sexta-feira, 7 de maio de 2021

Adicções e possibilidades

Voltaram as velhas sextas-feiras. Chegam prenhes de luz e calor, anjos a anunciar o Estio por vir. Os telhados metálicos da escola ao lado reverberam, batidos pela impiedade solar. Oiço extensas conversas dos pássaros meus vizinhos. São diálogos amenos entre pais e filhos. Suponho que a época de acasalamento já foi e não terá sido por aqui. Na Sá Carneiro pais e netos levam crianças para casa, agora que a tormenta escolar foi interrompida por dois dias. Os carros passam vagarosos, indulgentes, fingindo-se civilizados. Tocam à porta. Atendo. Tenho aqui para uma encomenda para o senhor, dizem. Pode mandar pelo elevador, respondo. Recebido o pacote, abro-o. Contém livros comprados num alfarrabista. Autores portugueses que ninguém lê. Eu também não, embora não tenha perdido a esperança. Por vezes, fazem-se descobertas surpreendentes. Talvez eu, ao insistir em comprar livros que não leio, sofra de uma adicção. Hoje em dias há teorias que mostram que todos os comportamentos são patológicos. Todos estamos doentes. Depois de arrumar os livros, desinfecto as mãos, não estejam os livros carregados de vírus. Um casal conhecido caminha pela avenida, ele à frente, ela atrás. O espaço que os separa parece crescer a cada passo. Talvez assim evitem a infelicidade, essa doença surgida quando se determinou que casamentos só por amor e que, não bastando o eflúvio afectivo, devem ser uma festa erótica em exaltação contínua, com sedução permanente para que se evite o tédio, a rotina, o enfado e o hábito. Quando se quer o impossível, não se deve estranhar que ele não seja possível.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Do outro lado

É possível que o que é contrário ao que somos nos atraia com muito mais força do que aquilo a que nos assemelhamos. Pensei isto ao ler, Bajo las Estrellas de Otoño, o primeiro romance da Trilogia do Vagabundo, de Knut Hamsun. Tanto quanto sei nenhum dos romances da trilogia foi publicado em Portugal. Não há nada que me seja mais estranho do que o nomadismo a que o narrador e personagem principal – por acaso, chamado Knut Pedderson, o verdadeiro nome do autor – se entrega, em pleno Outono, por uma Noruega rural de finais do XIX ou início do XX. No entanto, sinto-me completamente fascinado. Hamsun é um dos grandes da literatura mundial, um autor decisivo para compreender o que foi o romance do século XX, e que isso contribui para o fascínio. Não é, contudo, só isso. É o próprio vaguear sem destino, sem compromissos a não ser com o estritamente necessário, que surge como uma vida mais autêntica do que o sedentarismo a que me entrego, pois estabelece uma relação menos tensa com os homens e mais funda com a Terra. O sedentarismo é o pai da civilização, mas a existência nómada será a mãe da autenticidade. Estas reflexões são um alívio daquilo que já tive de fazer hoje. Nem sempre fazer o que está certo significa realizar o agradável. Na rua, o sol já queima, apesar do vento de noroeste.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Da beleza

As orquídeas, no seu friso, continuam esplendorosas. Por vezes, chego-me perto delas e fico a contemplá-las, a olhar os padrões que cada uma apresenta, as cores que nunca são exactamente iguais, num exercício de diferenciação a proclamar que nada na natureza é igual a outra coisa. Talvez aquilo a que damos, sem muito pensar, o nome de natureza não seja mais que um contínuo exercício de criar diferenças, para multiplicar as possibilidades de espanto. Caso as orquídeas fossem todas exactamente iguais, o prazer de as olhar depressa se extinguiria. Descobre-se, então, que a multiplicação sem fim das diferenças não passa de uma manobra de sedução. Não há nada mais sedutor que uma beleza única, diferente de todas as outras. Semelhanças e analogias não passam de pobres estratagemas de mentes incapazes de suportar o terrível que existe no que é belo. Um poeta romeno escreveu o verso a luz continua a trabalhar sob a casca dos frutos. Imagino, de imediato, a luz numa grande e invisível azáfama, até que o fruto se ilumine por dentro e se torne num relâmpago ao sentir os dentes da boca que o há-de comer. Um triste destino o do fruto e de tudo o que é belo.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

O que vemos e ouvimos

Volto, à falta de melhor, às minhas narrativas meteorológicas. O calor está de volta, embora com moderação. Muitas vezes, por aqui, Maio é um mês impiedoso, sem contemplações para com aquelas almas – o melhor seria escrever aqueles corpos – que têm uma pendência irresolúvel com as temperaturas altas. As pessoas aproveitaram de imediato o facto de se chegar aos 23 graus para se porem à vontade, isto é, aliviaram-se de roupa e entregarem, com a habitual falta de pudor, as carnes esbranquiçadas aos olhares incautos que, confiantes no bom senso, são apanhados nessas armadilhas, tendo de sofrer aquilo que se depara diante deles. Não devia escrever estas coisas, mas como tenho cuidado em não ferir a sensibilidade estética dos outros com a minha vontade de exibição das tristezas do corpo que me cabe, não consigo conter a veia venenosa que há no fundo de mim. Num prédio das redondezas alguém percute uma parede com um berbequim. O barulho destas máquinas – e de outras semelhantes – é uma verdadeira anunciação do inferno. Este não será apenas feito de chamas eternas, mas também de roncos de corta-relvas, berbequins, betoneiras e tudo o que o engenho moderno inventou para fazer descansar os corpos e tornar as pessoas surdas. Só que no inferno há legiões de diabos otorrinolaringologistas – só a palavra lembra uma artimanha do chifrudo – que, mal um condenado fica surdo, logo se dispõem, de forma gratuita e rápida, a curá-lo da surdez, e assim continuar a ouvir a sinfonia maldita dos berbequins ínferos. Um célebre escritor-filósofo francês dizia que o inferno são os outros, pois frustram o nosso desejo. O problema não está na frustração do que queremos, mas naquilo que os outros nos fazem ver e ouvir, sem querermos. Isso, sim, é infernal.

domingo, 2 de maio de 2021

O grande reformador

Hoje é o Dia da Mãe. Há na designação qualquer coisa sombria. Antigamente, poucos os dias eram dias de qualquer coisa. Nesse tempo, o Dia da Mãe possuía uma aura que hoje não tem. A proliferação dos dias disto e daquilo foi a melhor forma de aniquilar isto e aquilo e tornou a mãe perdida no labirinto do seu dia, que é agora mais um. A escassez valoriza, a abundância corrói. Uma questão de mercado. Talvez as entidades laicas que superintendem a designação dos dias relativos a uma qualquer coisa pudessem aprender com a Igreja Católica que, por volta de 609 ou 610 da nossa era, criou o Dia de Todos-os-Santos e, lá para o século nono, o universalizou. Assim, teríamos o Dia de Todos-os-Dias, onde cada um escolheria a causa da sua devoção para a ela dedicar o pensamento e, talvez, a acção. Tendo em consideração a quantidade de coisas sem nexo que me ocorrem, suspeito que teria dado um grande reformador, uma daquelas pessoas que, cheia de ideias, pegam em qualquer coisa que funciona mais ou menos e, devido ao seu espírito intrépido e inovador, a deixam de rastos. Depois, serão condecorados e haverá, quando morrem, alguém que lhe escreverá o epitáfio, que há-de reverberar no túmulo. Não faço ideia como cheguei ao que cheguei, mas tornei-me incapaz de compreender esses espíritos sempre prontos a reformar, a inovar, a renovar, que não será outra coisa senão a síntese entre reformar e inovar. Não é que eu ache que não deva haver mudanças. Deve, mas todo o palavreado em torno delas tem o condão de as destruir. Quem melhora as coisas fá-lo sem abrir a boca sobre o assunto, como aqueles monges cartuxos que entregaram a vida ao silêncio. Muito eu gostaria que as pessoas públicas tivessem almas de cartuxos. Não têm. Hélas!

sábado, 1 de maio de 2021

Distracções e esquecimentos

Ando completamente distraído. Começou Maio e nem tinha dado por Abril ter acabado. Uma pessoa caminha distraída pela vida fora e nem repara naquilo que realmente importa. Hoje, só dei que era feriado quando bati com o nariz na porta do bar, onde decidira almoçar. Estava fechado. Olhei para o horário. Aberto aos sábados desde as onze da manhã até à meia-noite. O que terá acontecido, perguntei-me, enquanto virava costas e ia à procura de alternativa. Depois, fez-se luz. Hoje é primeiro de Maio e, sabe-se lá a razão, naquele bar parece haver fidelização ao dia. Lá encontrei outro, agora infiel. A seguir ao almoço, atravessei de carro a cidade. Não havia nela sinais de feriado, tudo estava vestido de fim-de-semana, as pessoas arrastavam os corpos ainda cansadas da corveia semanal, as lojas de rua fechadas e tudo tinha, para dizer a verdade, um ar de sexta-feira santa. Enquanto escrevo estas coisas para memória futura, como chocolates. É a metafísica que me resta, comer chocolates, agora que nem um cigarro devo fumar. Um dia destes, ainda me dirão chocolates, não convém comer. O mal dos interditos é começarem. Nunca se sabe a proibição que vem a seguir. O dia está desabrido e não me lembro de um início de Maio tão invernoso. Também é certo que a minha memória é uma faculdade em rápida deterioração. Há pouco quis-me lembrar do nome do escritor italiano Italo Calvino. Foi um exercício penoso e inútil. O que me valeu foi digitar o nome de um dos seus livros e a memória prodigiosa do senhor Google devolveu-me o nome. O pior será quando não souber o que é o Google ou, então, como se digitam palavras.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Pequenos mistérios

A meio da manhã recebo uma chamada no telemóvel. Atendo e oiço dizer é o carteiro, tenho aqui uma encomenda vinda de Espanha, não está ninguém em casa. Posso deixar na caixa do correio, perguntou. Respondi que sim, que agradecia. Uma drástica mudança no modus operandi. Para melhor. Quando abri a encomenda deparei-me com um pequeno mistério. No dia 27 de Abril encomendei no mesmo site – e na mesma encomenda – dois livros. No dia 28, recebo a indicação de que teriam enviado apenas um. No dia 29, recebo a indicação de que acabaram de enviar o que estava em falta. Hoje, dia 30 de Abril, recebo este e não o que foi enviado em primeiro lugar, o qual, por certo e apesar de ser do mesmo autor, gostará mais de andar a viajar e a visitar lugares desconhecidos. Os livros possuem vontade própria, é a única conclusão a que consigo chegar. A luz solar reverbera nas paredes do hospital, no telhado branco do pavilhão desportivo da escola vizinha e nas folhas das oliveiras, as quais se agitam entontecidas pelo ventania soprada de noroeste. Dentro de meia-hora terei de estar em videoconferência. Uma sessão de três horas. A massa neuronal há-de ficar como o puré de batata, não pela complexidade da coisa, mas pelo tempo de duração e porque hoje é sexta-feira, e este narrador não ter já idade nem apetite para certas coisas. Dantes, quando me faltava o apetite, coisa que ocorria sistematicamente, davam-me Ceregumil. Não sei se fazia alguma coisa, mas levou-me até ao momento em que não mais tive falta de apetite. Algum mérito haveria de ter. Se houvesse Ceregumil para videoconferências, mandava já vir uma caixa.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Ilusões

