quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Da concórdia

Num dos poemas de Ararate, Louise Glück escreve ‘De repente, depois de morreres aqueles amigos / que nunca concordaram sobre nada / concordam sobre o teu carácter’. A morte não é apenas o poder de a todos igualar, mesmo aqueles que pensam fugir ao horror da igualdade através de recurso a um jazigo, mas ainda a capacidade de criar consensos. É possível que essa concórdia nasça de cada um temer a sua própria morte, do sentimento obscuro de que poderá ser o seguinte na lista da incansável ceifeira, caso crie dissensão sobre aquele que morreu. O acordo perante a morte é uma negociação com a rainha da noite, um pedido de prolongamento do tempo de jogo. Saí há pouco. O dia fez-me lembrar o de Todos-os-Santos, pela luz esbranquiçada que pairava como uma gaivota sobre os prédios. Enquanto pensava isso, lembrei-lhe que nessa altura, os dias serão mais frios, a não ser que o S. Martinho esteja já a preparar o seu Verão. Não notei em ninguém com quem me cruzei um fervor republicano, mas, valha a verdade, não havia ninguém com cara de monárquico. Estava tudo mais preocupado em fazer compras ou ir ao café para encontrar alguém com quem dê dois dedos de conversa. Há muito que deixei de frequentar cafés, mas os cafés que em tempos frequentei morreram todos. Agora, podemos dizer que eram excelentes cafés e contar as peripécias que neles se deram. Nada os salvará, nem aos cafés, nem aos proprietários, nem aos empregados, nem mesmo aos clientes. No monte Ararat teria repousado, após o dilúvio, a arca de Noé. Um mar de sirenes fende a tranquilidade do dia. Talvez sejam os bombeiros locais a comemorar o seu aniversário.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

A hora certa

Comecei pela clínica privada onde costumo ir. Não havia médicos de família disponíveis. Pensei que tinha a obrigação de ser bom cidadão e não ir entupir as urgências do hospital público. Telefono para o centro de saúde, talvez umas quatro vezes. Nunca me atenderam. Decido, mesmo assim, ir lá. Chego, na recepção perguntam-me o nome do médico de família. Debito um nome, embora não tivesse a certeza, só sabia que era uma rapariga nova, que terei visto uma vez por causa da pandemia, mas parece que acertei. Dizem-me para me dirigir a um balcão. Assim fiz. Explico o que se passa. Informam-me que, como não tinha consulta marcada, só poderia ir a uma consulta aberta se lá estivesse até às oito da manhã. Eram quatro da tarde. Registei que não se pode ficar doente depois das oito. O que me impressionou mais foi a quase ausência de pacientes na sala de espera e o pressentir a presença de médicos nos gabinetes. Não tive outro remédio senão a ir fazer número para a urgência do hospital público. Havia muita gente, mas fui triado rapidamente, deram-me uma pulseira com uma bolinha amarela e mandaram-me esperar numa sala pequena. Passado pouco tempo estava a ser consultado. Acabada a consulta fui injectado, esperei um tempo como na vacina da COVID, a médica que me viu tornou-me a chamar, deu-me as receitas e fui pagar num terminal em que se fala com a máquina e não com pessoas. A dor lombar que quase me tolhia o andar retrocedeu e começo a sentir-me com outra disposição. A única coisa que não compreendo é a racionalidade disto. Seria mesmo necessário ir à urgência hospitalar? Talvez tudo seja planeado milimetricamente, para que depois nas televisões se culpem os pacientes pela barafunda das urgências hospitalares. Também aprendi uma coisa. Em Portugal, esse país incapaz de planear seja o que for, até a doença tem de ser planeada. Se uma pessoa fica doente fora de horas, os serviços enlouquecem. Também a clínica privada me está a começar a irritar, parece estar a adquirir certos tiques do sistema público. Já é a segunda vez que me deixa pendurado. Por causa de coisas destas o quatro de Outubro de 1910 foi o último dia da Monarquia. Qualquer dia cai a República. Sem Monarquia nem República, ficamos com um problema de regime para nos governar, mas talvez nem necessitemos, cada um se há-de governar como puder, e toda a gente há-de ter os seus planos para ficar doente à hora certa. Não devo falar de política, mas um dia não são dias. Também não há coisa melhor do que acabar com um provérbio ao gosto popular.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Sem ambição

Voltemos à trivialidade dos dias úteis. No friso das orquídeas, apenas duas se mantêm floridas. A de flores amarelas, porém, será por pouco tempo, pois as pétalas estão já murchas e não tardarão a cair. Mais vigorosas estão as flores fúchsias da outra. A questão das tonalidades é para mim um quebra-cabeças. Talvez a minha cultura em termos de cor não ultrapasse as 12 cores dos lápis usados para desenhar na escola primária. As primeiras lições são aquelas que ficam para sempre. Quando oiço a designação das cores por nomes como fúchsia (é assim que o dicionário da Porto Editora grafa, de preferência a fúcsia) ou índigo sinto estar perante uma conspiração feminina, talvez com a finalidade de mostrar a natureza primária dos homens, sempre rudimentares nas distinções e cegos para os pormenores, sempre incapazes de um suplemento de imaginação. Esta discussão, porém, pertence a um campo minado e o melhor é mudar de assunto. Esqueçamos as cores das orquídeas. Esta segunda-feira desliza timorata pelo calendário, não querendo outra coisa senão chegar à meia-noite. É um dia sem ambição, mesmo o Sol que o ilumina é turvo, as pessoas nas ruas parecem cansadas, o cão que atravessa a praceta tem ares de ter sofrido um esgotamento. Uma moto passa semeando um ruído inútil pelas ruas, os pássaros meus vizinhos desaparecerem. Ao longe, dois corvos voam entre ciprestes, uma árvore que abunda, desordenada, por aqui. No telemóvel crepitam mensagens a que não responderei.

domingo, 2 de outubro de 2022

Tempo térmico

Uma pessoa vai de fim-de-semana e nem dá que Outubro já fez a sua entrada no carrocel do ano. Entra com ganas caloríferas, o que, como é habitual considerar nestes textos, não é coisa boa. É notória a minha limitação de assuntos e há dois que se tornaram triviais. O protesto contra o calor e a lamentação, mais ou menos em forma de elegia, pela passagem do tempo. Esta noite, não seria já bem noite, mas umas seis horas da manhã, enquanto estava envolvido pelo silêncio profundo do campo alentejano, o meu organismo, contra a minha vontade, decidiu acordar e entrar em modo de insónia. Aproveitei para ler mais umas páginas de um livro do físico Carlo Rovelli e aí vejo coisas que, apesar de não as entender, também não deixaram de me espantar. Ele escreve: Todas as vezes que se produz um fenómeno que atesta a passagem do tempo, há algum calor produzido. E calor é tirar as médias de muitas variáveis. Aqui, ele fez uma pausa, isto é, fechou o parágrafo e, de seguida, abriu outro. Faltava o melhor e o melhor era o seguinte: A ideia de tempo térmico é inverter essa observação. Ou seja: em vez de tentar entender por que o tempo produz dissipação em calor, perguntar-se por que a dissipação do calor produz o tempo. Confesso que entendi cada uma das palavras e mesmo todas as frases escritas. De resto, não entendi mais nada. Ainda por cima, ele fecha esse parágrafo para falar do génio de Boltzmann. Seja como for, fiquei siderado por essa conjugação entre calor e tempo, pela dissipação do calor produzir o tempo e ainda mais pela expressão tempo térmico a qual tem toda a aparência de uma metáfora, ainda por cima sublinhada por uma aliteração em ‘t’. A física é uma ciência maravilhosa, só é pena que dela não saiba nada. Não se pense que estive o tempo todo, devido à perda de calor do meu organismo, a pensar nisto. Depois de algumas páginas de Rovelli, lá adormeci por mais uma hora e só agora, chegado a casa e sentando-me no escritório, me lembrei dessa aventura, que talvez não passe de uma aventura onírica. Não haverá coisa mais fascinante do que o tempo térmico.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Falar poeticamente

É possível que nunca tenha deixado de ser o hegeliano que em tempos supus ser e que mais tarde supus deixar de ser. Não porque me ache um narrador dialéctico, preocupado com a ciência da lógica – da lógica dialéctica, entenda-se – ou com a fenomenologia do espírito e o devir da história. Se continuo a ser um hegeliano é porque não consigo perder o hábito da oração da manhã, isto é, a leitura da imprensa. Serei um moderno, num tempo pós-moderno. Ora, estava eu a ler, no Público, os textos de hoje do António Guerreiro, quando deparo, na rubrica Livro de Recitações uma referência à expressão “carnificina climática” usada pelo secretário-geral da ONU. O que me chamou a atenção não foi o que disse Guterres, mas o comentário. Diz que é uma expressão muito católica, que vê por detrás do que se está a passar uma vontade de vingança. E acrescenta: Ora, a Terra, a nossa mãe Gaia, não tem nenhuma vontade de se vingar. E conclui: Estas projecções supersticiosas desviam-nos da razão científica… Imaginemos alguém que, encolerizado e cheio de ciúmes, mata um rival amoroso. Dizer que foi uma vingança – o resultado de uma vontade de vingança – por lhe disputar o objecto do desejo será supersticioso? Por certo, podemos fazer uma descrição absolutamente científica do comportamento do assassino. Explicar como as emoções agiram sobre o seu corpo e o seu cérebro, como isso desencadeou a acção que teve aquele resultado infeliz. É plausível que se possa fazer a descrição do acontecimento sem recorrer à expressão vontade de vingança, nem tão pouco aos pretensos móbiles da acção. Utilizar a expressão vontade de vingança é falar poeticamente, usar uma metáfora para descrever aquilo que poderia ser explicado pela neurofisiologia e pela mecânica, sem lhe acrescentar qualquer tonalidade moral. Contudo, este dizer poético do que aconteceu é muito mais eficaz do que a explicação científica do sucedido. Supor que há uma carnificina climática e que a Terra se está a vingar é falar poeticamente, usando o poder evocativo da poesia para dar a entender o que se está a passar, revelá-lo nas suas consequências. Acabo a semana útil e o mês de Setembro prolixamente. Deveria escrever menos e, de preferência, melhor, mas estou um pouco atordoado por ter descoberto que talvez ainda seja um hegeliano, embora não dialéctico, caso isso seja possível. Amanhã será outro mês.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Outras vidas

Hoje chegaram-me dois livros comprados online em alfarrabistas. Tenho sempre imensa curiosidade para ver se dentro deles encontro vestígios de outras vidas, com a mesma curiosidade com que os astrónomos varrem os céus à procura de sinais de vida inteligente. Fui recompensado. Num deles, Raiz Funda, de Fernanda de Castro, existem várias mensagens. Apesar de não conter data, a obra é de 1951, publicada pela Bertrand. O alfarrabista escreveu a lápis 15€ - 1ª edição. Originalmente, o livro terá sido vendido na Livraria Balzac, na Rua D. Estefânia, em Lisboa. Fiz uma pesquisa na internet e não encontrei vestígios da livraria. Deve ter desaparecido há muito. Na terceira página, a do título, encontra-se manuscrito De: (assinatura ilegível). Mais abaixo Lisboa, 26-X-1985 / Largo da Princesa. É possível que o comprador ou compradora de 1985 fosse a primeira, que o livro tenha ficado em estante mais de três dezenas de anos. Também é possível que tenha sido uma segunda aquisição. Depois, o proprietário – ou descendentes – tê-lo-á revendido, já no tempo do Euro. Entre a publicação e a chegada à minha mão demorou mais de 70 anos. O outro livro é o romance Nunca Diremos Quem Sois, de Urbano Tavares Rodrigues, publicado em 2002, pela Europa-América. Não tem nada escrito nas suas páginas, mas dentro dele traz o duplicado de uma nota de compra da Cooperativa de Consumo dos Trabalhadores da Segurança Social de Lisboa. Segundo informação manuscrita o valor do livro era de 12,90€ e devia ser descontado de uma só vez no vencimento da funcionária, cujo nome consta de forma explícita. Não tem sinais de leitura. A lombada encontra-se em perfeito estado, o que não aconteceria nestes livros da Europa-América, caso tivessem sido lidos. Interessante seria descobrir as motivações que levaram os proprietários à compra daqueles livros. Porquê um romance de Fernanda de Castro? Porquê um de Urbano Tavares Rodrigues? Também não seria desinteressante conhecer os meus motivos, mas estes são-me ainda mais ocultos do que aqueles daquelas pessoas que desconheço. Hoje é quinta-feira e o dia caminha para o crepúsculo. O azul do céu está maculado de cinza e a luz do sol traz dentro dela toda a melancolia do Outono.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

