sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Uma narrativa engraçada

Como o leitor, também este pobre narrador não fazia a mínima ideia de quem era Henri Falk. Uma navegação em águas calmas por sites que fornecem ebooks gratuitos e livres de direitos de autor conduziu-me, por acaso, a esse nome e a um romance com o sugestivo título de L’Âge de Plomb (A Idade de Chumbo). Fiz uma pesquisa sobre o senhor e recebo a informação de que ele era escritor, dramaturgo, cenarista, compositor, libretista. Em resumo, alguém que esteve na literatura, mas que não há já quem o conheça. Um escritor de terceira linha. O interessante haver ainda quem, fazendo um trabalho pro bono, lhe republique os livros em edição digital. A ele e a muitos outros como ele. Em Portugal, este tipo de editores simpáticos, benévolos e generosos, quando os há, concentram-se apenas nos grandes nomes da literatura nacional. Esses que se encontram em qualquer lado. O interessante seria publicar todos aqueles escritores que o tempo tornou esquecidos. São muito mais do que se imagina. Voltando a L’Âge de Plomb, o que pode ter ela de interessante para um leitor actual, uma obra secundária escrita em 1919? A pandemia. Imagine-se que o governador militar francês do Gabão descobre que caiu todo o pêlo ao cão. Depois, o pobre do papagaio perde as penas. A seguir, a mulher do senhor governador militar fica sem cabelo e o próprio governador vê a barba ir-se. Num ápice, todos os homens e animais da África Equatorial perdem pêlos e cabelos. A estranha doença não fica por aqui. Atinge os Estados Unidos e a Europa. O belo e dourado mundo onde se vivia entra em colapso. Daí, a queda da idade de ouro na idade de chumbo. Reproduzo o último período da apresentação do livro feita pelos editores: À l’ère du coronavirus, ce récit visionnaire et cocasse, malgré son cadre démodé, apporte une touche d’humour bienvenue. Um humor bem-vindo. É o que se precisa, agora que Agosto se aproxima do fim.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Aforismos, sentenças e escólios

Ontem descobri um autor colombiano que me parece particularmente interessante, apesar de tudo. Nicolás Gómez Dávila (1913-1994). O apesar de tudo refere-se ao facto dele não ser propriamente um adepto da democracia e baptizar-se a si mesmo como um reaccionário. Digo isto não porque ache que fosse melhor que ele se classificasse como revolucionário ou liberal, mas porque estas classificações são, mal se começa a esgaravatar nelas, equívocas e funcionam como um véu para ocultar o que é mais interessante. Ele escreveu apenas pequenos textos e aforismos, isto é, pequenas sentenças. Por norma, são verrumantes e luminosas, mesmo se se discorda delas. Por exemplo, relativamente aos homens da modernidade afirma: O moderno não tem vida interior: apenas conflitos internos. Sobre o gosto e aquela ideia, muito em voga, que o gosto é uma coisa relativa, diz: A relatividade do gosto é desculpa que adoptam as épocas que têm mau-gosto. Tem, o colombiano, também grande perspicácia psicológica: Nem sempre distinguimos o que fere a nossa delicadeza do que irrita a nossa inveja. Um escólio – é assim que o autor chama aos seus aforismos – trouxe-me à recordação toda uma literatura erótica que vai do Marquês de Sade até Henry Miller. Diz Gómez Dávila: O escritor moderno olvida que só a alusão aos gestos do amor capta a sua essência. A textualidade explícita falha sempre o erotismo, mesmo que isso estimule os apetites. A linguagem alusiva no domínio do erótico não é um tributo a uma moralidade que reprime e ou condena a sexualidade. O erótico vive naquele espaço que uma alusão abre. É sempre do domínio do não-dito. A linguagem explícita de Sade ou de Miller é uma revolta contra o interdito. A linguagem alusiva do Eros está para além do permitido e do proibido. Ela abre uma outra dimensão da experiência humana, pois o amor – mesmo o apenas carnal, para usar uma palavra caída em desuso – coloca os seres humanos para além daquilo que é a sua quotidianidade e as regras morais que a regulam. Coloca-os num outro nível do ser. Está a ser penoso chegar ao fim de Agosto, como se pode ver pelos textos dos últimos dias.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O enigma da beleza

De um livro de Eugénio de Andrade caiu uma factura. Datada de um tempo que parece pertencer a uma era já muito distante, 25 de Junho de 2019. Nesses dias, ninguém imaginaria o que estaria para acontecer, como tudo haveria de mudar, e mal passaram dois anos. Nesse dia, comprei dois livros cujos títulos são um exemplo exímio do uso da aliteração. Um, Os Lugares do Lume; o outro, Os Sulcos da Sede. Cada título é, por si só, um poema intenso e poderoso. É isto que faz os grandes poetas. Os livros pertencem a uma edição das obras de Eugénio de Andrade, da Assírio & Alvim. São, todos eles, belíssimas edições. As capas, com desenhos de Ilda David, possuem uma extraordinária beleza. Adequam-se completamente à poesia de Andrade. A partir do início do século XX, a beleza deixou de interessar a generalidade dos grandes artistas, deixou de ser uma condição necessária para que uma obra seja classificada como obra de arte. Passado o fervor vanguardista e experimentalista, fica uma nostalgia pelo tempo em que a beleza tinha um papel central na arte. Será possível recuperá-la? Como o bem e a própria verdade, a beleza tornou-se enigmática, tão enigmática quanto o sorriso da Gioconda. No mundo pré-moderno, pensava-se que Deus era sumamente belo, bom e verdadeiro. A proclamação da morte de Deus, por Nietzsche, retirou o fundamento onde a beleza, a bondade e a verdade se escoravam. Daí, terem-se tornado enigmáticas. As férias ainda não acabaram e deveria ter cuidado em não deixar derivar estes textos para assuntos marcados por um rosto sério. Mais valia que falasse sobre a factura, aliás fatura simplificada original, completamente adequada a um mundo onde a simplicidade foi substituída pela simplificação.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Tempo de leviandades

Estes são dias propícios a coisas levianas. Vi os vários filmes de Les Enquêtes du Commissaire Laviolette. Uma novidade para mim. Li uma aventura de Arsène Lupin e, agora, mergulhei não nas águas do oceano, mas num policial cujo protagonista é o detective privado Nero Wolfe, alguém que raramente sai de casa, apesar de trocar todos os anos de carro, tem um cozinheiro particular, pois é um exigente gourmet, e possui uma estufa onde dedica várias horas do dia ao cultivo de orquídeas. Há décadas que não lia nenhuma aventura deste extraordinário detective, que resolve tudo com o poder da mente. Aliás, parte substancial da literatura policial parece um anúncio àqueles livros que prometem, a quem os compre, desenvolver-lhe as capacidades cerebrais, o poder da mente. Eu, confesso sem vergonha, bem precisava desenvolver o poder da minha, ela que anda pelas ruas da amargura e só se entretém, ou quase, com coisas leves. Para me distrair desta leviandade, vou revendo uns filmes do Bergman. Ontem, vi mesmo um que nunca tinha visto, Musik i mörker (Música en la Oscuridad, na versão legendada em espanhol). É uma película de 1948, da fase inicial do realizador sueco. Começa com uma tragédia e acaba em bem, como num conto de fadas. É uma tragédia ao contrário. Quanto às leituras sérias, se é que eu tenho leituras sérias, entretenho-me com um autor do século XVII, Sir Robert Filmer, e o seu PatriarchA Defence Of The Natural Power of Kings Against The Unnatural Liberty Of The People, isto para fornecer o nome completo da obra. Não sei se isto será uma leitura séria. No século XVII, o nome dos livros esticava-se muito para além do razoável. A obra é uma defesa do absolutismo. Segundo o autor, todos os reis seriam descendentes de Adão e, por isso, seriam os legítimos detentores do poder e estariam, claro, acima de todos os outros homens, que talvez só sejam descendentes de Eva. Estou, porém, impedido pelo autor destes textos, de falar de política. Remeto-me à minha condição de narrador. Só me compete a leviandade.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Economia e romance

Estou sempre a alargar os horizontes, já demasiado vastos, da minha ignorância. Ao ler um artigo no jornal, a minha atenção ficou presa num nome, Alexander Kluge, um realizador e escritor alemão. Não conheço nada dele e se já ouvi alguma vez o seu nome, a memória apagou-o. Descobri que tinham sido editados em Portugal os dois volumes de Crónica dos Sentimentos, por uma editora que desconhecia por completo, a BCF Editores. Curioso e sem nada de urgente para fazer, fui espreitar a filmografia. É enorme. Entre os filmes que me chamaram a atenção, está Nachrichten aus der ideologischen Antike: Marx, Eisenstein, Das Kapital. A Wikipedia, na sua versão brasileira, traduz por Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital. O filme – de que não encontrei nenhuma versão legendada para uma língua acessível – tem uma duração de nove horas e trinta minutos. Parece que Kluge retoma um projecto do realizador soviético Sergei Eisenstein de filmar O Capital, de Marx, a partir da estrutura de Ulisses, de James Joyce. Eu não conheço o filme nem o seu autor, mas este projecto parece-me particularmente interessante. Talvez nele se compreenda que O Capital, essa bíblia sagrada que animou parte do século XX, seja uma ficção. A ideia deveria ser replicada. Por exemplo, filmar A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a partir da estrutura romanesca de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, com a estrutura da trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann Broch, ou mesmo a obra Acção Humana: Um Tratado de Economia, de Ludwig von Mises, com a estrutura de O Processo, de Franz Kafka. Alexander Kluge teria assim descoberto a essência da Economia, uma ardilosa ficção romanesca que, para acentuar o seu carácter ficcional, gosta de se apresentar como ciência, chegando mesmo a lançar mão da Matemática, para que os leitores, ao lerem esses romances, possam cumprir a exigência de Coleridge e suspender a descrença. Hoje é sexta-feira, a semana foi árdua e não me ocorre mais nada para preencher este espaço em branco.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Dia de férias

Hoje é o décimo nono dia do mês de Agosto. A manhã de férias ocupei-a a trabalhar, como se fosse um workaholic vade retro Satana – mas há coisas que têm de ser feitas, decisões a tomar, projectos a ultimar e todas essas coisas necessárias à acção dos homens e que demonstram a inferioridade destes perante os outros animais, que fazem o que têm de fazer sem projectos, deliberações, planos e outras coisas em que a razão prática se desdobara na tentativa de salvar os homens da morte. Não salva. Antes, porém, caminhei durante seis quilómetros, fui ver o mar, os barcos, as gaivotas e os pobres veraneantes mais madrugadores que, coitados, lá têm de cumprir o ritual de se encharcarem em areia, sol e água. Gosto imenso de praias, desde que estejam vazias e não haja calor. O almoço será tarde, como acontece sempre nestes tempos de férias. Chamam-me para a mesa. Tenho de ir abrir o vinho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Viagens