Foi apenas em 1657 que um quadro conseguiu dar a ilusão de movimento. Trata-se de Las Hilanderas, de Velázquez. Uma fina nuvem, quase transparente, preenche o interior de uma roda de fiar, imitando aquilo que qualquer um veria devido à velocidade de rotação da roda, arrastando velozmente os raios. Talvez se possa formular a lei que guia o olhar. Quanto maior for a vontade de imitar a realidade, maior terá de ser a ilusão criada. Com isto será possível perceber que realidade e ilusão são irmãs gémeas. A discussão, se for caso disso, será sobre se serão gémeas falsas ou verdadeiras. Inclino-me – pelo menos no dia de hoje – para que serão verdadeiras. Terão exactamente o mesmo código genético. Muito eu gostaria de saber a razão por que estou a pensar coisas tão inúteis. Há pouco, e isso foi uma novidade do desconfinamento, o conjunto musical – um verdadeiro grupo de baile – da escola minha vizinha voltou aos ensaios. Tornei a ouvir as músicas que terão animado as gentes nos anos setenta e oitenta do século passado. Não estarão a preparar nenhuma matinée dançante, presumo. O quadro de Velázquez tem outra nota. Uma fiandeira mostra o joelho, e este desvia o olhar da roda para a pele branca da rapariga. Uma ilusão nunca vem só.

terça-feira, 27 de abril de 2021

De olhos trocados

Voltei às caminhadas. As ruas continuam como estavam, apenas uma obra municipal deu dois passos. Um facto assinalável. Há coisas que se movem muito lentamente. Ainda mais do que a tartaruga. A que derrotou Aquiles. Sempre tive pena do pobre herói. Não lhe bastou a monumental zanga que apanhou logo no Início da Ilíada, ainda foi derrotado pela quase imóvel tartaruga, afundando-se no infinito do paradoxo. Recebi um email de denúncia da campanha de vacinação contra COVID-19. Não passará tudo de uma maquinação genocida de poderes ocultos, à qual o nosso governo, como quase todos os outros, obedecem. Há pessoas com uma imaginação delirante. Conseguem ver conspirações terríveis onde elas não existem, mas são incapazes de as ver onde existem. Devem ter nascido com os olhos trocados. Por outro lado, têm uma grande propensão para a evangelização. Andam sempre a anunciar a boa nova, que é sempre má. Não admira que o mundo seja como é e esteja fora dos eixos. Um corvo plana sobre o pequeno bosque da escola vizinha. Traz com ele a noite.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Pequenos interesses

Agora que me preparava para fazer uma caminhada, o céu decidiu encobrir-se de um denso manto de nuvens negras. Ameaça uma chuvada das antigas, talvez com direito a bombos e fogo-de-artifício. Abril, Maio e Junho, por aqui, são meses que, por vezes, se deixam tentar pela exuberância das tempestades. Nunca são catastróficas, a não ser para agricultura quando elas vêm acompanhadas de fortes bátegas de granizo, mas isso costuma ser mais tarde. Como se vê, os meus interesses resumem-se, à falta de uma aventura no reino dos Esculápios, ao registo do estado do clima. Qualquer dia restrinjo-me àquilo que se fazia num certo blogue, em tempos famoso, mas cujo nome não me ocorre. Todos os dias publicava uma fotografia. Sempre do mesmo lugar, sempre do mesmo ângulo. Era um registo do passar do tempo, caso exista tempo e ele passe. Isto, porém, não é para aqui chamado. Talvez existam pessoas que todos os dias, a uma certa hora, se fotografem. Imagino que sim. Podem tomar consciência de como o seu rosto se vai metamorfoseando. Isso permitir-lhes-á escrever um romance designado A Desilusão de Narciso. Os pássaros que a Primavera arrastou para a minha vizinhança não se calam. O seu cântico mistura-se com o do The Hilliard Ensemble acompanhado por Jan Garbarek. O céu está cada vez mais negro. Espero o primeiro relâmpago.

domingo, 25 de abril de 2021

Um feriado ao domingo

Um feriado ao domingo é coisa que não lembra a ninguém. Para tornar as coisas mais penosas o céu decidiu intervir na calma pacífica do dia. Parece que estava com excesso de água e decidiu abrir as comportas. Enxurradas misturadas com estados de acalmia marcam o feriado. Perante a intolerância celestial, recuso-me a sair de casa. Precisava de fazer uma visita e passar por um supermercado, mas tudo terá de ficar para outro dia. À minha volta estão quatro livros de poesia. Nenhum, português. Lembrei-me, ao escrever isto, aquilo que dizia um artigo de jornal. Portugal tem bons vinhos, excelentes, mas não tem os melhores vinhos do mundo. O mesmo se passa com a poesia. Há excelentes poetas, mas não temos, ao contrário do que algum nacionalismo patareco gosta de propalar, a melhor poesia do mundo. Aqui, contudo, há uma diferença grande relativamente aos vinhos. Estes podem comparar-se, mas a poesia não. Talvez seja possível dizer em Portugal existe a melhor poesia do mundo escrita em português europeu. Poemas são coisas intraduzíveis, embora não faltem traduções, as quais, como se sabe, não passam de traições. Traduttore, traditore, diz o provérbio italiano. Há pouco falei com o padre Lodo, Lodovico Settembrini. Não há feriado do 25 de Abril que não telefone aos amigos. Tornou-me a dizer que os Settembrini sempre comemoraram intensamente o 25 de Abril, o da queda de Mussolini. Depois acrescentou que, devido ao seu estado na Companhia, não devia ter estas paixões, mas são de família, o que se pode fazer contra o sangue, perguntou. Quando cheguei a Portugal, achei curioso haver também por cá um 25 de Abril. Adoptei-o como meu, disse-me. Apesar de padre e jesuíta, não deixo de ser um Settembrini, acrescentou. Tenho uma velha costela Iluminista herdada, juntamente com o nome, do meu avô. Fiquei satisfeito com o seu estado de espírito. Aquilo que lhe disse, porém, não o partilho aqui, pois o autor destes textos não me permite qualquer comentário político. Obediente que sou, obedeço.

sábado, 24 de abril de 2021

Uma narrativa médica

Dois temas absorvem os interesses das pessoas que chegam a certa idade. Previsões meteorológicas e narrativas médicas. Descobri que também eu cheguei a certa idade. Falo do tempo ou faço narrativas ligadas à saúde. O tempo não está grande coisa. Contribuirá para encher as barragens e deixar mais água nos solos. De resto, impede-me de ir fazer a minha caminhada por sertões e veredas, isto é, por becos e vielas desta pequena cidade, que seria uma vila interessante, caso não tivesse sido promovida à patente acima, como aconteceu à maior parte das vilas deste país. Quanto às narrativas médicas, o que posso dizer é que ontem me submeti a um exercício tecnológico interessante, o qual ia acompanhando em directo. Quando perdi numa sala de operações a vesícula, não assisti ao assalto. A quadrilha adormeceu-me e, aproveitando-se do meu estado, levou-me, através de uns buraquinhos discretos, uma coisa que não estava a ser nada indiscreta. Isto, porém, já foi há uns anos. Ontem foi muito mais emocionante. Depois de me raparem a pelagem nos braços e em sítios indiscritíveis, levaram-me para uma sala onde um bando, depois de me apalpar o braço, decidiu enfiar-me uma arma por uma artéria acima e andar ali como quem anda nos carros da feira, aqueles que eram para crianças e não os de choque. O bando era composto por dois médicos cardiologistas, um técnico cardiopneumologista, um técnico de radiologia, que fazia o papel de cameraman, um enfermeiro e uma estimável enfermeira, que eu convidaria para jantar caso fosse mais novo e descomprometido. Eu pensava que estava nas filmagens do 2001 Odisseia no Espaço. Os médicos divertiam-se a ver um filme, embora um deles estivesse a escarafunchar-me as artérias com a tal arma que, para disfarçar, davam o nome de cateter. O filme, apesar de ser feito no momento como se fosse uma improvisação num concerto de Jazz, parece que tinha enredo, pois os facultativos comentavam entre si as peripécias, o cameramen recebia instruções deles para colocar a câmara em certas posições, debitando os ângulos, o que me lembrou que a minha neta devia estar a ser massacrada pela avó com assuntos de geometria. A enfermeira perguntava-me se queria pipocas. Eu dizia que não, que estava tudo bem, eu nem estava a ver o filme. A verdade é que os médicos se apoderaram do monitor e, apesar de ter pago bilhete, nem uma sequência vi. Quando se cansaram da história, foram para uma sala ao lado bichanar. Depois de se terem informado dos resultados do futebol, das peripécias da política internacional e dos dramas de meia dúzia de famílias reais europeias, um deles veio ter comigo e disse-me bem, apesar da coisa não estar lá muito boa, há umas calcificações aqui e ali – eu pensei que se deviam à água daqui ser muito calcária – a coisa não está tão má quanto eu pensava. Não lhe vamos pôr nenhuma anilha, coisa a que ele deu o nome esotérico de stent. Temos de acertar a terapêutica medicamentosa em consulta. Daqui a três horas pode ir-se embora, mas já vou ao quarto falar consigo. E foi mesmo, eu saí e fiquei com assunto para hoje. De que falaria? Do tempo?

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Exsudados

Resultado: Negativo. Amostra: Exsudado Nasofaríngeo. Foi isto que li no relatório com o título Virologia SARS-CoV-2. Ontem foi o dia de obtenção da amostra, uma prova iniciática que inclui a introdução nas duas narinas de um objecto acutilante, embora rodeado, na extremidade, de algodão, a que dão o desconfortável nome de zaragatoa. Não contente com a penetração, a colectora de exsudados – mais parecia um astronauta a desembarcar na Lua – achou que se devia divertir e fazer aquela coisa rodar, rodar pelos canais que tinha invadido. Depois cansou-se, tirou a arma da minha narina e exclamou já está. Antes disso perguntou-se se era a primeira vez. Completamente, informei. Então vou fazê-lo chorar. Especializei-me em fazer chorar as pessoas, acrescentou. Eis uma mulher perigosa. Não hesita em partir corações, apenas com o fito de recolher uma matéria nojenta, a que, para disfarçar, se dá o nome de exsudado. O relatório tem uma outra particularidade. Tem uma versão em inglês. Result: Negative. Sample: Nasopharyngeal swab. Isto para o caso que eu queira apanhar um avião e pôr-me a milhas daqui. Era uma ideia, mas para onde iria eu?

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Metamorfoses

Hoje o dia tem estado, por aqui, particularmente tristonho. Vento de sudoeste e uma chuva moderada, mas inquieta, toldam o horizonte. A temperatura não passará dos 17o. Apesar da tristeza, as pessoas andam pela rua, erguem guarda-chuvas e vão com o passo lento, como se se quisessem demorar e, desse modo, tomar parte da melancolia que escorre de todo o lado. Os pássaros remeteram-se ao silêncio. Apenas as orquídeas, no seu friso, se entregam com volúpia à exuberância da beleza, mesmo as duas mais contidas, que apresentam uma floração quase rente à terra do vaso. No bar, do outro lado da avenida, há pessoas na esplanada. A saudade de estar em lugares assim deve ser de tal modo grande que afrontam com fervor, disfarçando incómodos, a indisposição do clima. Há dias encomendei em Inglaterra um livro de arte, mas já não me lembro qual, nem a razão por que o fiz. Deve-me ter parecido de grande importância e de suma urgência fazê-lo, agora já nem consigo ordenar as razões do acto. Há muito que descobri que a vida é isto. Aquilo que parece crucial numa dada hora, será visto na seguinte como despiciendo e esquecido na terceira. Ou então sou eu que fui criado com um carácter volúvel. Leio um email recebido e, de imediato, sinto uma grande saudade do tempo em que os homens eram tratados por senhor seguido do último apelido e não por senhor mais nome próprio. São coisas destas que mostram que o mundo se transforma. Chove bem neste momento, a inclinação da água confirma o vento de sudoeste.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Como no Monopólio