No Olimpo dos escritores

Quase no início do seu último romance, Tudo é Princípio, – publicado postumamente – Fernanda de Castro escreve nem ela tinha desses feitios universais que ligam bem com toda a gente. Haverá alguém detentor de um feitio universal? Talvez a realidade seja outra. Haverá pessoas que têm um talento especial de se aproximar apenas daquelas a que se podem ligar sem fricção. A repetição dessas aproximações cria a ilusão de possuírem uma capacidade para se dar com toda a gente, mas o caso é outro. Possuem um faro excepcional para detectar imbróglios e afastar-se de quem lhes criaria problemas. Para lá disso, Fernanda de Castro foi uma figura central do mundo literário português no século passado. Como aconteceu com Joaquim Paço d’Arcos, os seus compromissos políticos acabaram por lançá-la na semiobscuridade. Não penso, porém, que o seu lugar – o de ambos, diga-se – na história da literatura nacional vá depender das suas opções políticas. O decisivo vai ser a qualidade literária. A espuma da política passará e o que fica é a obra. As posições políticas, por mais detestáveis que tenham sido – e foram-no –, de Knut Hamsun e de Louis-Ferdinand Céline não constituem razão suficiente para serem banidos do Olimpo dos escritores. Como se aprendeu com a mitologia grega, os deuses estão longe de serem moralmente inatacáveis. O que os mantém os escritores no Olimpo são as obras e não as ideias políticas. Hoje em dia há uma moda de censurar, se não mesmo de banir, as obras, e as grandes e decisivas não estão imunes ao vírus, que têm laivos de inadequação moral, e a política não deixa de ter contornos morais. Uma moda detestável, que não é diferente, na substância, de pôr os livros no índex ou de os submeter à censura, instituição que em Portugal chegou a ser denominada eufemisticamente como exame prévio. Seja qual for o lado da barricada em que os escritores portugueses estiveram entre 1926 e 1974, o decisivo é o que escreveram. Se não já hoje, amanhã, por certo.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Apoteose e queda

Não é raro acontecer dar por mim envolvido em pensamentos inúteis, muitas vezes construídos sobre a areia de analogias frouxas. Foi o que aconteceu há pouco. Em vez de pensar sobre os males que crescem como cogumelos neste mundo – por certo, o melhor dos mundos possíveis, visto não haver outro –, o espírito começou a especular sobre o caso em que o momento de grande apoteose é já o primeiro de uma queda que se vai tornando vertiginosa. A analogia sem tino estaria em comparar a subida até ao cume da montanha e a ideia de pessoa. Atingido o ponto mais elevado da montanha, resta a descida, a queda. A ideia de dignidade da pessoa foi o instante supremo de glorificação, o cume, do ser humano. Depois, a descida. Isto veio a propósito de um curto-circuito ocorrido na minha rede neuronal entre os senhores Immanuel Kant e Robert Musil. O primeiro assinala o momento apoteótico da afirmação da dignidade da pessoa, fundada no poder que os seres racionais têm de dar fins a si mesmos. O segundo, com o romance O Homem sem Qualidades, reconhece o avanço triunfal da impessoalidade. Kant é o cume, o momento apoteótico de uma aventura que começara no Renascimento. A partir dessa hora restou a descida que parece não ter parado. Por certo, não devia pensar nestas coisas. Não tenho solução para lhes dar, e toda a gente quer soluções para tudo e para nada. Estes pensamentos, por outro lado, revelam que tenho uma alma, caso existam almas, inclinada para a ociosidade. O que não será um bom indicador de carácter. O que vale, apesar de tudo, é eu ser um narrador, uma figura ficcional, a criação de um autor com o qual tenho divergência fundas e desavenças constantes. Ainda não compreendi as razões que o levam a pôr na minha cabeça este tipo de coisas, quando me podia destinar a contar a história da criança que chora no parque infantil ou a descrever a voz da mãe, não muito feminina, que tenta consolá-la. Eu sei que aquilo que é feminino e aquilo que é masculino se tornou objecto de disputa, mas estou proibido de tocar em assuntos que tenham a política de permeio. Deo gratias!

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Metáforas e palimpsestos

Pudesse eu começar este texto com uma metáfora, nem teria de ser bela ou reveladora de um mistério, e tudo deslizaria melhor nesta segunda-feira, que ressuma luz branca e entediada pelos poros dessa pele agreste que cobre o corpo dos dias. Imagino, por vezes, que não passo de uma metáfora, de algo que está no lugar de qualquer outra coisa, mas nunca consigo saber que coisa é essa. Já tentei a análise da corrente de consciência e a prática activa da reminiscência, mas tudo foi em vão. Ocorre-me que cada ser humano é um palimpsesto, que cada eu só é possível porque um eu anterior foi raspado, apagado, para que uma nova reutilização dos materiais desse origem a alguém que se achará pura individualidade, um ser inédito e inigualável. Esquecemos, ou não queremos saber, que não passamos de material reciclado. Quando era novo, li bastante Camus e algum Sartre mais nauseado. Hoje penso que eles foram a placenta através da qual, naqueles dias, um certo olhar desconfiado sobre o mundo se alimentou. Tinha o dia de hoje todo programado, mas bem cedo a desprogramação cravou as garras no meu dia e aquilo que era um cosmos idealizado tornou-se um pequeno caos. Imagino que alguém dirá que a vida é isso. Será.

domingo, 25 de setembro de 2022

Indecisão do mundo

Apenas uma escaramuças em torno da tabuada de multiplicar, o resumo da interacção matemática entre avó e neta. Parece que é um problema com a rapidez do cálculo mental. Acabei por imprimir as tabuadas, para sanar o conflito. Houve promessas de as decorar, embora eu tenho uma certa propensão para o cepticismo. Livres dos assuntos escolares, entregam-se, as duas – tanto a que sabe de cor as tabuadas de multiplicar, como a que não sabe e tem aspecto de não querer saber –, à realização da sua sina de adolescentes. Riem-se de coisas que não têm graça, mas que o apurado faro humorístico pós-infantil, na versão feminina, encontra sempre causa de escárnio e, não poucas vezes, de maldizer. Não tarda, vão-se embora. Está um domingo indeciso, não sabe se há-de correr para trás, para se entregar ao sábado, se se há-de deixar deslizar para segunda-feira. Também os carros que passam sorumbáticos na avenida sofrem do mesmo mal. Levam famílias que aspiram tanto à irresponsabilidade dos sábados, quanto à liberdade dos dias úteis, onde podem suspender por largas horas o convívio. Consolam-me, perante a indecisão do mundo, as palavras de Schopenhauer: Também toda a nossa existência, no conjunto e no detalhe, traz a marca da coacção: cada indivíduo é preguiçoso no fundo do coração e aspira ao repouso; mas é forçado a avançar, como o planeta em que habita, em que a força que o impele para diante impede-o de cair sobre o Sol. Somos forçados a avançar por uma força que não controlamos. Tomado como boa a analogia schopenhaueriana, avançamos para retornar ao mesmo sítio, que é aquilo que acontece à Terra. Não será bem ao mesmo sítio, pois o sistema solar também se deslocará com a galáxia a que pertence, mas ao mesmo sítio relativo. Talvez melhor fora que nos déssemos ao repouso, tal como ordena aquilo que habita no fundo do nosso coração, que é o sítio onde se encontra o melhor que há em nós, diz-se.

sábado, 24 de setembro de 2022

A força das coisas

Depois de uma longa conversa telefónica com um amigo, sentei-me e peguei numa colectânea de ensaios do poeta e Nobel da Literatura Czeslaw Milosz, publicada pela Cavalo de Ferro, com o título A Minha Intenção. Num dos ensaios, “Contra a Poesia Incompreensível”, em oposição à poesia fechada na subjectividade do poeta, o autor diz-nos que o poeta Zen aconselha-nos a conhecer um pinheiro observando um pinheiro, a conhecer o bambu observando o bambu. A questão que se me colocou, de imediato, foi se nós temos ainda força suficiente para suster o olhar diante de um pinheiro ou de um bambu. Duvido mesmo que tenhamos força para olhar de frente e sustentar esse olhar perante um artefacto tão trivial como um banco, um daqueles bancos de madeira, quase toscos, que havia pelas casas das aldeias. A força das coisas é de tal ordem que não conseguimos segurar o olhar diante delas. Como quando dois olhares de intensidades diferentes se chocam, um deles, o mais fraco, acaba por se inclinar para terra, também os nossos olhos são incapazes de enfrentar a oliveira, a roseira, as canas num canavial. Talvez isto não seja sequer uma questão ocidental, pois o poeta Zen para conseguir olhar o pinheiro ou o bambu necessitou de um longo e severo treino. A nossa incapacidade poética de olhar com demora as coisas dever-se-á à falta de treino, mas também ao modo como elas são consideradas no nosso mundo. A oliveira é observada pela sua potencialidade de dar azeitonas e azeite, a roseira pelas rosas que hão-de enfeitar as nossas casas ou serem um complemento de uma estratégia de sedução amorosa, as canas pelo potencial negativo de ocuparem um terreno útil. Pressente-se que na incapacidade de olhar as coisas no que elas são manifesta-se uma vergonha, sempre dissimulada, pelo modo como consideramos aquilo que nos rodeia, como se estivesse aí para nossa satisfação. Dito de outro modo, manifesta-se a má consciência. Afirmação que tem um corolário questionável. Toda essa poesia que se centra na peculiaridade do próprio poeta, travestida de subjectividade poética, seria uma poesia da má consciência. Retomando o ensaio de Milosz, leio uma citação de W. A. Auden sobre aquilo que a poesia pode fazer. Depois de elencar várias dessas coisas, o poeta conclui deve, sempre que possível, louvar as coisas porque são e porque acontecem. Teremos perdido à arte do louvor. Restou-nos a inveja e a técnica da adulação.  