Talvez já tenha falado aqui em Xavier de Maistre, o irmão mais novo de Joseph de Maistre, um encarniçado inimigo da Revolução Francesa e um brilhante teórico da reacção. Lembrei-me dele porque, estando a ler Danúbio, de Claudio Magris, na verdade um livro de viagem – belíssimo – pelos locais que o rio visita. Também Xavier de Maistre fala de viagens. Duas das suas obras têm os seguintes títulos: Voyage autor de ma chambre (1794) e Expédition nocturne autor de ma chambre (1825), este uma sequela do primeiro. Há nestas obras uma ironia relativamente à literatura de viagens, então em voga. Enquanto a viagem pressupõe o abrir do espaço, rasgá-lo, digamos assim, para que o corpo nele se desloque de um ponto para outro, viajar à volta do quarto é uma forma de oclusão. Substitui-se a linha recta pelo círculo. Resta saber qual das duas formas de viagem, aquela que vai de um sítio para outro ou a que se enrola sobre si mesma, é a porta autêntica para o universal. Creio que os viajantes – mesmo aqueles que não são meros turistas e coleccionadores de recordações, mas que fazem da viagem um modo de aprofundamento da sua relação com o mundo – acabam por ser falsos cosmopolitas, presos que ficam à diversidade paroquial por onde passam. Vão do particular para o particular. Aquele que explora até ao fim o particular, esse quarto onde está encerrado e por onde viaja, acaba por descobrir nele o universal, como se cada lugar, assim explorado até ao fim, revelasse nele o segredo do cosmos. Li que Almeida Garrett terá sido influenciado pela Voyage, de Xavier de Maistre, na escrita de Viagens na Minha Terra. Se assim foi, parece-me que o português não terá compreendido o essencial da obra do escritor francês (na verdade, saboiano). Mais próximo disso esteve Alexandre Herculano, não em qualquer dos seus romances, mas quando se exilou em Vale de Lobos, na Póvoa de Santarém.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Coisas de um provinciano em férias

Depois de uma semana em que a principal actividade foi estar sentado e um dos objectos mais requisitados foi o saca-rolhas, a balança teve a amabilidade de me comunicar que o peso não aumentara sequer um grama. Desta experiência concluí que fazer caminhadas engorda e que as virtudes do exercício físico são meramente fantasiosas. O melhor é não levar estas ideias a sério, não porque elas não sejam sérias, mas porque são, como agora se tornou moda dizer, politicamente incorrectas, uma expressão horrível, diga-se. Durante essa quadra de ócio descobri uns policiais que desconhecia. Tratam-se de Les Enquêtes du commissaire Laviolette, da autoria de Pierre Magnan, passados na Haute Provence, França, dos quais se encontram no Youtube adaptações felizes. Por falar em Provence, recordei-me que um dos tópicos que muito animava os professores de Francês, no tempo em que Portugal não se tinha ainda tornado uma nação anglo-saxónica, era a distinção entre province e Provence. Consta que o Reino de França estava dividido em províncias. Numa lista de 1748, são contabilizadas 125, desde a província Agenois – com capital em Agen, a terra das ameixas, aliás excelentes – até à província do Vivarais – com capital em Viviers. Depois veio a Revolução Francesa e zás. Os departamentos, uma divisão mais racional e menos medieva, substituíram as províncias, embora o espírito de província não tenha acabado. Voltando a Modeste Laviolette, o comissário, há que referir que é um bom passatempo, onde transparece um certo odor – caí no poço da sinestesia – a uma França eterna, que já não existirá, a França dos anos sessenta do século passado.

domingo, 15 de agosto de 2021

O tripálio

Pior que um feriado em Agosto, apenas um feriado num domingo de Agosto. Perda sobre perda. Esta dupla perda deveria ser compensada. Poder-se-ia imaginar que no início de cada ano civil, as autoridades, ao olhar para os feriados e a sua distribuição no calendário, proclamavam um certo número de dias como feriados compensatórios. Com eles substituíam aqueles que calhavam ao fim-de-semana e o de Agosto. É certo que vivemos num país em que há sempre uns governantes de ocasião – coisa que são todos os governantes – que fazem uma fronda contra os feriados e apostam em diminuí-los, como se isso fosse um desígnio civilizacional. Se fossem inteligentes, o que será pedir muito, aumentavam-nos ou, pelo menos, seguiam a minha douta sugestão. Quanto mais feriados, mais tempo livre, maior a felicidade geral. Quanto mais felizes as pessoas, maior a capacidade de suportar o tripálio, isto é, o instrumento romano de tortura composto por três paus, e cujo nome, segundo consta, terá dado origem à palavra trabalho. Numa civilização normal, o trabalho é entendido como uma tortura. Na anormalidade em que vivemos, é incensado como o objectivo supremo da existência. Sempre me pareceu que somos, há muito, dirigidos por sádicos ou, em certos casos, por sadomasoquistas. Hoje, porém, é dia de Assunção de Nossa Senhora, o que não é muito propício para deambulações psicanalíticas. Agora que o trabalho é tortura, lá isso é inegável.

sábado, 14 de agosto de 2021

Lógica matrimonial

Hoje é sábado e está calor. Estas duas proposições deixam-se traduzir pela fórmula lógica p Λ q. Para que esta seja verdadeira, é necessário que tanto p como q o sejam. A conectiva Λ significa então um casamento para a vida, um compromisso que exige a verdade dos consortes. Imaginemos, todavia, a seguinte proposição complexa: Hoje é sábado ou está um frio de gelar os neurónios.  Tradução: p V q. Para que esta proposição seja verdadeira, basta apenas que uma das variáveis (p, q) o seja, embora se ambas o forem não haverá problema. Traduzindo, estamos perante um casamento onde não existe reciprocidade. Um dos consortes está comprometido com a verdade, mas o outro nem por isso, umas vezes sim, outras não, sempre pode recorrer a umas mentiras para justificar o atraso com que chega a casa. Todavia, isso não põe em causa o matrimónio. Como se vê a lógica é das coisas mais úteis para compreender a vida humana. Com ela podemos construir toda uma explicação sobre o matrimónio e as relações amorosas. Fundamentalmente, podemos exprimir, num texto preguiçoso escrito num sábado de calor, que o estado de demência já esteve mais longe, embora a demência do mundo esteja ainda mais próxima. Basta olhar para a comunicação social. Antes deambulações atarantadas sobre lógica proposicional. Talvez, mas apenas talvez, um dia destes deambule por outras lógicas. É uma questão de agravamento do estado mental.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Calor e leituras

Estou encantado, tanto quanto é possível com este calor, com Arsène Lupin. Há muito, muito que não o lia. Uma revisitação ao melhor dos tempos de adolescência, uma época lastimável que todos temos de atravessar, uns com mais obstáculos e infelicidade, outros com menos. Só espero não me pôr a reler a Enid Blyton, pois seria o anúncio de uma regressão à infância, ao Pinóquio, não ao texto do florentino Carlo Collodi, mas às adaptações em banda desenhada que se vendiam numa certa mercearia desaparecida há muito. Talvez uma dia fale sobre essa inusitada loja. Divido, porém, a atenção a Arsène Lupin com a leitura de Danúbio, de Claudio Magris. Talvez se possa dizer que é uma viagem sentimental ao longo desse rio que tanto tem marcado a História da Europa central, da Mitteleuropa. Contudo, mais que uma viagem sentimental, estamos perante uma viagem intelectual. Acabei de ler o ponto 12, da primeira parte. A guia de Sigmaringen. Uma viagem à política e à literatura europeia. O marechal colaboracionista Pétain, desconhecido da guia do Castelo de Smgmaringen, onde se refugiou, e, através de um outro colaboracionista, Céline, reflexões sobre Kafka, Pessoa, Hamsun, Neruda, Svevo, Hemingway, etc. Estas reflexões são, todavia, pequenas iluminações que pontuam o caminho. Danúbio não é un roman-fleuve, um romance-rio, mas o romance de um rio, onde este é a personagem central de uma história que, apesar de vivermos na parte mais ocidental da Europa, ainda nos toca. Está calor.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Camaleões, monstros e plágios

Também eles possuem o dom do disfarce. Entregam-se ao mimetismo, como se fossem camaleões, e fazem-se acreditar como dias imensos, marcados pelo vagar, anúncios da eternidade ociosa, isto é, livre das consequências das dentadas na maçã e da expulsão do paraíso. Nunca percebi como se pôde trocar o Jardim do Éden por uma maçã, se fosse por uma laranja, pêssego ou uma toranja (que não havia na altura), ainda compreenderia, mas uma maçã… A realidade, seja como for, é bem mais prosaica. Não há, nos dias de férias, a poesia da mimese do eterno, mas a prosa monótona da passagem implacável das horas, minutos e segundos, tal como acontece no resto do ano. Ontem juntei os três netos. A dada altura, fiz umas cócegas ao mais pequeno e disse-lhe eu sou o monstro das bolachas. Logo uma das netas olhou para mim e repôs as coisas no seu devido lugar: o monstro das bolachas é meu. Como quem diz, se o avô quiser ser monstro para esse que invente outro nome, que a monstruosidade das bolachas será eternamente para mim. Inventar uma nova monstruosidade é a minha tarefa para hoje, aproveitando o disfarce de um dia de férias. Não é fácil a tarefa, pois o monstro das bolachas foi um descarado plágio. Terei de ir consultar uma lista de monstros benévolos usados na infância. Para plagiar, claro.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Deambulações literárias

Há em Campo de Ourique, no Jardim da Parada, uma livraria de que muito gosto, a Ler. Pequena, mas com um bom catálogo, com o ambiente das velhas livrarias lisboetas. Ontem, ao passar por Lisboa, fui lá e resolvi o meu problema de leituras de férias. Tinha-me queixado da falta de uns Maigret. Não resolvi essa falta, mas descobri que a Relógio d’Água está a editar o Arsène Lupin, esse Gentleman Ladrão, a cujas aventuras dediquei num outro século muitas tardes de Verão. Comprei dois, A Agulha Oca e A Condessa de Cagliostro, e tomei a resolução de adquirir os que forem sendo publicados. Talvez nem os releia todos, mas é uma espécie de revisitação a um tempo em que aprendi a gostar da leitura. Foi com uma certa literatura menor, digamos assim, que fui conduzido, quase sem dar por isso, à literatura maior. Dos livros de cowboys (então, superlativamente malvistos), das aventuras da Enid Blyton, passei para os policiais e, de um momento para outro, vi-me a ler Camus, Kafka, Sófocles, Sartre. Claro que também lia os portugueses. Agora, porém, estou mais interessado em Lupin. Só espero que uma qualquer editora se lembre de republicar o Fantômas, outro herói – na verdade, um herói negativo – da adolescência. Bem, esta dedicação à literatura de entretenimento só é verdade em parte. Também comprei ontem Manhã e Noite, do norueguês John Fosse, Rua Katalin, da húngara Magda Szabó, ambos publicados pela Cavalo de Ferro, e, voltando à Relógio d’Água, O Rei João, de William Shakespeare. Este faz parte do «Projecto Shakespeare», em que a Relógio d’Água e o grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) conspiram para uma publicação integral da tradução da obra dramática de Shakespeare. Dir-se-á que há, neste texto, excessiva publicidade. Talvez, mas todas as referências são merecidas. Há que não deixar morrer aqueles que se esforçam pelo que há de melhor.

domingo, 8 de agosto de 2021

Más escolhas

O tempo de férias não é pouco trabalhoso. Não fazer nada exige muito esforço, pois não é sem sacrifício que se domesticam e civilizam os impulsos que nos levam a trabalhar. Exagero, claro. É preciso não esquecer que possuo uma certa propensão para a hipérbole. No entanto, há alguma verdade no exagero. Trouxe comigo um conjunto de livros sérios para ler, para além das pequenas bibliotecas que arrasto nos dois eReaders (um Kindle e um Kobo) e no iPad. Dei comigo, porém, a desgostar-me com as leituras. Coisas demasiado sisudas para tempo de veraneio. O melhor, pensei, seria ler uns policiais, enquanto o tempo passa por mim. O problema é que não trouxe nenhum. Encontrar uma solução exigiu, então, esforço neuronal, a mim que pertenço a um tempo em que a televisão começava às sete da tarde e, para sanidade da população, acabava à meia-noite com o hino nacional, a bandeira a ondular, a que se seguia a mira técnica da RTP, que antecedia o momento em que tudo se desligava e ficava apenas um mar borbulhento cor de cinza acompanhado por um ruído irritante. Ah, havia apenas um canal, que chegava e sobrava. Eu sou desse tempo e é assim que penso, com os dados desse tempo. Por isso foi preciso esforço para encontrar a solução. Não havendo livros, sempre se pode recorrer ao Youtube e ver uns policiais. Comecei com três episódios do Sherlock Holmes. Não é a mesma coisa, eu sei, até porque a interpretação feita na série é um pouco estridente, mesmo para um opiómano. Em vez de ler, posto-me diante do monitor e deixo o patético detective resolver casos que nem ao diabo lembrariam, e ao diabo lembram muitas coisas, como bem se sabe. Seja como for, o que me apetece mesmo é ler um Maigret. Gostava de saber por que razão trouxe as Reflexões sobre a Revolução Francesa, do Edmund Burke, em vez de Maigret e a Morte do Perna-de-Pau ou de Maigret e o Corpo Sem Cabeça. Aliás, Simenon é um grande escritor. Más escolhas, portanto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Bolhas e bolas