Estamos nisto há mais de um ano e não há prognóstico para o fim do estado em que nos encontramos. As coisas, porém, sofisticaram-se. Hoje fui à clínica de cardiologia levantar uma requisição para um exame. Não se entra, espera-se à porta, depois chega a menina, impecável na brancura da bata, saca de um termómetro-pistola e aponta-me à testa. Ia levantando as mãos, a que se seguiria o inevitável rendo-me. Contive-me. Convém parecer uma pessoa sensata, caso contrário não há quem queira tratar de mim. Lá me foi dado o papel e, curiosamente, não me tornaram a apontar nenhum objecto à cabeça. O mundo mudou. Antes da chegada do vírus não se apontava uma pistola-termómetro – ou será um termómetro-pistola? – à cabeça de qualquer incauto. O mundo, todavia, vai-se enchendo de cores, as pessoas entregam-se à existência com o sonho de voltar precisamente ao sítio em que estavam, como se tudo isto não fosse mais que uma tarde de adolescência passada a jogar monopólio. Uma poetisa americana escreve Mais tarde, volto a casa para apanhar lenha. Também ela sonhava voltar ao sítio de onde partira, talvez porque levasse vida de campo e neste tudo é regulado pelo ciclo das estações, pelo eterno retorno do mesmo.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Exílios

Não sei a razão, mas de súbito perpassou na minha consciência a palavra azáleas. Eu sei que são flores, mas não sei mais do que isso. Por que razão a palavra me assaltou, não o sei. De azáleas, o pensamento saltou para zínias, mas aqui tudo é mais fácil de explicar. Estas, como as azáleas, são flores e também ostentam no nome a letra zê. Associações, todos as compreendem, mas eclosões, aquelas coisas que nos chegam de lado nenhum, são um mistério. E se toda a realidade não passar de uma eclosão, sem que se possa ao certo saber de onde ela vem? Por vezes, ocorrem-me pensamentos destes e eu fico a olhá-los desapontado. Com tanta coisa interessante para ser pensada, entrego o meu tempo a coisa nenhuma. Talvez por ser segunda-feira, talvez por me ter desinteressado de todas as coisas que há por pensar, talvez por não me ocorrer mais nada, talvez por ser esta a minha maneira de me exilar do mundo e de mim mesmo.

domingo, 18 de abril de 2021

Sol de domingo

Há certa forma de o sol brilhar que só acontece ao domingo. A radiação veste-se com uma pacatez melancólica que os outros dias da semana, mesmo o sábado, rejeitam, pois são tomados pela darandina do trabalho ou da diversão. Talvez o facto de outrora o domingo ser um dia sagrado lhe tenha dado uma tonalidade que, mesmo num tempo em que a religião se tornou coisa privada, continua presente como uma mnemónica daquilo que já fomos. As coisas têm razões que a nossa razão não alcança. Aliás, a minha alcança pouca coisa. Tristan Tzara, o papa do dadaísmo, tem uma receita para fazer poemas que, na época, foi original. Pegar num jornal, escolher um artigo, cortar cada uma das suas palavras, colocá-las num saco e agitar com suavidade. A seguir retirar os recortes um a um e copiar as palavras pela ordem em que foram saindo do saco. Ficará um belo poema. Talvez devesse escrever assim estes textos, embora inovasse num aspecto. Em vez de um artigo, escolheria três. Um sobre futebol, outro sobre política e, por fim, um que relatasse um crime passional. Mesmo que não fizesse sentido, não teria menos do que aquilo que escrevo sem recurso a técnicas de vanguarda. Seria um dadaísta provinciano e com um século de atraso, mas sempre fui serôdio e com uma grande tendência ao paroquialismo. Esqueci-me há pouco de referir que o sol de domingo se apanhado com cabeça descoberta está longe de ser benéfico para a saúde mental. Não sei, porém, se Tzara apanhava sol na cabeça ao domingo ou ao sábado, que é o domingo dos judeus.

sábado, 17 de abril de 2021

Desamizades

Coube-me hoje a vez de ser vacinado. Sobre o assunto nem sei o que dizer. A picada da agulha não se sente – ou eu não a senti – e o tempo que demora o processo quase não dei por ele. A enfermeira disse já está. Está? Retorqui. Está, mesmo. Que me sentasse meia hora para ver o que acontecia. Foi isso que fiz. Enquanto esperava e via o que acontecia, um conhecido abordou-me e perguntou-me se eu o tinha desamigado no Facebook, pois não via as minhas coisas nem tinha acesso à minha página. Fiquei perplexo, não me ocorreu que esta interpretação podia acontecer. Disse-lhe que não, não sou pessoa para andar a desamigar outras, mas que tinha fechado a conta. Fechar uma conta no Facebook, pensei, equivale a desamigar toda a gente que tinha o estatuto de amigo. Parece uma devastação. Para mim foi como se tivesse deixado de ir a um certo restaurante. Cansei-me e, sem dar contas a ninguém, desalvorei. Imagino, agora, que deveria ter feito uma proclamação solene dizendo meus caros amigos, sois todos muito estimáveis, mas esta conta fechar-se-á dentro 99 horas 32 minutos e 56 segundos. Punha um desses relógios que fazem contagens e, passado o último segundo, a conta fechava-se com fogo-de-artifício. Não me ocorreu. A perfeição não é um dos meus dons. Será que irei ter reacções adversas à vacina? Já fui vacinado há duas horas, mas estas coisas podem ser como o meu entendimento, lentas. Está um sol vivo, quase radioso. Uma mosca poisa na parte exterior do vidro da janela. A vida não passa de uma colecção de pequenos nadas, por mais exuberantes que eles nos pareçam.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Trivialidades

Um acontecimento. Sentar-me numa esplanada e aí almoçar, num dia que anuncia a estiagem que há-de vir. Isto seria uma coisa trivial, mas desde há mais de um ano que o trivial passou a ser coisa de excepção. Foram estas palavras que ouvi, há pouco, ao padre Lodo. Já não falávamos há uns tempos, mas sabia-o desgostoso com as impossibilidades trazidas pelo maldito vírus. Quis saber quando iria a Lisboa, pois queria reunir o velho grupo. Para a próxima semana, espero ir, mas não estarei em situação de deambulações grupais nem visitas a restaurantes, mesmo com esplanada. Pareceu ficar decepcionado. Depois contou-me episódios deste tempo de confinamento, não sem que uma ironia fina se desprendesse das suas palavras. Comentou que noutros tempos uma pandemia haveria de fazer muitas conversões. Agora já não paga o investimento e isso prova que ela não foi enviada por Deus. É melhor procurarem o morcego. E vacinarem-se, acrescentou. Perguntei-lhe se já tinha sido inoculado, como não se cansam de repetir na comunicação social. Sim, sim. Foi com a da AstraZeneca. Não me preocupei nada, disse. Até porque já estou muito longe de ser novo, não sou mulher, nem tomei a pílula. E riu-se. O que é que a pílula tem a ver com assunto, perguntei. Não faço ideia, mas estão sempre a fazer comparações entre uma coisa e outra que pensei que talvez tivesse. Não são só os caminhos do Senhor que são insondáveis, também os dos homens e os dos vírus, sentenciou.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Um tempo tenso

Imaginei que não tinha tempo para vir aqui escrever. Afinal, o tempo apareceu trazido pela chuva da tarde. Sem poder ir fazer a minha caminhada, retido em casa em vez de andar a deambular por aí ao deus-dará, sobrou-me tempo que não me apetece ocupar com alguma coisa mais momentosa. Ainda saí, fiz umas centenas de metros, mas logo um aguaceiro se anunciou nos pingos grossos que decidiram cair sobre mim. Vai para casa, diziam. Obediente, eu vim. A tarde tem estado tensa. As aplicações meteorológicas anunciavam trovoadas, mas não trovejou nem relampejou. O que ficou foi uma ameaça a pairar sobre os corpos, uma tensão que se abate sobre os ombros e desliza pelo peito, o esboço de uma angústia que se infiltra no coração. Será a angústia para o jantar? Será a angústia do guarda-redes antes do penalty? Lembrei-me de que ainda hoje não fiz as palavras cruzadas do jornal. Nunca tive o hábito de as fazer, mas há umas semanas que comecei a dedicar-me ao cruzadismo. Gosto particularmente dos prefixos que exprimem a ideia dista ou daquilo, das interjeições, dos elementos de formação de palavras e, acima de tudo, dos regionalismos. Também não acho desagradáveis os símbolos químicos. Símbolo químico do Érbio ou do Rubídio. Talvez as palavras cruzadas sejam um símbolo do mundo, no qual se cruzam múltiplos universos formando universos possíveis que logo se esgotam. Como é visível, ando falhado de motivos que alcem à glória escriturária. Sempre me podia ocorrer um assunto metafísico, mas não ocorre. Pena que não tenha podido ir caminhar.

terça-feira, 13 de abril de 2021

O galope do tempo

Nunca tinha passado por aquela rua. É espantosa a minha falta de curiosidade. A cidade é pequena e vivo nela há muitas décadas. Apesar disso ainda há rua antigas pelas quais nunca passei. Na caminhada de hoje, descobri uma. Pequena, pouco mais que uma travessa, com moradias baixas. Fez-me pensar nas aldeias de antigamente. Pequenos jardins, nespereiras e limoeiros, um ar de tranquilidade, de um lugar onde as pessoas levam uma vida sensata, em que o dia e a noite se distinguem com clareza. Agora oiço o Quator pour la fin du Temps, de Messiaen. A sua tonalidade apocalíptica choca com a rememoração tranquila do passeio dado. O compositor escreveu a obra quando estava preso na Alemanha pelos nazis. Não tinha à disposição ruas pequenas com casas orladas por árvores de fruto, nem um sentimento de sensatez. Ali, onde o reinaria a maior ausência de sentido, só o fim do tempo poderia dançar na imaginação com uma promessa de libertação. Anoitece, o tempo galopa, galopa, mas talvez não tenha um fim que o liberte da sua correria desenfreada.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Sonatas dos Mistérios

Olho para uma das estantes do escritório e vejo uma pilha de CD fora do lugar. A entropia é isto, pensei. A desordem vai crescendo dentro do sistema. Em vez de ir arrumar os discos, coloquei um na aparelhagem e deixo-me estar a ouvi-lo enquanto permaneço sentado. Se o crescimento da desordem for musical, talvez não seja uma situação entrópica. A música tem um poder de salvação tal que até da doença da entropia ela é capaz de salvar uma casa. Escuto as Sonatas dos Mistérios, de von Biber. No século XVII, havia uma bela imaginação para colocar nomes, mesmo num sítio tão hirsuto como a Boémia. Chamava-se ele Heinrich Ignaz Franz von Biber. Um nome barroco, tal como a música. Também o dia está barroco, cheio de rococós. Isto não é verdade. Está um dia pesado, quase lutuoso. Na avenida, as pessoas passam, algumas abrem o guarda-chuva, outras afivelam máscaras, mas também há quem se sente na esplanada do bar e, enquanto bebe uma cerveja, pede aos céus para se conterem e não derramarem águas que lhes estrague o interlúdio. Estas sonatas de Biber acompanham os mistérios do rosário. São as gozosas, as dolorosas e as gloriosas. Deste modo, o Príncipe Arcebispo de Salzburgo podia acompanhar a oração desse mesmo rosário, de que era um adepto fervoroso, pareço estar a falar de futebol, com a nobreza e a elevação que seria a de um príncipe e de um arcebispo, em vez de misturar a sua voz à do rebanho. Hoje, e não fosse o caso da pandemia, talvez ele fosse mesmo ao estádio apoiar a equipa da cidade. Consta que o próprio Papa não se coíbe de partilhar com o mundo o clube do coração. O mundo está cheio de coisas insensatas, mas essa será a sua natureza. Refiro-me ao mundo. Como o bom julgador a si se julga, está tudo dito.

