Hoje é o primeiro dia de Verão e a temperatura já ousa
passar os 30 graus, prometendo escalar o conflito nos próximos dias. Tenho de
imaginar estratégias de autodefesa, mas ando demasiado ocupado e não tenho
tempo para frequentar o von Clausewitz e o Sun-Tzu. Comecei a trabalhar ainda
antes das nove da manhã e tenho uma tarde e noite dedicadas ao culto das
necessidades. Ontem fiz uma caminhada à noite. A cidade e o movimento eram
iguais aos de outros tempos. Uma pessoa caminha furtiva entre sombras, deixa-se
guiar pelo hábito e vai olhando para o que acontece. Uma vez por outra, lá
passa um viandante ou então alguém que ainda não tem vergonha de correr em
público. Um grupo de jovens em quase pós-adolescência faz umas acrobacias de
bicicleta, fendendo a noite com o seu gargalhar cheio de incertezas. Depois, as
trevas tomaram conta do mundo. Hoje ainda não espreitei a avenida, desconfio
que as pessoas se preparam para os almoços em família, caso a tenham. De resto,
o vento eriça as folhas das árvores, fá-las tremer e ondular, enquanto as
sombras se escondem debaixo das copas e a luz dá uma coloração de antimónio ao
verde cinza das oliveiras. A minha mente parece um depósito vazio, mas não vale
a pena enchê-la, de tão esburacada que está. Hoje é domingo, dia 21 de Junho.
Leio nos jornais que a polícia tem agora uma nova função, a de dispersar as
pessoas que se juntam às centenas talvez com a esperança de se infectarem e de
lançar o país no caos. Não há nada como medo, pensei. Estás pouco iluminista
hoje, disse-me o daimon que vive em mim. Pois estou, talvez nunca tivesse
acreditado muito no progresso da razão e da moralidade humana. Calo-me, antes
que me torne um reaccionário adepto do absolutismo e o texto comece a tornar-se
desmesurado.
domingo, 21 de junho de 2020
sábado, 20 de junho de 2020
Divagações por territórios inóspitos
Avanço com pouca diligência por um lugarejo perdido no
Tennessee. Nesses anos, os que ligaram uma guerra mundial a outra, a lei seca
criou uma coorte de bootleggers,
perseguida com afinco pelas autoridades, o que prova que é a lei que faz o
criminoso. Falo do primeiro romance de Cormac McCarthy, O Guarda do Pomar. Aquele é um universo estranho para um europeu e
essa não será a menor das virtudes da literatura, colocar-nos em mundos excêntricos,
fazer a imaginação raptar-nos da nossa instalação sedentária e obrigar-nos a
territórios inóspitos e vidas extravagantes. Também um leitor americano poderia
pensar o mesmo se confrontado com uma narrativa passada nas terras em que os
homens teimam, não se sabe bem porquê, a pegar touros bravos de caras, touro e
homem a olharem-se nos olhos, a espreitarem-se, a estudar como se hão-de
encaixar e acabar com aquela incerteza, para que haja aplausos e a banda
filarmónica se desfaça em música. Eu sei que o universo das touradas é um
território minado, pronto a explodir numa paróquia desejosa de pegar fogo por
tudo e por nada. Não sou dado a verónicas e a chicuelinas, nem uso palavras como faena ou tenho especial predilecção
pelo paso-doble, mas grandeza, mesmo
se inútil, haverá no homem que enfrenta sem nada nas mãos um animal daqueles, ainda
que cansado e sangrado, grandeza, mesmo que tinta de loucura, haverá no matador
que joga a sua vida contra a de um miura. De resto, a tauromaquia não me
interessa para nada, mas isso não a distingue de milhares de outras coisas que
também não me interessam. Há pouco, ao espreitar, a Sá Carneiro, o movimento
dos carros parecia a de um sábado pré-pandémico. As pessoas na rua conversam, enquanto
o Sol sobe no céu e as sombras vão minguando na Terra. Uma mosca pousou na
parte exterior do vidro da janela, mas logo partiu. O fim-de-semana desdobra-se
diante de mim, tem ainda as mãos limpas, sem sombras nos dedos ou sangue nas
unhas. A inocência todavia é coisa que se perde com facilidade e, com o passar
das horas, a exaltante candura inicial dará lugar à cínica condescendência de
quem vive com o que tem de ser, antes de chegar a melancolia elegíaca com que
os ombros se encolhem perante o que está a chegar, descobrindo no fim-de-semana
as mãos pretas de sujidade e as unhas tintas de sangue. Talvez tenha acordado
com a velha disposição para a hipérbole. Hoje é sábado, dia 20 de Junho. O
solstício de Verão está marcado para as 22h e 44m e os dias começarão a
declinar. O Tennessee naqueles dias escolhidos por McCarthy para o seu primeiro
romance era um lugar difícil, mas também, chegados os calores, o abrigo da
Serra de Aire, com o seu sistema de grutas e acontecimentos inusitados, não é
fácil.
sexta-feira, 19 de junho de 2020
Diferenças ontológicas
Devias paragrafar estes textos, mudas de assunto a torto e a
direito e vai tudo de seguida, as pessoas cansam-se. Uma das coisas que há para
aprender na vida é que não se deve dar atenção ao que diz aquele daimon, como se translitera o raio da
palavra?, que vive dentro de nós para expelir, a torto e a direito, opiniões
que não lhe pedimos. Sim, não foi apenas Sócrates que teve um daimon, eu também tenho um e conheço
pessoas que têm vários. Esta será aliás a melhor explicação para a heteronímia de
Fernando Pessoa, embora me abstenha de dar opinião sobre tal assunto. Respondi-lhe,
ao daimon, que sou dado a monoblocos,
portanto fazer parágrafos nestes textos está fora das minhas cogitações. Ainda
bem que não te dá para escreveres romances, atirou ele, pois teríamos
oitocentas páginas com um único parágrafo. Olhei-o de soslaio, ameaçador, e ele
desapareceu para as caves da minha consciência. Quando não temos nada para
dizer sobre o mundo, como é o meu caso, inventamos coisas sem nexo, só para
preencher o espaço em branco. Ontem o meu neto esteve aqui e confirmei que
existe uma diferença ontológica entre rapazes e raparigas. Quando as minhas
netas tinham a idade dele, mesmo a mais azougada, e azougue e autoridade não
lhe faltavam, se sentadas comigo à secretária, ficavam a ver em sossego A Galinha Pintadinha no computador,
negociando apenas o episódio que se seguiria. Ele, ao fim de uns minutos de
ambientação, achou que o programa não seria ver a Masha e o Urso mas trepar para cima da secretária e mexer nos
monitores, nos teclados, no rato e no mais que houvesse à disposição do dedo em
riste. À minha frente tenho uns livros, na verdade são apenas dois, de um
filósofo norte-americano sobre a construção da realidade social. Talvez ele me
explique por que razão um aglomerado de electrões e protões fica quieto a ver a
galinha pintadinha e o pintinho (é assim mesmo) amarelinho e outro julgue que a
sua função é cabriolar em cima de secretárias. Hoje é sexta-feira, dia 19 de
Junho. A semana desliza para o momento em que entregará a alma ao criador. Num
poema de Eugénio de Andrade leio Toda a
manhã procurei uma sílaba, mas noutro de Luís Quintais depara-mo com uma
resposta extravagante Cruéis miragens, / pânico
de moribundos. Evito a discussão e fecho ambos os livros. Consta que a
epidemia continua e os infectados se multiplicam. Acho que vou almoçar. Eis uma
coisa que me devolve a humanidade.
quinta-feira, 18 de junho de 2020
A blasfémia do Rei Afonso X
Ao levantar-me fui espreitar a rua para ver a máscara com
que o dia se apresenta. Como se fora vítima de um sortilégio, fiquei a olhar a
luz, as sombras e as folhas batidas pelo vento. Transportado para o mundo
arcaico da infância, reconheci aquela tonalidade da luz da manhã, o ramalhar
das árvores e o alongamento disforme das sombras, lembrando fantasmas e
monstros. O fascínio não nasceu da evocação do passado nem da saudade desses
tempos, mas da constância que se esconde por debaixo do turbilhão do mundo.
Eram a mesma luz, o mesmo vento, as mesmas sombras. Também Parménides e Platão
ficaram fascinados pela permanência e pela imobilidade, esses quase milagres
num mundo que parece ser uma máquina de produzir metamorfoses e inconstâncias.
A meditação logo se interrompeu. O canto de um pássaro, o grito de uma criança,
o barulho rugoso de uma máquina e o mundo desassisado de Heraclito retomou o
seu lugar. De imediato, as coisas começaram a transformar-se, o telemóvel a
disparar avisos e as corveias quotidianas a chamarem-me. Mandei-as calar, mas
recusaram-se e não tive outro remédio senão começar a fazer pela vida. Agora
escrevo e observo o mundo a partir da minha secretária e não sei o que fazer
com ele. Talvez não fosse ociosa a discussão sobre se este é ou não o melhor
dos mundos possíveis. Se a resposta for sim, nem quero imaginar como seriam
todos os outros. Seja como for, muito eu gosto de usar bordões e frases feitas,
o melhor é não me aventurar em blasfémias como aquela que perdeu o sábio rei Afonso
X de Castela. Se eu houvesse podido
aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Nunca se sabe se os
pombos que por aqui volteiam nos ares são ou não anjos e sendo, não sabemos se
eles são dos caídos ou dos fiéis. Todo o cuidado é pouco e mesmo para lidar com
pombos ou anjos é recomendável que se use máscara. Muitas coisas haveria para
discorrer, mas o melhor é não maçar o leitor. Hoje é quinta-feira, dia 18 de
Junho. Uma sirene anuncia a chegada das treze horas. Suponho que é tempo de
pensar em almoçar, em vez de estar a carregar nas teclas para escrever um
punhado de tolices. Não me conformo porém com o desprezo de Sancho, filho e sucessor
de Afonso, pela última vontade do pai, a quem traíra. Pedira este que o coração
fosse enterrado no Monte Calvário, talvez para se fazer perdoar da blasfémia,
mas o filho deixou-o a apodrecer em Sevilha e, como se sabe, as coisas em
Sevilha apodrecem muito depressa.