Nada em excesso! Este mandamento resumia a ética dos gregos antigos. É de uma sabedoria conspícua, mas isso não é o suficiente para que um mortal o cumpra. Não fora ter-me entregado aos excessos das caminhadas e hoje não teria uma bolha num dos pés. Olho-a e compreendo que muitos são os limites que cercam os pobres seres humanos. Caminhadas suspensas, pomadas, pensos e um cuidado com o que calço, não vá a bolha crescer tanto como certas bolhas imobiliárias que, ao rebentar, têm o condão de lançar a matérias viscosa que as anima sobre uma multidão que, aparvalhada, olha para o céu, para descobrir de onde vem a matéria purulenta que chove sobre cautos e incautos. Há pouco recebi uma fotografia do meu neto. Instalado na areia, entregava-se à volúpia da bola de Berlim. Oiço de imediato, também queremos. Terei de pegar nas netas e ir a um lugar onde as há. Sem creme, sem óleo, ou quase. Eu não sei se também quero. Com a visita à balança no horizonte, sem poder caminhar para gastar calorias, duvido que seja uma boa ideia ceder à gula. Logo verei, até onde vai o meu poder de resistir à tentação. Nada em excesso, lembrei-me, agora.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Dinossauros

Dinossauros. Não me estou a referir aos presidentes de câmara que não podendo eternizar-se no seu município tentam continuar a carreira num outro onde os eleitores lhes achem graça. Aqui não se fala de política. Tratam-se mesmo de dinossauros. Bem, também não é completamente verdade. São réplicas desses terríveis monstros. Para ajudar as minhas netas a passar o dia, fomos visitar o Dinoparque, na Lourinhã. Não fiquei comovido, embora o parque esteja bem organizado. Aquelas figuras terríveis fazem recordar a ideia de que a vida possa ser absurda, um contínuo matar para não morrer, num fluxo de violência de que não se vislumbra nem sentido nem fim. Elas gostaram, uma tirou fotografias a quase todas as réplicas, a outra olhou-as, sobranceira, como se já não tivesse idade para aquele tipo de fantasia. O melhor foi ir almoçar a um bar de praia, olhar para o oceano, conversar sobre isto e sobre aquilo, mas não sobre dinossauros, como se estes já não existissem, nem sequer na memória dos visitantes do parque.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Verão

Estes dias de Verão não passam de uma fantasia. Com uma liberdade aparente, foge-se dos grandes calores e encontra-se refúgio perto do mar, onde as temperaturas nunca se entregam a devaneios hiperbólicos. Aqui, onde há um ditado que diz primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Os dias passam sem inquietação, a não ser a inquietação de que tudo termine e a realidade, essa grande meretriz, volte e crave as suas garras na carne repousada pela estiagem. Ainda não pus um pé na praia e tenho esperança de a evitar tanto quanto possível. É um lugar para o qual não tenho paciência. Não consigo perceber como há quem passe horas e horas ao sol, mas como há muitas outras coisas que não compreendo, tenho de integrar essa incompreensão na incompreensão geral que me foi destinada. Seja como for, gosto de contemplar o mar, desde que o olhar passe por cima dos veraneantes. Trouxe comigo uma pilha de livros. O mais certo é não ler nenhum, pois cada vez mais cultivo a preguiça, o não fazer nada e, se for possível, não pensar em nada. De resto, faço longas caminhadas, onde acumulo pontos cardio, embora não saiba para servem tais pontos. A aplicação que os mede diz que acumular 150 pontos durante uma semana ajuda a prolongar a vida. Parece-me uma afirmação fantasiosa e que jamais poderá ser testada, o que evita ser falsificada. Logo, não científica, segundo Sir Karl Popper. De resto, a pandemia tornou-se um novo modo de aprender o alfabeto grego, o chamado ελληνικό αλφάβητο. Temos uma variante alfa, uma beta, uma gamma e uma delta. Isto, apesar de didáctico, é desesperante. Para chegar ao fim, ao ómega, ainda faltam vinte letras. O mundo está longe da perfeição.

sábado, 31 de julho de 2021

Uma megera

Sábado. Último dia de Julho. Um mau começo. Um conciliábulo com a balança redundou numa inútil humilhação. Depois de uma semana cheia de exercício, caminhadas a ultrapassar a dezena de quilómetros e a megera ainda teve a desfaçatez de me dizer que o peso – o meu, note-se, não o dela – aumentara. Parece pouco, mas duzentos gramas para cima no lugar dos dois mil que esperava para baixo é muito. Na verdade, entre a expectativa e a realidade vão dois mil e duzentos gramas. A realidade nunca me pareceu ser alguém de confiança. O melhor é não desanimar, a vida é feita destas contrariedades. Há várias explicações para o caso. Algumas delas bastante racionais e convincentes. Por exemplo, pode ser um facto que a balança me tenha tomado de ponta e aproveite estes momentos semanais para se desforrar de alguma insídia que eu lhe tenha armado. Outra probabilidade, não menos razoável, é ser o exercício físico a causa do aumento de peso. Quanto mais se caminha, mais se engorda. Uma terceira possibilidade, tão sensata quanto as anteriores, é a chamada hipótese astrológica. Uma conjugação astral adversa coincidiu com o momento em que coloquei os pés em cima da balança e foi o que se viu. É o que se chama acabar mal o mês e preparar-me para entrar em Agosto com o pé esquerdo, ainda por cima mais pesado. Sempre posso dizer que está inchado, que preciso de beber mais líquidos. Uma voz retine dentro de mim. Mais líquidos, sim, mas não daqueles que tens bebido. Escuto perplexo o acinte da voz e decido que tenho de me levantar e ir escolher os vinhos para o almoço tardio deste sábado.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Moscas

O tempo quente tem vários, e não pequenos, inconvenientes. Um deles é o acordar das moscas. Por certo que tudo o que existe terá o seu lugar e o seu papel. Facilmente se pode aceitar que as moscas tenham um lugar. Por norma, esse lugar coincide com aquele em que estou. Depois, dá-se o estranho caso de quanto mais elas se sentem atraídas por mim, mais eu as detesto. Com exclusão das melgas, não conheço outro ser que por mim mais se sinta atraído do que a mosca. Pergunto-me, nos dias quentes de Verão, que papel foi reservado na criação a esses miseráveis insectos. Por mais que procure, não lhes encontro nenhum, a não ser irritarem-me. Elas cumprem com afinco a função que o Criador lhes deu. Com o progredir do Verão uma pessoa fica sem assunto. Resta-lhe falar em moscas. Um dia destes, farei uma entrada sobre melgas, as quais ainda me irritam mais e mais profundamente que as moscas. A minha cultura é pobre, caso não o fosse conheceria a poesia que louvaria as moscas. Não conheço. O meu desconhecimento, porém, não é prova de que não exista.

domingo, 25 de julho de 2021

Do sofrível

Ontem acabei o texto com a palavra sofrível. A primeira vez que me lembro dela foi num certo colégio por onde andei a seguir à quarta classe. Fazia parte de uma estranha escala de classificação. Situava-se acima do medíocre e abaixo do suficiente. Imagino que o sistema classificativo do colégio estivesse já desadequado, mas talvez seja apenas eu que sou muito mais velho do que gosto de admitir. Não consigo imaginar as razões que terão levado alguém a transformar um adjectivo que diz que algo se pode suportar ou sofrer num nome que refere um certo desempenho escolar. Seja como for, os professores daquele tempo tinham uma escala mais ampla para classificar as provas e, quando estavam cansados desta, juntavam-lhe mais e menos. Os alunos, então, tinham suficiente menos que não se confundiria com sofrível mais, como o bom menos não era em nada idêntico ao suficiente mais. Tive uma professora de Físico-Química que se entretinha a distribuir medíocres e maus com vários menos e mais à frente, numa escala cujos arcanos só ela conheceria. Desconfio que, naqueles dias, a profissão de professor era muito entediante e havia que passar o tempo a inventar estes jogos classificativos. O lamentável de tudo isto é que a palavra quase caiu em desuso. Ninguém diz mas que filme sofrível ou aquele é um poeta sofrível, embora eu possa dizer que a minha inspiração está sofrível ou talvez mesmo medíocre, com um mais à frente.

sábado, 24 de julho de 2021

Do terrível

Todo o anjo é terrível. Assim começa a segunda Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tantas vezes dei comigo a pensar sobre essa estranha sentença, não sobre a sua verdade, mas a perguntar-me se ela não é uma pista para decifrar o enigma daquilo que nos aterra, o mistério do terror. Sempre que algo de terrível assombra os homens talvez seja a obra de um anjo ou de uma legião deles, mesmo se nós nos convencemos que o excesso de iniquidade ou de prazer seja o fruto do arbítrio humano. Pensar sobre os anjos não será o mais indicado para uma tarde soalheira de um sábado de Julho, com o mar tão perto. Encerro os pensamentos na gaveta do armário onde guardo as toalhas de praia e os calções de banho, e espero que também esses pensamentos adormeçam e deixem de me assediar aos sábados à tarde. Ponho de lado o poeta e deixo-me cativar pelas longas conversas com que os pássaros, mesmo ao pé da janela, ajustam os negócios da sua vida. Tenho de me aprontar, parece que alguém se esqueceu de comprar gengibre. Sem ele, o jantar estará ameaçado, ou talvez ninguém desse por isso, pois um anjo terrível se haveria de dispor a embotar o gosto dos comensais e, como um certo génio maligno que atormentou o pobre René, haveria de fazer parecer óptimo aquilo que apenas era sofrível.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Encontros

Num bar da praia a que vou, nas raríssimas vezes que me disponho a ir a tal lugar, quem haveria eu de encontrar? É verdade que na ilha adjacente os jesuítas possuem uma casa de veraneio e não é a primeira vez que por ali encontro o padre Lodovico Settembrini. Venho contemplar o oceano, disse-me. Aliás, é o que sempre me diz quando o encontro por aqueles sítios. Não estava, porém, a olhar para o mar, mas lia um jornal enquanto bebia café. Faço-lhe o reparo, mas ele não desarma. A contemplação é da janela do meu quarto. Dali, vejo o mar como ele é. Largo, profundo, de um azul ao mesmo tempo celestial e tenebroso. Daqui, vejo as ondas sobre a areia e uma ou outra rapariga em biquíni. Suspendeu o discurso e deu uma gargalhada. Eu sei, eu sei, continuou, que já não tenho idade para estas visões, mas elas metem-se mesmo diante dos olhos e eu ainda não sou cego. Não imaginei, respondi-lhe, que o problema fosse a idade, mas a condição. Olhou-me com despropositada ironia e retorquiu: a condição sacerdotal não elimina a condição de ser homem. Às vezes, nem dá um modo de lidar com essa particularidade, mas, afirmou como se me quisesse tranquilizar, o meu olhar é inocente. Com o tempo consegui chegar ao estado de inocência. Depois, mudou de conversa e disse-me que o Hans Castorp chegará amanhã com a mulher. Vêm da Galiza, de casa da família dela, Emilia Bázan. Podemos ir jantar todos à Brasserie, aqui perto, sugeriu. Eu disse-lhe que era uma excelente ideia, mas havia que ter em conta se o concelho vizinho não estaria sob o efeito de medidas restritivas por causa da pandemia. Seja como for, acrescentei, trato do assunto. Na praia, havia apenas os alunos das escolas de surf. Para eles não há bom nem mau tempo. O mais nublado dos dias é ainda óptimo para cavalgar as ondas. Terei também de comprar uma prancha para a minha neta mais velha, disse para mim mesmo.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Tributos