sábado, 10 de abril de 2021

O mistério de tudo

Um terço de Abril está cumprido e não têm faltado as águas mil. Há pouco fui espreitar a Sá Carneiro. Só para ver o movimento. Não o havia ou quase não se dava por ele. No seu friso, as orquídeas estão, todas elas, esplendorosas. Contaram-me, então, uma história de alguém que também tem orquídeas em casa, mas que estas nunca florescem. Elas não gostam da proprietária, expliquei. Talvez seja eu que não goste dela, embora não tenha qualquer motivo para isso, mas nunca se sabe aquilo que move as nossas palavras. Especulo, porém, que o problema dessas orquídeas reside na má relação com quem se apropriou delas. O dia tem estado triste por aqui. Há pouco liguei para uma amiga. De um momento para o outro, caiu-lhe o céu em cima e ela não é gaulesa. Foi diagnosticada uma doença daquelas muito desagradáveis ao marido. Ela procura encontrar dentro de si forças e esperança perante a ameaça. Vivemos todos nós como se a vida fosse ora um Natal, ora um Carnaval. Nunca nos lembramos da Sexta-Feira de Paixão e do calvário, a não ser quando nos batem à porta. Nunca se está preparado para aquilo que desejamos que nunca aconteça. O dia corre, sob bátegas de água, para a caverna da noite. Da janela do escritório, avisto uma paisagem de cinza recortada pelo anúncio luminoso de uma cadeia de hambúrgueres. Mais ao longe, as paredes outrora brancas do hospital continuam a cobrir-se de fungos, enquanto oiço o Cântico ao Sol, da russa Sofia Gubaidolina. São misteriosas as almas russas, assim como as orquídeas, assim como a vida.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Sou um taxinomista

Sentei-me pela primeira vez numa esplanada. Um acontecimento. Na verdade, um acontecimento infeliz, pois estava um vento demasiado fresco e a chuva ameaçava a cada instante. Penso no interior vazio do café, e desconfio que nos metemos todos num grande sarilho e não fazemos a mínima ideia de como sair dele ou se ele tem saída. O país televisivo passou a tarde muito entretido e agora deve andar por aí a alardear opiniões inflamadas, embora as opiniões não passem de paixões da alma. Num artigo de um site há conselhos para pessoas indecisas. Podia propor ter três passos ou sete, talvez nove para acabar com a indecisão, mas não. Terão de ser cinco passos. Pensei de imediato que a precisão é a alma do negócio. Todavia, ao olhar para eles pensei que qualquer indeciso, perante para cada um daqueles milagrosos passos, ficaria indeciso se o devia dar ou não. Por isso é que é indeciso. Observo o que escrevi e dou com um erro. Nem digo qual para não ferir susceptibilidades, mas não era ortográfico. Perante os erros, vivo como como o guarda-redes antes do penalty. Com angústia pela possibilidade de deixar passar uma palavra mal escrita. Como dar erros é inevitável, substituo a angústia do erro pela sua classificação, tentando descobrir-lhe a origem. Tenho uma alma de taxinomista. A maioria dos erros são compreensíveis, bastando olhar para o teclado. Outros devem-se a certos cruzamentos das linhas cerebrais. Outros há, porém, que possuem motivação secreta. Que força estranha e inimiga me terá levado àquele erro, pergunto-me, mas não descubro. Esses são os piores. Falar sobre erros ao anoitecer de sexta-feira é tontice, mas a generalidade das coisas que me ocorrem são tontices, portanto nem estranho.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

O retorno das águas

Voltou a chuva. Talvez as potências que governam o clima tenham decidido que chegara a altura de cumprir o ditado Abril, águas mil. Os provérbios populares fizeram-se para que sejam tomados a sério. Neste momento, cai uma bátega enorme, a água desce furiosa de um céu de chumbo. Olho para o pequeno bosque da escola ao lado e parece que uma cortina se intromete, tornando os contornos das árvores incertos. Das esplanadas da avenida, os ocupantes tiveram de fugir e que passam ergue, como um estandarte, chapéus de chuva. Ouviram-se gritos de excitação, mas agora tudo está silencioso, para que eu possa escutar o ruído das águas ao despenharem-se sobre o alcatrão e as pedras do passeio. A caminhada que tinha pensado fazer foi adiada para um tempo em que o tempo tenha melhor cara. A chuva abrandou e os campos de jogos estão cobertos por um fino lençol líquido. Reverberam batidos pela ténue luz da tarde. Havia uma tensão no ar, sentia-a no corpo e na consciência, mas agora dissipou-se. Pára um carro, de dentro dele sai uma mulher sem idade, abre o guarda-chuva e dirige-se para a porta de um prédio. Na secretária repousam os mil afazeres e eu repouso com eles. Oiço uma porta ranger e passos pela casa. Na rua, voltaram as vozes. Trazem nelas o ferrete da adolescência. Desequilibradas, perdidas entre guinchos e grunhidos. É a isto que se chama vida. Podia ser pior.

P. S. Este blogue teve durante dezasseis meses um ritmo diário. A partir de agora terá uma actualização mais irregular. Mais do que de coisas certas, a existência é feita de irregularidades.

domingo, 4 de abril de 2021

Mãe e mãiiii

No parque infantil, as crianças continuam a correr e a gritar. Uma chama pela mãe, prolongando desmesuradamente um i final, como se uma mãe fosse, de facto, uma mãi e neste i estivesse contido todo o universo. Talvez seja assim. Para os filhos, as mães começam por ser o universo, todo o universo. Crescer significa fazer encolher a dimensão de universo que é uma mãe. Enquanto os filhos crescem, as mães diminuem. Passam a galáxia quando os filhos chegam à escola, depois a sistema solar, de seguida a planeta e, conforme os filhos envelhecem, as mães vão-se tornando mais reais, até atingirem a dimensão que é a delas, a de serem mães. Os pais são construções das mães e, para os filhos, são sempre mais reais, pois não foram nunca o universo, mas o símbolo da realidade. Temo que estas opiniões que me ocorreram agora possam ser mal interpretados e sobre elas seja lançado qualquer anátema. São apenas opiniões que me ocorreram. Foram estas, poderiam ter sido outras, mesmo contraditórias, mas a verdade é que eu ouvi um i longuíssimo preso à palavra mãe. Seja como for, a família recolheu-se, pois não tarda é hora de almoço, ainda por cima é domingo de Páscoa e as pessoas, mesmo que não saibam o que significa a Páscoa, gostam do almoço do domingo de Páscoa. Sobreveio um grande silêncio. Um sinal para me calar.

sábado, 3 de abril de 2021

Tempo de amêndoas

Das várias perspectivas sobre a arte, agrada-me aquelas que estabelecem analogia entre o mundo da arte e o universo. Estão ambos em expansão. Isto permite pensar que não existe uma definição de arte, uma definição onde se captaria a essência da arte, uma característica que estaria presente em todos os objectos artísticos e só neles. Não há, e isso deixa perceber que sob a ideia de arte se esconda um universo em expansão, a que se vão juntando novos e novos objectos. Isto há-de contrariar aqueles que pensam saber o que é a arte e estão sempre prontos a lançar anátemas sobre aquilo de que não gostam ou não compreendem. Seja como for, hoje é Sábado de Aleluia e talvez não seja o dia mais indicado para pensamentos destes. Segunda-feira, intuo-o, serão bem mais justificados. In illo tempore, quero dizer no tempo em que a existência de pandemias era uma coisa longínqua, um conhecimento abstracto e por ouvir dizer, a casa estaria cheia. Filhos e netos trariam uma luz suplementar a quem aqui vive. Este ano, mais uma vez, cada um estará no seu lugar, cumprindo instruções das autoridades e esperando que tudo isto se possa mandar para trás das costas. Enquanto o dia desce o declive em direcção ao oceano da noite, oiço a cantora de jazz Maria Viana, filha de um conhecido artista de revista – e pintor – José Viana. Nunca o vi actuar, pois a revista sempre me foi uma coisa estranha, mas nunca esqueci uma cantiga, Zé Cacilheiro, por ele cantada e que havia num LP lá por casa. Talvez a memória tivesse ficado presa aos versos E navegando / A idade foi chegando / O cabelo branqueando / Mas o Tejo é sempre novo. E uma súbita saudade de ver o Tejo acometeu-me, o pior é que é proibido circular entre concelhos e o rio da minha terra não é o Tejo, mas apenas um pobre afluente do rio que vindo de Espanha vai morrer ali mesmo para os lados de Lisboa. O melhor é ir comer uma amêndoa. De chocolate, que é mais metafísica das amêndoas.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Proibido proibir

Talvez ainda hoje seja assim, pelo menos em certos círculos. A Sexta-Feira de Paixão estava marcada por um conjunto de proibições. Lembro-me que, na infância, a própria televisão suspendia o seu ruído diário, um ruído inocente, diga-se, e apenas transmitia música clássica. Não sei se a finalidade era marcar o luto religioso com a grande música, ou se se pretendia ligar esta, aos olhos das pessoas, a momentos lutuosos. Quem em casa recebia uma educação religiosa, talvez a maioria das pessoas, era iniciado nesse jogo de permissões e proibições, que pautavam a vida. Hoje em dia tudo isso parece abolido. Suspeito que se deverá, a abolição, ao princípio utilitarista da felicidade geral. As proibições tornam as pessoas infelizes e vivemos numa época em que cada um não aspira a mais do que participar nessa exigência da felicidade. Não há coisa mais espantosa do que a reivindicação do direito a ser feliz, como se isso pudesse ser garantido por algum poder ou por alguma instância, como se fosse possível recorrer a um tribunal para reivindicar o preenchimento do direito sonegado. Admitindo, com certo filósofo, que vivemos no melhor dos mundos possíveis, já se constatou que dentro desse melhor cabem infelicidades sem fim, que não resultam de nada a não ser do acaso, e não há direito que lhes valha. A prosa está demasiado meditabunda. Talvez seja o cinzento do dia que inclina o espírito para este tipo de cogitações. Há quem jure que o destino de cada um é regulado pelos astros. Em vez da astrologia, proponho a climatologia. As conjugações climáticas trazem-nos dores e o alívio delas, flectem o espírito às trevas ou deixam-no galhofeiro, como um aldeão antigo a caminho da romaria. Oiço o ranger das roldanas das cadeiras de baloiço no parque infantil da praceta. Constou-me que a sua frequência estava proibida, mas isso tornaria as crianças e os pais infelizes. No fundo, somos todos herdeiros do proibido proibir. É o que me ocorre, nesta sexta-feira nebulosa.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Primeiro de Abril

Minto se digo que minto. Este tipo de charadas é o mais adequado ao primeiro de Abril. Tentei perceber o motivo por que a data se tornou o dia das mentiras. Constou-me que terá sido na transição do calendário juliano para o gregoriano. Em 1564, parece que foi ontem, Carlos IX de França determinou que o início do ano novo passaria a ser 1 de Janeiro e não 1 de Abril. Como é hábito entre os franceses, houve resistência à despótica e absolutista decisão. Algumas pessoas continuaram a comemorar o ano novo a 1 de Abril. Gente de boa disposição e pertencente ao partido de 1 de Janeiro, começou a pregar umas partidas – plaisanteries – aos resistentes à mudança. Presentes estranhos e convites para festas que não existiam. Como se vê, o mundo parecia naqueles tempos inocente. Uma mentira célebre em Portugal ocorreu, segundo apurei, em 1933. O vespertino Diário de Lisboa, de que cheguei a ser leitor, apresentou uma reportagem do duelo, ocorrido nesse dia 1 de Abril na Tapada da Ajuda, entre os poetas Afonso Lopes Vieira e Alfredo Pimenta. Lavavam a honra devido a uma torrencial polémica em torno da lírica camoniana. O pobre Pimenta foi tocado no antebraço direito, onde se inscreveu uma incisão de três centímetros geradora de abundante hemorragia. O duelo, que nunca começara, terminou ali, em bem, com a honra de ambos lavada em sangue. A mentira foi bastante convincente, pois não foram poucos os que fizeram sentir ao Pimenta a sua preocupação com o antebraço atingido, não fora ele, o poeta, ficar inválido e deixar de escrever. De resto, chegámos a Abril, águas mil.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Astenia primaveril