quarta-feira, 17 de junho de 2020
Preservativos faciais na meia-estação
Fui obrigado a retroceder. Já me tinha estivalado, já olhava
com desconforto para o termostato, pensando que ele só serve para dar ordens de
aquecimento e não de arrefecimento, quando a impância, e esta é a segunda
palavra acabada de inventar, do Verão antecipado foi quebrada, a soberba da
estação que se aproxima calcada na praça pública e eu tive me vestir à
meia-estação, seja lá onde for que há uma estação que é apenas meia. O mundo
está cheio de designações cujo sentido é obscuro, o que é uma vantagem para
certos filósofos que à falta de melhor corrigem a linguagem. Isso talvez não
seja pior que corrigir o mundo, como pretendem outros. Eu também gostaria muito
de possuir um ânimo corrector, do género que habita a alma não dos filósofos
mas dos correctores ortográficos. Quando algo em mim fosse sublinhado a
vermelho, clicava no botão direito do rato e mandava substituir. Se não
houvesse substituição disponível, mandava adicionar à minha natureza. Seria um defeito
mas pela sua singularidade talvez se transformasse em virtude. Não está a ser
um mês fácil, este Junho. Na esplanada do café aqui ao lado, estão as mesas
dispostas com intervalos de segurança, à espera que pessoas com máscaras se
sentem nelas, para depois tirar esse novo preservativo facial. Ninguém aparece,
mas ao escrever preservativo facial tive uma epifania e percebi a natureza
erótica de tudo o que se passa. Não entrarei em detalhes, mas a junção de face,
boca e o que mais se deve mascarar por uma questão de segurança não terá
deixado de dar ideias estranhas ao deus Cupido, isto para nos mantermos no
nível da alta cultura clássica. Descobri ontem que há uma nova tradução da
Eneida, de Virgílio, ao que consta muito boa. Vou encomendá-la, mesmo que
alguém tenha dito em voz alevantada Cessem
do sábio Grego e do Troiano / as navegações grandes que fizeram. Hoje é
quarta-feira, diz 17 de Junho. Leio no jornal que a China parece estar a
reconfinar e que as faculdades de medicina portugueses recusam abrir mais vagas
para candidatos a senhores doutores. Fora eu um sábio como aqueles que existiam
no Antigo Testamento, ou mesmo na Grécia antes desta se ter entregado nos
braços dos filósofos, e diria nada de novo sob o Sol, mas não digo, pois
propus-me, quando acordei, a evitar lugares comuns.
terça-feira, 16 de junho de 2020
Deu-lhes um tranglimango
Pobres orquídeas, deu-lhes o trangolomango. Não, o que lhes
deu foi mesmo o tanglomanglo. Para não faltar à verdade aquilo que muitas vezes
ouvi foi coitado, deu-lhe um tranglimango e foi-se desta para melhor. Aliás, é
a forma sonora mais agradável, mas nenhum dicionarista, nem o Houaiss, se
dignou vir aqui, a este nobre rincão, para registar o uso da corruptela. Seja
como for, alguém deitou um feitiço às orquídeas e elas perderam a cabeça.
Começam a despir-se, em sessões de strip-tease,
como se o friso onde habitam fosse um cabaret.
Já as intimei a comportarem-se, mas elas olham-me com olímpico desprezo e
deixam cair, com ademanes desapropriados, mais uma flor. Isto levanta um problema
filosófico dos mais difíceis, o da relação entre o mal moral e o mal natural.
Muito se discutiu sobre a ligação entre os desmandos da natureza, terramotos,
furacões, epidemias e outros, com a maldade humana, a imoralidade com que os homens
conduzem as suas vidas. Chegou a supor-se que a maldade da natureza era um
castigo da maldade dos homens, mas ao olhar o desaforo das orquídeas percebe-se
que o problema é mais complexo e que a própria natureza possui uma propensão
para a imoralidade que convém castigar, embora não se saiba quem aplicará tal
punição. Ao olhar para o que está escrito perguntei-me se o acentuado arrefecimento
nocturno terá alguma influência no meu estado mental, na decomposição de que o
texto é um sintoma a não desprezar. Ando há dias para me lembrar do nome de uns
arbustos de jardim que dão umas flores assalmonadas e viscosas, é o que me
parece, e que polvilham a escola aqui ao lado. Não consigo. Presumo, ao olhar
para a minha agenda, que o dia não vai ser fácil. Na secretária estão
umas moedas que, esquecidas num bolso, foram à máquina de lavar. Das
sete, apenas três são portuguesas. Um euro alemão e outro espanhol, vinte
cêntimos franceses e dez cêntimos holandeses. Talvez a União Europeia seja
isto, a possibilidade de andar com moedas vindas sabe Deus de onde e de as lavarmos
na máquina, para as purificarmos e evitarmos que se transformem em orquídeas
dadas ao strip-tease. Hoje é terça-feira,
dia 16 de Junho. O sol desce vagaroso sobre os telhados do casario, tomado por
uma anemia que nos protege dos seus furores. Na rua, há gente a conversar e no
telhado do prédio em frente dois pombos imitam anjos prontos para se
precipitarem na balbúrdia humana. Como sempre, nada de novo sob o Sol.
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Aproximação ao solstício
Hoje é um dia de difícil gestão, como o vão ser os próximos.
Ainda por cima a herança genética recusou-me a inclinação para gestor, de tal
maneira foi veemente a recusa que nem inveja sinto por quem é CEO – consta que
significa chief executive officer e é
uma das novas fontes de poluição da linguagem – quanto mais por quem não passa
de simples gestor de produto. Não tenho alma de pastor nem de pai dos povos. Eu
sei que todas estas metáforas vêm de lugares diferentes, mas no fundo
assemelham-se, apenas as cores originais as distinguem, mas cor é coisa que
facilmente se muda. Ainda não pus um pé na rua. O dia está melancólico, talvez
pela aproximação do solstício. A Primavera exausta caminha em direcção ao Verão
e, não tarda, os dias começarão a declinar, dando lugar a noites cada vez
maiores, mais negras, mais opacas. Ontem, quando cheguei, havia uma grande
confusão no friso das orquídeas. Flores tombadas, folhas cobertas de uma
viscosidade doentia, um ar de abandono. Uma, completamente despida, parece que
não resistirá. Oiço vozes na rua, vozes como antigamente se ouviam. Não percebo
o que dizem, mas pela toada trata-se de conversa pacífica, algumas asserções sobre
a vida, uma experiência que se narra para edificação de quem escuta, talvez um
desfiar de velhas máximas entrecortadas por comentários. Apesar do vírus não se
entregar, as coisas do mundo vão voltando com os seus dramas e as suas
comédias, sendo uns o reverso das outras. Deveria dormir uma sesta para
compensar as horas em que durante a noite o sono me abandonou. Hoje é
segunda-feira, dia 15 de Junho. À meia-noite, o mês terá completado metade da
sua existência, mas não encontro préstimo para esta informação, como não o encontro
para quase todas as outras. As pálpebras, pesadas, podem-me que as deixe
fecharem-se, mas eu pergunto-lhes se me julgam espanhol. Elas recuam no pedido
e atarantadas deixam-se ficar entreabertas, para que os olhos vejam o que está
diante deles, mesmo que eu não perceba o que é.
domingo, 14 de junho de 2020
Não fora astigmático...
Hoje o meu pai faria anos, noventa e três, mas há muito que
deixou de os fazer, ao tomar o comboio para aquele mundo que tem porta de
entrada mas não de saída. A última vez que ele fez anos eu já sabia que seria a
última, mas não me recordo desse dia, nem do que falámos. Minto como é
habitual. Almoçou em minha casa, um almoço em família em que se comeu um prato
de que ele gostava particularmente. Já não me recordo como se combinava em mim
a alegria e a tristeza ou como nele se manifestava o saber da escassez do
tempo. A memória é uma rameira fantasiosa, devemos olhá-la com desconfiança e
não lhe dar crédito. Passo os olhos pelas primeiras páginas dos jornais.
Descubro que após a quarentena o número de divórcios dispara. Consigo imaginar
o número a empunhar um revólver e a disparar divórcios como se fossem balas para
um alvo a 100 metros de distância. Só espero que o número seja melhor atirador
do que eu. Um dia, no serviço militar, fomos à carreira de tiro que havia para
os lados de Espinho. Foram-nos dadas 5 balas de G3 que tínhamos de disparar
para um alvo longínquo. Cada tiro no centro valia dez pontos. Deixei o meu alvo
imaculado e cheguei aos zero pontos em cinquenta possíveis. Em contrapartida, o
disparador do lado, rapaz exímio no manejo de armas e filho de um famoso, na
época, inspector da judiciária, alcançou a proeza de obter oitenta pontos em
cinquenta. Depois de se conferenciar naquela linguagem que só existe no serviço
militar pensou-se que eu teria disparado no alvo errado. Deve ser do
astigmatismo, informei. Esta é uma boa explicação para o facto de na vida errar
continuamente o alvo. Não fora eu astigmático e toda a minha existência seria
outra. As pessoas nem imaginam como coisas sem importância, pequenos defeitos
do cristalino ou da córnea, as desviam do alvo que seria o delas e da glória a
que ascenderiam caso o defeito não lhes desviasse os tiros. No sítio onde
estou, mas de onde me irei embora não tarda, as pessoas entregam-se à
existência como se tivessem sido submetidas a uma longa provação. De todos os
casais que avistei na caminhada matinal não sei quantos se divorciarão nem se
neles há astigmáticos, prontos a falhar o próximo casamento ou divórcio. Hoje é
domingo, dia 14 de Junho. A manhã levantou-se ensolarada, mas um manto de
nuvens estende os seus tentáculos no céu e ameaça os que gostam de pisar a areia
como se uma praia fosse o paraíso. Os pássaros não se calam e também eles foram
vítimas do castigo imposto aos que se atreveram a erguer a torre de Babel.
sábado, 13 de junho de 2020
Citações apócrifas
Junho aproxima-se rapidamente daquele ponto em que começará
a declinar. Tem sido uma árdua ascensão ao cume, mas cumprida a etapa a
velocidade da descida irá crescendo paulatinamente até que o mês se despenhe no
abismo negro de onde não há retorno. Deveria ter começado este texto de outra
maneira. Um pássaro canta e eu oiço-lhe o linguajar sem que dele perceba a
mensagem. Outros respondem-lhe numa conversa secreta sobre o rumo do mundo.