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Da vaidade

O parque infantil, agora que a tarde começa a declinar, encheu-se de gritos. Por vezes, ouvem-se vozes de adultos ou o ladrar de um cão. A vida passa indiferente à chegada do Outono. Nem as árvores dão mostras de estarem a sofrer uma metamorfose que as amarelecerá inexoravelmente, não sem antes as elevar ao esplendor e à glória, quando adquirirem os tons acobreados com que hão-de seduzir os transeuntes. As árvores também sofrem de vaidade, mas isto é apenas uma mera conjectura à espera de refutação. Será que a vaidade, numa árvore, é pecado? Para analisar este ponderoso tema, haveria que seguir o conselho de Tomás de Aquino, dado no De malo. Segundo o doutor da Igreja, há que examinar em primeiro lugar o que é a glória e, depois, a vaidade. Só no fim deste caminho se pode decidir se a última é ou não pecado. Deixemos essa espinhosa análise de lado e concentremo-nos nas filhas da vaidade – ou, no caso das árvores, nos seus frutos – a desobediência, a jactância, a hipocrisia, a contenda, a pertinácia, a discórdia e a presunção de novidades. De todos estes rebentos, o que me atormenta mais é a presunção de novidades. Não basta que alguém seja presunçoso, ainda por cima faz-se de novas e não há, para um narrador exausto, coisa pior que as novidades. Imagino que os frutos das árvores sejam o resultado da sua vaidade, na modalidade de presunção de novidades. Isto é tolerável num vegetal, mas num ser humano é cansativo. Não há pior fauna do que a daqueles que se presumem inovadores, pois não inovam coisa nenhuma e presumem em excesso. Acho que me perdi no caminho. Queria escrever sobre outro assunto, mas esqueci-me qual era. Estou à espera das minhas netas, ao menos haverá animação.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O meu cérebro

Despeço-me da casa do Verão. Como sempre, não terei saudades dos seus dias. Amanhã chegará o Outono, onde tudo será mais belo e mais cordato, assim o desejo ou assim o espero. Entre o desejo e a esperança há uma grande diferença. No primeiro, ressoa a necessidade. É uma emanação da fisiologia. Na segunda, há uma confiança de a ordem do mundo se conformar com uma certa razoabilidade. Não é relevante saber se essa ordem do mundo deriva de um criador divino ou se é inerente à própria natureza. Na esperança, ressoa sempre a razão ou, melhor, a crença de que Deus ou a natureza, conforme as inclinações de cada um, sejam intrinsecamente razoáveis. O problema de tudo isto é que muitas vezes contaminamos a esperança com os nossos desejos e somos nós que introduzimos a desrazão no mundo e naquilo que esperamos. Outra dificuldade será não tanto que Deus ou a natureza sejam irrazoáveis, mas que a sua razão seja de tal modo complexa que não compreendamos os seus decretos e os pensemos irracionais. Ontem escrevi aqui Boris Vien e um leitor atento lembrou, e muito bem, que o nome é Vian e não Vien. O nosso cérebro prega-nos belas partidas. Não se trata tanto de uma ratoeira estendida pela homofonia, pelo menos é isso que parece a um português, mas o simples facto de Boris Vian não ser um autor a que tenha dado atenção. Fui procurar nas estantes e dele só encontrei Outono em Pequim, que sendo cá de casa não é meu. E o que terei lido desse autor francês? Nada, disso tenho a certeza. Ao citar o título Espuma dos dias, o cérebro vingou-se, estendeu-me uma armadilha e fez-me trocar o nome. Pode parecer que estou a operar uma distinção entre mim, o narrador sem narrativa, e o meu cérebro, acusando este pela falha ocorrida. É provável que assim seja. Na pilha de livros que tenho aqui ao lado para ler, há um, do filósofo alemão Markus Gabriel, que tem por título I am Not a Brain: Philosophy of Mind for the 21st Century. Se ele não é um cérebro, eu também não o sou. Aquele que recebi na lotaria genética tem propriedades que me aborrecem. Por exemplo, é demasiado lento quando tenho pressa em raciocinar ou apreender alguma coisa, demasiado rápido quando preciso de descansar e ele produz ideias atoleimadas a grande velocidade. Por outro lado, está sempre a pregar-me partidas, como a do Vien. Vivo no terror de ser por ele enganado em coisas mais gravosas que essa. Já reparei que tem imenso prazer em trocar-me os dedos quando estes batem no teclado ou, então, em fundir duas palavras numa só. Uma outra característica é ser prolixo. Apesar de tudo há coisas que nos unem. Nem ele nem eu gostamos do Verão e ambos somos cultores dos tempos de Outono, não o de Pequim, mas o de cá, quando não faz calor. Não podemos ser inimigos em tudo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Tagarelice

Mantenho o velho hábito de todos os dias passar com os olhos pela imprensa. Ao fim destas décadas todas de prática, o que tenho a dizer? Aquilo que toda a gente sabe. A imprensa trata da espuma dos dias, para usar, sem atender aos direitos autorais, o título de uma obra de Boris Vien. Ora, naquilo que vem na babugem há coisas que, apesar de se apresentarem com grande inflamação, acabarão por passar e não mais serão lembradas. Outras, porém, sendo discretas, quase não notadas, poderão ser um sinal da mudança no espírito do mundo, embora só sejam reconhecidas como tal muito depois. Em resumo, manter-se informado significa dar atenção ao que tem importância nula e não perceber aquilo que é um sintoma decisivo de uma nova realidade. Nem sempre é assim, mas quase. Esse interesse pelo jornal diário – agora nas novas versões da rede que nos liga a todos – não será mais do que a satisfação da necessidade de encontrar assunto para alimentar aquilo que os franceses denominam de bavardage. Precisamos de matéria para alimentar a nossa tagarelice quotidiana. Quando Hegel se lembrou de dizer que a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno, não antecipou o que vinha aí. E aquilo que veio foi a queda na tagarelice. Um telejornal não é mais que um exercício de tagarelas. Uma prova do niilismo que se apoderou da nossa sociedade. Nem sei o que me deu para falar disto. O calor tem um efeito nefasto em mim, produz conexões neuronais que levam a este tipo de coisas. Amanhã será outro dia.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Duplas negações

Os piores profetas são os da meteorologia. Ainda ontem profetizaram para aqui três dias de chuva, a começar hoje. Perderam o contacto com o deus do clima ou não têm feito as devoções devidas a S. Pedro. Resultado? Falência completa das previsões. Está um calor de ananases, um sol radiante e chuva, nem vê-la. Quando era pequeno sempre me intrigou a atenção que os mais velhos, isto é, gente do tempo dos meus avós, dedicavam à audição do boletim meteorológico. Mal sabia eu que quando chegasse à idade deles lhes copiaria a inclinação. Também é verdade que aprendi há muito, não sei onde nem com quem, que quando não se tem assunto de conversa, se deve falar do tempo. É o que eu faço. Deve-se evitar expressões como está a escachar, é de rachar, mesmo está de ananases. Pelo menos, no tempo de Eça de Queirós, não seria o modo mais civilizado de falar do tempo, mas era o que ocorria a algumas das suas personagens. Há pouco li um interessante artigo sobre aquela ideia tonta de que a expressão não há nada é um erro. Esta ideia de erro terá nascido de interpretação da língua em termos lógicos. Teríamos aqui uma dupla negação, o que era equivalente a uma afirmação. O pobre do falante queria negar a existência, mas devido à sua inépcia linguística acabava por afirmá-la. O autor, pacientemente, explica por que isto é um disparate. Cheguei a conhecer pessoas cujo desejo intelectual era eliminar a equivocidade da língua, para que esta denotasse, de forma bacteriologicamente pura, a realidade. Isto significa apenas que muitas vezes conhecemos pessoas que não são recomendáveis. O que torna as línguas interessantes não é serem uma emanação directa da lógica, que não são, mas possuírem uma lógica própria feita de múltiplos e aparentes ilogicismos, tal como é feito o pensamento e a fala das pessoas que usam a língua. Agora, vou beber água, pois não há nada melhor do que matar a sede quando se está sequioso.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Coração simples

Está um calor esponjoso. Choveu de manhã, um pouco, mas logo os trabalhadores que, no mundo supraterrestre, têm a missão de regar este pobre planeta entraram em greve, sem que um sindicato celeste tenha apresentado um pré-aviso. Uma greve selvagem. Agora, não se sabe por quanto tempo não cairá abundante água das imperecíveis fontes celestiais. Dizia que estava um calor esponjoso e não pegajoso, pois é um calor que nos absorve, que nos consome até às últimas fibras intersticiais. Entrei no reino da hipérbole, que é sempre uma forma de compensação da pequenez que sinto perante a inevitabilidade dos decretos da natureza. Poder-se-ia, talvez com não pouco proveito, discutir se a natureza possui ou não livre-arbítrio, se os seus decretos obedecem a leis imutáveis ou, pelo contrário, nascem de uma vontade livre que a habita. Haveria logo algum argumentador a dizer que a natureza é destituída de vontade, que ninguém provou que ela a tenha e que eu além de sofrer de inclinação hiperbólica, também sofro de alucinações. Em minha defesa, poderia argumentar que o facto de ninguém ter provado que a natureza possui uma vontade, isso não significa que ela não a tenha. Esse argumentador cairia na esparrela da falácia do argumentum ad ignorantiam. Depois, poderia continuar afirmando que o facto de as células de um ser vivo a certa altura descarrilarem e começarem a multiplicar-se sem medida pode ser um sintoma de a natureza possuir uma vontade própria. Aqui, porém, seria acusado de adepto mal disfarçado da teleologia, capaz de acreditar num provérbio antigo, talvez sumério, que diz que não é porque duas nuvens se aproximam que há o trovão, mas aproximam-se para que haja o trovão. É evidente que as explicações sobre raios e trovões são mais complexas do que deixa perceber o belo provérbio, mas eu hoje acordei com um coração simples e voltado para as coisas simples, e uma vez por outra não me importo de ser um advogado da mais maltratada das quatro causas do velho Aristóteles.

domingo, 18 de setembro de 2022

Evocações

Sobre as acácias da praceta cai uma luz inflamada, vestida de branco, como se fora uma noiva ansiosa pelo altar. Acolhem-na as folhas, tomadas pelo verde, ainda sem a mácula amarela que o Outono trará para anunciar o Inverno. Ninguém se aventura na rua, ninguém pára para conversar à sombra das árvores. Ao domingo, as pessoas almoçam mais tarde, ficam à mesa a conversar, enquanto bem café. Sair, só quando a temperatura baixar. Então, haverá criançada a gritar no parque infantil, enquanto os pais abrem a alma uns aos outros, não a alma verdadeira, mas aquela que eles imaginam ter. A não ser que a profecia da aplicação meteorológica que me guia os passos se cumpra e chova. Há dias, o mais verdadeiro seria dizer há noites, sonhei que tinha rebentado uma guerra por cá, uma guerra civil. Ora, nunca me lembro de sonhar, mas este sonho não se apagou, a imagem dos soldados a combater continua viva, bem como a minha preocupação com a protecção da família, dos netos em primeiro lugar. De onde terão vindo estas imagens tão límpidas, não faço ideia, mas a maior parte das coisas acontecem sem que saibamos as suas razões. Quando acordei, fiquei aliviado por um sonho não passar de um sonho, mesmo que a realidade não seja aquela que se deseja para o melhor dos mundos possíveis, aquele que traria a maior das felicidades para a humanidade. Embora, sobre esta se deva dizer aquilo que um poeta meu amigo escreveu: a humanidade verdade / seja dita só aparece / quando se evoca // (…)

sábado, 17 de setembro de 2022

Vulcões extintos

O meu primeiro contacto com ela, a escritora austríaca Ingeborg Bachmann, foi através de uma recolha de poemas a que foi dado o magnífico título de O Tempo Aprazado, nome de um dos livros da autora. Foi amor à primeira vista. Li tantas vezes aquela pequena edição bilingue, da responsabilidade de João Barrento e Judite Berkemeier, que as páginas se soltaram uma a uma. Ingeborg Bachmann nasceu em 1926 e morreu em 1973. Conheci-a bem depois de estar morta, mas não é possível uma pessoa não se apaixonar quando lê poemas que, mesmo depois de traduzidos, ainda ficam assim: Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas, / a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão / da folhagem, antes tão leve nos arbustos, / segue-nos agora de perto. // Onde quer que se apague o incêndio das rosas, / a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante! / Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas / e segue-nos até à foz. Ou então a sonoridade alemã da primeira quadra do poema ‘Fall ab, Herz’: Fall ab, Herz, vom Baum der Zeit / fallt, ihr Blätter, aus den erkalteten Ästen / die einst die Sonne umarmt’ / fallt, wie Tränen fallen aus dem geweiteten Aug! Li todos estes poemas em alemão, sem compreender a generalidade das palavras, li-os a meia voz, tentando aproximar-me da sonoridade germânica, deixando-me envolver pela musicalidade que desse alemão, por certo mal pronunciado, se desprendia. Tudo isto era possível porque a poesia antes de ser sentido é som, música. A poesia é música que adquire sentido. Depois, há a beleza desse primeiro verso que em português fica assim: Desprende-te, coração, da árvore do tempo. Tudo isto vem a propósito de ter comprado, há pouco, Malina um romance de Ingeborg Bachmann, publicado em português, em Junho deste ano, pela Antígona. Esta editora, com o seu catálogo, entrou para o top três das minhas editoras preferidas. Além dela, estão a Cavalo de Ferro e a Relógio d’Água. Para acabar a minha diatribe, os três primeiros versos do poema ‘Canções de uma Ilha’: Tombam frutos de sombra das paredes, / o luar caia a casa, e o vento / que vem do mar traz cinzas de vulcões extintos. É o que todos somos, vulcões extintos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Concisão

