação é evitar estas actividades de retempero da energia, mas há que fazer cedências e ter a esperança de que, desta vez, se descanse mesmo num fim-de-semana de descanso. O problema reside na perspectiva com que se anuncia o acontecimento. Se tivesse sido anunciado como um fim-de-semana de actividade intensa, estaria neste momento a escrever que, afinal, não foi assim uma actividade tão violenta. Pelo contrário, até se relaxou um pouco. Talvez se pudesse mesmo dizer que se voltou a casa revigorado. O problema são as expectativas: são elas que desenham o horizonte e acabam por influenciar o juízo avaliativo que se faz. Depois de um fim-de-semana destes, falece-me a imaginação, a energia é diminuta e a vontade de fazer seja o que for é nula, incluindo a de escrever. Vou descansar do descanso.
sábado, 11 de janeiro de 2025
Ciprestes
Está um belo entardecer, com um sol animado e uma temperatura amena. Os campos que se avistam do sítio onde me encontro estão verdejantes, e uma melancolia suave envolve toda a realidade, onde pontuam velhos ciprestes, que não desistem de apontar para o alto. Olho-os e penso que são árvores de outra época, na qual as coisas elevadas eram dignas de culto. As coisas belas são difíceis, pensava Platão, mas a nossa época prefere a facilidade. Está cheia de facilitadores, de gente que facilita aquilo que é fácil. Ao desprezar a beleza – os artistas, nas suas muitas revoluções, pretenderam matar a beleza, despojar a arte da sua presença – e o difícil, o fácil torna-se difícil, e o acesso fácil agora difícil precisa de ser facilitado. Talvez por isso os ciprestes sejam árvores pouco amadas. Haverá quem diga que esse pouco amor está ligado à sua presença nos cemitérios, à sua associação com a morte. Servirá como desculpa, mas a força retórica com que o cipreste fala aos humanos, uma força muito mais incisiva do que qualquer outra árvore, cujos ramos se lateralizam, torna-se excessiva para uma audiência incapaz de perceber que nem tudo no mundo se equivale, que a ignorância não é a mesma coisa do que a sabedoria ou a douta ignorância, que a verdade e a falsidade têm significados diferentes, ou que a beleza e a fealdade não são uma mera questão de gosto subjectivo. Vou dar um passeio e contemplar os ciprestes.
sexta-feira, 10 de janeiro de 2025
Um dia gasoso
Os dias continuam no estado gasoso. Evaporam-se, como descobri aqui no outro dia. A meio da manhã saí da cidade onde me acolho e fui almoçar com as minhas netas a Campo de Ourique, num pequeno restaurante no Jardim da Parada. Antes de ser restaurante, era um café, onde ia uma vez por outra. Elas estavam cansadas. Uma semana de aulas deixam os alunos exaustos ou, talvez, estejam já consumidos antes de as aulas começarem. Um almoço sem conversas escolares, para animar os espíritos e deixar o spleen adolescente a pairar ao longe. Depois, as horas passaram, a noite, como um exército determinado, fez ressoar as suas botas cardadas e tomou de assalto a fortaleza do dia, um dia triste, com uma atmosfera húmida, carregado de cinza. Passei por uma livraria e comprei a tradução portuguesa, saída em Agosto do ano passado, do Parménides, de Platão. Além do diálogo, o livro tem ainda as Cartas. Ora, é o começo da carta oitava que tem potencial para deixar o leitor perplexo: Farei o possível por vos elucidar acerca dos vossos próprios sentimentos, a fim de que se vos torne deste modo possível levar uma vida perfeita e feliz. Imagino que seja necessário possuir uma enorme presunção para pretender elucidar alguém dos seus próprios sentimentos. E não bastando isso, supor que tal elucidação possibilitará ao elucidado levar uma vida não apenas perfeita, mas também feliz. Se Platão tinha esta pretensão de psicoterapeuta, não admira que, com o desenrolar dos séculos, os elucidadores de sentimentos e agentes da perfeição e felicidade alheias se tenham tornado legião. Pena é que Platão não tenha seguido a sabedoria do seu mestre Sócrates e declarado que sobre os sentimentos dos outros – e mesmo dos próprios – só sabe que nada sabe. Teria sido um grande contributo para a humanidade.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2025
O dia de hoje
Uma quinta-feira cheia de tarefas, ainda por cima começada, ainda não eram oito e meia, com a visita dos funcionários de uma empresa que montou, há umas semanas, uma nova caldeira aqui em casa. É uma caldeira cheia de sensores e, por isso, muito sensível. A sensibilidade é tão apurada que decidiu dar erro e não trabalhar, o que me fez passar em branco o duche matinal de ontem e me deixou uma sensação de impureza durante todo o dia. A vinda dos técnicos foi uma boa notícia, a que se adicionou o restabelecimento do dispositivo na sua função. Quando se foram embora, coisa que não foi fácil, respirei aliviado e dirigi-me para o duche matinal, embora a manhã já fosse a meio. Depois, como um mortal entre mortais, tive de providenciar a maneira de pagar as