Para as aves, o mundo é diferente do nosso. Preocupam-se com os ares e a sua
atenção à terra é, por certo, menor que aquela que lhe damos. Consta que a
espécie humana anda muito preocupada com a questão das estátuas. Uns erguem,
outros derrubam e quando os que derrubam erguem as suas, haverá outros que as
derrubarão. Imagino que estes tempos de pandemia tenham diminuído as
possibilidades de ocupação humana e, sem que fazer, a humanidade preocupa-se com
estátuas. Faz sentido, pois elas são como espelhos que nos reproduzem e, como
os malditos espelhos que multiplicam a humanidade, isto é a citação de uma
citação apócrifa, elas mostram-nos a nossa horrível carantonha. Para me
disfarçar, saí à rua não de máscara mas de panamá, se é que aquilo que pus na
cabeça pode receber tal nome. Comprei-o o ano passado à porta de uma praia do
Algarve. Vendiam-nos a dez euros. Todos iguais, fabricados numa república
popular asiática e todos de papel. Pensei que no fim daquele dia teria de o mandar
reciclar junto com os jornais e o cartão. Enganei-me. Usei-o hoje e tem ar de
que ainda resistirá a mais uma dúzia de usos. O almoço será mais tarde, uma
honra concedida ao Santo António por injunção das minhas netas. Já enfeitaram o
lugar do repasto e cheira a sardinha assada. Leio o boletim epidemiológico como
se lesse o meteorológico. Apesar do sol, o tempo está longe de ser benevolente.
Continuam os raios e os coriscos. Hoje é sábado, dia 13 de Junho. O mundo
caminha desatinado, mas isso não é uma novidade. Sento-me e olho o espectáculo
sem presunção de compreendê-lo. Fui educado na terrível tradição daqueles que
vão ao estádio não para competir nem para fazer negócio, mas apenas para ver.
Também esta frase é o resultado de uma citação apócrifa, tal como eu.
sexta-feira, 12 de junho de 2020
Ó meu santo antoninho
Estão incertos os dias de Junho, um humor volúvel, euforia e
depressão. Onde me encontro neste momento, chove. Os pingos de chuva batem nos
vidros da janela, fazem pequenas bolhas para depois deslizarem, enchendo o
vidro de pequenos regatos que, ao confundirem-se, transformam-se em lago. O
mundo está cheio destas metamorfoses, um conjunto de coisas que ao juntarem-se
forma uma outra. Estava a ler o jornal e vejo a palavra palimpsesto. É uma bela
palavra, dotada de musicalidade, embora eu não a recomendasse para uso poético.
Todos nós somos textos que se escrevem no lugar onde outros textos foram
escritos e logo apagados. Queria eu dizer que também as nossas vidas fazem
parte de um palimpsesto de que não sabemos a origem nem temos a mais leve
desconfiança como ele, um dia muito depois do nosso texto ter sido apagado,
acabará. Talvez nas mãos de algum antiquário cósmico contrabandista de
velharias. De manhã, caminhei durante seis quilómetros, o corpo começou a etapa
muito exuberante, mas a partir de certa altura a energia começou a definhar e o
ritmo da passada abrandou, deixando-me longe do record pessoal, que já de si é miserável. Cães ladram na rua e um
buraco nas nuvens deixa ver um céu anil. Avisto duas torres altas, antigas
chaminés industriais feitas em tijolo, por onde a fumaça negra se elevava aos
céus, desenhando círculos, espirais, nuvens densas e tóxicas. São agora
pacíficos adornos de memórias que, com o passar dos dias, mudaram de infelizes
para o seu contrário, como acontece sempre. O meu email continua sob fogo
inimigo. Como bombas, caem nele mensagens, ainda por cima já nem se pode matar
o mensageiro que fica no resguardo do lar a disparar setas envenenadas como
Cupido lançava as de amor, não menos venenosas, claro. O melhor é cessar por
aqui, para que a deriva não me leve a mostrar a loucura que há muito disfarço,
não sem algum êxito. Hoje é sexta-feira, dia 12 de Junho. Um tempo de santos
populares – ó meu rico santo antoninho – pouco aberto a comemorações. As
adolescentes da casa querem uns santos caseiros, com sardinhas e bandeiras de
uma certa marca que se promove nestas ocasiões em Lisboa. Não digo qual, porque
isto não é uma agência de publicidade. Antes fora, grita-me a consciência.
Olho-a com desprezo e encolho os ombros. Sardinhas, então, mas no dia do santo.
Sentença lida.
quinta-feira, 11 de junho de 2020
O génio maligno e o canto do galo
Um aguaceiro não previsto encurtou a minha caminhada de hoje
em mais de dois quilómetros. Estava eu tão docilmente disposto a acumular
pontos cardio, que segundo a app que me monitoriza as deambulações,
são recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e os elementos decidiram
conspirar contra a minha saúde, a minha vontade de me roubar à inércia do ser
sedentário que vive dentro do meu corpo. Conforme os anos passam e a experiência
do mundo aumenta, mais convencido estou que a realidade é um tecido perverso
que um génio maligno, mais poderoso do que aquele que assombrou as meditações
melancólicas do senhor Descartes, vai tecendo para se rir dos mortais,
estragando-lhes os projectos, baldando-lhe as expectativas, transformando a
esperança na indiferença ou mesmo no mais profundo desespero. É possível,
penso, que o desespero não tenha profundidade, que seja apenas um ser
bidimensional, uma superfície, e que seja ilegítimo dizer profundo desespero.
Tudo é possível neste mundo, mesmo as coisas mais dignas de descrédito. É
inverosímil, mas a verdade é que estou a ouvir um galo a cantar, se é que se pode
chamar canto à propensão vocal dos galarotes para o exibicionismo. Ele insiste,
insiste, levado por uma estranha necessidade de manifestar a sua existência.
Fora ele humano e seria caso de lhe recomendar uma terapia psicanalítica,
deitá-lo no divã, para que rememorasse o acontecimento traumático passado na
infância que o leva a este exibicionismo vocálico. Ele haveria de falar de
sonhos e entregar-se à associação livre, enquanto o psicanalista tomaria notas
num caderno de capas azuis. Sempre se trataria de um galarote e convinha não desmoralizá-lo
com um caderno de capas cor-de-rosa. Desconfio que estas últimas palavras não
serão particularmente apreciadas e adaptadas ao tempo em que vivemos, mas eu já
não pertenço a este tempo. Seja como for, a linguagem sempre foi uma coisa
perigosa e agora está cheia de vigilantes, não vá ela incendiar-se e atear um
fogo maior que o grande incêndio de Roma. Hoje é quinta-feira, dia 11 de Junho.
Feriado religioso do Corpo de Deus que há uns anos foi abolido, mas depois
restaurado, colocando o corpo divino no seu devido lugar, com gratidão geral de
crentes, agnósticos e ateus, e desespero daqueles que julgam que o ócio dos
outros é vicioso e que só o trabalho liberta. Será esta frase uma versão da
falácia reductio ad Hitlerum?
quarta-feira, 10 de junho de 2020
A vida assim
São precisas umas coisas do supermercado. Muito bem. Entra-se no carro e vai-se direito ao templo onde o necessário é vendido como se de uma simonia se tratasse. Quando se chega, descobre-se que são muitos os que tiveram a mesma precisão, uma fila enorme de fiéis que tenta manter a distância e aguarda que o acólito lhes dê entrada. O carro nem pára. O melhor é ir a outra paróquia. Constata-se que a nova igreja tem menos fiéis. Onde está a máscara? Põe-se a máscara, entra-se, higieniza-se as mãos e lá se descobrem as coisas de que havia precisão. Não me agradam os vinhos que por aqui há, digo. Sai-se, tira-se a máscara e sorve-se o ar lentamente. Uma esplanada à espera. Quero ver o que há para comer. Onde pus o raio da máscara, pergunto-me. Lá a descubro. Ponho-a, entro, higienizo as mãos e escolho. Saio, sento-me e tiro a máscara. Torno a sorver o ar com lentidão. Uma chamuça, ainda antes do almoço, oiço. Haveria de ser um rissol, um croquete? É o que há. Também quero avô. São duas, então. Temos de tornar a higienizar as mãos, pergunta a mais nova, para logo querer saber se há bolos. Não há. A vida agora é isto, já nem sei onde pôr as mãos, os olhos, a boca, o nariz. Vale-me a chamuça, que me há-de aumentar o colesterol, mesmo se higienizo as mãos. Chegado a casa ligo o computador depois de higienizar as mãos e mudar de roupa. A máquina informa-me que está actualizar, só mais um momento, mas este dilata-se, dilata-se num nunca mais acabar. Pego num livro de poemas e num verso vejo a palavra inconsútil. Franzo o sobrolho. Não seria melhor usar sem costura, interrogo-me. As actualizações continuam. Só um momento, não desligue o computador. Não desligo e agradeço por ele não me tratar por tu, ao menos ele, dou-lhe os momentos todos e até me actualizava a mim se pudesse, só para lhe agradar. Leio desci pela imponente escada da juventude e fico perplexo, o que fará ali o adjectivo? Os pneus das bicicletas estão vazios, retine nos meus ouvidos. Eu sei, já trato disso, respondo. Hoje é quarta-feira, dia 10 de Junho. A pátria celebra-se na voz do presidente. O cardeal poeta assevera que Camões desconfinou Portugal e eu penso na chamuça, nos meses que passaram sem ter ido a Lisboa, que não ponho um pé num restaurante indiano ou goês, que não deixa de ser indiano, mas tem um travo do desconfinamento camoniano. Tenho de procurar a bomba das bicicletas das crianças.
terça-feira, 9 de junho de 2020
Divagações de terça à tarde
Entardece. Escrevo esta palavra como se ela contivesse um
destino, como se o pôr-do-sol, ainda por chegar, anunciasse um crepúsculo
final, ao qual se seguiria a noite eterna. Este pathos que enterneceu gerações tomadas pela angústia existencial é
uma falsificação. As tardes são seguidas pelas noites e estas pelas auroras que
trarão manhãs que declinarão e ao meio-dia hão-de morrer nos braços da tarde,
numa monotonia sem fim. Não estava previsto que o narrador se entregasse a
estas divagações, que tentasse raptar os leitores do contacto com a vida, para
os enrodilhar em assuntos que não movem o mundo e, por isso, não interessam a
ninguém. Muitas foram as vezes que escutei isso não interessa ao Menino Jesus,
numa tentativa blasfema de limitar os interesses do filho do Homem.