Por vezes, enquanto narrador destituído de narrativa, à míngua de actos a tornar memoráveis, penso que estes textos são um equívoco, a emanação da minha inclinação para a hipérbole. O ideal seria uma dimensão idêntica à de um tweet, 280 caracteres, ou mesmo dos antigos telegramas que se pagavam à letra, o que originava textos com uma sintaxe muito especial. Não me lembro de alguma vez ter enviado um telegrama, mas a memória não é de confiança. Ocorre-me que quem não diz o que tem a dizer em 280 caracteres é porque não tem nada para dizer, mas ama a prolixidade. Em matéria de concisão não há como os japoneses. Inventaram o haiku, um poema que diz o que tem a dizer no espaço equivalente às nossas dezassete sílabas métricas. Agora, poderíamos dar mais um passo e matematizar tudo isto, formulando uma lei daquilo que se tem para dizer. Poderia ficar assim: aquilo que se tem para dizer é inversamente proporcional ao número de caracteres (ou de palavras) que se utiliza. É uma bela lei, apesar de não ser muito original. A palavra original fez-me lembrar uma piada, talvez contada por algum professor meu que tenha estudado em Coimbra, o que eram quase todos. Reproduzo a pilhéria ouvida talvez há cinquenta anos. Numa oral, o lente – estaríamos em ambiente universitário – volta-se para o aluno e afirma que o exame escrito dele tem coisas boas e coisas originais. Depois de uma pausa, nestas coisas a pausa é alma do negócio, acrescenta que só é pena que as coisas boas não sejam originais e as originais não sejam boas. Por certo, ao aluno não lhe terá ocorrido responder que não se pode ter tudo nesta vida e que o doutor se deveria contentar em apreciar tanto a bondade que há no hábito, como a originalidade do erro. Estes pensamentos, quase mórbidos, ocorrem-me à sexta-feira à tarde, não por ser a véspera do fim-de-semana, mas como reflexo da semana plena de utilidades. Meu Deus, a onde vão os 280 caracteres. Se isto fosse pago como um telegrama, há muito que teria falido. Não, já teria sido decretada a minha insolvência. Não sou nenhuma firma para falir.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

As minhas efemérides

Este é o lugar onde anoto o passar do tempo. Invento efemérides como se fossem marcos miliários desse caminho que nos traz do nada e nos conduz à inexistência, que é uma coisa diferente do nada. Hoje assinala-se o último dia da primeira quinzena de Setembro e, ainda, o ducentésimo quinquagésimo oitavo dia de 2022. Um acontecimento irrepetível, saliente-se. Há coisas curiosas que aconteceram num 15 de Setembro. Em dois 15 de Setembro, com cinquenta e quatro anos de diferença, em dois conclaves papais foram eleitos como Papas dois Giambattistas. O primeiro, em 1590, era de apelido Castagna e tomou o nome de Urbano VII, o segundo, em 1644, era Pamphili e ficou conhecido como Inocêncio X. Ainda não descobri a razão por que os Papas, ao serem eleitos, mudam de nome. Terei de consultar o google. Gostaria também eu de marcar este dia com uma aventura digna de registo, mas o mais que consegui foi irritar-me com coisas idiotas que o oportunismo e a vaidade dos homens semeiam no caminho de quem tem por lema não incomodar os outros. Este deveria o mandamento central da vida social. Não incomodes os outros! Uma parte dos seres humanos, porém, julga que a sua missão na Terra é alimentar o seu pequeno ego, um animalzinho sempre esfaimado, que nunca deixa de crescer e nunca deixa de ser minúsculo. Uma irritação, todavia, não é uma aventura, e, assim, fico em desvantagem perante o meu dilecto amigo, o cavaleiro da triste figura.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Excesso de cabeça

Há um retrato desenhado a carvão do escritor Heinrich von Kleist (1777-1811) quando estava no regimento n.º 15 da guarda prussiana. Quando o vi, devido ao bicorne na cabeça e à farda, pensei que era Napoleão. Um olhar um pouco mais atento mostrou-me ser outra pessoa. Descobri que era Kleist. O retrato parece uma caricatura, devido à desproporção da cabeça, acentuada pelo chapéu, em relação ao corpo, demasiado pequeno para cabeça tão grande. Tentei encontrar o retrato na internet, mas a procura foi frustrada. Nem tudo se encontra na rede. O escritor prussiano alistou-se em 1792 e saiu das forças armadas em 1799, para grande pena da família, de tradições militares. Tinha aspirações espirituais, terá argumentado. Na Wikipédia em língua portuguesa, na entrada que lhe é dedicada refere-se a existência de uma tradução de Michael Kohlhaas – o rebelde da autoria do poeta Egito Gonçalves, publicada em 2004, pela Antígona. Ora, a minha primeira memória do autor é precisamente dessa obra, mas data dos anos setenta do século passado. Foi publicada pela Editorial Inova, do Porto, e a tradução deverá ser a mesma. Tentei confirmar, mas não encontrei o livro. É outro que terei deixado não sei bem onde. A obra fazia parte de uma colecção denominada duas horas de leitura. Dela constava um livro de contos de José Rodrigues Miguéis, Comércio com o Inimigo. Lembro-me de ter ficado fascinado por aquelas narrativas. Também esse livro ficou perdido por algum sítio. Há uns anos, porém, tornei a comprá-lo num alfarrabista, mas o fascínio tinha passado. É possível que Kleist, como Napoleão, fosse pequeno. A média de alturas dos homens dos exércitos napoleónicos rondava, segundo li num livro do historiador Eric Hobsbawm, o metro e meio. Talvez, naqueles tempos, as cabeças fossem excessivas para os corpos.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Das orquídeas

Este foi um ano mau para as orquídeas cá de casa. Nem todas floriram, uma secou, perdeu anteontem a última folha. As que floriram fizeram-no, quase todas, por pouco tempo. É um facto que ninguém cuidada delas como Nero Wolfe cuida das suas, passando com elas quatro horas diárias, no intervalo de resolver os mais intrincados crimes e de se se dedicar aos prazeres da comida e do vinho. Há muito heróis dos livros policiais. Eu sou muito convencional. O primeiro é Sherlock Holmes. Depois, muito perto na classificação geral, vem o inspector Maigret. A seguir Hércule Poirot, que antecede o advogado Perry Mason e Nero Wolfe, o das orquídeas. Esta classificação, assente no gosto, tem uma explicação fácil. Foi com os primeiros que contactei. Só bem depois, quando já essa literatura não me atraía, descobri Philip Marlowe. Contudo, há explicações adicionais para os dois primeiros. O fascínio adolescente pela lógica de Holmes e pelos ambientes onde se movia – ou move, pois estas personagens são eternas – Maigret. A folhagem das acácias continua de um verde poderoso, quase agressivo. Balança tocada pelo vento, depois acalma-se, um raio de luz incide naquelas folhas que se tornam mais verdes, mais luminosas, mais folhas. Espera-me uma liturgia, de que serei o oficiante. Há que preparar o sermão, embora aos crentes pouca fé lhes sobre. Também ao pastor. Olho as orquídeas, as duas que ainda estão floridas, e tento decifrar as razões do seu estado de espírito.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Da causa do divórcio

Um calor pegajoso. O tempo ameaça tempestade, os céus parecem que, de uma vez, vão cair sobre a cabeça dos gauleses, mas nada. Por vezes, chove, mas nada que limpe a terra e os espíritos dos homens. A semana útil consumiu o seu primeiro dia. Para lá das inutilidades que me são úteis para pagar as contas, não tenho aventura digna de nota. Recebi um livro de Judith Navarro, Terra de Nod, um romance comprado online num alfarrabista. É o terceiro de quatro romances que a autora publicou. O exemplar que me chegou às mãos tem uma dedicatória da autora datada de 1968, embora o livro tenha sido publicado em 1961, tal como se pode ver numa das últimas páginas. O que diz a dedicatória? Ao Senhor / (nome completo), e a sua querida mulher, (os dois nomes próprios), como lembrança afectuosa. / Judith Navarro / 1968. Claramente, a pessoa não pertencia ao círculo de amizades da autora. A utilização da expressão lembrança afectuosa é uma forma para criar um falso sentimento de intimidade, aliás como querida mulher. O ano de 1968 ainda pertencia a um tempo em que a mulher de alguém não era tratada como esposa, mas como mulher, e esse era o tratamento socialmente correcto. Agora, houve uma invasão de esposas, não sei se por contágio brasileiro. Pode ser a principal explicação para a recorrência do divórcio. No tempo em que as mulheres eram mulheres e os homens, maridos, nesse tempo tudo seria mais sólido. A introdução da esposa talvez conduza a que as mulheres pensem eu não quero ser esposa e zás, pedem o divórcio. O romance começa assim: O meu nome é Cecília. Pelo menos, a protagonista tem um belo nome, de grande musicalidade, apesar de ter entrado no limbo dos nomes que não são utilizados. Resta saber se ela era mulher de alguém, se se separou ou não. Para saber isso, há que ler o livro. Demorei tanto tempo a escrever este texto, o telemóvel é um dispositivo sempre pronto para interromper, que o céu decidiu derramar-se sobre esta pobre cidade.

domingo, 11 de setembro de 2022

Previsões e preguiça

Não há coisa mais volúvel do que as previsões meteorológicas. Minto. As previsões económicas têm um maior grau de volubilidade, de tal maneira que, já depois dos factos ocorridas, as previsões podem mudar e, não poucas vezes, o prognóstico depois do jogo é errado. Tinham-me prometido para aqui um dia nublado. Ora, está um sol risonho, contente por dardejar raios sobre as ruas sem que um escudo se entreponha. Seja como for, hoje estou entregue à cultura da preguiça, um pecado mortal como toda a gente sabe. A ideia de a preguiça ser um pecador mortal é uma inovação relativamente recente. Pecado mortal era a acédia, um estado espiritual que atingia os monges cristãos, marcado pela apatia, isto é, pela falta de paixão pela paixão do Senhor. A preguiça e a apatia são coisas diferentes. Um preguiçoso não tem de ser apático, não tem de ser destituído de paixões, apenas suspende a vontade de fazer alguma coisa. A preguiça pode mesmo ser uma grande paixão e ser activamente procurada em certos momentos da vida. Daí que possamos usar sem problema o oxímoro o preguiçoso activo. Neste momento do dia, é isso que eu sou, um preguiçoso activo, pois activamente me entrego à prática da preguiça. O senhor Karl Marx via no trabalho um elemento emancipatório, mas Deus, talvez para o castigar, deu-lhe um genro, Paul Lafargue, que escreveu o Elogio da Preguiça. Casou com Laura, a segunda filha do autor do Capital, e suicidaram-se ao mesmo tempo, num pacto de amor. Os pais do protagonista de Serotonina, de Michel Houellebecq, fazem o mesmo, muito possivelmente uma reminiscência do escritor francês da história de Paul Lafargue e Laura Marx. A junção dos nomes de Paul e Laura daria um belo título para um romance romântico, com um final feliz, pois os amantes entram na eternidade de mãos dadas.