Aquilo que trouxe Março prepara-se para o levar. Não sei o que dizer deste mês, agora que tudo está jogado e seria a hora de um balanço. Ofereceu uma nova estação e com ela despejou sobre mim uma fulgurante astenia de Primavera. Já a tarde ia avançada quando fui fazer uma caminhada. Ao sair, espreitei a caixa do correio. Lá estava o relatório do exame médico, cujos resultados esperava há dias. Contive a curiosidade e disse-me que havia tempo. Lá fui andar por becos e ruas, vielas e largos, entregue aos próprios passos. Ao chegar, dirigi-me à caixa do correio, enfio a chave na fechadura, dou o impulso habitual à mão e a chave parte-se. Fruto da astenia, não amaldiçoei nem a chave, nem o acidente. Lá fui buscar umas ferramentas e, com sorte, consegui apanhar o envelope. Abro-o, retiro o selo que oculta o relatório. Ponho-me a ler e, para dizer a verdade, fiquei na mesma. Uma linguagem esotérica, tenho a vaga impressão que já tive melhores dias, mas nem sequer vou entregar-me a uma hermenêutica do texto mediada pela internet. Amanhã marco uma consulta e o cardiologista que interprete e me conte o que se passa e o que me espera. É para isso que é pago. Nestas coisas há que ser pragmático e deixar que cada um faça o seu trabalho. Para dizer a verdade, nem sei se Março acaba bem ou mal, ou se nem uma coisa nem outra. O pior é a astenia primaveril.

terça-feira, 30 de março de 2021

Questões capilares

A arte de bem conservar os seus cabelos em tempo de pandemia. Oiço, sem o querer, uma conversa sobre cabelos. Há teorias em disputa sobre o que os estraga e os protege, todo um manancial de informações que davam para escrever um tratado. Apesar do êxtase, afasto-me rapidamente, cansado da lição, e percorro algumas ruas conhecidas. Não tenho destino onde ir, mas isso já não é novidade. Ando por aí aos tombos, tenho vontade de dizer, mas temo ser mal interpretado. Agora que rememoro essa parte da manhã, estou sentado a escrever. Lá fora, um carro, movido pela urgência de se escapulir do lugar onde se encontra, desata às buzinadelas. Um outro tapa-lhe a saída e não há no mundo quem suporte que lhe sejam tapadas as saídas. Se carros e pessoas soubessem a verdade, logo se acalmariam, pois, por mais saídas que encontrem, permanecerão no mesmo lugar. Este é um sítio esférico, fechado ao exterior, onde não existem portões, portas ou janelas, nem mesmo aquelas gateiras que antigamente existiam nas casas das aldeias, por onde entrava e saía o gato da família. Na verdade, não vale a pena buzinar, pois, por mais que se ande, fica-se onde se está. A rua foi invadida por uma luz difusa e um sentimento de irrealidade apodera-se de quem para ela olha. Não há vento e um pássaro voa entre tílias. Amanhã o mês acaba e talvez deva ir cortar o cabelo.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Fora dos eixos

De súbito, olho pela janela e a luz que vejo mais parece anunciar a chegada de Março do que a sua iminente partida. Já de manhã, ao sair de casa, tive esta sensação de desacordo entre a luz que caía e o curso do calendário. O mundo está cheio de desconformidades, as coisas estão fora dos eixos como se lamentava certa personagem teatral. O enigma é que elas nunca estiveram nos eixos e sempre rolaram tempo fora. Há dias, num livro de um psicólogo cognitivo americano na moda, lia uma série de lamentações sobre a péssima qualidade de escrita das novas gerações. O caso, porém, é que essas lamentações se referiam a diferentes tempos da vida americana, desde os dias de hoje até aos da fundação do país. E ele, talvez entusiasmado, citou uma lamentação idêntica, em Inglaterra, pouco tempo depois dos livros passarem a ser impressos. Por fim, concluiu com uma referência às placas de argila sumérias onde tal lamentação já se encontrava com mais ou menos clareza. Dito isto, descobrimos que o mundo não precisa de estar nos eixos para rolar. Acudiu-me uma possibilidade tenebrosa. Se alguma vez os homens pusessem o mundo nos eixos, ele deixaria de rolar, todos nós nos transformávamos em estátuas, provavelmente de sal, e nenhuma novidade, nem vida nova haveria de surgir sobre a Terra. A conclusão desta pobre meditação de um meditante cansado é de louvor à desconformidade, a essa realidade eternamente fora dos eixos. Assim seja. Agora vou vídeo-reunir.

domingo, 28 de março de 2021

Mudanças de hora

Quando olhei para o mostrador do telemóvel, ao acordar, achei que tinha dormido em excesso. Depois consultei o relógio e descobri que havia uma discrepância de sessenta minutos. Afinal, tinha dormido um pouco menos, mas o relógio estava irrevogavelmente atrasado. Atrasado e fora de moda, pois não se auto-actualiza como os computadores, tablets e telemóveis. Começa a irritar-me esta história da mudança da hora. Uma para a frente, uma para trás, uma para a frente, uma para trás. Que falta de constância, que volubilidade. O relógio em casa da minha mãe, esse é muito fiel ao seu fluir sensato. Metade do ano está certo, a outra metade, adiantado uma hora. O dia ficou estragado nem sei bem porquê. Acabo de acertar o relógio. Não tarda e serão cinco da tarde, como no poema de Lorca. O almoço de tardio passou a ultra tardio. Uma hora na vida tem mesmo excessiva importância. Recordo-me de um primeiro-ministro ter decidido que os nossos relógios se deviam acertar pelo meridiano de Berlim e não pelo tradicional Tempo Médio de Greenwich, como se ele pudesse decidir, pelo poder que lhe fora conferido para governar, o lugar geográfico do país. Agora nada de meridianos ingleses, nós somos todos da Europa central, mesmo que vivamos na periferia, quero eu dizer no subúrbio da Europa. Portugal é um país maravilhoso, mesmo se há gente com ideias destas ou como o outro que transformou o árabe Algarve no britânico Allgarve. Ou, ainda pior, aqueles que acharam que dinamitar as consoantes mudas das nossas palavras era um progresso em direcção sabe-se lá a quê. É preciso muita paciência e eu estou proibido pelo autor de derramar sobre assuntos políticos.

sábado, 27 de março de 2021

À superfície

Ontem fiz uma boa caminhada. É um sintoma, pensei, de que vou retomar a prática. Agendei de imediato na memória repeti-la hoje. Não me esqueci do agendamento mnemónico, mas o projecto gorou-se. Deixei passar a hora certa, pois todas as coisas têm a sua hora, e agora, nesta altura do ano, é demasiado tarde, pois o ar fica frio, há um vento desagradável de Noroeste, que se entranha e acaba por fazer a garganta ressentir-se. Fui à farmácia comprar um sucedâneo da vesícula, uns comprimidos que imitam aquilo que ela era devia fazer, mas por se ter perdido numa sala de operações, não pode fazer. Imagino que apenas dará conta das actividades mais superficiais, mas essas bastam-me. Aliás, o melhor é uma pessoa deixar-se de profundidades, quanto mais à superfície, melhor. Quando se é novo e pretensioso, julgamos que só as coisas profundas interessam. Com o passar dos anos, vai-se mudando de ponto de vista. O mais interessante está à superfície. Não há como uma bela aparência. Quanto ao que ela esconde, o mais sensato é não querer saber. Há ainda uma luz crepuscular. Amanhã a hora mudará. Dizemos estas coisas, como se existissem horas para mudar. A vida não passa de um conjunto de ficções de que nos convencemos que são a realidade.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Cabalas e citações

De noite, o parque infantil recebe a luz de um candeeiro, daqueles que se tornaram comuns na iluminação pública um pouco por todo o lado, um poste de aço terminado por um globo de um branco encardido, e de onde se solta uma luz amarelada que espalha pelo parque uma atmosfera fúnebre. Ao olhar cá de cima descubro uma amolgadura no globo, como se alguém, talvez por falta de ocupação, tivesse querido emular o ovo de Colombo. O que torna o mundo digno de interesse são estas pequenas imperfeições, uma forma de resistência da realidade aos instintos perfeccionistas da espécie humana. Onde se queria a pura esfericidade, um corpo perfeito no seu ser rotundo, inscreveu-se uma depressão. Assuntos profissionais ocuparam-me com uma chamada telefónica de uma hora. Devia ter posto o telemóvel em alta-voz, mas esqueci-me. Agora tenha a orelha a arder e o ouvido exausto. Talvez por causa disso bebo um copo de água, dizem que faz bem, que hidrata o corpo e que devemos beber um número significativo deles durante o dia. Suspeito que serão sete os necessários, pois é um número cabalístico e a vida não passa de uma cabala. Devo evitar estas considerações, pois acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Esta é uma famosa citação. Também poderia dizer, e ainda com maior exactidão, bem-aventurado silêncio. Feliz o homem que nada sabe e nada quer. E esta é a segunda citação, embora não do mesmo autor. Na verdade, não há discurso, oral ou escrito, que não seja citação, mas também sobre isto o melhor é silenciar-me.

quinta-feira, 25 de março de 2021

À varanda

Almocei tarde, pois passava do meio-dia quando fui levantar à FNAC dois livros que tinham sido encomendados para a minha neta mais velha. Aproveitei e comprei um livro de Louise Glück, a Nobel da Literatura de 2020. Leio o primeiro poema e discordo de imediato da tradução de um verso, não porque esteja mal traduzido, mas porque lhe rouba o pathos poético. A palavra inglesa pode ser traduzida por um verbo ou por um substantivo. O tradutor escolheu o substantivo, eu traduziria com o verbo. O substantivo, naquele verso, fixa a realidade, o verbo põe-na em movimento. A poesia despetrifica o real, mostrara-o no seu eterno fluir. Umas vezes fá-lo com um verbo, outras com um substantivo. Depois da discordância, fui à varanda fumar meio cigarro, enquanto bebia café. Na praceta, um casal apanhava sol sentado numas escadas que esboçam um anfiteatro que nunca virá à existência. O cabelo dela refulgia. A uns dez metros, dois homens conversavam sentados no murete de cimento de um dos canteiros. Do outro lado, uma rapariga, sentada numas escadas que levam a uma empresa de serviços, apanhava sol e escrevia num computador. Tudo isto acontecia sob o véu do ruído que se desprendia da praceta contígua, onde um homem com uma máquina de cortar ervas as ia decapitando em sossego. Olho, agora, para a Sá Carneiro e vejo outro homem debruçado sobre o capot de um carro. Rubrica folhas brancas, talvez uma escritura. Aposto que o faz no canto superior direito. O documento é enorme, pois ele está constantemente a voltar as folhas e a rubricá-las. Temo que se canse ou que passe alguma sem nela deixar o sinal da sua vigilante anuência. Por detrás dele passa uma criança de bicicleta, seguida por uma mulher. Será a avó, pensei. Há poucos carros em movimento e o dia tem um ar quaresmal. Da varanda vejo tudo o que há para ver no mundo, pois este não é mais do que aquilo que se avista de uma varanda, da minha varanda.  Leio um novo poema, Primavera, e torno a discordar. A poetisa escreve the warm air fills with bird calls. O tradutor verte por o ar morno enche-se do chilrear dos pássaros. Agora, a minha discordância tem sinal contrário. Onde é usado o verbo, chilrear, eu usaria o substantivo, chamamentos, o ar morno enche-se com os chamamentos dos pássaros. Não, os pássaros meus vizinhos não chilreiam. Eles fazem chamamentos, convocações. Por vezes, intimações. É esse poder de convocação existente na linguagem dos pássaros que Louise Glück dá a ver. Digo eu, que talvez não veja muito bem.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Das coisas ambíguas