Afastemo-nos do território escorregadio da teologia. Uma conversa chega aos
meus ouvidos. Vem cheia de realidade. Um drama qualquer, vidas desestruturadas,
gente perdida, abandonada pelos deuses. Gente desnorteada, oiço. Há exclamações
de espanto, comiseração, enquanto uma sombra se prolonga pela rua, pisada por um
transeunte de calções e boné que vai apressado para um encontro secreto,
imagino-o pelo andar comprometido, o olhar furtivo a espiar horizontes. Caio em
mim e digo-me que ninguém vai para um encontro secreto de calções e boné. Um
gato equilibra-se no muro, dá uns passos, procura uma mancha de sol e deita-se.
Dedilho o calendário e descubro que há dois feriados seguidos, um cívico e
outro religioso. A cada um a sua liturgia. As vozes não se calam, a desgraça é
infinita e o vozear limitado. Hoje é terça-feira, dia 9 de Junho. Enrolo-me na
tarde, esqueço o infortúnio, ponho de lado as tragédias e sento-me. Hei-de
abrir um livro e começar a ler ou pego em mim e obrigo as pernas a porem-se em
movimento.
segunda-feira, 8 de junho de 2020
Um grito escalofriante
A sala é desmesurada para o meu tamanho, para a experiência que
tinha do mundo. Ao fundo, um friso de professores com ar inóspito, mapas nas
paredes. Depois de mostrar sabedoria sobre as produções das províncias
ultramarinas, um eufemismo em voga, vou para o quadro negro. Vestido com bata
branca, um dos oficiantes inquire-me sobre questões esotéricas, tais como
aritmética, geometria. Escrevo na ardósia, resolvo problemas, faço contas,
desenho figuras, apago. O cabelo do interrogador era branco, talvez tivesse
sido louro, e a face rubicunda, com ar severo que lhe sublinhava a dignidade,
apesar do tom rosáceo da pele. Havia espectadores numa bancada improvisada. Não
podiam, suponho, aplaudir ou patear, mas guardar reverente silêncio. Estou ali solitário
perante um tribunal que me julgará sem piedade. Faltavam-me ainda uns meses
para ter dez anos. Isto não foi um pesadelo, mas uma memória antiga que
irrompeu em mim depois de almoço. Por vezes sou assaltado por fragmentos do
passado, coisas mortas que ressuscitam, sem que eu saiba como. Vêm da terra do
esquecimento, abrem caminhos sinuosos e desembocam na grande praça da
consciência. Não sei o que fazer deles. Se a minha fosse uma alma de
coleccionador juntava-os para os catalogar e depois arrumar numa vitrine e os
contemplar de quando em vez. Estou a falar de um tempo muito arcaico, onde a
vida ainda era regulada por ritos de passagem, mas do que tenho saudades é de
uma certa literatura de aventuras do oeste, livros pequenos, com 64 páginas e
seis desenhos, letras minúsculas, organizados em colecções com nomes como 6
Balas, Cow-Boy, Fúria dos Bravos e, supremo encanto, Gatilho. Naqueles dias em
que as férias se prolongavam por três meses, as tardes de calor eram
enfrentadas com a pistola na mão e o dedo no gatilho. Se havia pandemias, não
me informavam, mas os bons ganhavam sempre aos maus e a justiça não era uma
quimera. Não me perguntam, mas se perguntassem que livros influenciaram o meu
gosto literário, diria de imediato os da colecção 6 Balas ou Fúria dos Bravos.
Como é que se pode ler Kafka, Mann ou Dostoiévski, se nunca se leu Um Milionário no Far-West ou A Terra das Caveiras? Sim, é verdade,
não tenho assunto. Hoje é segunda-feira, dia 8 de Junho. A temperatura está
moderada e o sol cordato. Leio: Recuperando
o revólver, despejou a carga sobre o segundo assaltante, quando este tentava apanhar
Bill Shaterly desprevenido, no momento em que carregava a arma. O meliante
soltou um grito escalofriante – isso mesmo, escalofriante – e, em seguida, caiu de bruços, com o
estômago perfurado (Uriah Moltan, Matar
ou Morrer). Se o leitor não sabe o que é escalofriante nem tão pouco um
escalofrío, recomendo um dicionário de espanhol. Eu também não sabia.
domingo, 7 de junho de 2020
Não dar por nada
Uma vertigem, daquelas que se sentem quando se bebeu um
pouco, mas não tanto que não se permaneça no estado de sobriedade. Depois, uma
sonolência que não pára de atormentar as pálpebras, incitando-as a cerrarem-se,
a cortarem-me as imagens do mundo, como se me tivesse esquecido de pagar a
conta na operadora que prodigaliza os serviços de televisão. Olhei pela janela
e a paisagem pareceu-me uma pintura de um pintor que muito se cultua por aqui,
como se fosse um santo. O pior é que o lugar dos pintores não é o altar. Ele
esteve em Paris, que é um lugar certo para pintores do tempo dele, naqueles anos
em que tudo efervescia e as artes plásticas sofreram tal revolução que uma era
nova começou. Ele não deu por nada. Talvez seja por isso que muito se gosta
dele. Cultivamos com esmero quem não dá por nada e persistimos em não dar por
nada. Uma luz esbranquiçada dilacera a tarde, abre-lhe sulcos, pequenos veios
por onde deslizam os raios solares, sombras se algum objecto se interpõe pelo
caminho. Uma das coisas mais inúteis que o homem inventou foi as instruções.
Mesmo as mais claras e distintas não servem para nada. Não há quem as escute ou leia.
Quem teve a ideia de criar instruções para facilitar a execução das tarefas
sobrevalorizou a humanidade. Ninguém quer saber de instruções para coisa alguma.
As pessoas preferem a tentativa e erro do que a comodidade de seguir uma instrução.
Têm à sua frente a eternidade para fazerem aquilo que, seguindo as indicações
coligidas com amor e destreza, se faria num abrir e fechar de olhos. Não sei o
que me deu para estar aqui a moralizar. Deveria pegar em mim, pôr a máscara
descer no elevador, tirar a máscara e ir ao campo comprar laranjas. Do outro
lado da avenida, um jacarandá está exuberante. Deixo os olhos presos nele por
alguns instantes, depois movo-os em direcção ao castelo e recolho-os em mim,
fechando as pálpebras. Hoje é domingo, dia 7 de Junho. A semana que entra será na
utilidade mais curta, mais sensata, pois também as semanas podem ser
insensatas. Vou comprar laranjas ao campo ou limões à praça, desde que não
necessite de instruções, pois também eu não as escuto ou leio. Eu bem tento
encurtar os textos, mas depois esqueço-me.
sábado, 6 de junho de 2020
Um dia estragado
Acordei a desoras. A manhã corria já desenfreada para a tarde quando me levantei. Não gosto de estar na cama para além das nove da manhã, e isso apenas em dias excepcionais, mas uma insónia deu-me oportunidade para ler durante o amanhecer umas duas horas. Depois adormeci e foi o que se viu. Um dia estragado, pensei ao pôr os pés no chão e ir abrir a persiana da porta que dá para a varanda. Valeu-me ao humor a benevolência da balança. Continua cordata, evitando insultar-me ou entregar-se ao culto da hipérbole. Fui às compras numa grande superfície. Como numa festa de Carnaval, estava toda a gente mascarada, mas agora a dança tem uma nova particularidade. Os corpos afastam-se em vez de se aproximarem. Os passos não visam o encontro harmónico mas o afastamento prudente. Também é verdade que ninguém vai a um hipermercado para dançar, mesmo que seja com a rapariga da caixa. Um dia destes escrevo um ensaio sobre o erotismo em tempo de pandemia. Levantar tarde, tarde almoçar. Fico a olhar para estas palavras, com vontade de as apagar, mas resisto. A caixa de email está a sofrer um ataque aéreo. Parecem bombas a cair nela. Terei de lhe dar alguma atenção, montar as antiaéreas e começar a disparar sempre que o inimigo enviar um email. Ontem tive uma revelação. Estive tentado em escrever epifania. Um anúncio mostrou-me o caminho da salvação. Apregoava um dispositivo que se coloca em cima da página do livro e a ilumina, permitindo a leitura sem perturbar o sono de quem, ao lado, ainda há pessoas que dormem com outras ao lado, de quem, dizia, tenha dificuldade em dormir com luz. Apressei-me a comprar, mas segundo me informaram vai demorar tempo a chegar. Vem de longe, tem muito que andar. Só espero que não se transvie no caminho, pois não há coisa pior do que perder aquilo que nos pode salvar. Hoje é sábado, dia 6 de Junho. A temperatura está amena, a luz remeteu-se à sobriedade e o mundo rumoreja em diálogo com uma máquina doméstica que se excede no zelo para que foi criada. Até uma máquina foi criada para alguma coisa, só eu é que ainda não percebi para que fui criado. Não blasfemes, diz-me a consciência. No telemóvel, uma aplicação pergunta-me se eu quero optimizar as fotografias. Respondo-lhe que gostaria de optimizar muitas coisas, mas as fotografias podem ficar como estão. Não blasfemo.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
A realidade está de volta
Depois de almoço, o estilete de cristal do sono perfurou-me as têmporas e a cabeça descaiu, o queixo tombou contra o peito e devo ter ressonado. Se sonhei, não dei por isso. Quando acordei, um fio de baba corria-me da boca, mas há coisas em que convém ser parco na descrição. O computador tinha hibernado e aquilo que eu estava a fazer congelou. Terei agora de recorrer ao micro-ondas para o descongelar, para o retirar da gélida petrificação em que caiu. O mais acertado seria também meter-me no aparelho e descongelar-me, para ver se me ocorre alguma coisa que faça sentido. Tenho uma revista em cima da secretária há mais de duas semanas. Tinha intenção de ler um artigo, mas olho a capa onde a prosa se anuncia, encolho os ombros e passo para outra coisa. Noutra altura, penso. E se essa altura nunca chegar, por certo não perderei grande coisa. A realidade está de volta ao lar dos portugueses. Voltou o futebol, a metafísica da bola na trave, a estética do fora-de-jogo e a ontologia da bola na mão ou mão na bola. Pressinto uma parte da pátria apaziguada, depois de uma longa ressaca. Não deveria tecer comentários jocosos sobre uma indústria tão poderosa e que alimenta tanta gente. Cada um aguarda a morte como quer ou pode e há coisas piores do que a bola, que ao menos é redonda, e nisso está, como bem sabiam os gregos, toda a perfeição. Nos relatos de futebol que eu ouvia na infância, pois também eu tive infância e gostei muito de futebol, os locutores tratavam a bola por esférico. Hoje não sei se continuam influenciados pela geometria ou se a origem das metáforas com que narram o jogo será outra, mais rude, mais de acordo com uma massa que não suporta erudições. Isto são suposições de um velho que, vendo a areia da ampulheta a correr demasiado depressa para seu gosto, é tocado pela equívoca nostalgia dos bons velhos tempos, como se os tempos alguma vez fossem bons. Bom é aquilo que não muda, que não se move, que não corre, e o tempo não pára de mudar, mover-se, correr como uma lebre perseguida por um cão de caça. Esta triste analogia venatória era dispensável, bem o sei, mas foi a que consegui. Hoje é sexta-feira, dia 5 de Junho. O fim-de-semana anunciou-se e sinto calor. Se abrir uma janela, talvez a temperatura desça. Anoto na agenda não dormir após o almoço e nunca mais usar expressões ridículas como o estilete de cristal do sono. Um vómito.