contas e fiz-me à vida, pois múltiplas empresas me esperavam. Fi-las com a sensação de pureza que um bom duche proporciona, como se tivesse acabado de ser baptizado no Rio Jordão. Chegado a casa, saí de imediato para me consolar no café aqui ao lado, pertença agora de um casal de brasileiros, em que ela tem um enorme talento para fazer bolos, múltiplos bolos, combinações requintadas de sabores, todos de uma grande leveza e sem excesso, mas também sem defeito, de açúcar, tudo na justa medida aristotélica, nesse meio-termo virtuoso que torna as coisas valiosas. Raramente, mas muito raramente, me entrego a este despropósito à tarde, mas o dia de hoje obrigou-me a um exercício de consolação. Teria aventuras para contar, as quais engrandeceriam a minha gesta, mais heróica que a do Cid e mais alucinada que a do Quixote, mas guardo isso para quando escrever as minhas memórias, caso não as perca pelo caminho. Por hoje, registo apenas o dragão em forma de bolo que espetei com um garfo e devorei com os dentes com que fui dotado e aqueles que fui adquirindo.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2025
Metamorfoses
No pouco que vejo de televisão, consegui encontrar dois equívocos fonéticos cujas consequências só se explicam a partir das metamorfoses descritas por Ovídio. A coisa conta-se em poucas palavras. Num caso, um homem é transformado numa cidade; no segundo, outro homem, com uma casa ilustre, é transformado em marca de atum, senão mesmo em atum. Páris, aquele que ofereceu o pomo da discórdia, raptou Helena, enfureceu os gregos e desencadeou a guerra de Tróia, foi tomado por Paris, a velha capital francesa, que, no tempo de Alexandre, o outro nome de Páris, ainda não existia. Talvez a troca fonética, neste caso, faça ainda parte do castigo imposto por uma das deusas preteridas pelo dito Páris, talvez Atena, talvez Hera, quando decidiu entregar a maçã dourada a Afrodite, o que significava que a escolhera como a mais bela das três. Um homem avisado não se meteria nessas alhadas e, caso fosse coagido, adiaria o julgamento até que o caso prescrevesse. A outra situação de dissonância fonética está ligada a uma festa fúnebre, a trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional. Alguém, ao elencar as obras do escritor, lembrou-se de referir a Ilustre Casa de Ramirez. Nem a casa, nem o Ramires fizeram mal algum merecedor da metamorfose. O caso explica-se pelo apetite da locutora. Enquanto lia a lista, deu-lhe a fome e pensou numa sandes de atum. Do atum passou, por metonímia, para Ramirez, marca que ela usa no lar, e uma casa ilustre torna-se parte de um plano para montar um negócio de sandes. A locução nas televisões tornou-se, quando se trata da língua portuguesa, num dos lugares mais criativos. E ainda há quem fale na televisão como um dispositivo de alienação.
terça-feira, 7 de janeiro de 2025
Uma tarde gasosa
A tarde evaporou-se; nem sei como, nem porquê. O uso da ideia de evaporação pode parecer bizarro, mas é congruente com os tempos que vivemos. Segundo um conhecido sociólogo polaco, Zygmunt Bauman, vivemos na modernidade líquida. Se ele tem razão, faz sentido pensar que as tardes, bem como as manhãs e as noites, sejam também líquidas, pois pertencem a um mundo líquido. Como é que uma substância em estado líquido se transforma em vapor? Em termos genéricos, isso acontece por absorção de energia térmica. Foi o que aconteceu à minha tarde de hoje. Ela, devido às transformações ocorridas na modernidade, como ensinou Bauman, passou do estado sólido para o líquido, ainda antes de nascer. E assim continuaria se fosse uma tarde normal. Seria um rio a deslizar com a suavidade para a foz, onde entraria, pelo delta do crepúsculo, no oceano da noite. Contudo, de uma maneira inexplicável, começou a absorver energia térmica, até que passou para o estado gasoso. Nessa altura, sentei-me aqui e disse: a tarde evaporou-se. Fosse eu sociólogo, radicalizaria a visão do mundo moderna recebida de Bauman. Vivemos na modernidade gasosa. Esta transformação na configuração do sistema-mundo foi prenunciada – se não mesmo anunciada – em Portugal, na indústria e comércio de refrigerantes. Quando era criança e adolescente, não havia coca-cola, bebida proibida de entrar no país, mas havia laranjadas e gasosas, que tinham mais gás que uma botija de 13 kg. Foram estas que anunciaram a nova fase da modernidade que acabei de cunhar. Há um momento de pré-anúncio, mas de que não me lembro. Trata-se do pirolito, uma bebida gaseificada, cuja garrafa tinha um engenhoso método de fechamento. Uma bola de vidro, pressionada pelo gás da bebida – imagino que uma mistela – fechava a garrafa. Contudo, nunca entrei em contacto com pirolitos. Também as gasosas não eram coisa com que me desse. Se queremos perceber como tardes, noites e manhãs se evaporam, há que estudar a indústria refrigerante e o antigo mercado de pirolitos e gasosas. Uma arqueologia do estado gasoso do mundo.