Uma das coisas mais extraordinárias que as línguas possuem é a ambiguidade. Ocorreu-me isto quando, ao abrir um livro para consultar um certo assunto, me deparei com a seguinte interrogação: Para que serve argumentar? Pensa-se, de imediato, que a frase interrogativa abrirá o caminho para uma explicação sobre os serviços que são prestados pela arte de argumentar. O que é o caso. No entanto, essa mesma interrogação pode ser usada como uma exclamação que nega qualquer préstimo ao acto argumentativo. Usar a linguagem é entrar num território minado. Rio sempre que vejo certas personagens a vituperar o uso comum da linguagem por falta de precisão, por ambiguidade e por mais alguns crimes do género. Sonham com uma linguagem completamente unívoca e transparente. Não compreendem que essa ambiguidade estrutural não se deve ao desleixo ou à incompetência dos falantes, mas que a própria linguagem faz parte da imprecisão e ambiguidade gerais que compõem a realidade. É uma emanação desta. Ter-me dado para falar disto tem, desconfio, uma dupla explicação: o cansaço e a falta de assunto. Olho pela janela e as paredes encardidas do hospital reverberam fustigadas pelo brilho de uma intensa luz solar. Hoje de manhã perdi alguns minutos a contemplar o friso das orquídeas. Estão todas floridas, até a mais débil, que anda há anos a prometer morrer, está belíssima. Também nelas há uma ambiguidade, como se a existência fosse algo que não estivesse previamente determinado, mas fosse uma indeterminação que aparenta, aqui e ali, precisão, apenas para tranquilizar algumas almas infelizes pela complexidade do mundo. Para o que me haveria de dar hoje. Metafísica à hora do lanche é coisa que não se aconselha a ninguém. Além disso, não há mais metafísica no mundo do que comer chocolates.

terça-feira, 23 de março de 2021

Um bom conselho

Numa das estantes perto da secretária está o romance Adoecer, de Hélia Correia. Espera vez. Os extractos de críticas presentes na contracapa denunciam que se está perante uma segunda edição. Fui verificar. Não é o que se passa. É uma primeira edição, mas numa primeira reimpressão. Todos eles são encomiásticos e nada me leva a crer que haja ali algum exagero. O livro é de 2010, ainda não havia pandemia, e isso deve sossegar o leitor. No entanto, o título, vindo do passado, parece mesmo propositado. Na imprensa, a qual já pouco impressa é, as coisas obscurecem-se. Países a confinar de novo, outros em catástrofe contínua. Entre os hosanas à vacinação e a realidade da libertação do estado patológico em que se caiu há uma grande diferença. Afigura-se existir um braço de ferro entre o vírus e a humanidade. Esta teima em voltar ao ponto em que se estava. O vírus, todavia, parece não estar pelos ajustes. É um agente de mudança. Quer-nos a todos mais afastados, mais protegidos, mais comedidos. A questão que me surgiu ao ler o título do romance de Hélia Correia foi se o vírus nos tornou doentes ou se nós já estávamos doentes e ele veio chamar a atenção para o facto. Não tinha pensado em nada disto. Ocorreu-me agora, talvez devido à inclinação do sol. Na página 120 da primeira reimpressão, a autora escreve: O Doutor Hailes recomendou muito repouso. Era o que sempre recomendava quando não se entendia com a doença. Já há muito que não via conselho tão sensato. Alguém se entende com a doença? Parece que não. Então que se repouse muito e de preferência afastados uns dos outros, não vá o vírus tecê-las.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Uma colecção de hábitos

Os dias passam-se numa sucessão pavorosa de pequenos nadas, que, ao avolumarem-se, tomam o dia e acabam por lhe retirar sentido, se ele tivesse algum. Talvez a vida seja uma sucessão de irracionalidades, que de tão habituados a elas nem as vemos como tal. Aquilo a que chamamos razão não, passaria, de um longo hábito, de uma colecção de hábitos que rapta o que sucede da sua inquietante estranheza e nos permite dormir descansados. O pior é quando as pessoas envelhecem e os nexos criados pelo costume se começam a desfazer. Então, os tempos irrompem fora da ordem corrente e o caos instala-se. O que acontece agora já nem se distingue do que sucedeu há oitenta anos, saltando-se no tempo com muita mais vigor de que se salta no espaço. Parece mesmo haver uma estranha e negativa correlação entre um corpo cada vez menos capaz de saltitar e uma mente cada vez mais saltarela. Há em tudo isto alguma coisa de grotesco, traços demasiado exagerados que fazem lembrar certas obras expressionistas. A hora crepuscular aproxima-se, o dia acerta as contas na portagem da auto-estrada que o levará para a noite. É o que me apraz dizer neste dia em que faz anos que morreu Johann Wolfgang Goethe e que foi extinta a Ordem dos Templários. Estas informações são irrelevantes, mas o que o não será nesta vida?

domingo, 21 de março de 2021

Carpe diem

Ontem começou a Primavera. Só me lembrei disso já a hora equinocial tinha passado há muito. A vida tem destas coisas. Perde-se a hora e a perda torna-se irreversível. Nunca mais haverá equinócio da Primavera de 2021. Não há dias mais igualitários que os equinociais. Duas vezes em cada ano, noite e dia têm a mesma duração. Tirando estes momentos simbólicos, reina sobre a Terra a mais desenfreada desigualdade, embora essa desigualdade esteja cheia de remorsos. Durante uma época são os dias maiores que as noites, na outra acontece o contrário. Em tudo isto se poderá encontrar lições da mais profunda política. Em primeiro lugar, a igualdade pura é meramente simbólica e tem dias precisos para ser festejada. Nos outros, é um conflito sem fim entre as pretensões igualitárias e inigualitárias do cosmos. Os homens não inventam nada. Umas vezes descobrem as coisas na natureza e tentam imitá-las, outras são levados por elas sem sequer terem consciência de onde vêm os impulsos que os dirigem. Neste diário, nunca tinha escrito nada de tão político quanto este texto. O autor não me permite falar de política, remete-se para o papel de mero narrador destituído de convicções e de paixões. Se se tratar, porém, de uma política cósmica ser-me-á permitido, uma vez por outra, derramar sobre o assunto a minha fera ignorância. Foi o que aconteceu hoje. Haverá quem diga que o escrito se deveu à falta de assunto. Como narrador, não tenho poderes para contrariar a suposição. Hoje é domingo, o penúltimo de Março. Há que vivê-lo antes que passe. Se fosse uma pessoa culta diria neste instante: Carpe diem! O ponto de exclamação serve para transformar a sugestão numa obrigação, uma espécie de imperativo categórico kantiano. Depois, diria todo o verso de Horácio: carpe diem quam minimum credula postero, o que quererá dizer aproveita o dia e confia pouco no amanhã. Os antigos tinham a sabedoria que os modernos perderam. Estes descobriram no amanhã o lugar exaltante da felicidade. Aqueles viam o que sempre lá esteve e o que sempre lá estará, a morte. Por isso, atrevo-me a dizer que a nossa magnífica civilização é niilista. Fez do desaparecimento um lugar de culto e a promessa de uma festa sem fim. O melhor é acabar o texto aqui. Está enorme e já chega de trivialidades.

sábado, 20 de março de 2021

Das coisas abstrusas

Um sábado em que toda a manhã foi dedicada a coisas abstrusas que fazem parte da realidade em que, por vezes, sou obrigado a existir. Não é que goste particularmente da palavra abstruso. Não é esteticamente agradável. No entanto, sempre senti uma certa afinidade com ela. Como se pode ver num dicionário, vem de abstrūsu, particípio passado do verbo latino abstrudĕre, que significa ocultar. Abstruso não significa, todavia, oculto, mas obscuro, impenetrável, desordenado. Dito de modo mais directo, dediquei-me ao caos, esse estado de coisas que se suspeita estar mesmo à porta do cosmos. Mal uma pessoa se descuida, e tudo se torna abstruso, um caos. As palavras contam histórias. Por vezes, nos meus devaneios, imagino que, sob a capa da sua utilidade comunicativa, elas escondem verdadeiros romances, que literatura alguma haverá de igualar. Com ser de palavras que sou, sempre me pareceu de uma estultícia inominável o dito uma imagem vale mil palavras. Quem se dedica a dizer essas coisas não sabe que sob o som de uma palavra se escondem não mil, mas milhões de imagens, que, com um simples sopro vocálico, são atiradas ao vento, semeadas pela Terra e por aí ficam a germinar, enquanto uma imagem morre no momento da sua eclosão. São quase sete da noite, o crepúsculo invadiu a cidade, as crianças, que ainda não pensam em palavras, gritam no parque e eu continuo preso a coisas abstrusas.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Mistérios do mundo

Qual é o exacto momento, o exacto minuto ou segundo, em que uma pessoa ascende à categoria de velha ou de adulta? Qual é número preciso de grãos de areia que constituem um monte de areia, para que a subtracção de um deles faça com que um monte deixe de ser aquilo que é? Estas coisas têm preocupado os homens desde há muito e, ainda hoje, há pessoas que lhe consagram a vida. Percebo-as muito bem, pois também me dedico a coisas sem sentido. Caso não tivéssemos as palavras monte e velho, esses magnos problemas que dobram a cerviz da humanidade não se colocariam. Aliás, parte dos problemas que nos afligem não existiria se fôssemos privados de linguagem. Por exemplo, eu não existiria. Um narrador é um mero ser de linguagem, uma entidade feita de palavras que se combinam mais ou menos ao deus-dará. O parque infantil já foi reaberto. Famílias trazem os filhos para que estes possam gritar enquanto escorregam e se baloiçam. Um dia, serão eles que levarão os filhos a um parque infantil, para que eles gritem, enquanto escorregam e se baloicem. Também eu já fui levado ao parque infantil, para gritar enquanto escorregava e me baloiçava. Qual é o exacto instante em que alguém deixa de ser criança com idade para ser levado a um parque infantil? Um dia antes ainda podia ir? O mundo está cheio de mistérios.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Conversas de nada

Quando dei que hoje ainda não tinha preenchido esta espécie de diário, já passavam das oito da noite. Nunca tive tentações diarísticas. Na verdade, não se passa nada comigo que mereça ser registado, mas um acaso levou-me a alimentar este blogue. Registo aqui não o que me sucede, mas o que me passa pela cabeça. Há uns que nascem para Ulisses e Aquiles, outros para santos ou políticos, outros para escritores ou pintores. Eu não nasci para nada, e é de nada que eu falo. Como se manifesta para mim, perguntará o eventual leitor, o nada. O nada não se manifesta, mas aquilo que me passa pela cabeça é um sintoma desse nada. São coisas desconexas, como este texto, ou as declarações que faço dizendo que vou fumar um cigarro. Irei? Se a realidade fosse a luz, o nada seria a noite, mas talvez a realidade não seja apenas a luz e, assim, a noite não será nada, mas alguma coisa. Quando estou cansado, as sinapses começam a ocorrer em ritmo perturbado, como se houvesse um desvario neuronal. Isto, caso me tenham sido concedidos neurónios, coisa que, para ser sincero, duvido bastante. Se me deram, foram uns neurónios velhos e defeituosos. Bem chega de falar de nada. A noite vista da janela do escritório está magnífica, apesar das luzes e do enorme anúncio a uma cadeia multinacional de hambúrgueres que se veio instalar diante da minha janela, ainda que a algumas centenas de metros.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Das coisas vagas

Diante de mim tenho um livro com o estranho título de Vagueness. Os que se preocupam com o assunto em Portugal traduzem o conceito por vagueza. É uma palavra horrível. Além do seu desprimor estético, ela é uma palavra vaga, vaguíssima. Diria mesmo que não há coisa mais vaga do que a palavra vagueza. Um dos sintomas da minha humanidade é ter embirrações com palavras. Olho para uma palavra e, sem saber bem porquê, começo a embirrar com ela. Por exemplo, a palavrava empreendedorismo gera em mim ataques de urticária. Não é o que se passa com vagueza. Nesta irrita-me a sonoridade, o facto de rimar com magreza. Seja como for, eu sou uma pessoa cordata e não tenho por hábito embirrar com pessoas. O que também não será uma virtude, pois, como ontem me disse a minha filha, se alguém se mandasse de um sexto andar e caísse ao meu lado, eu não daria por isso ou, caso desse, não me meteria na vida da pessoa. É agora que deve entrar a expressão popular andou um pai a criar uma filha para ouvir coisas destas. Os pais nunca imaginam o que vai na cabeça dos filhos. Não tarda, terei de entrar dentro da realidade. Espera-me uma maratona de coisas que não me interessam para nada, que ainda são mais vagas do que a própria vagueza, a que terei de assistir por videoconferência, uma maldição inventada por inspiração do maligno. Antes queria dedicar esse tempo a estudar o que diz o livro cujo título tem o estranho nome de Vagueness. Assim fosse.