quinta-feira, 4 de junho de 2020
Sem nome
As ruas embrulham-se no ruído de antigamente. Vozes, rumores
de automóveis, roncos de motociclos sempre indispostos, gritos de crianças. Os
pássaros calaram-se. Estarão em algum estúdio a calibrar a potência do canto
para se sobreporem à novo situação. Com ímpeto muito moderado, avanço por
dentro de O Jardim dos Finzi-Contini.
Tendo lido já mais de cinco sextos do romance há um problema que não deixa de
me assaltar. Desconheço o nome do narrador – um narrador autodiegético, daqueles
que são protagonistas da história – e não faço a mínima ideia se alguma vez o
nome é referido ou não. Compenso-me imaginando que, por uma questão de contenção,
se tenha abstido de se nomear. Se for assim, compreendo-o muito bem, pois eu
também sou um narrador que não me autonomeio. Não porque seja contido, mas
porque sou destituído de nome. É possível que um dia, ao escrever mais um
destes textos infelizes, descubra o nome que me hei-de dar. À minha frente
tenho correspondência. Orçamentos para obras e uma carta de uma seguradora.
Tudo isto é cansativo. As cláusulas do orçamento, a informação de que ao preço
indicado acresce IVA, segundo as tabelas em vigor, as letras invisíveis da
seguradora, aquilo que ela segura e o que larga de mão. Não tivesse eu almoçado
há pouco e o sono não me chamasse, teria aqui uma grande oportunidade para
meditar sobre a prisão do mundo da vida nas malhas intrincadas da burocracia.
Que belas analogias haveria de fazer com os romances de Kafka ou com alguma das
distopias que a imaginação humana criou. A sonolência, porém, impede-me
meditações a esta hora. Tenho há dois dias um livro, ainda embrulhado, em
quarentena numa varanda. Desconfio que não devo estar bem, mas resisto em libertá-lo
do papel que o envolve. Hoje é quinta-feira, dia 4 de Junho. O tempo por aqui
está ameno, as horas deslizam sorrateiras, um casal passa na praceta em passo
cambado, ele à frente, ela atrás, cansados um do outro, esquecidos da ilusão
que os juntou. Um cão uiva e nesse uivo está toda a sabedoria do mundo.
quarta-feira, 3 de junho de 2020
A conquista da glória dos altares
Da gárgula escorre uma água suja, malcheirosa. Abre um sulco
na terra, um ribeiro minúsculo, e desliza sem pressa para ir morrer num buraco
fétido, coberto de ervas e arbustos secos. Não faço ideia de que sonho faz
parte esta descrição, pois raramente me recordo dos sonhos, mas não tenho
dúvidas que se extraviou de algum e começou a dançar dentro de mim, até que
saiu em forma de texto, antes que a sua pestilência destilasse e se
transformasse numa bebida amarga e venenosa. Lá em baixo, há vozes. Um homem,
pelo menos um, e uma mulher conversam. A voz dela ouve-se menos, é mais exígua,
quase sumida dentro do silêncio. Ele enche a praceta com um som redondo,
saltitante, como se fosse uma bola excessivamente cheia. Há risos de
conveniência, hesitações. Pela primeira vez em muitas semanas fui ao sítio onde
oficio um ritual que me permite enfrentar a terrível necessidade. Ao sair de
lá, estive tentado em ir a uma pastelaria. Lembrei-me da velha disputa com a
balança e contive-me. Há que cultivar a paz. Ao chegar ao prédio onde vivo
tomei a decisão de evitar o elevador e dispus-me a subir os cinco andares que
me separam da terra. Ao entrar em casa, pensei que subir aos céus é muito árduo
e pessoas haverá com pernas tão fracas que desistem a meio do caminho. Talvez a
santidade seja uma questão de musculação dos membros inferiores, um trabalho contínuo
de ginásio, onde os candidatos à glória dos altares encontrarão os seus personal trainers. Agora que esses
templos do músculo reabriram, não lhes hão-de faltar devotos ansiosos de ganhar
vigor para subirem ao céu. Não se pense que sou dado à blasfémia. Não sou. O
que acontece é que nem sempre me ocorrem metáforas decentes e então pego no que
me vem à cabeça, e aquilo que vem à cabeça das pessoas raramente é coisa que se
recomende. A rede de internet está a irritar-me e, como se sabe, a impaciência não
ajuda a subir a escada que nos leva ao alto. Hoje é quarta-feira, dia 3 de
Junho. Este é um mês cuja função nunca percebi. Serve para quê? Daqui a uns
minutos vou videoconferenciar. Respiro fundo e digo-me que isso é como ir ao
ginásio para treinar os músculos das pernas para subir aos céus. As persianas
tamborilam batidas pelo vento, enquanto as folhas das acácias tremem como se
sofressem de uma doença degenerativa. Não sofrem.
terça-feira, 2 de junho de 2020
As frívolas amenidades
Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na
capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem.
Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim
perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à
instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que
lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na
consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software que uso seja de tão má qualidade que não
consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas
a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado,
cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de
política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a
vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as
estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar
as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões,
gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma
orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio
em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno
cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e
surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha
tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se
é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2
de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos
salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.
segunda-feira, 1 de junho de 2020
A força do prefixo des-
O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à
desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo
des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes
pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que
oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo
faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores
dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a
contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o
ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e
eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso,
mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas
se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase
adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo
temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai
subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo
rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem
principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as
romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que
desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas
mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem
por fundamento o Urmensch, cada um de
nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e
se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e
queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o
caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre
Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.
domingo, 31 de maio de 2020
Os falsos caminhantes
Hoje já andei seis quilómetros. Quase parecia um caminhante, mas ainda não consigo disfarçar o velho sedentário que habita no meu corpo. As almas podem ser classificadas sob diversos critérios, o que dá origem a um sem número de taxionomias e não menos controvérsias. Isto é do conhecimento geral, não estou a dar nenhuma novidade. Uma das classificações divide-as em dois tipos. Almas sedentárias e almas nómadas. A minha é completamente sedentária e quando me ponho a caminhar pelas ruas vê-se logo que se está perante uma falsificação. Se não o dizem abertamente é por convenção social, mas os verdadeiros caminhantes, ao verem-me, pensam lá vai um a tentar enganar meio mundo, sabe lá ele o que é caminhar. Têm razão, não sei, não faço a mínima ideia. Hoje andei mais de uma hora a falsificar a realidade, a disfarçar-me de andarilho, de alguém que se treina para fazer uma longa peregrinação ou então que há-de acabar na ignomínia de ser um turista que abre a boca por tudo o que é sítio, depois fecha-a e faz umas fotografias, para mais tarde recordar, embora não tenha nada para recordar. Os lugares também têm almas e estas são avaras e avessas a darem-se a conhecer à alma nómada do turista. O melhor é evitar estas meditações, não vão pensar que sou algum sociólogo. Tenho muitos pecados e defeitos, mas não esse. Imagino que vou almoçar tarde. Aproveito para pôr algum trabalho em ordem e assim infringir o descanso dominical. Os pássaros meus vizinhos estão hoje dados à garrulice. Tagarelam sem parar. Tento perceber o motivo da conversa, mas não tenho ido às aulas sobre a linguagem dos pássaros e o essencial da disputa passa-me ao lado. Como é habitual, também isto não é novidade. Hoje é domingo, dia 31 de Maio. O mês está a acabar e não sei o que hei-de dizer dele. O mais sensato é seguir uma instrução proverbial escutada na longínqua infância. O calado vence tudo. Não me recordo de ser loquaz, mas nunca se sabe.
sábado, 30 de maio de 2020
Narrativa sem nexo
Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Ir ao campo
O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O
texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo
mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal
repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as
pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios
musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do
canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas
tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar
poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra
coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição
eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é
uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em
cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que
serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar
comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana
caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores
neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira.
Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que
me falta o segundo romance, Alcateia.
Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e
depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha
de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é
sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como
se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me
não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou
queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Liquidem os objectos
Os objectos tornaram-se exercícios difíceis. Portas, maçanetas, chaves, corrimãos, botões do elevador, terminais de multibanco, puxadores, superfícies lisas e rugosas, garrafas de vinho e de azeite, pacotes de arroz ou de massa e todo o resto do mundo dos objectos desde que venham do desconhecido ou do conhecido exterior à caverna que habitamos. Há que ter cuidado, não tocar, desinfectar, colocar ao sol, à sombra, à chuva, dar-lhe o ar do meio-dia ou da meia-noite, pô-los em repouso, em quarentena, oferecer-lhes uma quaresma, para ressuscitarem no seu domingo de páscoa. Haveremos de enlouquecer com esta xenofobia sanitária, nesta nova selva com aparência civilizada, onde os tigres, leões e leopardos foram substituídos por um frasco de compota, uma embalagem de bolachas ou a garrafa de água que se compra na estação de serviço. Confesso que não sei o que me deu hoje para este tipo de peroração, mas ainda há dois meses e meio pegava nos objectos sem pensar e agora é o que é. Tudo se pode dividir entre o puro e o contaminado, como se as coisas tivessem uma natureza moral, dotadas de sexualidade e que devessem entregar-se na noite de núpcias em estado virginal, puras, intocadas, plenas de inocência. Talvez o melhor seja acabar com os objectos. Quando a temperatura sobe por estes lados, não afianço a qualidade do meu estado mental. O termostato que mede a febre da casa começa a aproximar-se de uma zona perigosa. Tremo só de pensar o que poderá esconder. Hoje é quinta-feira, dia 28 de Maio. Terei de fazer duas visitas, uma ao meu neto, a outra à sua bisavó. Devia poder juntá-los, mas ainda não vai ser hoje. Bebo água por uma garrafa-termo, o que me vale é que a tinha comprado no ano passado, naquele tempo em que se dispensava certificação moral às meras coisas.
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Trocas neuronais
A primeira palavra que escrevi continha um erro ortográfico, fruto de uma associação que poupo aos leitores. Fiquei a olhar para o teclado e para dentro de mim, perguntando-me que estranhas conexões se passaram na mente para que os dedos, sem quererem saber da ordem que lhes dera, conquistassem autonomia para se submeterem a um outro senhor, cujos impulsos sendo meus me escapam. Sim, a psicanálise também vive disso, embora o caso seja já mais do foro do neurologista. O telhado esbranquiçado, talvez um cinza muito claro, do pavilhão desportivo da escola vizinha reverbera batido pela impiedade dos raios solares. Oiço uma máquina em manobras, talvez numas obras por perto, mas não a avisto. O dia desliza quente e sorrateiro. Na rua estão 34 graus e nem as sombras me convidam para sair de casa, embora o arvoredo da Sá Carneiro esteja exuberante. Por vezes os erros preocupam-me, não pela ortografia, mas por aquilo que eles revelam do estado do meu aparelho neuronal, caso possua um, coisa por provar. Os livros das estantes que me rodeiam têm o condão de me irritar. Não por eles, mas pelas ilusões que me levaram a comprá-los. Talvez exista em mim um pendor masoquista, pois os livros com os quais estou reconciliado estão longe da vista. À minha volta só fantasias e quimeras. Isso, porém, não interessa a ninguém e, além do mais, pode nem corresponder à verdade. Hoje é quarta-feira, dia 27 de Maio. As acácias já esconderam debaixo das folhas os ramos que o Inverno despira. Há árvores que não cultivam o pudor, a primeira das virtudes públicas que qualquer um deve ostentar para não cansar os outros. Os pássaros não se calam, numa cegarrega interminável. Podiam ir cantar para outra rua, mas essa já deve ter os seu tenores.
terça-feira, 26 de maio de 2020
A data em que a vida muda
Nunca sabemos a data em que uma vida muda, foi o que pensei
ao consultar o calendário. Nicolau II, da Rússia, foi coroado a 26 de Maio de
1896, não sabia ele que isso lhe iria marcar a fortuna e que o levaria a uma
morte infeliz e prematura, porque alguém, talvez sem saber o que fazer dele, se
lembrou de a antecipar. Vejo-o a ser coroado, rodeado pela corte, num quadro de
Serov e quase sinto vontade de lhe gritar para fugir dali, que renuncie à coroa
e vá dar uma volta pelo mundo com a Feodorovna. Calo-me, pois ele não me
ouviria. Somos sempre surdos para as palavras do destino, as potestades mais do
que os outros mortais. A cidade vai retomando os seus ruídos e rumores, o
gorgolejar da vida, o trânsito que se adensa, as gentes que se tomam de calores
e, mesmo de máscara cingida, se despem para o Verão antecipado. Chegou-me um
vídeo do meu neto. Sobe para uma cadeira, dali trepa para a cadeira de
refeição, senta-se no tabuleiro e pega num livro. Abre-o e faz um discurso,
como se lesse na mais estranha das línguas. Isto gerou um conflito de
interpretações acerca da performance
da criança. A avó ficou encantada com a teatralidade da leitura e o avô com a
destreza da subida. Homens e mulheres vêem o mundo de lugares diferentes, disse
eu, mas não estou certo se, ao escrevê-lo, não estarei a ofender algum
imperativo igualitário. Nestes dias, contentamo-nos com poucas coisas. Ontem
anotei que tinha de encolher estes textos. Até a mim me cansam. Hoje é
terça-feira, dia 26 de Maio. Outro mês que declina e com ele também a Primavera
começa a preparar as malas para um novo exílio. Os anjos insistem em
disfarçar-se de pássaros. Eu finjo que me iludem, mas sei muito bem que não são pássaros.
segunda-feira, 25 de maio de 2020
Paisagens despovoadas
Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de
imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os
últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa
loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada
espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado
deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem
uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um
incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento
contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito
sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo.
Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se
estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou
eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por
paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a
palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados
de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma,
a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras
vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas
marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião
que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais
extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira.
Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os
livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade
e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da
tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em
coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal
perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é
segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos
insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas
encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma
personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos,
anoto.
domingo, 24 de maio de 2020
Aloquetes e cadeados
Leio mais devagar. Pareço arrastar a leitura não por
desinteresse mas por um qualquer motivo que desconheço. É possível que os olhos
se cansem, é possível que as coisas habituais estejam a perder sentido, é
possível qualquer outra razão que desconheço ou que quero desconhecer. É o que
acontece com a minha leitura de O Jardim
dos Finzi-Contini. Há pouco uma palavra surpreendeu-me. O narrador, para
que a bicicleta não fosse roubada, deveria colocar nas rodas um aloquete. Fui
ver quem tinha traduzido o livro. O poeta Egito Gonçalves, um homem que nasceu
em Matosinhos e morreu no Porto. Percebi de imediato a opção por aquela
tradução e não pela sulista e latina cadeado. A primeira vez que ouvi a palavra
foi no dia em que me apresentei num quartel da cidade do Porto para cumprir
serviço militar. Sempre achei a palavra inusitada, apesar da sua origem inglesa
e francesa. O dia encandeceu. O calor espalhou-se pelas ruas e anuncia os dias
tórridos que hão-de vir. No final da manhã, desci o viaduto de carro e passei
pela velha ponte medieval que permitia chegar ao centro da antiga vila. Em tudo
havia um ar dominical, até o sol vestia um fato domingueiro, como antigamente
as pessoas o faziam para ir à missa. Depois tornou-se de mau tom, ao domingo,
andar vestido de domingo, uma coisa de provincianos retardados e, como todos
nós provincianos retardados sabemos, ninguém quer passar por provinciano
retardado. Estou a repetir-me demasiado. No friso que lhes cabem as orquídeas
estão praticamente todas floridas. Apenas uma ainda retém as flores em botão,
como se persistisse em defender um segredo que não quer partilhar com ninguém. Hoje
é domingo, dia 24 de Maio. Tivesse eu poderes para tal e fechava todo este
tempo numa despensa escura e esconsa e depois trancava a porta com um aloquete,
atirando a chave para o oceano. Haveria então de me sentar na borda do poço que
havia na entrada da infância e comer nêsperas, caso as houvesse, ou magnórios
se estivesse no norte.
sábado, 23 de maio de 2020
Luz e trevas
Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo
desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se
desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência
dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem
treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de
confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos
organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o
desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se
desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de
vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam
melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento
que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das
orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido
ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É
um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar.
Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na
caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido
ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho
estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano,
quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou
a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa,
Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os
finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard
Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as
trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a
perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a
decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos
teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter
casado com o primo.
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Do tédio e das papoilas
Chegou o fim-de-semana, mas agora tudo parece contaminado. A
semana entra pelo seu fim como se este fosse dado à utilidade. Aqui deveria
acrescentar e vice-versa, mas talvez não seja verdade que também o
fim-de-semana contamina os dias de labor. Num livro de um filósofo americano
leio que o tédio é um assunto sério e ele acrescenta pressuroso que a essência
do tédio reside em não termos interesse no que se passa. Tudo isto é dito
candidamente num ensaio sobre o amor. Uns sofrem de spleen, outros são atacados pela náusea e outros não se interessam
pelo que se passa. Não vou pensar sobre este assunto, mas talvez coleccione as
palavras para criar uma taxinomia de estados existenciais e poder usá-los
sempre que tenha oportunidade. Comecei a falar de contaminação, mas logo me
perdi por outros caminhos, como se a realidade se estivesse sempre a bifurcar-se
diante de mim, para que eu me perca nela e não encontre o caminho para casa.