sábado, 10 de setembro de 2022

Sebastianismo

Um terço de Setembro já foi consumido pelas chamas do tempo. A metáfora não será brilhante, mas não deixa de ser quente. Por outro lado, talvez aquilo que se aproxime mais da inexorabilidade da marcha do tempo seja a dos incêndios. Leio o romance O Reino Encantado, de Mário Ventura. Há qualquer coisa nele que me irrita. O reino encantado seria uma referência a acontecimentos ocorridos no Brasil com uma seita sebastianista. O escritor lera uma referência ao assunto no livro de João Lúcio d’Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, provavelmente na mesma edição que eu tinha, a da Editorial Presença, publicada em 1984. O livro é de 1918, editado pela Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira. Procurei o meu exemplar, mas perdeu-se numa das voltas da vida. Acedi a um pdf da obra, na Archive.org. A cópia é a de um exemplar que foi comprado em 4 de Dezembro de 1918, por alguém com os apelidos Freitas Veloso. Data e assinatura constam numa das primeiras páginas onde apenas se encontra o título da obra. É plausível que a obra tenha pertencido, depois, a uma outra pessoa, pois na mesma página encontra-se uma assinatura de alguém com nome próprio Manuel e com um apelido ilegível. Debaixo desta assinatura não consta qualquer data. Como é que este exemplar foi parar à Universidade de Toronto, à Robarts Library, não faço ideia. O certo é que foi lá digitalizado e, depois, cedido à Archive.org. As referências de Azevedo aos acontecimentos em Pernambuco são escassos, uma página e mais três linhas de outra. Cito uma pequena passagem para mostrar aquilo que terá atraído Mário Ventura: O embusteiro sanguinário, que capitaneava esses energúmenos, logrou convencê-los de que por sacrifícios humanos se alcançaria desencantar o monarca, e que as vítimas ressuscitariam com êle, para participarem dos tesouros que ao seu povo então distribuiria. O romance, pelo menos nos 3/5 que já li, trata do trabalho do escritor na busca de informação fidedigna dos acontecimentos (1818 e 1836) que envolveram duas seitas sebastianistas. Numa entrevista a um jornal, na altura da publicação do romance (2005), o autor refere que queria mostrar a carpintaria do romancista. Ora numa bela cadeira, o que apreciamos é a cadeira e não o trabalho que a produziu e é isto que me está a irritar, estar perante um romance sobre fazer um romance, melhor, sobre a recolha de materiais para fazer um romance. A irritação, porém, não é suficiente para pôr o livro de lado.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Grandeza

Chegou o fim-de-semana. O carrocel de úteis inutilidades suspende-se por dois dias, para que o corpo entediado se aliene da sua situação. Sobre tudo isto, posso usar como resumo um poema de um poeta meu amigo: esperar anunciar garantir prometer / só me resta a fraude // um rasto de sangue lento / e avançar, e vencer, e temer. Conformemo-nos, contudo, com aquilo que a vida é, se ela é alguma coisa. Um interregno nesta proibição de falar de política. Sou um narrador republicano, assim me criou o autor, de um republicanismo mudo e invisível. Porém, quero dizer que gostava da Rainha de Inglaterra. Apesar de não ter qualquer poder, tinha um poder imenso que nascia do seu exemplo. Onde há grandeza, devemos prestar tributo, e Isabel II engradeceu não só a Monarquia britânica, como o mundo, que anda por aí tão falho de grandeza. Fim de interregno, retorno da proibição. Uma nota de rodapé, apenas, antes de acabar com o interregno. O filho de Isabel II escolheu o nome de Carlos III. Não sei se será um bom augúrio. O primeiro dos Carlos, um absolutista talvez católico, foi executado. O segundo, filho do primeiro, dissolveu o parlamento e foi casado com Catarina de Bragança, mas não deixou boas recordações em Inglaterra, absolutista tal como o pai. Desconfio que a escolha do já terceiro dos Carlos não foi muito assisada, ele que podia ter escolhido Artur, Filipe, Jorge, logo haveria de escolher o pior dos nomes possíveis. Voltemos a esta sexta-feira que desliza sem pressa para o fim-de-semana. Deixemo-nos invadir pela vinda não de D. Sebastião, mas dos dias descomprometidos com o labor.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Alba

Oiço uma faixa denominada Alba, do álbum Echoes, do Søren Bebe Trio. Já o o traçado with a stroke, como se tivesse sido trespassado por uma seta me deixa em contemplação estética, mas nada que se compare com a palavra Alba. A própria sonoridade produz em mim uma certa ideia de luminosidade ainda não maculada, uma luz virginal. Contudo, a sombra semântica não é a única coisa digna de atenção. Devemos dar atenção ao som, à sua melodia e à promessa que ela contém. Alba é uma palavra lenta, que se diz devagar, tal como deve ser lento o romper da aurora. Qualquer precipitação pode perder o dia. Por fim, e não menos importante, a configuração gráfica, o modo como a palavra se apresenta diante do olhar. No oceano da prosa, a configuração das palavras perde-se na massa aquático do texto, mas quando se trata de poesia não é qualquer palavra que nela pode figurar. Esta interdição não se deve nem ao som nem ao sentido, apenas à imagem dela no papel, naquelas linhas que representam rios paralelos que nem no infinito se deverão encontrar. É isso o que são os versos. Rios paralelos, uns mais caudalosos que outros, mas sempre rios e nunca oceanos ou mesmo lagos. Hoje é dia 8 de Setembro, choveu nas primeiras horas do dia e a tarde está encoberta, presa a um calor húmido. Oiço as minhas netas, inventam jogos com que ocupam, por instantes, a sua adolescência. Quanto tempo faltará para que estar aqui se torne uma seca?

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Emancipações

Há coisas que são efectivas libertações, se não mesmo acontecimentos emancipatórios. Emancipei-me desse dispositivo arcaico que incomoda qualquer homem, quando não usa casaco. Usei o adjectivo arcaico não porque saiba que o dispositivo em causa seja muito antigo, mas porque fica bem classificar qualquer coisa de arcaica. Fui emancipado pelo telemóvel. Não apenas por ele, mas por essas coisas maravilhosas que dão pelo nome de aplicações, mais conhecidas por app. Dinheiro? Uma app resolve. Cartão de cidadão, carta de condução, documento único automóvel e não sei mais o quê? Outra app resolve. Cartões diversos? Outras app resolvem. Emancipei-me da carteira, desse trambolho que não fazia a ideia onde, não vestindo casaco, o haveria de colocar. Não podemos negar a existência de progresso no mundo, nem mesmo de progresso moral, pois tudo aquilo que nos liberta e emancipa de tutelas várias é moralmente bom e substitui algo que, pelo seu carácter constringente, nos rouba a liberdade. Diante de mim tenho dois pequenos cadernos ou, para dar um mais cosmopolita, dois notebooks. São de excelente papel, têm capas atraentes, apetece mesmo estar com eles na mão. De resto, não servem para nada, pois não lhes maculo as páginas com a minha letra sofrível. Sofrível é uma palavra que me fez recuar muitos, muitos anos. Quando era estudante pós-primário, havia uma estranha escala de classificação do desempenho dos alunos. A estranheza, uma inquietante estranheza, uma real Unheimlichkeit freudiana, vinha da introdução entre o medíocre e o suficiente – melhor, entre o medíocre mais e o suficiente menos – do sofrível. Num dos dicionários de língua portuguesa que uso, no verbete sofrível encontro o seguinte: antiquado – nota escolar um pouco inferior a suficiente. Eu que recebi classificações sofríveis tenho, por isso, a prova do meu arcaísmo, para além da minha insuficiência. Fui classificado por uma escala definitivamente antiquada. Imagino que terá sido algum professor com pouca paciência para os desempenhos dos alunos que inventou o sofrível. O que este escreveu, pensou, pode-se suportar, pode-se sofrer. Daí o sofrível. Acho que vou oferecer os notebooks de papel às minhas netas.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Estátuas de sal

Resisto, mas o poder da realidade é mais forte que o meu ou de qualquer um que lhe resista. Realidade deriva de real, que em latim – reāle – se origina em res, que significa coisa. Há um curioso sentido de real: aquilo que é relativo às coisas e não às pessoas. Aqueles que, como este pobre narrador sem narrativa, tentam resistir à realidade fazem-no para impedir a sua coisificação, a sua transformação em coisa. Ora, parece ser o destino de qualquer pessoa transformar-se em coisa, metamorfosear-se nessa coisa que está aí. Quanto mais reais, menos pessoas somos. Portanto, a realidade é uma enorme e poderosa máquina de converter pessoas em coisas. No Antigo Testamento há uma história que confirma o que acabo de escrever. Em fuga de Sodoma, Lot e a família foram avisados para não olharem para trás. Caso contrário, seriam transformados em estátuas de sal. Ora, a mulher do sobrinho de Moisés não conseguiu suster a curiosidade e olhou para trás, para a realidade de onde fugia. Foi coisificada. Moral da história? Não devemos ter contacto intenso com a realidade, caso contrário viramos estátuas de sal ou coisa pior. Seja como for, não se pense que mergulhar no ideal e viver nesse éter sublime salva quem quer que seja de se transformar se não em estátua, pelo menos em sal.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Sobre a inovação

Fui reconstituir um dente. O tempo de espera para além da hora marcada triplicou o tempo da reconstituição. Ouvi um pedido de desculpas, não foi mau. Alguma coisa estará a mudar, ainda que muito lentamente. Estou a exagerar, mas é preciso não esquecer que tenho, por vezes, uma certa atracção pela hipérbole. Como hoje é um dia dedicado à medicina, estou com curiosidade para ver quanto tempo, para além da hora marcada, esperarei no cardiologista. No livro de Houellebecq que estou prestes a acabar, a personagem principal, a dado momento, refere que está longe o tempo em que os caminhos de ferro franceses tinham como ponto de honra cumprir os horários. Portanto, ainda há uma memória de que em tempos cumprir o horário era sagrado. Não é o caso da medicina em Portugal. A experiência arcaica é que os horários não são para cumprir. Quando há esculápios que se empenham em fazê-lo – e começa a haver – estamos perante uma quase novidade. Era óptimo que se transformasse numa tradição ou, mesmo, num dogma cuja infracção representasse uma heresia. Não é que, nos dias que correm, a heresia afaste alguém de a cometer. Tornou-se marca de ousadia e distinção ser herege. Não me refiro apenas à religião, mas a qualquer assunto, pois todos os assuntos suscitam um corpo de crenças que, com o passar do tempo, se tornam canónicas. Ora, se se estabelecer uma analogia com o cancro, logo se percebe que este é herético. Há um código original que não se deve alterar, um texto sagrado, mas a introdução da inovação gera as neoplasias, que são uma espécie de doutrina herética em relação aos dogmas em que um organismo assentava. As consequências da inovação não são as melhores. Aqui, este texto entra em contradição. Apela à inovação como coisa boa e mostra que a inovação é coisa má. Talvez o autor sofra de uma incompatibilidade com a lógica. É uma possibilidade séria que o narrador não desmente, mas também não confirma.