terça-feira, 16 de março de 2021

O grito do Ipiranga

Oiço o sexto livro de Madrigais de Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa. Melhor, os madrigais do sexto livro. O compositor destas extraordinárias obras era, literalmente, um assassino. A distância entre o sublime e o macabro é muito mais curta do que pensamos. Nem se pode dizer que tenha sido movido pela paixão amorosa, mas apenas pela fria fogueira da honra. Pode ser que, penso-o caridosamente, naqueles dias, a honra ainda aquecesse os corações. Consta que toda a vida de D. Carlo esteve em conflito com a sua música, mas isso será um modo superficial de ver o assunto. A sua música sublime terá nascido como apaziguamento da desarmonia que o habitava. O dia, como o de ontem, tem estado estival. Uma luz exuberante, agora a declinar. Devia ir caminhar, desentorpecer as pernas, respirar o ar puro dos campos, caso ainda exista ar puro nos campos. O que desejava, na verdade, era andar perto do mar, agora que não há turistas, nem veraneantes, apenas as pessoas de ocasião. A realidade, sempre pronta para me contrariar, não me o permite, e eu aceito as coisas como elas são, com resignação, sem tentações de dar o grito do Ipiranga. Nada, porém, me ajuda nessa libertação. Não sou um D. Pedro e o rio que passa aqui não se chama Ipiranga, fosse eu outro e o rio, o certo, haveria de se ouvir a mil quilómetros o urro que daria. Assim, limito-me ao grito mudo do quadro do Munch. O expressionismo ficar-me-á melhor que o romantismo independentista e liberal do D. Pedro. A conversa hoje está muito voltada para príncipes e reis, e eu que sou republicano. Talvez seja um republicano não praticante.

segunda-feira, 15 de março de 2021

A realidade desconfina-se

Depois de almoço, fui ver o correio e aproveitei para dar uma volta pela rua. Havia já sinais de desconfinamento. Da escola primária vinha o alarido de crianças a correr e a gritar. Um ou outro estabelecimento ensaiava a venda ao postigo, mas o verdadeiro desconfinamento que encontrei, e esse preocupou-me, foi o do calor. A temperatura inclinava-se não já para a Primavera, mas para um Estio precoce. Eu sei que a maioria vive na ânsia estival e entrega-se a longas fantasias com esse tempo que, a mim, parece, muitas vezes, uma anunciação do inferno. Também é um facto que sou, enquanto narrador destas tristes narrativas, dado à hipérbole. Talvez o Verão não anuncie o inferno, mas apenas um purgatório um pouco exacerbado. Há aqui dois problemas que não vou tentar deslindar. Nem a psicologia perante o clima nem a teologia das comparações são assuntos que mereçam a minha meditação. No bosque na escola ao lado, uma escola ainda vazia, as árvores não mexem. O vento que se anunciava vindo do Norte suspendeu a sua correria em direcção ao Sul. Olho para a rua e a realidade parece-me falsificada, um cenário incompetente de um cenógrafo realista.

domingo, 14 de março de 2021

A vertigem do tempo

Março atingirá amanhã o meio do mês. A natureza do tempo sempre confundiu os homens. Tentaram domesticá-lo através do calendário, mas ele sempre se mostrou avesso à vida doméstica. O tempo é um animal selvagem, uma flor silvestre. Melhor, o tempo é uma vertigem, na qual se mergulha e onde nunca se encontra equilíbrio. Um dicionário afirma, talvez sem pudor, que o tempo é sucessão de momentos em que se desenrolam acontecimentos. Penso de imediato que se nada acontecesse não haveria momentos a sucederem-se uns aos outros, logo não haveria tempo. Contudo, julgo que os acontecimentos se propuseram acontecer apenas para que o tempo exista e nos trazer à existência para logo nos varrer para o passado. Este é, na verdade, o caixote do lixo para onde são enviados os detritos das coisas que ocorrem. Ficam lá até que os homens do lixo os ponham no camião e os queimem numa incineradora de resíduos perigosos. Devia ter pensamentos mais risonhos, hoje que é domingo e as famílias saem à rua para apanhar sol e deixar as crianças espairecer, para que os adultos espaireçam também eles. A Páscoa aproxima-se e será feita de afastamentos, proibições de circular e avisos sobre os perigos que espreitam por aí. Fez-se na rua um grande silêncio, nada acontece e o tempo suspendeu a sua marcha. Os momentos foram abolidos, mas retornarão como um vírus. No friso das orquídeas, todas estão em flor, num concerto de cores que cresce para dentro dos olhos e desencadeia na consciência estranhas e silvestres melodias.

sábado, 13 de março de 2021

Viver em vários tempos

Pela primeira vez desde que começou o confinamento fui comprar laranjas ao campo. Um comércio arcaico e contemporâneo. Arcaico porque se funda numa relação directa entre produtor e consumidor, sem esse gigantesco exercício a que se dá o nome de intermediação. Contemporâneo porque é feito ao ar livre, o que conjugado com o uso de máscaras, estará de acordo com as normas de segurança contra os vírus perigosos que a contemporaneidade trouxe. Nunca deixa de me maravilhar o facto de num mesmo instante se poder existir em várias épocas. Talvez cada um de nós viva constantemente em diversas eras, apesar de não ter consciência disso. Talvez sejamos construídos por fatias de tempo, que se vão mesclando dando a ilusão de serem um único e mesmo tempo. Depois de comprar laranjas, fui ver o meu neto. Brincámos um pouco, mas as distâncias ainda são grandes. Quase metade da vida dele foi passada em pandemia. Agora, deixo cair a noite sobre os ombros e escuto os rumores da cidade e a música de Morton Feldman. As peças para piano são construídas por hiatos ostensivamente perspícuos entre as notas, então estas parecem emergir do nada e afundar-se nesse mesmo nada de uma forma tão nítida que torna patente o quão finita é a realidade. Como é hábito, falo do que não sei, mas se as pessoas falassem apenas do que sabem, a espécie humana seria muda.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Pequenos nadas

A vida está cheia de jogos florais. Foi o que me ocorreu há pouco quando passei os olhos pela imprensa. O facto de serem florais não dá a esses jogos um aroma aprazível. Muitas vezes, o cheiro é nauseabundo e sob o florilégio encontramos cadáveres em decomposição. Não devia escrever estas coisas, logo hoje que é sexta-feira e o fim-de-semana se apresta para entrar com a sua túnica de enganos. Na rua, brilha um sol pouco convicto, mas isso deve-se aos tempos que nos foram dados viver. Acabaram-se as grandes narrativas, as que geravam férreas crenças e inabaláveis convicções, abundando pequenas narrativas sem nexo, a que as pessoas emprestam, por instantes, o seu crédito, para logo as esquecerem e comprarem outras que exibirão nas próximas horas. Quem quer saber da Quaresma e dos rituais preparatórios da Páscoa? Tudo isso pertence a um passado que, visto da estância balnear do presente, não passa de uma sombra. Coisas importantes mesmo são a abertura do cabeleireiro ou do restaurante. Nisto não há nenhuma censura da escala de valores que guiam as gentes. Pelo contrário, também eu aspiro a poder ir a um restaurante. A vida é feita de pequenos nadas.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Meditações inúteis

Dou comigo, por vezes, a perguntar-me como chegam, os compositores, à música que compõem. Ouvi-la-ão dentro de si? Resultará de conexões abstractas de tipo matemático? Nunca li nada sobre o assunto e talvez existam múltiplos processos de composição. Uns mais concretos, outros mais abstractos. Haverá uma ideia a priori daquilo que vai ser composto, ou a composição vai emergindo, as partes posteriores fundadas nas anteriores, num jogo de tentativas e erros? O que vale para a música valerá para qualquer outra arte? O pintor verá na mente aquilo que pintará, ou o quadro vai emergindo de um nevoeiro inicial? O dia está nítido, apesar de sombrio. Ora aquilo que agora é plenamente visível proveio de uma zona de trevas, a que damos o nome de noite. Dessa zona de escuridão, a realidade que agora observo foi-se libertando pouco a pouco, até se tornar visível, clara e nítida. Não devia ter comido chocolate, ocorre-me. Não comi muito, mas o suficiente para sentir que foi demais. Será a feitura do chocolate uma arte como a música ou a poesia? O artesanato foi separado drasticamente da arte, mas talvez seja possível pensar num chocolate ou numa refeição como uma performance e fazer entrar no domínio da arte aquilo que se dirige ao sentido do gosto. O melhor é deixar de lados estas meditações, as quais fazem parte da minha colecção de pensamentos inúteis e sem nexo. Esperam-me para um evento online. O que é justo, pois sou já um ser virtual.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Causalidade nula

Às oito horas desta manhã completámos o primeiro terço do mês de Março. Depois de escrever a frase olho para ela e descubro dois enigmas, qual deles o maior. Por que motivo a terei escrito? Aquela informação serve para quê? Não faço ideia por que razão a escrevi e muito menos sei para serve a informação nela contida. A maior parte das coisas que faço são desta natureza. Não sei o seu motivo e desconheço a sua finalidade. Dito de uma forma aristotélica – para dar impressão de erudito – desconheço a causa eficiente e a causa final. Desconheço-me e desconheço os objectivos que deveria perseguir. Enquanto escrevo estas sensaborias, vou escutando um CD de Heiner Goebbels, Ou Bien le Débarquement Désastreux. Quem ouve esse tipo de música, dirá o leitor, o mais natural é sofrer de falta de causalidade. Nem causa eficiente, nem causa final, mas também terá perdido a causa material e a formal. Já passou à condição de puro nada. O que é um narrador? Um ser de papel? Ora, o que é um ser de papel? Um puro nada, uma nulidade ontológica. Acho que vou fumar um cigarro para ver se ma passa este delíquio. Há palavras extraordinárias como delíquio – quase uma onomatopeia – ou cerúleo. São palavras que contêm uma certa imperfeição prosódica, mas isso apenas lhe realça a beleza que as habita.

terça-feira, 9 de março de 2021

Como era tranquilo o mundo

A Primavera irrompeu por dentro do Inverno. As pessoas, cansadas do confinamento, precipitam-se nas ruas, passeiam devagar sob a luz solar, como se quisessem aspirar cada onda luminosa que chega a este pobre planeta. A minha neta mais velha, que está a passar cá a semana, interrompeu-me a meditação. Se lhe podia imprimir um trabalho que vai apresentar amanhã na aula online. Seis páginas sobre o Titanossauro da Patagónia, um lagarto gigantesco e, pareceu-me, feioso, dado a uma dieta de vegetais. Como era tranquilo o mundo quando as pessoas pensavam que as espécies eram fixas, que tinham sido criadas naquela azáfama divina dos seis dias, e que tudo estava explicado. Agora, as pessoas podem ter pesadelos com animais disformes que, vindos do início dos tempos, aterram dentro dos sonhos, para os poluir com o terror daquilo que é estranho. A terça-feira entardece por dentro das árvores, que logo projectam pelo chão longas sombras, como se chamassem a noite. Ela virá, trazida pelo vento, e eu anoitecerei mais um pouco. Num livro vejo escrito uma vida não examinada não merece ser vivida. Talvez Sócrates tivesse proferido a frase no seu julgamento, talvez tenha sido um dinossauro que, naqueles dias intérminos onde nada acontecia, se tenha lembrado dela ou mesmo um dragão dado ao ócio. Tudo é possível neste mundo.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Um sentido difuso