Aqui perto alguém ouve rádio. Há palavras que não decifro e uma música que reconheço como inimiga dos meus ouvidos. Presumo que seja alguém da minha geração, embora eu não pertença à minha geração. Não é que me julgue acima dela, pelo contrário. Sou anacrónico e nunca consegui acompanhar o ritmo das coisas que fizeram a moda no tempo em que as pessoas ligavam à moda. Há dias, numa daquelas reuniões online em que a vida se tornou fértil, um dos participantes, músico nas horas vagas, disse que o seu grupo ia actuar, não consegui perceber onde, e prestar tributo a um outro grupo inglês, famoso naqueles dias em que se é novo e se deveria prestar atenção a essas coisas. Um frémito perpassou pela assistência virtual, desejosa também de tributação. Fiquei com pena de mim, pois não senti qualquer frémito, nem vontade de qualquer tributo. Para tributo, já bastam os impostos, diria eu, caso fosse um liberal, mas não sou. Como narrador, estou proibido pelo autor de ter qualquer ideia política, o que talvez seja uma vantagem. Acabei uma das tarefas que a realidade me impôs e tenho uma enorme vontade de ir dormir uma boa sesta. Talvez não seja uma má ideia.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Língua morta

Pensava que iria fazer uma longa viagem de uns dezasseis ou dezassete graus, mas afinal ficou-se por uns míseros nove. Julho, sem piedade, abre o véu para que o Sol, na sua inquietação, dardeje a Terra. O resultado é, muitas vezes, devastador. Já era tempo de o astro se tornar grego, cultivar a justa medida e fazer sua a máxima nada em excesso. Talvez por tudo isso tenho na mão um livro com uma belíssima capa, em tons de azul, feita a partir de uma imagem de Pieter Bruegel. Descubro que a tiragem foi de 300 exemplares e que a editora tem o sugestivo nome de Língua Morta. O que tem tudo isso a ver com o calor? Talvez nada, mas o título do livro é Canícula, o que dá nome um nome tórrido a um conjunto de poemas de Daniel Jonas. De uma outra imagem do mesmo Pieter Bruegel fez-se, mais uma vez, capa de livro, também de poesia, Spinalonga, de Amândio Reis. Enquanto escrevo isto, oiço múltiplas comunicações sobre assuntos tão tolos quanto inverosímeis, que hão-de servir para coisa nenhuma. É um prazer viver num país onde a maior parte das coisas que se fazem não servem para nada, embora sejam absolutamente necessárias. Sem elas, talvez o mundo acabasse. Seja como for, espanta-me sempre a grande capacidade que os portugueses têm de adaptar-se a cada novilíngua orwelliana que surge. Gostamos muito de falar e não tememos nunca a falta de assunto. Mais logo terei de fazer uma caminhada. Grande, de preferência, pois preciso de acumular pontos cardio, seja lá isso o que for. O que me apetece, todavia, é uma bela soneca. Na verdade, usamos a língua como fosse uma língua morta.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Fastio

Tudo isto se tornou muito monótono. Olha-se para um jornal ou para um noticiário na televisão, e parece que a realidade flutua entre o judicial e o patológico. A pergunta sacramental de quem se dispõe a ver notícias é quem foi hoje preso ou condenado? Quando as coisas não começam por aí iniciam-se com a pandemia. Os casos aumentam, também os internados e aqueles que estão em cuidados intensivos. Há muito que julgo ser a realidade uma coisa perversa. Há que ser mais preciso. Ela é perversa e muito fastidiosa. Dizia-se, não sei se ainda se diz, que uma pessoa sem vontade de comer tinha fastio. Eu, em criança, sofria imenso de fastio. Depois, vá lá saber-se a razão, passou. Hélas! Daqui a pouco terei de sair de onde estou, um lugar de temperaturas amenas, para regressar à antecâmara do inferno. Vou fazer uma viagem de 10 graus. Na sexta-feira, estarão 40. Por antecipação, sinto já os meus velhos neurónios a derreter. Se com eles arrefecidos aquilo que escrevo é o que é, o que será quando mergulharem nesse braseiro, prova das alterações climáticas?

domingo, 11 de julho de 2021

Cheirar a esquecimento

Um poeta romeno escreve os seguintes versos Die Schöne Müllerin / entra no quarto / cheirando a esquecimento. A primeira reacção é ouvir esse ciclo de canções de Schubert. Envolto pela música posso deter-me noutra paragem. Esta é equívoca. Não é claro quem ou o quê cheira a esquecimento. A bela moleira? O quarto? Inclino-me para o quarto. Se a moleira é bela, por que razão haveria de cheirar a esquecimento. Duvido que uma mulher bela, mesmo se moleira, possa transportar consigo o aroma do oblívio. Não lhe seria permitido. Resta o quarto. Quem nunca entrou num quarto que cheirava a esquecimento, como se a vida que nele existiu tivesse acabado há muito? Tudo parece composto, a cama feita, os móveis arrumados, mas tudo isso aconteceu noutra era. Quem viveu nesse quarto há muito que terá perdido a memória dele e quando alguém ali entra, é recebido pelo odor do abandono. Hoje é domingo. Aos domingos, almoço sempre mais tarde e tenho uma certa inclinação para escrever disparates. Temos de passar o tempo de alguma maneira. Fischer-Dieskau continua a cantar em Paris, nesse longínquo ano de 1991, o ciclo Die Schöne Müllerin. Há coisas que resistem ao esquecimento ou que levam mais tempo a serem esquecidas.

sábado, 10 de julho de 2021

Um sábado de Julho

Devia estar num sítio para onde se anunciam 38 graus. Literalmente, pus-me ao fresco, tão fresco que nem aos 23 chegará. De manhã, um dos sites que me informa sobre os devaneios do clima dizia-me que aqui estavam 17 graus, mas a temperatura sentida era apenas de 13. Com isso confirmei a velha tese do senhor Cartesius. Os sentidos enganam-nos. Sente-se uma coisa e está outra. Tinha pensado comprar hoje um daqueles jornais de fim-de-semana. Há muito que deixei de ler a imprensa em papel. Tinha visto, todavia, um artigo que queria ler. De manhã, quando fui à rua, esqueci-me de comprar o jornal. Talvez para compensar, também me esqueci qual era o artigo e nada me garante que, comprado o jornal, me consiga recordar. Em contrapartida não me esqueci de adquirir um belo Alvarinho. Estou certo que valerá mil artigos de jornal. Não sou um cultor de vinhos brancos, nem de verdes. O Alvarinho é excepção. Só dois concelhos constituem a região do Alvarinho, Melgaço e Monção. Saiu-lhes a sorte grande. Também em Espanha, do outro lado do rio, há uma zona de Albariños. Não é por propensão patriótica, mas prefiro os de cá. Os galegos, por certo, preferirão os deles, que, diga-se, são bons, mas não falam português. E não vale a pena virem com a história do galaico-português.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Um padre contaminado

Fui contagiado pelo Papa, ouvi. O Papa tem alguma doença contagiosa, apanhou COVID, perguntei, e acrescentei, de imediato, que não sabia que tinha estado com Sua Santidade. Nesse momento o padre Lodo deu uma enorme gargalhada. Não sou digno, afirmou, de ser por ele recebido. O contágio é outro, a bola. Franzi o sobrolho e disparei para o telemóvel, a bola, mas qual bola? O futebol, o campeonato da Europa. O Papa é adepto de um clube argentino e eu, que nunca na vida liguei ao futebol, estou em transe devido à final do campeonato da Europa. Sempre sou italiano, é preciso não esquecer, embora eu quase me esqueça todos os dias. Sou de uma família iluminista, mas que deu à luz um jesuíta. A minha vontade foi sublinhar que cada um terá os vícios que entender, mas contive-me. O pior é que o padre Lodo está mesmo entusiasmado. Sabe, inclusive, o nome dos jogadores italianos e até de alguns ingleses. Nunca imaginei, foi preciso chegar a velho, continuou, para olhar para a bola. Depois riu-se. Talvez Deus me perdoe este entusiasmo, mas a minha idade terá de me dar algumas prerrogativas, e gostar de futebol talvez seja um pecado, mas apenas venial, acrescentou. Quando nos despedimos, perguntou-me se não lhe desejava boa sorte para a final. Claro que desejo, sempre são latinos e os bárbaros da ilha não sabem o que é cultivar a vinha. Ele riu-se.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Palavras sem significado

Há palavras que não querem dizer nada. Julgo que foi Roland Barthes, mas o tempo corroeu a certeza, que chamou a atenção para a não significação do adjectivo agradável. Dizer que um romance ou um concerto são agradáveis não diz nada sobre eles. É uma forma de não dizer aquilo que se sente ou pensa, para evitar um inútil conflito. Há pouco li, num comentário a uma peça musical, outra expressão que não quer dizer nada. Uma música inspiradora. No entanto, quem a escreveu tem a inocência que o presumível Barthes não tinha. O comentarista julga mesmo que é um elogio fazer notar que a música é inspiradora, pois nada tem a dizer sobre ela e encontrou ali um refúgio para a sua necessidade de exprimir uma opinião. Deveria haver um dicionário de palavras que não querem dizer nada. Seria de grande utilidade para a educação da urbanidade das pessoas. Existe quem julgue ser de grande mérito dizer a verdade – isto é, aquilo que acha que é a verdade – e não hesita dizer coisas desagradáveis, sem que isso contribua para uma atmosfera mais saudável. Acaba sempre por se justificar, eu cá não tenho papas na língua. Quem a ouve sente pena pela falta das papas ou pela existência da língua. Educar as pessoas para a urbanidade não é um exercício de cinismo, como se poderá supor. O que cada um acha o que é a verdade e aquilo que esta é são coisas muito diferentes. Se o assunto não for decisivo, optar pela urbanidade e usar uma palavra que não significa nada torna o mundo mais aprazível. Alguém pode dizer que este texto é agradável ou inspirador. Isso não quer dizer nada sobre ele, mas a atmosfera fica menos poluída. É tudo uma questão de poluição. Agora, porém, terei de ir ler um conjunto de coisas que não posso dizer que sejam agradáveis e inspiradoras. 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

No labirinto da saudade

Hoje fui à capital de distrito. O sítio que me esperava tem, há muito, novos caminhos, mais rápidos, para lá chegar, mas como é hábito fui por aqueles que conheço desde a infância. Os outros são para mim meros atalhos disfarçados de ruas modernas e não possuem nada que justifique a passagem por eles. Não será descabido dizer que fui fiel à tradição, a uma tradição pessoal. Pessoas mais objectivas dirão, não sem razão, que sou um conservador. Custa-me ver aquelas pessoas que chegadas a uma idade razoável continuam a depositar uma fé inabalável no futuro. Ora, a única coisa certa que o futuro trará é o facto de não estar cá, de não haver lugar para mim. Nem acho que isso seja um mal ou uma injustiça. É a natureza das coisas, há que aceitá-las no que são e evitar dourar a pílula com expectativas que nunca se poderão comprovar. Se olhar para o passado, constato que muitas coisas mudaram, tornaram-se melhores, muito melhores. Isso não significa, porém, que continue a acontecer. Quanto à fé no futuro, o melhor será suspender o juízo e evitar louvar o que não se conhece nem conhecerá. Seja como for, gosto sempre de ir à capital de distrito. Não é que seja uma cidade esplêndida e cosmopolita, não é, mas, de alguma maneira, faz parte do meu passado. Hoje devo ter acordado com alguma alteração neuronal. Não tarda e dou entrada no labirinto da saudade. O melhor será marcar consulta.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Almotolias e traduções