segunda-feira, 6 de janeiro de 2025
Viagem sem fim
Terão já chegado ao estábulo? Estou a falar dos Reis Magos. Hoje é Dia de Reis. Ora, há duas interpretações possíveis do dia. Uma seria a comemorativa. Comemora-se um evento que se imagina ter acontecido. Uma outra diz que é o dia em que os Reis Magos visitam mais uma vez o Menino nascido a 25 do mês passado. Não seria um dia de evocação, mas de realização. A primeira interpretação, a interpretação literal, reduz as narrativas religiosas a acontecimentos históricos. Isso coloca um terrível problema de atestação, a qual é impossível. A outra, a interpretação simbólica, é um caminho, não para uma rememoração, mas para descoberta daquilo que se oculta nos símbolos. A visitação dos Magos não é um facto, mas um símbolo, e qualquer símbolo é um jogo onde os opostos coexistem. O caminho será meditar nos opostos que o símbolo da visitação contém, e não são poucos. Cada um poderá começar por aquele que lhe seja mais manifesto. Depois encontrará outros, numa viagem que pode não ter fim.
domingo, 5 de janeiro de 2025
Da permanência
Presumo – mas presunção e água benta, cada um toma a que quer – que S. Pedro, o CEO da grande multinacional que gere o clima neste planeta, tenha tido necessidade de mostrar quem manda e de pôr a concorrência no devido lugar. Tomem lá um domingo de Inverno. Recebemo-lo de bom grado, pensando que assim as coisas estão no seu devido lugar. Quando acordei de manhã – já não era muito, muito de manhã, o que contraria os meus hábitos – ventava com violência, numa aliteração que fazia pensar em vendavais. Há pouco, as ruas foram fustigadas por aguaceiros fortes, que se interrompiam, anunciando uma era de paz, mas logo voltavam, como se as ruas ainda não estivessem suficientemente limpas. As almas, mesmo as mais enlameadas, estavam recatadas, evitando encontros com a água purificadora caída dos céus. O resultado de tudo isto é uma afirmação da permanência contra a mudança: S. Pedro permanece CEO da empresa climática, e eu permaneci em casa, sem vontade de ir à rua. Já basta, amanhã, ter de ir fazer uma visita ao mundo exterior que me espera.
sábado, 4 de janeiro de 2025
Tempo de farsa
Em 1881, Nietzsche publicou um livro com o título Morgenröte (Aurora, em tradução portuguesa). Considera, a certa altura, que, nesses dias, o poder dos costumes foi surpreendentemente enfraquecido. Mais à frente, esclarece o que pretende dizer: onde não há tradição a comandar, não há moralidade; e, quanto menos a vida é regida pela tradição, menor é o alcance da moralidade. A moralidade e os respectivos princípios não seriam outra coisa do que um longo hábito. A tradição seria a colecção desses hábitos que domam as existências individuais para as submeter ao grupo. E isso, por influência da ciência moderna, está posto em causa. Neste momento, um pouco por todo o Ocidente – pois isto é um negócio ocidental –, deparamo-nos com um espectáculo curioso e, na verdade, risível. As pessoas gemem pelos costumes, votam em defesa dos costumes mortos, dos bons velhos costumes, elegem os trapaceiros que lhes prometem trazer de volta a moralidade dissolvida pela morte dos antigos costumes. Ao mesmo tempo, não estão dispostas a dispensar os benefícios da ciência e, ainda menos, os da indústria. Ora, aquilo que mata as tradições, os velhos costumes, os hábitos instalados, é a ciência e a indústria, o casamento entre o conhecimento e a economia de mercado. Todas as revoluções industriais destruíram hábitos enraizados. Como essas revoluções se sucedem cada vez mais rapidamente, os hábitos destruídos estão cada vez menos enraizados. O sentimento de perda será cada vez menor, mas isso torna a vida mais inquietante, pois o próprio passado perde força. A reacção contra a primeira revolução industrial foi muito mais violenta do que contra a revolução trazida pela informática. Isso significa que o passado era um consolo ainda potente para acalmar os espíritos perdidos, expulsos do paraíso pré-industrial. O romantismo não foi outra coisa senão uma revolta e uma modalidade de consolação. A revolução em curso, a da Inteligência Artificial, não vai gerar nenhum romantismo, mas apenas farsas sem fim, onde se grita pelos velhos costumes enquanto se abraça aquilo que os destrói. Este é o nosso tempo: o da farsa.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2025