Voltando ao magno problema da contaminação, também a noite contamina o dia com
as suas asas de seda negra e assim a luz vai tornando-se crepuscular, cheia de
tremores e hesitações, fazendo crescer as sombras até que tudo se apague e se
envolva no pez que uma existência entediada faz cair sobre o mundo. Há pouco vi
gente a entrar para o bar do outro lado da rua. Pergunto-me se já se poderá ir
beber uma cerveja, embora eu não goste particularmente dessa bebida de
bárbaros. Como é habitual, não me ocorre nada para dizer. Hoje é sexta-feira,
dia 22 de Maio. Ontem foi feriado, mas esqueci-me de o proclamar. Muitos são os
concelhos que fazem da Quinta-Feira de Ascensão o seu feriado. Imagino que vejo
papoilas na escola ao lado, mas por certo não se tornarão no supremo encanto da
merenda, pois as burguesas já não fazem piqueniques, nem tomam parte em
histórias que mesmo sem grandeza dariam ainda uma aguarela.
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Dia da espiga
Sem ser convidada, uma varejeira entrou pela janela. Zumbe e
rodopia até que encontra a saída, devolvendo ao lugar onde me encontro o
silêncio. Afundo-me nessa ausência de som, mas interrompo-a com o barulho dos
dedos a bater nas teclas. O melhor é fechar a janela, pensei. Há que evitar que
insectos não desejados entrem por ela. Passei o dia a fazer uma daquelas coisas
que o dever – ou a necessidade de pagar as contas – me impõe, mas que há-de
servir para pouco, caso sirva para alguma coisa. As minhas netas acabaram de
sair da escola, quero dizer que abandonaram o lugar em frente ao computador e
retomaram o ritmo incerto da adolescência. Se tudo o que se tem passado fosse
um intervalo, uma espécie de interlúdio dramático, talvez ainda fizesse
sentido, mas se é uma nova realidade, então há que fazer longos exercícios de
paciência. À minha frente ergue-se uma acácia, mais ao longe um bosque de
pinheiros mansos. Uma ilusão de óptica cria um espaço contínuo entre ambos,
apenas diferenciado pelos díspares matizes de verde. Os pardais ameaçam entrar
pela casa, mas no último instante arrependem-se e, numa curva apertada,
afastam-se. O terraço está cheio de folhas mortas. Cada uma é um pensamento que
a acácia pensou e logo esqueceu. Também eu vivo rodeado de folhas mortas, os
pensamentos que fugiram de mim, que foram mais rápidos que o meu desejo de os
segurar. Não tarda e virão os dias de calor e as pessoas hão-de vestir roupas
estivais e costureiros haverá que desenharão máscaras para cada estação. Nas passerelles, mesmo nos desfiles de
roupas interiores ou de praia, os modelos terão uma máscara atarraxada ao
rosto. Fui mordido num dedo. Uma baba cresce irritante, tenho de procurar a
pomada ou esquecer-me da mordedura. Não haverá maior virtude que a do
esquecimento. Hoje é quinta-feira, dia 21 de Maio. Não haverá festejos da Ascensão
e eu não irei pelos campos apanhar a espiga. Nunca fui, mas talvez esteja a
mentir. O alarme da casa disparou. O seu zumbido é pior que o da varejeira, mas
alguém o acalmou.
quarta-feira, 20 de maio de 2020
Rememorações em dia de calor
Uma estranha conjugação de luz, vento e arvoredo levou-me para um mundo que desapareceu há muito. Olho-o estupefacto, é apenas um universo fantasmático, povoado de sombras e murmúrios. Não são as árvores, nem a água, nem o vento, nem as casas, nem as pessoas, nem sequer eu, mas os espectros de tudo o que ficou lá atrás, sepultado como ficam todas as coisas que recebem da mão do tempo a pérfida estocada. Quase não me reconheci, mas ao ver uma figura mergulhar num grande tanque de rega, sob a copa das ameixoeiras, recordei-me que seria eu. Em tardes infindáveis de Verão, matei o calor naquela água e sentei-me no largo muro do tanque enquanto ouvia o ramalhar das árvores, o canto dos pássaros e olhava com atenção o jogo de luz e sombra que o ondular dos ramos projectava na superfície do mundo. Quem vivia nessa casa morreu há muito. O telemóvel insiste em cortar-me a rememoração e enviar-me para o território da realidade. Resisto, porém, e penso, para me iludir, que ainda estão longe os pavorosos dias de Verão. Leio que não nos devemos deixar enganar pela retórica dos maus argumentos e concluo que só devemos deixar-nos lograr pela retórica dos bons argumentos. Depois penso que cada um se deixa burlar por aquilo que tem à mão. Iludir-se com bons argumentos pode ter um preço demasiado alto a pagar para alcançar uma coisa que não necessita de qualquer esforço. Imagens do passado batem à porta, atiram pedras à janela, insistem em assombrar-me. Conversas entre adultos, um cão ou um gato com que brinquei, as figuras que desfilam agora na minha memória e que foram apagadas deste mundo. Alguém que tinha um dente de ouro, o maço de notas tirado da algibeira pelo homem do peixe, as tulhas de grão e feijão de alguma mercearia, cuja dona vestia uma bata negra acetinada, as bombas de extracção de azeite e petróleo. Depois chega a procissão com os andores, as raparigas vestidas de branco com tabuleiros à cabeça e a pomba do Espírito Santo. No largo em frente à igreja, do outro lado da estrada, ainda vejo o placard que anunciava um jogo de futebol jogado há quase sessenta anos. Hoje é quarta-feira, dia 20 de Maio. Um pássaro, talvez um deus disfarçado, diz-me que não devo rememorar os mundos que ficaram submersos. Digo-lhe que tem razão, mas que não sou dono da minha memória, nem da minha vontade, nem de mim. Mais uma razão para não fazeres o que não deves fazer, responde-me ele.
terça-feira, 19 de maio de 2020
Perdido no mundo
Sorrateiro, o Verão instala-se. Chega de garras afiadas, estiletes e punhais de luz sobre a pele, até que o ânimo sangre e uma preguiça se instale, convidando os corpos ao relaxe e as almas ao pecado. Nesta trama romanesca, em que as personagens se dividem em corpo e alma, o corpo é inocente, mas a alma é culposa, duma culpabilidade insinuante, plena de manhas, truques e armadilhas. É ela que obriga o corpo a arrastar-se no lamaçal do erro, ele que por si mesmo não seria mais do que uma abóbora à espera que o tempo passasse. Esta deriva pela teologia talvez se deva a ter estado todo o dia ocupado com dados, gráficos, leituras e relatórios. Ou então será da música que estou a ouvir e que de súbito me raptou da rasura habitual e me pôs em contacto com os excruciantes problemas da relação entre corpos e almas. Raramente sabemos o que causa os nossos pensamentos. Esta frase demonstra que sou uma pessoa cautelosa. Fosse eu intrépido e diria que nunca sabemos o que causa os nossos pensamentos. Hoje todavia não quero ofender aquelas pessoas que sabem sempre quais as causas das coisas, a começar pelos seus pensamentos. Eu nasci para a ignorância, para o erro e para a perda. Ainda ontem decidi andar mundo fora, pés na terra, a respirar os ares do campo e perdi-me. O mundo campestre é sempre igual e trocou-me as voltas. Já estava a ver que não encontrava a estrada que me haveria de levar à casa da partida. O que vale é o telemóvel, que recebeu a indicação do sítio que me esperava e lá fui eu guiado por uma voz que entoava daqui a 200 metros cortar à esquerda. E eu, fiel como um cão, cortava à esquerda e à direita, se recebesse ordem para tal. Aquilo que poderia ter sido uma aventura digna de D. Quixote foi decepcionante. Estava perdido mesmo junto ao sítio onde devia chegar. Nem moinhos havia para desafiar. Hoje é terça-feira, dia 19 de Maio. Oiço uma sirene, talvez também ela ande perdida. Esperam-me longa horas de trabalho, mas o corpo, levada pela obscura potência da alma, apenas lhe apetece dormir. Não há corveia maior do que ter um corpo que se deixa enrodilhar pelas tramóias da alma. Ou será o contrário?
segunda-feira, 18 de maio de 2020
Por que não te calas?
Oiço o
ladrar de um cão. Haveria de ser o ladrar de um gato ou de uma galinha, pergunta-me
a minha consciência. Olho-a com desdém e não respondo. O animal insiste em
fender o silêncio, em abrir-lhe um buraco por onde a sua inquietação se escoe e
ele possa com alívio deitar-se ao sol em prolongado descanso. Um dia haveremos
de compreender a língua dos animais, o dialecto de cada espécie, o significado
preciso de cada modulação sonora, o sentido que nasce do ritmo com que entoam o
que querem comunicar. Mais tarde, talvez muito mais tarde, aprenderemos a
interpretar o silêncio das árvores, dos arbustos, de todas as espécies que
fazem parte do reino vegetal. Uns comunicam connosco pelo som, outros pelo
silêncio, mas ainda somos demasiado infantis para afinar os nossos sentidos
pelos das outras espécies. Não sei o que me deu para entoar um louvor à
harmonia universal. Também eu tenho necessidade de belas ilusões. Se não me dão
a verdade, pelo menos ajudam à boa disposição. Sigo um conselho de Winston Churchill:
Seja optimista. Não serve de muito ser
outra coisa qualquer. Hoje por hoje entrego-me ao optimismo, não porque
haja razões a seu favor, mas porque se é pessimista relativamente às
alternativas. Em resumo, o verdadeiro optimista é aquele que é pessimista
perante o pessimismo. Continua a ser notória a minha falta de assunto. Poderia
seguir a injunção que há uns anos um certo rei dirigiu a um protótipo de
tiranete. Por que não te calas? Esta é uma belíssima pergunta, para a qual não
encontro resposta. Talvez siga o ensinamento do antigo primeiro-ministro inglês
e diga: Falo. Não serve de muito estar
calado. Comecei a semana útil com estas inutilidades, mas é com elas que
preencho a vida. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Maio. Ao longe avisto um
bosque de pinheiros mansos. Sobre ele esvoaçam anjos magníficos, de asas
luminosas e espadas de diamante. A minha consciência salta de imediato para
diante de mim e diz-me que eu não me chamo João, nem estou na ilha de Patmos,
nem me alimento de gafanhotos. Fiquei sem palavras.
domingo, 17 de maio de 2020
Querido diário
Quando me dispus a escrever este texto fui assaltado pela
ideia de que todos eles constituem um diário. Daí a imaginação cabriolou e após
um salto mortal disse-me, com aquele sorriso cândido que todas as imaginações
possuem, que lhe poderia chamar querido diário, como no filme do Moretti. Para
dizer a verdade e assim demonstrar a autenticidade com que narro, nestes textos,
as mais excruciantes aventuras de um narrador desavindo com o autor, confesso
que grafei Nannetti, numa feliz fusão de Nanni e de Moretti. Isto não é um bom
sintoma, mas há que ter paciência e aceitar a realidade como ela é. Uma coisa
que me encanita – meu Deus, não poderia evitar estas derivas de gosto popular e
escrever simplesmente irrita? – nos italianos é a duplicação de certas
consoantes. Ainda não descobri o segredo porque umas vezes elas aparecem em
pares e outras singulares. Terei de dar mais atenção aos nomes italianos, anoto
na agenda onde escrevo todas aquelas coisas que quero fazer mas que, por certo,
nunca farei. O vento agita os ramos da acácia, os pássaros cantam e oiço vozes
ao longe, um murmúrio, como se escandissem orações, numa devoção em que as
imagino de terço na mão. Percebo depois que veneram outra coisa e que se a têm,
a piedade está disfarçada e oculta por afeições que me recuso a partilhar.