Talvez ainda existam almotolias, mas por certo os serviços de manutenção dos parques infantis da cidade não as possuem. Caso as possuíssem, já teriam oleado, agora que estamos em pleno Verão, as roldanas dos baloiços. Então, as crianças baloiçar-se-iam sem o ruído opressor do ferro a ranger na fricção com outro ferro, como se a matéria fosse viva e tivesse estados de alma e vontade de chorar. Fora eu compositor e escreveria uma peça, talvez uma peça para violino, piano, fita magnética e roldanas. Como não o sou, o mundo fica poupado ao meu desvario, evitando experiências insanas nascidas numa mente ociosa. Também poderia ser mecânico e ter em casa uma almotolia. Pegaria nela e, pela calada da noite, olearia o ferro para descanso dos ouvidos de quem vive por aqui. Falta-me, porém, o talento para a mecânica, não tenho almotolia, nem para o azeite. Ambas as palavras têm origem árabe – al-motoliiâ e az-zait – como muitas outras. Consta que as línguas têm menos preconceitos rácicos que aqueles que as falam. A tarde avança irrequieta. A tradução de um verso de Eliot deixou-me inquieto. O poeta escreveu The only wisdom we can hope to acquire. O tradutor verteu para O único saber pelo qual podemos ter esperança. Eu traduziria por A única sabedoria que podemos desejar, deixando cair o acquire, pois todo o desejo traz nele o impulso para a aquisição do desejado. Bem, perguntar-se-á, que sabedoria é essa. Eliot responde: Is the wisdom of humility: humility is endless. O tradutor transforma a sabedoria da humildade, que o poeta propõe como um fim em si mesmo, num saber instrumental que serve para poder ter esperança. Com isso perde-se o essencial, a ideia de a humildade não ter fim. Sendo um fim e não um instrumento ela é infinita. Isto, porém, são especulações de quem tem de ocupar espaço com palavras. Amanhã ocorrer-me-á algo mais interessante, assim o espero. Uma criança chora, alguém acelera uma moto e há dias que não vejo anjos nos telhados dos prédios envolventes. Terão ido de férias?

domingo, 4 de julho de 2021

Quartéis e lustros

Um quartel. Quantas pessoas ainda saberão o que é um quartel ou que este contém cinco lustros. Foi precisamente há um quartel que nasceu a ovelha Dolly, o primeiro animal clonado. Isto terá entusiasmado imensa gente e também assustado outra tanta. O susto nasce da possibilidade de se clonarem seres humanos. Não tenho dúvidas que haverá quem, se pudesse, clonava-se. Aliás, encheria o mundo de clones seus. Por mim, dispenso ser clonado. Para desgraça, já basto eu. Por outro lado, ainda continuo a achar mais interessante o velho método de fabricar bebés humanos. Talvez a técnica, um dia, se torne mais precisa e seja mais eficaz produzir seres humanos por manipulação genética, uma espécie de propagação por mergulhia (como me fui eu lembrar de tal coisa?), de que reproduzir segundo a tradição com todo o desgaste de energia e de emoções que o caso ainda exige. Com a idade as pessoas tornam-se conservadoras. Também hoje faz 245 anos, nove quartéis e quatro lustros, que as treze colónias declararam a independência do império britânico, dando origem aos EUA. Talvez haja uma relação entre uma coisa e outra, é possível que os americanos quisessem ser uns clones dos britânicos, independentes e imperiais como eles, mas isto é especulação. Eu gosto muito da América, mas gosto ainda mais de não ser americano, coisa em que não tenho qualquer mérito. Ouvem-se por aqui as sirenes, mas nada disso tem a ver com a clonagem da Dolly nem com o Dia da Independência. É um velho hábito usado por ambulâncias, carros da polícia e de socorros a náufragos.

sábado, 3 de julho de 2021

Trivialidades

O sol, no sítio para onde fugi, nasceu tarde, para dizer a verdade ainda não nasceu por completo. Durante grande parte da manhã manteve-se oculto por uma muralha densa de nuvens e, mesmo agora, só a espaços espreita o que se passa em terra. Caminhei durante seis quilómetros, a maior parte do tempo envolto numa névoa vinda do mar. O farol de um dos molhes não era visível a cem metros e os barcos que saíam do porto e passavam diante dos meus olhos eram apenas esboços, navios-fantasmas, qualquer coisa vinda de um mundo desconhecido. Num poema de Louise Glück leio o verso Um dia seguia-se continuamente a outro. Será legítimo reconhecer como grande poetisa quem escreve um verso tão trivial, perguntará alguém que espera da poesia um festival de fogo-de-artifício. Qualquer dia se segue a outro, numa caminhada contínua, mas será que vemos isso? Será que sentimos até ao fim o enigma que essa trivialidade encerra? Qualquer coisa de inquietante – uma inquietante estranheza, para citar Freud – se insinua na familiaridade aparente do verso. Os sábados, oiço dizer, não se devem gastar com conversa tão soturna. Aquiesço e penso que os sábados se seguem continuamente às sextas-feiras. O sol continua em processo de libertação das nuvens que o escondem. Não tarda e mostrar-se-á exuberante, talvez porque hoje seja mais um sábado que se segue a uma sexta-feira.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Acção paralela

Nos poucos cronistas de jornal que ainda leio conta-se um que deu à sua coluna semanal a designação de Acção Paralela. Não vou aqui contar a história da Acção Paralela, nem tão pouco especular sobre as razões que terão motivado tal escolha pelo colunista. Não o conheço e as suas motivações não me interessam. Digo apenas que é uma citação literária de um dos elementos da trama romanesca de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Não parece, esta informação, particularmente motivante para levar quem nunca leu o exorbitante romance a lê-lo. Bem, há quem pense que não se trata de um romance, mas de um anti-romance, talvez influenciado pela Física que à matéria opôs a antimatéria. Já me estou a perder no que ia dizer. Disse que o romance é exorbitante, pois, apesar de inacabado, ou talvez por isso, tem largas centenas de páginas. Quem gostar de literatura, eis uma obra excelente. Quem gostar de entretenimento, esqueça. Há por aí muitos livros venturosos de autores aventurados. Musil faz parte de um quinteto que abriu o romance à modernidade. Desse grupo constam Kafka, Broch, Joyce e Proust. Isto, todavia, não interessa a ninguém, ainda menos se se está a entrar no fim-de-semana, o qual é uma espécie de acção paralela à semana útil – embora, não se perceba em quê – propriamente dita. Caso eu tivesse talento e propensão para romancista, haveria de escrever um romance com o título Acção Paralela, no qual haveria de ficcionar a minha natureza de narrador sem qualidade. Julho entregou-se ao calor. Talvez este narrador se devesse entregar a uma psicanálise do fogo.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Arremedos

Hoje lá me submeti a um teste à COVID-19. Faz parte da vigilância que com que se pretende trancar a casa roubada. Não é que seja uma provação, nem nada que se pareça, mas já era altura de encontrarem outro método para recolher os indícios do crime. Se não se deve meter os dedos no nariz, também será pouco elegante enfiarem uma zaragatoa por ali adentro e escarafunchar, fazendo-a rodar para um lado e para outro. Pior que a impressão física sentida é a perspectiva estética do evento. Há que manter a compostura mesmo numa coisa como essa. Passam das nove e meia da noite e ainda há uma luz crepuscular. O céu tem uma cor de cinza quase a cair para o chumbo. Não tarda, estará negro. Então, dir-se-á é de noite. Alguém poderá responder já não há noites como as de antigamente. Essas, sim, eram noites a sério, negras, a via láctea bem definida. Agora, há tanta luz na cidade que já nem se vê a noite. É tudo um arremedo. Ainda haverá gente que diga arremedo? Vindas da rua, umas gargalhadas denunciam um convívio jovial. Pelo tom, parece que os convivas se arremedam uns aos outros. É de noite. O teste deu negativo, o que me permite pensar no fim-de-semana.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Uma equação convincente

Adeus Junho, amanhã já não estarás cá. Foi, apesar de tudo, um Junho cordato, contido, não se entregou a grandes exercícios hiperbólicos. Cumprido o seu papel, para onde irá? Para lado nenhum. Esse é o lugar que o espera. Veremos se Julho virá virtuoso ou se o vício tomará conta dele. No chão, arrumado a um canto, está um caixote fechado, cheio de livros. Ando há meses para decidir onde os colocar, mas ainda não cheguei a qualquer conclusão. Imagino que não os deveria ter comprado. Talvez sofra de uma adicção. Há dias comecei a pensar em pôr à venda parte dos meus livros. Não os vou ler, falta-me o tempo e a disposição. Ainda não ganhei coragem suficiente para me desprender de certos coisas, mesmo que elas me sejam inúteis. Por exemplo, quanto me renderia a bela edição espanhola, um volume de capa dura, de Parerga y Paralipómena, de Schopenhauer. Está esgotada e a reedição à venda está dividida em dois volumes, com o preço de 37 euros cada um. Talvez me rendesse 25, apesar de estar como nova.  Abro a obra ao acaso e leio: Acerca da harmonia das esferas, dever-se-ia considerar que acorde nasceria se se combinasse uma sequência de sons em proporção às distintas velocidades dos planetas, de tal maneira que Neptuno fizesse de baixo, Mercúrio de soprano. Esta equação, em que o x seria o acorde a nascer, deixa-me extasiado. Desisto de pensar em vendê-la. Olho-a com reverência, fecho-a com cuidado e deito-a no seu lugar na estante. Espero que não acorde e não descubra o que me passou pela cabeça. Também os livros são seres susceptíveis. Talvez Julho me deixe abrir o caixote e arrumar os livros num lugar que hei-de encontrar.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Juramentos e maçadas

Ocorreu-me esta manhã que o problema estaria no célebre juramento de Hipócrates. Talvez os médicos, seja qual for a sua especialidade, tenham jurado nunca chegar a tempo às consultas. Parece-me uma explicação sensata. A consulta é marcada para as dez horas da manhã, mas, devido ao juramento, o médico só chega ao consultório pelas dez e meia ou onze horas. Isso irritava-me, pois não compreendia o motivo. Hoje, porém, ao perceber a verdadeira razão dos atrasos, não me irritei, pois creio que todos devem cumprir aquilo com que se comprometem. E se chegar atrasado faz parte do juramento de Hipócrates, então é bom que nenhum médico chegue à hora marcada. De resto, a consulta não tem que contar, apenas uma rotina. O mais desagradável era o vento que corria pelas ruas. Sob um sol quente, dançava um vento frio. Este tinha a vantagem de amenizar a temperatura, mas tornava desagradável uma pessoa andar vestida de Verão. Ontem, ao fim da tarde, disse já se notam os dias mais pequenos. Que exagero, ouvi em resposta. Talvez ainda não se note, mas as noites continuam a crescer. Ora, se as noites crescem, os dias diminuem. O país, ao que consta, encontrou outro motivo de entretenimento, depois do futebol ter dado em águas de bacalhau, seja o que for o que isto signifique. Uma história policial. Precisamos sempre de qualquer coisa para evitar olhar para a realidade, a qual, diga-se, é uma grande chatice. Talvez devesse dizer a realidade é uma grande maçada.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Moderações metafísicas