domingo, 4 de setembro de 2022

Artes da ficção

Foi preciso um fim-de-semana com o meu neto para, por duas vezes, pôr os pés na areia da praia. Os netos têm poderes que só os avós reconhecem. A relação entre pais e filhos é contaminada pela necessidade de educar, impor regras, dizer não. A figura da autoridade é uma necessidade. Com os netos, as coisas são diferentes. No lugar da necessidade, reina a liberdade. No lugar da autoridade, a subversão de regras. Às vezes, porém, é necessário conter a ideia de subversão, pois parece que ela transborda da criança, sempre disposta a pôr as regras em causa, a encontrar modo de as furar, de lhes retirar a precária universalidade com que os adultos sonham revesti-las. Tirando estas aventuras de avô, restou o tempo de insónia. Consigo preencher esse tempo com leituras, o que não ajuda a pôr-lhes fim. Sem pegar em Serotonina durante o dia, em duas noites cheguei aos setenta por cento. Mais uma insónia moderada e acabo o romance. Conforme envelheço, não quero generalizar, menos consigo dormir. Agora, o neto e pais já se foram e eu preparo-me para retornar a casa. Aí chegarão as outras netas, para passar uma semana, antes que as aulas cheguem e a vida seja conspurcada com as nuvens negras da realidade. Não sei se é uma idiossincrasia pessoal, mas desde que um dia a minha mãe me levou à escola, tinha eu feito seis anos há um mês, que a vida nunca mais foi a mesma. Nunca me curei dessa traição, embora tenha disfarçado ao longo da vida. Não há nada como as artes da ficção.

sábado, 3 de setembro de 2022

Dias de ilusão

O encontro com a balança no pós-férias não foi particularmente penoso, apenas quinhentos gramas mais do que antes desse período fantasioso, no qual se alimentam quimeras como a possibilidade de as coisas não serem o que são. As férias estão para os nossos dias como o Carnaval estava para a Idade Média. Li que, então, era também conhecido como Festa dos Loucos. Era uma despedida dos prazeres da carne, a que se seguiria o tempo quaresmal. As férias de hoje são, mutatis mutandis, a mesma coisa. Não se trata tanto da questão da carne, mas da irrealidade. Uma das origens possíveis do Carnaval encontra-se na Babilónia e é um testemunho eloquente daquilo que nós, seres humanos, somos ou também somos. Nas Saceias – uma festa – um prisioneiro assumia durante alguns dias o papel de Rei. Vestia como ele, comia como ele e dormia com as suas mulheres. Enfim, um admirável mundo novo. Passadas as festividades, era espancado e executado. Fala-se em enforcamento, mas também em empalamento. Tudo tem um preço, dir-se-á. À irrealidade do reinado daqueles dias, seguia-se a dura realidade. As férias não me anularam a inclinação para a insónia. Esta noite, deu-me a possibilidade de ler um quarto do romance de Michel Houellebecq, Serotonina. A humanidade não sai lá muito bem tratada, mas o que seria de esperar quando se fala de uma espécie que concede uns dias de ilusão para, logo de seguida, supliciar até à morte o beneficiário dessa fantasia?

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Valor e preço

Descobri que dois livros que tinha comprado em férias já constavam nas estantes. O pior é que, antes de sair e de os encomendar, tinha ido verificar se existiam. Verifiquei, mas não vi. Por vezes, os deuses conspiram para nos perder. Não que a perda seja muita, mas é uma espécie de humilhação imposta pela realidade. Tenho de fazer o levantamento das coisas repetidas e pô-las à venda. O problema é que não tenho alma de vendedor. Como se sabe, há almas de todos os géneros e cada um tem a sua. Os que têm alma para vender, fazem-no com quem bebe um copo de água. Não é o meu caso, o que é sinal de desastre num mundo formatado pelo espírito do mercador. Quando o terceiro-estado tomou conta do mundo, tudo se converteu em mercadoria regulada pela lei da oferta e da procura. Esta é a mais curiosa das leis. Parece fundar-se na liberdade. O preço das coisas, de qualquer coisa, depende do exercício de vontades livres que chegam a acordo entre si. O efeito disto é que tudo deixou de ter valor e passou apenas a ter preço, que varia conforme os humores de compradores e vendedores. Os meus livros têm um preço, embora para mim tenham valor. Não são mercadorias, mas qualquer coisa que rompeu com o fetichismo da mercadoria. Contudo, isso é apenas um assunto privado. Objectivamente, eles têm um preço. Acho que me perdi no jardim dos caminhos que se bifurcam. Queria eu dizer que um mundo regulado pelo espírito dos mercadores é um mundo onde o valor foi substituído pelo preço. As coisas deixam de valer e passam a custar. Não sei o que me deu para escrever este conjunto de bagatelas, há muito conhecidas. Tenho a imaginação em pousio, mas isso não significa que, depois desse período de descanso, ela produza mais e melhores ideias. Já não tenho idade para me iludir, embora nunca desista de o fazer.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Viagens digitais

A internet é uma porta aberta para mundos que sem ela ficariam apenas ao alcance de poucos. Por exemplo, o universo dos alfarrabistas. Estes, claro, existiam muito antes de haver uma rede que liga toda a gente a toda a gente, mas a sua pura existência física não permitia aquilo que o alfarrabismo digital permite, o aceder quase ao mesmo tempo a vendedores de livros dispersos por todos o país, por todo o mundo. Depois, consente, sem ter de tocar nos livros, admirar estranhas conjugações de livros. Por exemplo, O Paraíso da Droga, a que se segue, do historiador Luís de Albuquerque, «O Reino da Estupidez» e a Reforma Pombalina, que é seguido por outro com o notável título Ensaios filosóficos escolhidos de operários, camponeses e soldados, da editora Vento de Leste. A este segue-se Ventriloquia ao alcance de todos, que precede Lobos do Mar, de Kipling, o qual antecede Poemas, de Holderlin. A seguir surge, inevitavelmente datado de 1974, Partidos Políticos – ponto por ponto e, para acabar a enumeração, a obra principal de Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos. São estranhas constelações que se formam e que não eixam de enviar sobre o transeunte digital uma certa luz sobre o mundo em que ele aterrou. Além de perder tempo, estas viagens acabam por serem instrutivas, pois sempre se vai descobrindo autores desconhecidos. Agora, tenho de me fazer à vida. A realidade espera-me e eu não gosto de me atrasar. Setembro começou.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Aquilo que é decisivo

Talvez as pessoas não saibam o que fazer com ela. Tratam-na como coisa divina, mas evitam demorar ali os seus olhos. Quase não tem leitores. Em prestígio, só a música ombreará com ela. É possível que já não se saiba o que fazer com a poesia, nem como a ler, nem o que esperar dela. E, no entanto, é possível ainda depositar a esperança num poema. Não a esperança da salvação, mas aquela que orienta o olhar para este perceber as coisas que diante dele estão manifestas, mas que ele não vê. Considere-se este pequeno poema: Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado. // Quando pronuncio a palavra Silêncio, / destruo-o. // Quando pronuncio a palavra Nada, crio algo que não cabe em nenhum não-ser. Wisława Szymborska dá-lhe o título AS TRÊS MAIS ESTRANHAS PALAVRAS. Como, sem poesia, poderíamos descobrir a estranheza nestas palavras que usamos como quem uso moedas de pouco valor. Contudo, isto ainda não é tudo. Em cada um dos primeiros versos dos três dísticos encontramos a palavra pronuncio, wymawiam, em polaco. O que o poema manifesta é o peso que existe em cada pronunciamento.  Não é inconsequente tomar a palavra. Sempre que o fazemos, modificamos o mundo e as próprias palavras não ficam incólumes ao uso que delas fazemos. Daqui o prestígio da poesia, mas também a falsa indiferença generalizada perante ela. As pessoas fingem indiferença, pois temem-na. Pressentem que ela diz sempre qualquer coisa de decisivo. E nada haverá de mais inquietante do que aquilo que é decisivo. Antes e depois de o ser.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Retorno

Volto para casa. Há quem meça a distância de uma viagem em quilómetros, há quem o faça em tempo de deslocação. Neste caso, prefiro em graus de temperatura. A quantos graus estará a terra onde me acolho nessas épocas do ano em que tenho de enfrentar a realidade? Chega a estar a vinte graus de distância. Não será o caso de hoje, mas mesmo assim serão alguns. Não fiz a caminhada matinal, espero compensá-la com uma nocturna. Não haverá mar, nem molhe, nem gaivotas. Há sempre uma diferença abissal entre os livros que se trazem para férias e aqueles que se lêem ou que seria possível ler, no melhor dos mundos possíveis. Agora, há que arrumá-los para transporte e, depois, colocá-los nas estantes. Aos livros que trouxe, acrescentei outros comprados, entretanto. A cada um as suas adicções. Como todas as adicções, também estas significam subtracções ao orçamento, mas a vida é o que é. Um dos que comprei é a Obra Completa de José Marmelo e Silva. Uma obra que cabe num único volume de setecentas e poucas páginas. Os responsáveis pela edição deram-lhe um estranho título Não aceitei a ortodoxia. Um tributo à recusa do autor em se deixar esmagar pelo horizonte ideológico do neo-realismo e aos conflitos entre estes e os presencistas. Nisto haverá, apesar da excelência académica dos organizadores, um equívoco. A arte nada tem que ver com a querela sobre a doxa (opinião). Não se trata de se ser ortodoxo ou heterodoxo. Isso será um problema teológico, mesmo que a teologia tenha por deus a arte. Esta não tem relação com a opinião. Para Platão, havia um conflito entre doxa (opinião) e episteme (ciência). A arte pertencia a outra realidade. Aliás, mal vista pelo filósofo. Acabam com estes pensamentos os dias inúteis. Amanhã, a utilidade tomará posse do meu tempo, o que me dá a esperança de que passarei a ter pensamentos úteis.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Fim de estação

Quando fui caminhar, por volta das oito da manhã, descobri que a população veraneante encolhera drasticamente. Cruzei-me com muito menos caminhantes, passeantes, ciclistas e esforçados adeptos do jogging. Chegado ao molhe, olhei para as praias e não havia ninguém, o que está longe de ser habitual. Àquela hora já vi gente a tomar banho, escolas de surf em actividade, onde um sacerdote dirigia um ritual de aquecimento, com estranhos ritos envolvendo o corpo dos monges com o habita da ordem, pessoas a passear os cães junto à beira-mar, outras sentadas olhando para o oceano, talvez a sonhar com a América, com grandes veleiros e navios transatlânticos. Hoje, nada nem ninguém. Também, no molhe não se avistava vivalma humana, apenas gaivotas em conferência, que levantavam voo com a minha aproximação. Já não é um tempo de despedida de férias. Esse deve ter ocorrido no fim-de-semana. É um tempo em que se pode dizer: o sol parece mais fraco. Contudo, os bares lá estão, também a areia e o mar, com os seus rumorejos. Depois, comentei parece que se está na Bretanha ou na Normandia ou num episódio do inspector Maigret. Estou inclinado para a nostalgia. Ao escrever Maigret, lembrei-me de uma França que só existe na imaginação, uma França que era o celeiro espiritual dos portugueses, num tempo em que estes ainda não se tinham convertido à cultura anglo-saxónica. Agora, ninguém aprende francês e muito menos está interessado naquilo que possa vir de França. Isto é uma Idade sem amor bloqueada pelo êxtase / do tempo, como escreveu, no início dos anos sessenta do século passado, Herberto Helder. O espírito do tempo mudou e as pessoas extasiam-se com outras coisas ou já não se extasiam com nada. Este talvez não seja um tempo para êxtases, mas nunca se sabe.