Há dias em que tudo tem um sentido difuso articulado por uma lógica também ela difusa. O espírito vagueia nem sabe por onde, mas qualquer tentativa de focagem, qualquer esforço em direcção à nitidez é repelido pelo corpo. Na verdade, nunca se sabe lidar com esse animal que nos coube em sorte. Pensamos que está domesticado e logo ele se entrega a desejos silvestres. Julgamo-lo vivaz e ele caminha sonâmbulo. Não admira que os homens se sintam estranhos perante essa carne em que têm de viver. Umas vezes, endeusam-na. Outras, diabolizam-na. A sabedoria, penso, seria não dar por ela. A semana começou e um cortejo de coisas inúteis, mas inadiáveis, perfila-se diante de mim. Deveria protelá-las até as esquecer, mas elas não se deixam cair no oblívio. Oiço música para piano de Debussy, mas não me sinto menos difuso. Olho pela janela, a escola ao lado permanece abandonada. Numa rotunda ao longe, os carros giram sem parar. Ainda mais longe, os fungos cobrem de cinzento e preto as paredes brancas do hospital. Em tudo, porém, há uma sensação de difuso, de falta de contorno, como se a realidade não passasse de um esboço. Talvez não passe. Talvez não.

domingo, 7 de março de 2021

Olhar de esguelha

Tive de sair para ir a uma farmácia. Esta frase é muito diferente da que diz: tive de sair para ir à farmácia. Nesta última, a farmácia é a que se vai sempre ou quase, aquela que um longo hábito a tornou a farmácia por antonomásia. Uma farmácia é a que resulta de uma procura motivada pelo encerramento dominical da outra, da autêntica. As farmácias são dos estabelecimentos que ainda resistem à infidelidade contumaz que as grandes superfícies trouxeram. Em tempos, os clientes estabeleciam relações de proximidade com os estabelecimentos do pequeno comércio. Conheciam os proprietários e os empregados. Por vezes, eram clientes, porque os pais já o tinham sido. Agora, ninguém é fiel ao hipermercado ou à empresa que vende electrodomésticos. Paga-se menos pelos produtos, mas as relações sociais ficaram mais pobres, mais abstractas e mais deslassadas. Perde-se o espírito de comunidade e os indivíduos tornam-se átomos guiados apenas pelos seus interesses. Nem sei o que me deu para esta deriva sociológica. O domingo está um dia indeciso, como muitas vezes acontece em Março. Vai variando entre um sol já quente e um céu nublado. Os dias estão bem maiores e nas ruas começa a espalhar-se o aroma da Primavera. Vi pouca gente, mas como fiz a viagem de carro e relativamente cedo, pode ser que a minha impressão esteja enviesada. Aliás, enviesamento é o que não falta nas minhas opiniões. Ando sempre a olhar de esguelha.

sábado, 6 de março de 2021

Lentidão neuronal

Em vez de me meter no carro, fui a pé fazer uma visita familiar. Com o balanço decidi andar um pouco pela cidade. Nunca imaginei que existissem tantos laboratórios de análises clínicas, oculistas, clínicas dentárias, clínicas médicas. Também as farmácias que, durante muitas décadas, foram apenas quatro, quase duplicaram, para não falar no surgimento das parafarmácias. Parece que a população tem diminuído, mas a oferta de cuidados de saúde não pára de aumentar. Isto significará que há muito mais gente doente. Eu sei que este raciocínio é capcioso, mas depois de uma caminhada de seis quilómetros, apanhando algum sol, tudo se torna permitido. A luz solar é necessária para a produção de vitamina D, embora pertença a um grupo cujos organismos produzem por si a vitamina em causa. Espero não apanhar uma overdose. Passei a manhã em videoconferência. Quatro horas online não se recomenda a ninguém, ainda mais com uma idade provecta como a minha. O resultado é ter ficado vazio, sem assunto, não por falta e interesse do evento, mas porque, aproximando-se a Primavera, os meus neurónios tornam-se ainda mais lentos a fazer sinapses, chegando mesmo a suspender toda a actividade, como é o caso. Do que não se pode falar, o melhor é ficar em silêncio, como dizia alguém, a quem não faltava astúcia.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Se a noite cai rapidamente

Por vezes, as pessoas entram pela casa da velhice e enlouquecem. Não porque fiquem loucas, mas porque a realidade começa a desfigurar-se, a perder o contorno. Então, os patamares mais recentes caem e as pessoas retrocedem dentro da memória. Vão cada vez mais depressa em direcção à infância. Enquanto correm, a sua vida vai desabando pelo precipício do esquecimento. O que era familiar torna-se estranho. É como se se caminhasse para a morte recuando no tempo, apagando os vestígios da vida, os grandes acontecimentos que as marcaram deixam de existir. Apagam os próprios filhos, a começar pelos mais novos. Isto disse-me há pouco ao telemóvel o padre Lodo. Diz que tem medo de ficar assim, pois foi assim que a sua mãe perdeu a noção do tempo e começou a viagem para o passado. Ele era o mais velho e foi aquele que mais persistiu na memória da mãe, mas chegou um dia em que ela lhe perguntou quem era ele. Não tinha chamado nenhum padre. O que me vale, continuou, é que, se perder a noção do tempo, não tenho filhos para esquecer. Depois, mudando de assunto disse-me estar farto desta pandemia, do temor instalado, de não poder juntar-se com os amigos. Talvez a virtude da paciência me esteja a faltar, acrescentou. A noite já desceu com o seu silêncio envolto na seda fria da escuridão. Medito nas palavras do meu amigo e compreendo-lhe o temor, apesar de não lhe faltar sanidade mental e física. Hoje é sexta-feira, o fim-de-semana ainda não chegou e já parece acabado. Um dos pássaros meus vizinhos cantou. Talvez seja esse o único imperativo que nos ordena a natureza, cantar, mesmo se a noite cai rapidamente.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Um problema de máscaras

Está um dia sonolento. Boceja, resmunga e esfrega os olhos. O que significará aqui a palavra dia? Será o período em que a Terra recebe claridade solar ou aquele durante o qual o nosso planeta – talvez sejamos mais dele, do que ele nosso – dá uma volta completa sobre o seu eixo? Num caso, o dia exclui a noite. Noutro, inclui-a. Nunca se pensa nestas coisas, mas toda a gente, sem pensar nelas, sabe distinguir dia de dia. Se quisermos complicar, ainda podemos notar que dia significa era e também o estado atmosférico. É uma espécie de heteronomia ao contrário. Enquanto Fernando Pessoa se desdobrou em múltiplos nomes, aqui várias realidades tomam o mesmo nome. Isto significa que existem várias estratégias de disfarce. Numa, a mesma coisa toma várias máscaras. Noutra, várias coisas adoptam a mesma máscara. Um caso flagrante de homonímia. Como se pode ver, qualquer conversa vai dar ao problema da pandemia. Sem saber como, já estou a falar de máscaras, como se estivesse na Grécia antiga e discutisse sobre teatro. Tenho de confessar uma coisa. Não é o dia que está sonolento. Sou eu. Atacado pelo sono, não consigo parar de escrever disparates, coisas que não interessam a ninguém. Há tantas coisas interessantes para escrever, e logo a mim haveriam de caber estas. Cada um tem o que merece, oiço dizer. Sempre me pareceu que a meritocracia era uma conspiração contra mim, pobre narrador de narrativas destituídas de senso e sentido. Vou dormir uma sesta.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Mundos cruzados

O mais espantoso deste mundo é ser composto por vários mundos que se cruzam formando um tecido policromático. Tive de ir a uma outra cidade fazer uma tomografia axial computadorizada. Para chegar ao destino utilizei os serviços de GPS do telemóvel. Talvez por se estar na Quaresma ordenaram-me para ir em jejum, um daqueles jejuns que se faziam noutras épocas. Depois de formalidades sanitárias – apontaram-me para a testa um revólver que mede temperaturas e passei as mãos por álcool gel – e burocráticas, depois de alguma espera em que fui lendo, no meu eReader, um romance, lá vou para uma sala cuja porta tem o sinal de perigo de radioactividade. Sem contador Geiger, enfrento a ameaça. Deito-me numa marquesa e obedeço a duas estimáveis raparigas, que, apanhando-me deitado, ligam-me a uns eléctrodos e picam-me os dedos e as veias de um braço. É para introduzir o contraste, dizem. Lá me deixo contrastar. Olho a máquina cilíndrica e penso que vou ser criopreservado, mas é falso. Vão apenas bombardear-me com radiação atómica. Devia ter trazido o contador Geiger, é o que penso enquanto entro e saio do túnel. Está acabado, dizem. Pergunto-me se o acabado sou eu ou o exame. Desligam-me. Pode ir embora, dizem sorridentes, pois imagino-lhes o sorriso sob a máscara. Agradeço. Depois de todo este tempo no mais admirável dos mundos novos, vou para o carro e desembrulho uma sandes trazida de casa, certo que não haveria aonde comer e beber café, como se fizesse um daqueles piqueniques de que falava o Cesário Verde. Pena que não houvesse qualquer burguesa a descer do burrico, que sem posturas tolas colhesse um ramalhete rubro de papoulas. Os tempos cruzam-se, é verdade, mas perde-se sempre qualquer coisa pelo caminho. Neste caso, a aguarela.

terça-feira, 2 de março de 2021

Vai por aqui um arraial

Pela praceta vai um arraial. Não, não se trata de uma festa ao gosto popular por ocasião de alguma romaria, nem um acampamento de tropas inimigas que venha pôr cerco ao castelo. É apenas um grupo de crianças trazidas pelas mães para gastarem as energias físicas e exercitarem a sonoridade da voz em hipérboles estridentes. Bem as percebo, às mães. Terem filhos pequenos todo o dia em casa está muito para além da capacidade de os gerar. Entre o prazer da concepção, se o houve, e as dores do parto, a vida está suspensa. O pior é o crescimento das crias, as metamorfoses do corpo e as mudanças de humor, tudo em territórios exíguos, mesmo que os apartamentos tenham excelente dimensão. Os corpos pequenos precisam de grandes espaços, onde possam crescer e bolsar pelas cordas vogais o espanto pela existência. Ouve-se, agora, a voz cava de um pai. Parece que veio trazer um princípio de ordem. A algaraviada continua, enquanto a tarde se desfaz em neblina e, a coberto das nuvens, se prepara para se deixar cair nos braços da noite. Calma, calma, diz a voz de baixo do pai ordenador. Um rapaz grita que é bola ao ar. Talvez seja. Quando a vida se interrompe também se há-de mandar a bola ao ar, para que ela retome o seu andamento, até que um apito assinale um fora-de-jogo ou o fim da partida.

segunda-feira, 1 de março de 2021

O dever de anotar

É difícil uma pessoa adaptar-se às novas circunstâncias. Julga que vive como há vinte ou trinta anos, mas a realidade é tão crua que não se faz rogada em desmentir a presunção. Ao marcar um exame médico, deram-me uma série de indicações para cumprir no dia anterior. Nem as escrevi, convicto de que me lembraria delas. Agora que o dia se aproxima dei por mim sem saber o que fazer e a ter de ligar para a clínica, com papel e caneta para escrever aquilo que devia ter escrito. As faculdades, pensei, vão se apagando uma a uma. A natureza não é destituída de sabedoria. Olhei pela janela, o telhado branco do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido pelo primeiro sol de Março. Senti uma súbita vontade de ir ver o mar, de me sentar numa esplanada e assistir ao infinito jogo das ondas, à passagem dos barcos, ao voo das gaivotas. A praia que me repele no Verão chama-me no Inverno. Ali posso escutar o murmúrio de tudo o que é, deixar-me prender ao ir e vir das águas para tocar naquilo que se esconde para lá da cortina preta das coisas visíveis. Anoto que a partir de agora tenho o dever de tudo anotar. Talvez estes textos sejam anotações daquilo que tenho o dever de anotar.