Acabei de ter, segundo a escala de Álvaro de Campos, um momento metafísico. Dizia ele – bem, não era o Álvaro de Campos que o dizia, pois nem sequer tinha dado entrada no clube dos nascidos, mas o Fernando Pessoa que o escrevia – Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Acabei de comer uns quadrados de chocolate, portanto penetrei nesse campo obscuro da metafísica. Dito isto, quero registar a minha discordância com o Álvaro de Campos ou com o Fernando Pessoa, ou com os dois. Para mim, nozes também são metafísica. Assim como batatas fritas, aquelas dos pacotes. É verdade que estas metafísicas não são idênticas. As nozes são uma espécie de metafísica da natureza, o chocolate, apesar das suas gradações, é claramente uma metafísica do espírito. Já as batatas fritas de pacote fazem parte da metafísica, embora eu não saiba de quê. Talvez sejam uma metafísica ao gosto popular. Todas estas metafísicas exercem sobre mim uma atracção, que não é fatal porque tenho uma certa tendência para a moderação, coisa fora de moda há muito. Fica sempre bem uma pessoa ser radical e eu fui-o há décadas, mas aquilo não calhava bem com o meu espírito e moderei-me. Nada em excesso, mesmo o chocolate, mesmo as nozes, mesmo as batatas fritas. Portanto, na metafísica sou um moderado. Uma tristeza.

domingo, 27 de junho de 2021

Tipologias romanescas

Talvez porque tenha tido, durante a noite, um período de insónia, que aproveitei para avançar na leitura de um romance, de manhã dei comigo a fazer uma espécie de taxinomia dos romancistas. Há os que escrevem para agradar ao público, quanto maior for este, melhor para eles. Há os que escrevem para agradar à crítica, hoje quase toda ela universitária. Estes dois tipos de escritores, apesar de terem em comum a inclinação para agradar e o gosto da glória, são diferentes. Os primeiros cultivam narrativas com enredo, com pouca atenção à inovação formal. Os segundos cultivam a inovação na forma que há-de fazer ressoar os encómios da crítica, embora desprezem, não poucos, o enredo, o contar uma história. Existirão outros, porém, que não querem saber da opinião nem do público nem da crítica. Estão comprometidos com o enigma da acção e da paixão e com a verdade que se esconde no agir e no sofrer dos homens. Não escrevem para agradar nem para desagradar, mas para descobrir. A sua poética é uma poética da descoberta, uma heurística. Depois, estes pensamentos desvaneceram-se, fui caminhar perto do mar e apanhei uma chuvada, ligeira. Aí os meus pensamentos eram muito mais prosaicos. Como chegar depressa a casa? Ou então mais imprecativos, onde está o raio do sol? Depois, a chuva foi-se levada pela nortada, o sol chegou e assentou arraiais, mas o pensamento não voltou a interessar-se pelo tipo de escritores. Na verdade, todo aquele pensamento era absurdo, mas isso é o pão nosso de cada dia, pensar coisas absurdas. O domingo cresce e o almoço será tardio, esta é a minha realidade.

sábado, 26 de junho de 2021

Sábados difíceis

Hoje comecei o dia com uma caminhada de seis quilómetros. Não havia sol nem vento e, por onde passei, poucos eram os que por lá andavam. Os sábados convidam as pessoas a manhãs recatadas, foi o que pensei. Depois, o dia expandiu-se, passou a fronteira do meio-dia e deixou-se cair na armadilha da tarde. As notícias, porém, não distinguem os dias úteis e os inúteis, o vírus também não, embora tenha um talento especial para a metamorfose e um gosto acentuado pela alteridade. Deveria evitar, dizem-me, projectar na fonte do nosso pesar características humanas, mas se tudo o que nos acontece e nos envolve é sentido e compreendido por faculdades humanas, não há outro remédio que não seja contaminar tudo isso, vírus incluídos, com as nossas projecções. Basta olhar para uma paisagem para que ela se humanize. Isto não significa que se torne melhor ou pior, mas que toma as características de quem para ela olha. Se isto não é verdade, poderia ou deveria sê-lo. Há sábados em que é muito difícil encontrar motivos para escrever. Cumpro ordens, apenas, e isso é tudo o que eu, pobre narrador, posso dizer em minha defesa. Talvez devesse ter sido mais frugal ao almoço, talvez.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Prelúdio e fuga

Para as três da tarde estão anunciados 37 graus. A partir de agora o calor vai entranhar-se nas paredes e a pequena cidade transforma-se numa antecâmara do inferno. Os pássaros meus vizinhos, todavia, parecem estar no paraíso. Cantam e voam como se estivesse em plena Primavera. Na rua, os vultos esgueirem-se entre sombras. Quem tem de suportar o sol dá passos vagarosos, como se não tivesse força para andar. Um prelúdio ao fim-de-semana que anuncia uma fuga. O problema das fugas é que acabam com os fugitivos a voltar ao lugar onde estavam. A verdade, é preciso reconhecê-lo, é que a maioria das pessoas fica extasiada com o Verão. Choram-no durante todo o ano e mal chega entregam-se-lhe com não escondido prazer. Talvez seja por isso é que ele se dilata pelo Outono dentro. Abro ao acaso um livro de Louise Glück e deparo-me com um poema com o título Pleno Verão, que começa assim: Como posso ajudar-vos, se cada um de vós / quer uma coisa diferente – sol e penumbra, / húmida sombra, calor seco. Então, penso que ser Deus é um trabalho árduo perante a diversidade dos desejos que Lhe são dirigidos como se fossem preces, acontecendo mesmo que muitos pedem uma coisa e o seu contrário. Esquecem que Deus pode tudo, mas no catálogo da sua omnipotência não consta poder o impossível. Chegou a hora de almoço.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Nostalgias

Há certos objectos com que estabelecemos uma relação funda, talvez porque nos tenham proporcionado um prazer, que já não conseguimos identificar ou explicar, mas que continua a viver nos subterrâneos da nossa consciência, ou talvez tenham despertado uma nostalgia incompreensível. Desses objectos fazem parte dois filmes. Não que esses filmes sejam realizações estéticas extraordinárias ou porque contem histórias avassaladoras. Tratam-se de Um Táxi Cor de Malva (1977), de Yves Boisset, e A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel. Aquilo que me prende a esses filmes é a sua atmosfera, uma certa ambiência despojada. O primeiro passa-se na Irlanda; o segundo, na Dinamarca. Não faço ideia por que razão me lembrei desses filmes agora. Talvez eles tenham vindo em meu socorro, dando-me motivo de escrita. Talvez exista em mim algum gene que pertence a esses mundos, de terras frias, e que tenha, em desespero perante o calor que cai por aqui, acordado uma nostalgia de alguma coisa que nunca vivi. Essas nostalgias, porém, são as mais duradouras e consistentes, as mais próximas da verdade. Um dia destes vou rever, mais uma vez, esses filmes, já que não posso voltar a lugares a que nunca pertenci, onde nunca vivi, onde nunca estive.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A noite imparável

Um dia ocupado com a nova modalidade de existência, reuniões por videoconferência. Umas por um motivo, outras por outro, a alma corrompe-se nestes ambientes que, apesar das aparências, pouco têm de etéreos. Todos se tornam em presenças fantasmáticas, imagens de imagens, como se se tivesse perdido o corpo e com ele a solidez. Depois, veio o futebol. Antes dos jogos, as selecções cantam os respectivos hinos. Primeiro, a Marselhesa. Depois, a Portuguesa. Há qualquer coisa de incongruente em tudo isto. Esses hinos pertencem ao mundo sólido, feito de aço e canhões. O português descende do francês, o que é justo, pois também Afonso Henriques descendia de franceses. A noite caiu há muito. Do céu, não vejo as estrelas, apenas a escuridão onde o dia se sepultou. As lâmpadas da iluminação pública derramam sobre as ruas a sua tristeza, enquanto os faróis dos automóveis varrem o ar com a luz inquieta de quem tem pressa. O vento açoita as acácias e estas gemem no gemido mecânico das roldanas dos baloiços do parque infantil. Afinal, ainda existem crianças. Não vivemos, por enquanto, numa dessas distopias que anunciam o inferno na Terra. Um cão de pequeno porte solta uns ladridos, imaginando-se, por certo, lobo feroz. As crianças, como as cigarras, não se calam. A noite corre imparável, mas não sabe para onde.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Viagens e deambulações

As traduções portuguesas – recentes – da poetisa Louise Glück, prémio Nobel de 2020, são excelentes. Não me refiro às traduções propriamente ditas. Sê-lo-ão, por certo. Estava a falar dos livros enquanto objectos estéticos. Os quatro que tenho – falta-me um – são belíssimos, com capas muito depuradas e contidas. Possuía apenas Uma Vida de Aldeia, mas hoje dei uma volta por uma grande superfície que se dedica a ser papelaria, livraria, centro de cópia, tabacaria e posto dos CTT e encontrei lá A Íris Selvagem, Averno e Noite Virtuosa e Fiel. Em falta está Vita Nova. Não se pode dizer que a autora não possua talento para encontrar títulos. Não é uma tarefa fácil e muitos livros chocam de imediato contra essa parede que é o título. Ao lado da grande superfície está uma lavandaria. Também fui lá, não para mandar lavar camisas, mas para levantar uma encomenda. É o que se chama na moderna linguagem do comércio e distribuição um ponto pickup. Trouxe de lá uns sapatos, mas já tenho trazido livros. É muito mais raro ir buscar roupa lavada. Vivemos num mundo de contaminação. Não me refiro ao vírus, mas a esta disseminação de funções que os antigos e especializados estabelecimentos lançaram mão para sobreviver. No primeiro poema de Averno aprende-se que não existir será uma consolação para a alma, a dos mortos. Este poema deveria ser lido acompanhado pelo primeiro texto de Viagens, de Olga Tokarczuk, também prémio Nobel, texto com o título Existo. Nele, uma criança descobre dolorosamente que existe. Uma página, apenas. O poema da Glück, curiosamente, também se refere a viagens, mais precisamente a Migrações Nocturnas. Olho para o título e fico grato à editora e à tradutora por não terem desfigurado o velho Nocturno num insípido Noturno, o qual parece a adição acidental de no + turno, talvez o turno da noite. O texto vai longo e ainda não consegui dizer seja o que for, o melhor é parar.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

De solstício em solstício

Hoje é o maior dia do ano. A partir de amanhã o ciclo inverte-se e a noite começa a crescer até que se torne maior que o dia. Este aparente eterno retorno do mesmo não podia ter deixado de fascinar os nossos antepassados. Uma luz laminada paira sobre o casario, fende as paredes, cai cortante pelo chão. Há pouco, porém, nuvens espessas tapavam o sol e parecia que Novembro tinha chegado. Também as notícias não são animadoras. Cada vez que se ergue a ilusão de uma esperança de nos vermos livres do vírus, a realidade revolta-se e entretém-se a desfazer as nossas mais queridas fantasias. Há pouco, alguém consertando uma máscara, disse: nunca mais nos livramos disto. Anuí. A vacina não elimina nem o contágio nem a transmissão. Atenua as consequências, o que é já uma grande vitória, mas essa vitória não representa a derrota do inimigo. Máscara, distância, higienização contínua das mãos, tudo isso parece ter vindo para ficar, para instaurar uma nova forma de habitar o mundo. As pessoas andam ansiosas para que tudo volte a onde se encontrava há pouco mais de um ano. Desconfio que haveremos de saltar de solstício em solstício, que os dias crescerão e minguarão, mas o passado é já uma terra distante a que nunca voltaremos.