domingo, 28 de agosto de 2022

Velhos hábitos

Este antigo hábito do almoço tardio aos domingos parece imutável. Isso virá de um tempo em que os domingos eram dias sagrados. Não se entenda por sagrado um dia em que se cumprem os rituais religiosos obrigatórios para os católicos romanos. Significa uma sacralidade mais ampla, pois não era um dia de negócio, mas também não era de ócio. Nele estava incrustada uma diferença com os dias úteis, aqueles onde, movidos pela estrita necessidade, se nega o ócio. Imagino que o que se cultuava então era a pura liberdade de dispor do seu tempo. Daí, os almoços terem deslizado para horas tardias. Isso não ajuda ao culto da moderação. Não poderei dizer como Anatole França, em A Ilha dos Pinguins, faz dizer a Virgílio, Sou sóbrio: uma alface e algumas azeitonas, com uma gota de falerno, compunham toda a minha alimentação. Não é que não seja sóbrio, mas a alface não me atrai e as azeitonas não me caem bem. Continuo a preferir comida um pouco mais substancial. Também não bebo o vinho de Falerno, mas, neste país, não faltam alternativas. Virgílio – ou o Virgílio de Anatole France – contrapõe a sua ascese à dos cristãos. Estes, pensava ele, abstinham-se de alimentos e evitavam as mulheres por amor à privação, expondo-se voluntariamente a inúteis sofrimentos. Ele, pelo contrário, refreava os seus desejos por disciplina e satisfação própria. É possível que Virgílio assim pensasse. Também é possível que ele, na outra vida – pois é na vida após a morte que Anatole France coloca o diálogo de Marbode com Virgílio, que morrera dezanove anos antes do nascimento de Cristo – não tivesse compreendido o quão próximos de si estavam os seus cristãos, isto é, aquilo que ele imaginava, no lugar onde vivia a sua morte, serem os cristãos. Ambos faziam da ascese, seja ela sobriedade ou privação, um acto da vontade, uma afirmação de si mesmos, pela negação do prazer transbordante. O poeta da Eneida não terá percebido a natureza do cristianismo, mas poderia ser, claramente, um homem do Renascimento e mesmo um moderno. Tudo isto a propósito dos almoços tardios de domingo. Agora, vou tratar do vinho. Não de Falerno, mas de Monção e Melgaço, feito com uma casta que os deuses, talvez o próprio Baco, esqueceram por aquelas terras sagradas.

sábado, 27 de agosto de 2022

Iniciar as despedidas

O último sábado deste Agosto. O tempo desfaz-se perante os olhos, o corpo não reage e o espírito, volúvel, olha para esse acontecimento ora com indiferença, ora com melancolia. Não tarda, a realidade estará aí armada com os seus imperativos inúteis. Os homens precisam de Deus, disse-me hoje o padre Lodo, quando nos encontrámos no café, por causa da inutilidade. Fiquei na expectativa do que viria dali. É belo este mar, disse-me. Olhe para ele e deixe-se levar pelo mistério. Eu respondi que sim, mas perguntei qual a ligação com a inutilidade. Nenhuma, ouvi. Fiquei calado, à espera. Então, ele continuou. Todos os nossos esforços, aqui sorriu, por maior que seja o seu êxito, estão condenados ao fracasso, a não ser que Deus exista. Veja os impérios, as grandes obras de arte, os mais agudos dos sistemas filosóficos ou mesmo os triunfos da Ciência. Onde estão Galileu, Newton, Einstein?  Todos mortos. Nada do que fizeram tem para eles sentido, caso não exista Deus e os homens não possuam uma alma imortal. Disse-lhe que uma coisa não está ligada à outra. Podemos imaginar a existência de Deus sem a existência de almas imortais e, acrescentei em tom de provocação, também não é impossível a existência de almas imortais sem que exista uma divindade. Olhou-me com seriedade e prescreveu: deixe de brincar à lógica. A realidade tem razões que a lógica é incapaz de formalizar. Eu ri-me e perguntei-lhe a causa desta deriva matinal, de uma deriva para a metafísica ao gosto popular. Não se fez rogado e retorquiu: a voz do povo é a voz de Deus. Não me contive e respondi que então Deus deve andar mal-humorado. Claro que anda, ouvi. Tem razões de sobra para isso. Como também eu estava mal-humorado e a metafísica não me interessa nas horas da manhã, mudei de assunto, para um interesse comum. Acordámos um jantar num dos sítios que merece o culto dos homens e senão de Deus, pelo menos dos deuses da Antiguidade. Há que começar as despedidas deste Agosto.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Jejuns

Uns dias de silêncio são um exercício de jejum. Este, em tempos, fazia parte da vida religiosa e os crentes praticavam-no não tanto por fé ou por tradição, mas por hábito. Depois, descobriram que também os hábitos se podem mudar e alguns com demasiada facilidade. Nem todos serão uma segunda natureza. Serão poucos os jejuadores por motivos de religião. Surgiram outros, também eles motivados pela fé, a fé na saúde do corpo, na produção de uma aparência que, mesmo que não seja bela, não envergonhe. Dito de um modo menos prosaico, antigamente, jejuava-se habitualmente por crença na transcendência; hoje, por crença na imanência. Isto não está a correr bem. Talvez os dias de jejum não me tenham melhorado as ideias. Diante de mim tenho uma série de medicamentos comprados há pouco. Olho para eles e é grande o meu desconsolo. Nenhum serve para encontrar assuntos que valham a pena escrever sobre eles. É possível que este narrador seja um niilista e escreva sobre o nada. Quando escrevo a palavra niilista noto sempre, no fundo da minha alma, uma sombra. O português deveria ter conservado o h latino. A palavra ficava muito mais elegante e, além disso, é possível que ser nihilista seja muito diferente de ser niilista. Eu não sou cultor da caligrafia, da grafia bela, do grego kalligraphía. Confesso, porém, que quando se arrancam letras às palavras estas sofrem e tornam-se feias. Como é possível não ver que ação não passa de uma acção atrofiada e feia? Em Portugal existe há muito uma conspiração contra a beleza das palavras e tanto quanto percebo, os conspiradores nunca jejuam, nem à sexta-feira.

domingo, 21 de agosto de 2022

Memórias

Este é um domingo cheio de trivialidades, como o são todos os meus domingos. Isto para não falar nos outros dias da semana. Recordo que uma coisa trivial é aquela que todos sabem e, por isso, se torna comum. Portanto, tenho preenchido este dia com coisas que todos sabem. Isto não significa que não me tenham acontecido aventuras que engrandecem a minha gesta. Por exemplo, ter ficado na cama e não ter feito a caminhada habitual com a frívola desculpa de que já estava muito sol. Mais picaresca foi a de ter engolido – embora não tenha dado por isso – a massa, não sei de que matéria seja feita, de restauro de um dente. Agora, terei de marcar consulta para nova restauração, para que me componham um dente da frente que terei partido há mais de cinquenta anos, na sequência de uma queda aparatosa no colégio, quando teria uns avultados 12 anos. Correndo desalmadamente em direcção do campo de Spiribol, tropecei numa espia de arame que segurava um dos postes do campo de Vólei. Um acontecimento. Rasguei as calças, destrocei os óculos, esfolei as mãos e, como prémio da combatividade, parti três dentes da frente. Também um castigo, pois estava em território dos mais velhos, onde gente da minha idade não era convidada a entrar. De um desses dentes alimentei-me hoje. Um dos livros que trouxe para férias foi O que diz Molero, de Dinis Machado. O livro saiu em 1977 e devo-o ter lido em 1978, durante os excruciantes afazeres do serviço militar. Lembro-me de me ter divertido imenso. Tendo perdido o rasto ao exemplar comprado então, adquiri um outro num alfarrabista, uma edição de 2003. Tenho esperança de o ler ainda por estes dias. Temo, porém, que não lhe ache graça nenhuma, mas como em tudo na vida é preciso correr riscos. E não é dos menores, o risco da desilusão.

sábado, 20 de agosto de 2022

Anacrónicos e intempestivos

Senilidade não é o estado em que me encontro, presumo com benevolência, mas o título do romance de Italo Svevo que estou a ler. A personagem senil não é um homem de idade avançada, mas alguém ainda jovem. Comporta-se perante uma rapariga mais nova e experiente como um velho que, desconfiado das possibilidades do corpo, se entrega à declinação do ciúme. O romance foi publicado no final do século XIX e talvez fosse já possível discernir o ciúme como algo que não deveria atacar as novas gerações, mas só aquelas em que as possibilidades físicas fossem insuficientes para consumar os devaneios eróticos da imaginação. Não se pode dizer que a obra tenha tido mau acolhimento. Na verdade, não houve sobre ela qualquer escrito. Nem favorável, nem desfavorável. Apenas silêncio. Svevo levou esta ausência de reacção muito a sério e esteve vinte e sete anos sem publicar. Salvou-o James Joyce. Hoje é um dos grandes nomes da literatura italiana. Há pessoas que nascem fora do seu tempo. Senilidade era uma obra demasiado moderna, um romance precursor, para ser apreciado no tempo e no lugar onde foi publicado. Nietzsche, por exemplo, presumia-se intempestivo. Escrevia para o futuro, pois o presente seria incapaz de o compreender. Há outra espécie de intempestivos, de pessoas que nascem anacrónicas. Não anunciam nenhum futuro, tão pouco são homens ou mulheres do futuro. São pessoas que nasceram demasiado tarde, num tempo que já não se coadunava com a sua constituição mais funda. Pertencem a um espírito cujo tempo se consumou. Os românticos imaginaram-se assim perante a Idade Média, mas o culto que lhe prestaram não é prova de estarem deslocados do seu tempo. É um truque para abrirem uma brecha dentro do mundo moderno e nele encontrarem lugar. Aqueles que são anacrónicos, cujo espírito repousa num tempo acabado, não têm nada para dizer. Olham o mundo e fazem do silêncio a sua morada.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Da inutilidade

Não era um bando, mas um enxame de gaivotas. Percorria o molhe, ouvindo a barulho sereno das águas, quando, vinda do mar alto, surge uma traineira. Parecia carregada. De súbito, centenas de gaivotas formam um esquadrão sobre o barco, como se ele necessitasse, para chegar ao porto, da energia vinda do grasnar ameaçador daquelas aves esfomeadas. Depois, talvez desiludidas pelo resguardo da carga, começam a dividir-se em grupos, o enxame perde a consistência e pequenos bandos desaparecem no horizonte, outros aterram na areia das praias, um escolheu o cimento do molhe para conferenciar. Isto foi de manhã cedo, estavam os barcos de pesca a chegar da faina no mar, como dantes se ouvia dizer ou se lia. Mais tarde, quando a manhã declinava, achei que precisava de levantar dinheiro. Dirigi-me a um multibanco perto e tive a desagradável surpresa de ele não ter sido abastecido. Dirijo-me a uma pequena vila onde sabia existir vários multibancos e descubro que tinham desaparecido. Agência bancárias e caixas de multibanco parecem espécies em vias de extinção. Depois, de um período de expansão, onde não havia recanto que não tivesse a sua agência, agora parecem sofrer de uma crise demográfica. Morrem muitas e não nascem outras. Perguntei a uma pessoa que passava se não havia por ali uma caixa multibanco. Há, mas é na estrada para… Obrigado, respondi. A pessoa sorriu e acrescentou que dantes havia na vila quatro bancos, agora só há um. Eu também sorri e fui levantar o dinheiro que precisava, pois ainda preciso de dinheiro. Como poderia, sem moedas ou notas, ir para uma esplanada frente ao mar, tomar café, comer um bolo para contrabalançar o exercício da manhã e beber uma água com gás? Não podia. Sentado, o azul do mar entrava-me pelos olhos, os banhistas entretinham-se com o mar e a areia onde se deitavam esperando um milagre. Pensei em coisas inúteis, como costumo pensar, mesmo que não esteja sentado diante do oceano. A inutilidade é o motivo maior de meu pensamento.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A púrpura do rosto