Para uma sociologia da imaginação
Como tantas vezes me acontece, um acaso levou-me a um romance – o único do autor – de Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva. Estava numa estante e nunca pensei em lê-lo. Contudo, peguei nele e duas circunstâncias levaram-me a mudar de opinião. Uma absolutamente lateral. A capa da minha edição é do pai de um amigo meu, um dos mais importantes designers gráficos portugueses do século XX. A segunda, imagino que a mais decisiva, foi a longínqua memória de ter lido a novela O Barão, a obra-prima do escritor. Quando a li, há décadas, fiquei impressionado, mas não voltei a ela, nem a qualquer outra obra do autor. Entrei, então, pela Porta de Minerva e deparo-me com uma Coimbra talvez dos finais da República. No terço que li, tudo gira em torno dos estudantes, dessa incompreensível, para quem não estudou em Coimbra, praxe, da terrível divisão entre caloiros e doutores, das tradições académicas. O romance não tem o poder magnético de O Barão. Não deixa, no entanto, de ser um interessante documento sociológico sobre uma realidade social que teve no país um peso desmedido e que o conformou naquilo que ainda é hoje, apesar de, imagino eu, esse peso ter sido reduzido drasticamente. Penso, não poucas vezes, que nos falta uma sociologia da imaginação nacional. O objecto de investigação seriam as obras de arte, o trabalho dos grandes artistas, mas também dos medianos e dos menores. O que estaria em jogo não seria a qualidade estética das obras, mas como a imaginação desses artistas nos imagina na narrativa, no teatro, na pintura, na escultura, na poesia, no cinema, na música. Uma coisa é a realidade objectiva que a história e a sociologia pretendem captar, a vida crua com os seus eventos. Outra bem diferente é aquela para que aponta a flecha do desejo, desejo esse que alimenta a faculdade de imaginar. Deste ponto de vista, uma obra menor de um autor esquecido pode ser tão importante, ou mais, do que uma obra do cânone, pois esta será sempre uma excepção. E os nossos desejos raramente são excepcionais.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2025
A vida prosaica das ideias magníficas
quarta-feira, 1 de janeiro de 2025
Primeiro dia
Chegou o crepúsculo do primeiro dia do ano. Recolhi-me, como se este fosse um dia de meditação, mas não meditei sobre nada. Talvez tenha meditado, mas essas meditações foram tão secretas que nem o próprio meditador deu por elas. Na rua, havia uma luz solar límpida, mas a preguiça evitou que me expusesse a ela e ao frio que a acompanha. O sol de Inverno, como todos sabem, é uma armadilha para incautos. Disfarça-se de promessa calorosa para atrair os ingénuos ao frio que faz reinar. As festividades estão consumadas. Amanhã, a realidade volta com toda a sua colecção de imperativos. Obedecerei, pelo menos a alguns; a outros deixá-los-ei flutuar até que se dissolvam por si mesmos. Fui fechar uma persiana. Olhei para a rua e não havia ninguém, nem os constantes passeadores de cães, nem os extraviados da família, nem os loucos que aproveitam estes dias para exibir gratuitamente a sua loucura. Uma quietude como a que carcomia as cidades naqueles dias em que uma pandemia tomou de assalto a casa do homem. Podia ter evitado esta metáfora, tão cansada está que não passa de uma catacrese; mas também eu estou cansado e não me apetece inventar metáforas no primeiro dia do ano. Não me ficava bem. Seria um exercício exibicionista, apesar do anonimato que cobre autor e narrador destes textos. Deveria escrever anonimatos, pois ambos são anónimos, mas com uma diferença substancial. No caso do autor, foi-lhe dado um nome no registo civil e no baptismo. Já o narrador não foi registado, nem baptizado, tão pouco crismado. O autor negou-lhe o direito mais básico que é ter um nome como chave de uma identidade. Não me vou revoltar com isso, pois o primeiro dia do ano é o menos indicado para revoltas, sublevações e insurreições. Cumpro ordens. Foi para isso que o autor me criou, para narrar o que lha passa pela mente, embora eu não tenha a certeza se a sua mente existe de facto, mas se fui criado por ela, pelo menos terá existido.