domingo, 20 de junho de 2021

Um olhar turvo

Dois terços de Junho estão consumados. Tudo passa muito depressa, oiço dizer. É verdade, tudo passa muito depressa, ou muito devagar, como se as coisas fossem impedidas de passar num passo certo. A que velocidade deveria passar o tempo para que não fosse tomado ora pela mania da pressa, ora pelo vício da preguiça? Tenho de limpar os óculos. Uma mancha turva intromete-se entre os meus olhos e a realidade. Temo, porém, que os óculos não precisem de limpeza e o que esteja turvo seja o meu olhar. Os domingos na província prestam-se a este tipo de meditações, pois a província é um lugar onde o tempo parece exausto e em que a realidade vibrante das grandes metrópoles chega apenas com uma cor baça. Os serviços municipais esqueceram-se de olear as roldanas dos baloiços. Enquanto as crianças vão e vêm, um concerto de ferros a ranger entra-me pelos ouvidos. O céu nublou-se. Há pouco, um amigo ligou-me e disse que andava a ler um autor que foi cultuado pela nossa geração. Está surpreendido, pois o tempo não lhe tirou a vibração e o olhar acutilante. Senti um súbito impulso de voltar a essas leituras dos vinte anos. Talvez seja apenas a nostalgia desses dias onde tudo parecia possível e, na verdade, não o era. Não tarda o dia acaba-se e Junho também.

sábado, 19 de junho de 2021

Ordens de cavalaria

Lá em baixo, no parque infantil, crianças e pais parecem indiferentes à derrocada dos pobres cavaleiros de Cristo às mãos dos da Ordem Teutónica. Estive a ver um pouco do futebol, mas não consegui ir além da primeira parte. Não por causa do resultado favorável aos bárbaros, mas devido aos comentários que os locutores de serviço entendem distribuir sobre incautos espectadores como eu. Suspeito que haverá, no futebol, muita coisa execrável, mas o discurso à volta dele deve estar no topo das coisas a execrar. Recolhi-me ao escritório e, enquanto a bola vai e vem, entra e sai, vou pondo umas coisas em ordem. Não sou amigo do caos, embora não cultue em excesso a ordem. Talvez seja um aristotélico e pense que em tudo a virtude esteja no meio. Neste caso, uma ordem desordenada, para usar um oximoro e fugir ao pendor lógico do filósofo de Estagira. De vez em quando espreito um site onde vai dando o resultado da batalha e descubro que as probabilidades dos de cá ganharem eram completamente ínfimas. Um site de apostas pagaria quarenta euros, em caso de vitória de Portugal, por cada euro apostado. No caso de vitória alemã, apenas um euro e um cêntimo. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não sabe nada sobre cavaleiros de Cristo e Teutónicos, nem da metafísica da bola na barra ou da ética que impregna a extraordinária regra do offside. Seja como for, percam os portugueses por poucos ou muitos, há uma coisa inultrapassável. Eles, na Teutónia, o mais que podem fazer é cerveja. Nós por cá, cultivamos a vinha e dele extraímos o vinho. E nisso há toda uma diferença entre civilização e barbárie. Antes de ser acusado de alguma coisa indigna, volto para as arrumações. É esse o meu lugar.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Cruzamentos

Sem que se perceba a razão cruzam-se no horizonte das pessoas coisas que têm entre si uma conexão, mas que não foram procuradas por esse motivo. Há pouco, estive a ver o filme Vergonha, de Ingmar Bergman. O tema é a guerra. Tinha também começado a ler Kaputt, de Curzio Malaparte, com o mesmo tema, embora a experiência do italiano seja muito mais real. Talvez existam no espírito correntes subterrâneas que, apesar de desconhecidas, se manifestam nestas aparentes coincidências, mas que não serão mais que o resultado visível de um diálogo invisível que atravessa o fundo obscuro que há em todos nós, como existem em certos rios terríveis correntes sob a calma tranquila de lençóis de água benevolentes. Agora, o anoitecer é prolongado, como se o tempo se dilatasse e houvesse um medo real das trevas. Começou o fim-de-semana, o tempo parece não estar propício para grandes deslocações. Lisboa está sitiada aos fins-de-semana. Muitas são as formas que a guerra toma. Umas visíveis, outras invisíveis.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Perigos

Chove com intensidade. Adolescentes à espera de entrar no Instituto de Línguas abrigam-se sob uma varanda. Um deles, porém, decide pôr-se debaixo de água. Coloca-se no meio da praceta e abre os braços, como se estivesse crucificado. As raparigas não reagem à performance, e ele fica ali desolado, abandonado à sua cruz imaginária, a água a cair-lhe em cima, até que se farta. De imediato, a chuva decide suspender o aguaceiro. Penso muitas vezes que a espécie teria um notável upgrade caso conseguisse suprimir os anos de adolescência. Muitos dissabores se poupariam aos pais e os próprios adolescentes não perderiam nada com a supressão. Acordar do período de latência hormonal e de jogos infantis e encontrar-se em plena idade da razão, ainda com sonhos e ilusões, mas sem o pesadelo de um corpo à procura de si mesmo. Na espécie humana nada é fácil. Estão exuberantes as cevadilhas da escola ao lado e as que orlam a margem de um ribeiro que atravessa a zona. Ninguém, ao olhá-las, diz que o perigo que escondem. A beleza nunca deixa de ser uma coisa perigosa, mais perigosa que a adolescência.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Confissões e promoções

Também eu me confesso e faço exame de consciência. Não se pense, porém, que sou um confessado do padre Lodo. Amigos, amigos, confissões à parte. Nem sequer frequento os confessionários. Trata-se antes de uma prática das organizações modernas, sejam empresas privadas, sejam instituições públicas. Aí foi-se instituindo que todos, no exercício das suas funções, teriam de se entregar a um momento de confissão e de agudo exame de consciência. Para disfarçar o pendor religioso da manobra, deram-lhe o pomposo nome de auto-avaliação. Esta confissão, porém, é perversa. Presumo que aqueles que se ajoelham diante de um sacerdote seja para confessar, contritos, os seus pecados, as pequenas e grandes malfeitorias que andam por aí a fazer. O objectivo será obter o perdão, tranquilizar a consciência e ter esperança na recompensa na outra vida, caso haja uma. As confissões profanas são momentos não de humilhação perante o mal feito, mas de exaltação das virtudes e de esquecimento dos vícios. O que está em jogo é a subida na hierarquia, tornar-se chefe do chefe, do chefe. Enfim, chegar ao topo, o que não deixa de ser ainda uma evocação do céu. Sempre achei estes exercícios indecorosos, pois quem, em seu perfeito juízo, vai dizer mal dos seus desempenhos. Na confissão tradicional, o confessado escarafuncha no mal para se libertar dele. Na confissão moderna, há que esconder o mal do confessor, varrê-lo para debaixo do tapete e esperar que ele lá fique a germinar. Não é a absolvição que se pretende, é a promoção.

domingo, 13 de junho de 2021

O massacre dos teclados

Hoje devia registar aqui que o meu dia foi anódino e sem nada que merecesse nota. Não o faço porque também o são assim todos os outros dias e não deixo de incomodar o teclado com as irrelevâncias que me ocorrem. Os teclados são das peças dos computadoras as mais maltratadas. Ainda pior que os ratos. Estão constantemente a ser martelados, como se tivessem de sofrer uma contínua flagelação motivada sabe-se lá porquê. Hoje é dia de Santo António. Será que ainda se realizam os casamentos do santo? A Santa Casa da Misericórdia podia patrocinar o evento e realizava um jogo de sorte. Organizava umas apostas sobre quantos dias resistiria cada um dos felizes matrimónios. Quando se desse um divórcio, repartia o dinheiro das apostas por si própria, pelos vencedores e pelos venturosos divorciados. Ficava toda a gente a ganhar e as rupturas seriam menos dolorosas, caso ainda o sejam. Não devia estar por aqui a blasfemar contra a instituição casamento, embora ela já tenha tido melhores dias. Também eu já os tive, é verdade, como se pode vir pela densidade do meu escrito deste pobre domingo de Junho. Para que estive eu a massacrar o teclado?

sábado, 12 de junho de 2021

Uma conversa telefónica

Ainda tive esperança que os portugueses fossem um pouco mais prudentes e não se entregassem, como o estão a fazer, nas mãos da pandemia. Foi assim que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa comigo, quando me ligou depois de dizer missa. Respondi-lhe que, como italiano, não poderia falar muito de nós. Ele riu-se, depois acrescentou que, ao fim de tantos anos, se sente pouco italiano e mais português. Depois, hesitou, e rematou, bem a diferença é pouca ou nenhuma. Estou já duplamente vacinado, mas tenho medo, continuou. Não porque tema a morte, mas porque ainda me dá muito prazer estar vivo. Talvez isto não seja digno de um sacerdote, mas antes de ter entrado para a Companhia, eu era um homem. Não deixei de o ser. Depois, disse-me que tinha visto as minhas netas. Estavam com o pai. Que grandes que estão. Anuí. Evitou recordar-me o desgosto de não ter baptizado nenhum dos meus netos, coisa que sempre lhe deu um grande desconsolo. Informou-me, então, que iria passar uns dias à casa de férias dos Jesuítas, no Baleal. Agendámos um encontro e um jantar numa certa Brasserie que ambos estimamos. O pior, acrescentou, é se eles têm de fechar às dez e meia. Talvez não, respondi, sem grande fé. Uma desolação, disse, mas também a desolação faz parte da vida. Por certo, continuou, toda a desolação só acontece porque um bem maior haverá de nascer dela. Eu pensei que ele continuava às voltas com os argumentos sobre a existência de Deus, mas evitei comentar.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Uma desolação

Não faço ideia quem é Carlo Levi, embora uma rápida consulta me possa esclarecer. Há tempos comprei, num alfarrabista, um livro dele por causa do título, Cristo parou em Eboli. Havia, claro, uma ressonância em mim, a recordação de existir um filme, dirigido por Francesco Rossi, com esse nome e que nunca vi. Presumo que o assunto do livro não exerça, na pessoa em que me tornei, grande atracção. São memórias de um deportado político, durante a confiscação de Itália pelo fascismo. Li há pouco as primeiras duas páginas e talvez o livro mereça o tempo da sua leitura. Hoje o dia esteve quente. O que não é, para mim, um bom prenúncio. Aqui o calor jorra de todo o lado. Do sol inclemente, das paredes das casas, das faldas da serra. Tudo conspira para que o ar quente não possa sair, como se estivesse encurralado. A partir de agora e até Outubro, as coisas só piorarão. As pessoas aproveitam para oferecer as carnes aos olhos descuidados dos transeuntes. Talvez por isso evito grandes deslocações dentro da cidade. Bem, não estou a falar verdade. Ontem fui jantar à praça principal do povoado. Quem conhece a animação de uma cidade espanhola, grande ou pequena, só pode ficar desolado. A desolação, porém, faz parte da vida, como me disse ainda há dias o padre Lodo, mas não é hoje que conto a conversa havida.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Feriado e vírus

Parece que hoje é feriado, um feriado com um nome extenso, como se resultasse da fusão de vários e, como aconteceu com as freguesias, mantivesse a denominação de todos eles. Contrasta em capacidade de síntese com o feriado religioso de Todos-os-Santos. O pior é que aquela história do vírus é um incêndio que se reacende sempre que parece estar quase extinto. Há muitos anos, havia um anúncio que proclamava que um certo carro, cujo nome omito, veio para ficar e ficou mesmo. Assim está o vírus. A continuar deste modo, com o tratamento simpático que os portugueses lhe oferecem, não tarda e está tudo confinado outra vez. O principal canal de contaminação, li em tempos, é as narinas. Ora, muitos portugueses gostam imenso de usar máscara, desde que as narinas possam ficar descobertas, não vá o inimigo não ter maneira de se intrometer nos pulmões. Nem sei o que me deu, para estar a escrever sobre este assunto mórbido em vez de celebrar Portugal, Camões e as Comunidades. Vou continuar a fazer aquilo que deixei a meio. Ainda não fui à rua, mas talvez não tenha oportunidade. Já agora, o vírus não reconhece feriados, fins-de-semana nem dias santos. É absolutamente democrático.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Da polimatia e outras sagas