Olha, aquelas flores maquilhadas com a púrpura do teu rosto. Quando ouvi isto, nem acreditei que houvesse alguém que pronunciasse uma frase como aquela. Tentei perceber quem era, mas o dono da fala tinha-se perdido, bem como aquela que detinha um rosto de onde se extraía a púrpura com que certas flores se maquilham. O mundo está cheio de acontecimentos que mereciam um pouco mais de atenção, mas a trivialidade da existência rapta-os para os aniquilar. Não se pense que sou sensível a uma eventual poeticidade da frase. Não sou, pois é uma poética adocicada e há muito que bebo café sem açúcar. O que me sensibilizou foi alguém falar daquele modo. Depois, há sempre um depois, continuei o meu caminho em direcção ao molhe, para poder ver as águas do oceano e os barcos ancorado a tremer, pois também os barcos são sensíveis ao frio, e a manhã não estava ainda quente. Quando me ponho nesse caminhar, o rosto das pessoas com que me cruzo torna-se difuso, perde os contornos, é uma mancha móbil na paisagem, uma nódoa que se aproxima para logo ser deglutida e desaparecer no nada. No final da manhã, tentei ir a uma ilha que, por acaso, é uma península. Se conseguisse lá parar, haveria de beber um café. Não consegui. O aumento dos carros que ali chegam nestes dias é inversamente proporcional aos lugares para estacionar. Quanto maior a procura, menor a oferta. Os serviços municipais todos os anos fecham um número considerável de lugares de estacionamento. Isto prova que nem tudo se rege pelas leis do mercado. Fui estacionar para outro lado, onde procurei flores maquilhadas com a púrpura que certas mulheres deixam cair do rosto. Não as havia, sinal de que pouca ou nenhuma púrpura haverá em rostos de mulheres que por aí andam. Talvez sofram de anemia, pensei.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Vento esfuziante

Ainda não eram oito horas da manhã e já estava na rua em plena caminhada. O problema foi o vento. Uma grande nortada. De tal modo que não me atrevi a ir ao molhe, não fosse o Eolo confundir-me com uma gaivota e enviar uma rajada que me pusesse a voar. Pode ser inimaginável eu voar, mas aos deuses, ao contrário dos homens, tudo é possível. Timorato, não arrisquei e mantive-me longe das águas. Um sopro esfuziante saía da boca do deus. A língua tem mais segredos que qualquer Estado onde tudo é segredo de Estado. Como é que a palavra esfuziante significa deslumbrante ou muito alegre e tem na sua raiz a palavra fuzil? Sim, fuzil, de onde fuzilar. Esfuziar significa zunir ou sibilar como balas de espingarda. Era isso mesmo que a nortada fazia aos meus ouvidos. Daí, estar esfuziante, embora eu não achasse a situação nem deslumbrante nem alegre. Também o termo esfuzilar combina em si significações díspares, para não dizer disparatadas. Significa fuzilar e cintilar. Há na língua sinais de uma realidade tétrica que nós nem damos por isso. Que coisas terríveis terão acontecido para que fuzilar seja uma coisa cintilante, se não mesmo deslumbrante? É evidente que se se consultar a palavra fuzil encontramos um caminho para explicar tudo isto. Significa espingarda, mas também relâmpago. As balas saídas das espingardas relampejam, cintilam. As emissárias da morte têm tanta luz que deslumbram. O melhor é não olhar para elas.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Graças à auto-ajuda

Uma grande aventura. Quando abri o ficheiro Word onde escrevo estes textos deparo-me com uma mensagem desagradável, talvez como protesto às coisas parvas que nele estão escritas. Em resumo, ficheiro corrompido. Quase seiscentas páginas ditirâmbicas para o lixo. Entreguei-me à navegação na rede em busca de conselho para recuperar o graal perdido. Tentei múltiplas mezinhas, segui conselhos até onde nunca suspeitei ser capaz de ir. Cogitava que para ter todos os textos num único ficheiro teria de os copiar um a um do blogue. Só de pensar nisso sentia-me indisposto. Voltava para a internet em busca de salvação, mas depois de muitos esforços não encontrei salvador. Contrariamente ao que muitas pessoas crêem, não existem salvadores ao virar da esquina. Muito se fala de corrupção neste país, mas sabem lá as pessoas o que é a corrupção de um ficheiro. Desiludido com a corrupção e a ausência de salvadores e salvação disponíveis, entreguei-me à auto-ajuda. Peguei no ficheiro corrupto, porque corrompido, e coloquei-o na drive da conta Google. Mandei-o abrir e ele obedeceu de forma muito estranha. Um pano de fundo negro, a confirmação do mau presságio, de onde ressaltavam as páginas brancas com o texto. Pensei que agora seria fácil. Era só mandar abrir em Google Docs. Assim fiz. Recebi uma mensagem com os seguintes dizeres: Não foi possível abrir o ficheiro. Experimente actualizar a página. Cumpri, como quem paga uma promessa, mas não se compadeceu de mim. Pensei em seleccionar todo o texto e copiar, depois colá-lo-ia noutro ficheiro. Em vão. Para aliviar a consciência, mando transferir o ficheiro que estava em fundo fúnebre. Dá-se a transferência. Vou tentar abri-lo, pensei, sem grandes esperanças. Ah… narrador de pouca fé. O ficheiro abriu-se graças à auto-ajuda. É nele que escrevo mais esta aventura que faz parte de uma gesta superior às cantados pelos sábios gregos, troianos e mesmo àquele em que o herói é o peito ilustre lusitano, para rimar com troiano.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Mudança de ritmo

O tempo de férias desliza com rapidez, como se fosse um enxame incandescente, brilhando contra a paisagem soturna dos dias úteis, como se uma febre relampejante o tocasse em direcção ao nada. Não tarda e tudo estará consumado. As minhas netas foram-se há pouco embora, outra estação de férias as espera noutro lado, deixando por aqui uma fenda. O dia está enovoado, mas quente. Há muita gente nas ruas, pois o dia da Assunção da Virgem ainda é feriado, embora para a generalidade das pessoas, das que não estão de férias, não tenha qualquer significado religioso, a não ser, este ano, o do culto dos fins-de-semana prolongados. Cada época terá a sua religião, e a nossa, uma época politeísta, tem imensos cultos a múltiplos deuses, todos eles pouco divinos. Hoje de manhã, na caminhada com que costumo abrir o dia, já se via gente nas praias. Ainda não seriam autênticos banhistas, mas pessoas que aproveitam a manhã ainda criança para caminhar junto à beira-mar. São caminhantes marítimos, um estatuto a que me furto, pois a inclinação do chão, ainda que a areia esteja molhada e dura, torna o andar desagradável. O corpo desequilibra-se, e quando o corpo perde o equilíbrio, a cabeça não fica melhor. Agora, vou habituar-me à ausência das netas. Muito fácil é a presença tornar-se um hábito, mas a falta exige trabalho e afinco. Há que mudar o ritmo.

domingo, 14 de agosto de 2022

Estranhamento

O mundo anda tão às avessas, e gastar o tempo com estes escritos é atitude de um autêntico alienado. Disseram-me isto com tom reprovador. Fiz notar que não tinha paciência para a reprovação e para moralismo de ocasião, mas concordei no tema da alienação. Só aquele que se estranha a um certo ambiente se pode livrar dele. Para aqui não quero trazer manifestações desse material que constitui a essência da História, se é que a História tem uma essência. Esse material é a paixão pelo poder, a mais autêntica das paixões humanas. Contrariamente ao que muitos pensam, a paixão pelo poder não é uma manifestação da natureza alfa de certos machos ou fêmeas da nossa espécie, o que estaria no âmbito da Biologia e da Química. A paixão pelo poder tem uma natureza metafísica e pretende uma transubstanciação. O macho alfa ainda é um animal como os outros, mais forte. Ora, a paixão pelo poder manifesta o desejo de deixar de ser um membro do rebanho para se tornar pastor e transportar consigo o cajado, esse símbolo de pertença a uma outra realidade. Um pastor não é uma ovelha ou um carneiro. A caracterização do poder como pastorado foi descoberta há muito, ainda antes da era cristã, e pensadores eminentes dedicaram-lhe a sua atenção. Por vezes, corre a ilusão de que o poder não é o lugar do pastor, pois não há rebanho, mas uma associação de homens racionais e livres. Chega-se a falar em contrato. Basta, porém, dar alguma atenção aos seres humanos para perceber a ilusão e que haverá sempre, enquanto existir a espécie humana, lugar para a paixão pastoral. É esta paixão que não me interessa, a não ser como espectáculo. Por norma, comédia, mas, por vezes, tragédia. Sou um narrador alienado, isto é, que se estranhou à mais humana das paixões. Foi isto que me ocorreu neste segundo domingo de Agosto, um tempo em que deveria pensar em não pensar em nada, entregando o corpo aos raios solares e ao ritmo benfazejo das ondas. A verdade é que não somos senhores do nosso caminho e muito menos do caminho que os pensamentos que existem dentro de nós decidem tomar.

sábado, 13 de agosto de 2022

Uma nova ciência

Por aqui, chegado o fim-de-semana, a internet entra em modo de repouso, variando entre o esmero da lentidão e a insurgência da recusa. Com a chegada de veraneantes e surfistas de fim-de-semana, as operadoras, com a habitual desatenção com que regem os direitos dos consumidores, esperam que sábado e domingo passem depressa e que ninguém as aborreça. Consta que mesmo a concorrência não é motivo suficiente para reforçar o sinal nas zonas de veraneio, ou pelo menos nesta, onde, por razões que nada têm a ver com o amor ao Verão e à praia, me encontro. Comecei o dia com uma caminhada, que incluiu entrar pelo mar dentro, por cima de um molhe, claro. O princípio de toda a ciência dá-se com o processo de classificação. Elaboram-se taxionomias, para depois se desenvolver o aparato teórico, fundamentalmente, conceitos, e, mais tarde as técnicas experimentais e as de matematização, se for o caso disso. Recordo isto, pois também eu, nestas caminhadas, estou a começar a construir uma taxionomia das pessoas que se dedicam a armazenar pontos cardio, aqueles cuja acumulação a OMS assevera que há-de prolongar a vida. Existem três grandes classes de pessoas cardio-acumuladoras. As que o fazem de bicicleta, as que o fazem através da corrida e as que acumulam pontos andando. Nos ciclistas já descobri duas classes, aqueles cujas bicicletas têm campainha e aqueles cujas bicicletas não a têm. É uma classe difícil de observar, pois desloca-se a grande velocidade. Também nos que correm detectei duas classes. Os que o fazem com garbo e aqueles que parecem arrastar o corpo como se fossem morrer na próxima curva. Quanto aos que caminham, onde me incluo, parecem ser uma massa indiferenciada, a escória dos cardio-acumuladores. Talvez, com mais uns dias de observação, também nestes intocáveis da cardio-acumulação consiga distinguir subclasses. Agora, vou tomar café e descansar. É esgotante dar origem a uma nova ciência.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Fora dos eixos

Sento-me e passo os olhos pelas notícias online. Descubro que Salman Rushdie foi atacado em pleno palco quando se preparava par dar uma palestra. Não se sabe em que estado está o escritor. A fatwa que o condenara à morte devido ao que escrevera no romance Os Versículos Satânicos tinha sido levantada no final dos anos 90 do século passado. Nos dias que correm, o fanatismo entrincheirou-se em três campos, qual o deles o mais sujeito às paixões plebeias. A religião, a política e o futebol. Para qualquer fanático, a crença que o alimenta tem mais valor que a vida, seja de uma ou de muitas pessoas. O fanatismo é uma forma de energia que alimenta as máquinas de violência que são os homens. Que se me perdoe esta diatribe. Tinha eu pensado em não trazer estes assuntos para aqui, falar só de coisas estivais, mas, para dizer a verdade, também o Verão é uma forma de fanatismo, um fanatismo climático. Hoje a temperatura, mesmo aqui, está fora dos eixos. O mundo, parece-me, está fora dos eixos. Apesar disso, bocejo e acho que me encostar em qualquer lugar fresco e fingir que estou a ler.