A saga das impressoras talvez chegue em breve ao fim. Descobri uma loja que vende tinteiros e que parece perceber de impressoras. Não a loja, mas quem lá trabalha. Conversei com eles e disseram-me para levar lá as maquinetas. A laser é impossível, com o que tem trabalhado, que tenha problema grave, juraram. A de jacto de tinta, logo se verá. O caricato é que a loja está mesmo à mão de semear. Vejo-a da cadeira do meu escritório. Saio de casa e não são cem metros. Não me a tivessem indicado e eu não iria lá. Para continuar num registo ao gosto popular, direi que santos de casa não fazem milagres. Neste caso, são santos ao pé da porta. São estas banalidades que dão sentido à vida. Um bom banho no mar das trivialidades e desaparecem as melancolias, o spleen, o absurdo da existência, a náusea e até a angústia, seja para o jantar ou para qualquer outra refeição do dia. Descobri um senhor chamado William Whewell. Viveu no século XIX e era uma daquelas pessoas que, para minha inveja, parecia saber de tudo. Leio que foi cientista, padre anglicano, filósofo, teólogo e historiador da ciência. Um autêntico polímata. Bem, eu dispensava ser aquilo que ele foi, até padre anglicano. Seja como for, ele, enquanto padre, não devia ter uma paróquia que lhe exigisse tempo. O que me interessou foi a obra The Plurality of Worlds. Achei um título magnífico. Na verdade, a obra, que facilmente se encontra na internet, não me pareceu particularmente estimulante, mas o título é como a embalagem. Quantas vezes compramos uma coisa inútil apenas porque tem uma embalagem que nos agrada? O que tem a ver a saga das impressoras com um padre anglicano. Que eu saiba, nada, mas negar que existe uma relação entre ambas as coisas, apenas porque ela é desconhecida, é cair numa falácia. E cair numa falácia é tão mau quanto cair num poço.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma pendência

Num pequeno excerto de um texto de Enst Jünger, leio que tudo o que nos cerca está impregnado, mais do que da racionalidade luminosa, de um cerrado mistério. Ele escreveu isto em 1916, em plena guerra mundial, nas instalações do Batalhão a que pertencia. Talvez a iminência da morte torne as pessoas mais sensíveis ao mistério, talvez existam pessoas mais sensíveis que outras. O texto reflecte uma pendência a que poderíamos chamar uma nova querela entre antigos e modernos. A racionalidade luminosa seria o facho erguido pelos modernos. O cerrado mistério, a sombra dos antigos. É possível, porém, que as coisas sejam bem mais simples. Quem conseguiria viver, envolvido em mistério, toda uma vida? Este dá profundidade à existência, mas as pessoas, como as crianças perante a escuridão, ficariam inseguras e temerosas. O que os pais fazem é ligar o interruptor, para que a luz dissipe o medo. A racionalidade dos modernos é essa luz. Não desfaz o mistério, mas oferece tranquilidade e segurança, ocultando-o na própria luz. A escola e as árvores que a envolvem oferecem-se ao meu olhar tranquilo, batidas pela inclemência da luz de Junho. Se ali há algum mistério, a luz não o deixa ver.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

As horas

O dia deslizou rapidamente. As horas, quando mais precisamos que dilatem, mais elas têm uma inclinação para minguar. Esta separação entre as horas cronológicas e as psicológicas será sentida por toda a gente. Há uma duração uniforme, pautada pela convenção que inventou a divisão do dia em horas, destas em minutos e destes em segundos. Tudo isto parece, se se olha com exactidão, de uma regularidade imutável. Todavia, o mesmo não se passa no nosso pobre espírito. A regularidade torna-se em irregularidade, conforme as paixões que nos atormentam. Por vezes, uma hora não é mais que alguns segundos. Outras, contudo, parece dilatar-se, com se fosse tomada por um desejo hiperbólico. Hoje precisava de horas pouco dadas a grandes velocidades. Elas decidiram o contrário. Nem nas nossas horas temos mão. 

domingo, 6 de junho de 2021

Enviesar os olhos

Talvez seja uma ilusão de óptica, mas os loendros da escola aqui ao lado já floriram. Arbustos verdejantes deixam-se trespassar por pequenas mancha cor-de-rosa. Sob o sol, brilham e, tocados pelo zéfiro, dançam ondulantes perante o meu olhar. A vida vegetal não é menos enigmática que a animal. É menos dada a fogos-de-artifício, a grandes explosões de ira, aos jogos onde a vida e a morte se entregam a núpcias que parecem eternas. Se mata, é por descuido da natureza ou da vítima. O domingo corre para a hora de almoço. Vai chegar quase aos 30 graus, para anunciar a praga do Verão. Irei, como é habitual aos domingos, almoçar tarde. Uma conversa havida sobre arte chegou ao grau de perplexidade que é habitual neste tipo de conversas. A dificuldade de oferecer uma definição consensual do fenómeno. A conversa acaba sempre por resvalar para um certo tipo de cepticismo, cujo pano de fundo é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte. Talvez Johann Scheffler, para desgosto de filósofos que fazem profissão da arte do argumento, possa ajudar. Uma ajuda inadvertida, como todas as boas ajudas. Viveu no século XVII e ficou conhecido por Angelus Silesius. Um pequeno poema diz-nos a rosa é sem porquê; floresce porque floresce / não cuida de si mesma; não pergunta se alguém a vê. Talvez a arte seja essa rosa sem razão e a procura de razões daquilo que a não tem seja uma doença. Uma doença, perguntará o eventual leitor. Uma doença ocular, direi, talvez não seja cegueira profunda, mas uma forma de enviesar os olhos. Imagino que os que procuram definir arte ou rosas ou seja o que for sejam vesgos. Isto, porém, são imaginações e fantasias de um domingo em que se almoça tarde.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Pesadelos e catarses

Nos últimos dias voltei a um lugar de que muito gosto. Revi dois filmes de Ingmar Bergman. Primeiro, Persona. Depois, Sonata de Outono. Talvez logo reveja um outro. Há autores que nunca me cansam. Talvez toquem qualquer coisa de essencial e, por isso, obrigam o espectador a comprometer-se com a sua obra. Conheço muita gente que detesta o cinema do realizador sueco, que o acho soporífero. Eu encolho os ombros e penso que mais vale adormecer com um filme do Bergman de que com um comprimido. Será menos tóxico. A tarde de sexta-feira corre desvairada, como se uma ânsia a precipitasse para o rápido fim-de-semana. Recebo mensagens no telemóvel, abro-as, sorrio, para depois voltar os olhos para o horizonte. Toldam-no algumas nuvens, mas passarão. O vento de Norte empurrá-las-á para longe, para que a noite se cubra de estrelas, e os sonhadores tenham motivo para os seus sonhos. Também os dois filmes de Bergman tratam de sonhos, mas pouco benévolos. A vida dos seres humanos pode ser um enorme pesadelo. O cinema de Bergman tem um ponto de contacto com a tragédia grega. Funciona como catarse. É, para os espectadores, um exercício de purificação.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Transubstanciação

Hoje deu-me para andar a cismar sobre coisas que não aproveitam a ninguém. Pensamos que muitos dos nossos gestos têm um significado determinado pelas próprias circunstâncias onde eles ocorrem, sem que uma outra ordem intervenha para lhes dar sentido. Isto veio a propósito de gestos como os de Marcel Duchamp, que enviou um exemplar de um urinol fabricado em massa para uma exposição de arte ou que transformou em obra de arte uma trivial pá de limpar neve, dando-lhe o irónico nome de Antecipação de um Braço Partido, ou de Andy Wahrol que mostrou as Brillo Boxes, vulgares caixas de esfregões de palha de aço, como obras de arte. Estes gestos são matéria que facilmente pode conduzir a meditações sobre a dessacralização da arte. No entanto, essa seria uma visão errónea daquilo que está em causa. Eles inscrevem-se numa cultura que tem como um dos seus fundamentos a transubstanciação do pão e vinho no corpo e sangue de Cristo. O que estes artistas fazem é transubstanciar objectos do quotidiano em objectos de uma outra ordem, em obras de arte. Os seus gestos não devem ser interpretados apenas – ou principalmente – como provocações ou questionamento sobre o que é a arte, mas como rituais de consagração que transformam o trivial no extraordinário. Com isto fazem uma revelação sobre o que é um artista e o que é a arte. O artista é um sacerdote e a arte é o exercício desse sacerdócio, que opera a transubstanciação, esse gesto ritual de consagração que transforma os materiais vulgares em materiais nobres. Esta fútil meditação talvez tenha nascido por hoje ser feriado, ainda por cima feriado religioso, o dia do Corpo de Deus.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Santa trivialidade

A meio da manhã tive uma aberta e fui à farmácia. Apresento a receita, a farmacêutica investiga na base de dados. Não temos agora, só logo à tarde, diz. Só vendemos até hoje um medicamento desses, acrescentou. Acredito, respondi. Foi a mim. Encomendei duas embalagens, pois aquilo tem um preço desagradável e talvez se possa estragar armazenado na gaveta dedicada a sucursal da farmácia. Dá para dois meses. De tudo isto concluí que pouca gente tem o problema que eu tenho ou segue a mesma terapia. Com o passar dos anos acumulam-se os medicamentos necessários para sobreviver. Rio-me, sempre que tenho de retirar os comprimidos das embalagens. Não apenas pela quantidade, mas porque o acto é mais um exemplo da lei de Murphy, adágio sobre o qual ainda ontem tive uma conversa. O provérbio diz o seguinte: Qualquer coisa que possa correr mal, correrá mal, no pior momento possível. Há vários exemplos da lei. O pão cai sempre com a manteiga para baixo. A fila do lado anda sempre mais depressa. A informação mais importante de qualquer mapa está sempre na dobra ou na margem. Tudo isto é informação recolhida na Wikipédia. Eu acrescento um exemplo medicamentoso: quando se querer retirar um comprimido de uma caixa, abre-se sempre esta pelo lado errado. O lado errado é aquele onde se encontra a dobra da bula, que não permite aceder ao colírio salvador. Com tanta coisa importante, as minhas preocupações centram-se no que é trivial. Talvez, oiço dizer, nada mais exista a não ser a trivialidade. Uma ideia que me repousa e reconcilia comigo.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Começar com um refugiado

Sem se dar por ele, Junho instalou-se. O dia esteve carregado, como se ameaçasse tempestade. O corpo, envolvido pela tensão eléctrica, exigia-a. O tempo, porém, recusou-se a um espectáculo de luz e de bombos celestes. Manteve sempre uma tonalidade crepuscular e na rua a temperatura não subiu muito. Descubro que a pintura representou pela primeira a Via Láctea em 1609. Coube o feito a Adam Elsheimer, numa representação da fuga para o Egipto. Curiosamente, só em 1610, no Siderius Nuncius, é que a ciência moderna, então a dar os primeiros passos, confirma, pelo trabalho de observação de Galileu, aquilo que o pintor mostrara, a nossa galáxia como uma acumulação de incontáveis estrelas. Especula-se que o pintor também teria algum interesse pela ciência e que talvez tenha dado uma espreitadela num desses primeiros telescópios. O quadro encontra-se na Alte Pinakothek, de Munique, onde a Via Láctea se continua a mostrar tal como a viu Elsheimer e a Sagrada Família, sobre um burro, permanece em fuga para o Egipto. A religião cristã começa com um refugiado. Talvez isso devesse dizer alguma coisa Europa fora, não se tivesse tornado esta mais pagã que cristã. Por aqui, nada indica que se possa contemplar a Via Láctea, esta noite.