Quando era adolescente, ainda não muito entrado nesse momento tenebroso da vida
humana, a esta hora já teria saído da Missa e estaria a caminho de casa. O
almoço naqueles dias era um pouco mais tarde, mas não tão tarde como vai ser o
deste dia, em que uma mosca entrou pela janela aberta e se prepara para me
encanitar. Hoje é domingo, dia 17 de Maio. A Direcção Geral de Saúde continua a
emitir o boletim epidemiológico, a política volta lentamente, enquanto abro a
boca e bocejo, não por causa da epidemia nem da política, mas porque a preguiça
me tenta, ao estender-me as suas garras de algodão para que embalado na maciez lhe
entregue corpo e alma. Vade retro.
sábado, 16 de maio de 2020
Da poligamia semântica
A buganvília púrpura exubera, mas a amarela parece
moribunda, encostada a um pilar, incapaz de afastar o abraço sesgo com que a
morte a está a enrolar, fazendo-lhe cair as flores, colorindo de castanho a folhagem,
retirando o ânimo que lhe deu vida. Hoje caminhei pelos campos. Havia piteiras,
algumas com figos arroxeados, alcachofras selvagens e pinheiros mansos a
bordejar as estradas de terra batida, ainda com poças de água, pequenos lagos
onde não há navegante que se aventure. As vinhas e os pomares de citrinos,
animados por um espírito geométrico, prestavam culto ao velho Euclides,
enquanto eu respirava um ar que já quase não sabia existir. Oiço a voz das minhas
netas, combinam uma daquelas coisas que só as raparigas sabem o que é, enquanto
o dia declina, com o Sol a esconder-se atrás de nuvens escuras. Há bocado
trovejou, mas não choveu e os trovões envergonhados retiraram-se para longe. Na
acácia que avisto, pousou um pássaro que não consigo identificar. Leio num
livro sobre a arte de argumentar a injunção de que se use para cada termo um único
sentido. O autor é adepto da monogamia semântica. Fico encantado com tamanha
sabedoria, mas as línguas têm uma terrível inclinação para a poligamia e, por
má fé e desobediência aos sábios conselhos dos filósofos, entregam-se à esquiva
falácia da equivocidade e dotam os termos com mil sentidos, arquitectam
armadilhas chamadas metáforas, metonímias, oximoros, paradoxos, hipálages e
todo um poderoso arsenal com que bombardeiam os quartéis onde se acolitam os
defensores da boa moral semântica. Desavergonhadas as línguas ainda têm a
pretensão de que só assim se pode falar da realidade. O que tem tudo isto a ver
com as buganvílias ou a combinações secretas das minhas netas? Nada, mas é o
que acontece sempre que os homens abrem a boca e se põem a falar ou mexem os
dedos para digitar o que lhes passa pela cabeça, se a têm. Hoje é sábado, dia
16 de Maio. Os dias continuam a crescer. Ao longe vejo uma palmeira que escapou
à hecatombe que dizimou a espécie. Uma nuvem negra atravessa o meu campo de
visão. Anuncia a noite empurrada por um vento melancólico. Pudera eu ser adepto
da monogamia semântica e tudo seria mais fácil. Um banco seria um banco e nada
mais que um banco, mas não falemos de coisas equívocas.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
Aventuras no novo reino dos bonifácios
Um pastel de feijão. Estou
falar a sério, até um bolo trivial se tornou acontecimento digno de
registo, pelo menos do meu. A necessidade de fazer uma escritura levou-me a
Santarém, mesmo ao lado da Bijou, uma
das célebres pastelarias da cidade. Acabado o acto burocrático, não resisti e,
ao fim de mais de dois meses, comi um bolo de pastelaria, não dentro dela mas
sentado no velho largo do seminário, como se fora um hippie fora de tempo e de lugar. Fazer uma escritura também não
deixa de ser um assunto interessante. Parece uma reunião de um bando já com as
máscaras postas pronto para o assalto. Aquilo que é um encontro entre pessoas
de bem, mediado pelo representante da autoridade civil, que exercem a sua
vontade em comprar e vender tornou-se uma estranha mancomunação para onde se
vai disfarçado, temeroso, e de olhar desconfiado. O que um vírus faz às
relações sociais. Prevejo já uma avalanche de doutoramentos em Sociologia do
COVID-19, a que se hão-de juntar outros na Economia, na Psicologia e até na
Antropologia. Outro ritual novo e inusitado, também um óptimo campo de trabalho
para sociólogos e antropólogos, é a paragem numa estação de serviço de uma
auto-estrada para ir a uma casa de banho. Há agora todo um conjunto de licenças
a obter para se alcançar uma chave extraída de um sítio onde estava em
desinfecção, que logo se tem de devolver para ser de novo desinfectada. Não só
o mundo se tornou um lugar perigoso como um sítio onde haveremos todos de
enlouquecer, para gáudio dos psiquiatras e psicanalistas, que também não
estarão melhores do que os pacientes, mas têm mais experiência na arte do
disfarce. O que valeu fui o pastel de feijão, mesmo comido na rua, mesmo
transportando-me para o hippie que
nunca fui. Hoje é sexta-feira, dia 15 de Maio. Onde me encontro neste momento
há sol e ouvem-se pássaros, mas como tudo na vida também isso é passageiro. A
próxima vez hei-de comer uma bola de Berlim, mesmo que isso desencadeie uma
guerra com a balança ou me obrigue a uma declaração em favor do flower power. Até trautearei If you're going
to San Francisco / Be sure to wear some flowers in your hair.
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Bátegas de água e dicionários
Olho pela janela como se estivesse confinado. Um forte
aguaceiro rompe o sossego com que o dia desliza para o fim. Uma bátega de água.
Assaltou-me a curiosidade e fui tentar saber de onde vinha a palavra. Ela tem
dois sentidos. Quando significa bacia, terá vindo do árabe bâtiya, mas se significa chuvada a origem obscurece-se. O
dicionário da Porto Editora alvitra que pode ter vindo de bater. O Houaiss,
apesar de sublinhar a origem controversa do vocábulo, adianta que é uma
derivação por analogia. Imagino que seja a confissão de um acordo com o que diz
o da Porto Editora, mas não afianço. Quando apareceu em Portugal, comprei o
dicionário Houaiss. Seis volumes em papel com uma letra tão pequena que só de
olhar para ela uma pessoa começa a fantasiar dores de cabeça. Há muito que não
lhe toco. Comprei uma versão digital e é essa que utilizo. Evita-me dores de
cabeça e o trabalho incerto de encontrar a palavra no seu lugar alfabético.
Basta digitá-la e, como num filme de fantasia, ela aparece, com a informação, a
idade e até a origem, mesmo se obscura. É um dicionário perfeito para quem se
interesse por coisas inúteis. Qual o primeiro registo escrito conhecido de uma
palavra? Ele informa. Bátega, 1525. Já bateria terá sido em 1546 e batente em
1456. Como se vê, este conjunto de inutilidades é de uma enorme importância num
tempo em que as pessoas estão obrigadas ao jogo do confina e do desconfina,
rodeadas de bátegas de água. O pior, e isso ocorre muita vezes, o dicionário
recusa dar informação. Guarda-a para ele. É inútil discutir. Parou de chover.
Em Portugal, segundo o Houaiss, chove por escrito desde 1262. No meu telemóvel
pipocam mensagens. Sim, eu posso dar a informação. Pipoca, primeiro registo em
1781. Hoje é quinta-feira, dia 14 de Maio. O mês aproxima-se do meio, mas não
entendo sequer o que quero dizer com isso. Desconfio que existe na sociedade
uma ofensiva contra o calendário. Algum grupo radical está apostado em
devolver-nos à pura duração, a esse momento paradisíaco em que ainda não tínhamos
esquartejado o tempo para o contar. Talvez amanhã consiga escrever um texto
menos idiota. Há que não desesperar.
quarta-feira, 13 de maio de 2020
O mundo das árvores
Há uma passagem do romance do italiano Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, em que Micol
se diverte à custa da suposta ignorância do narrador perante o mundo das
árvores. Ela parece raptada pela nobreza desses seres mudos, ele diverte-se
ostentando um não saber contumaz. Também eu sofro dessa ignorância e isso não é
uma suposição. Não é que não goste de árvores. Gosto muito, mas falha-me a
denominação, melhor falta-me saber adequar os nomes às espécies, pois a botânica
é das coisas mais rasteiras que há em mim, que não sou desprovido de
incontáveis saberes rasos. Há nomes magníficos nesse reino misterioso. Cedros,
faias, olmos, lódãos, ulmeiros, bétulas, plátanos, salgueiros, todas estas
árvores têm nomes que pedem que os escrevamos, tão magníficos eles são. Fantasio
a possibilidade de criar toda uma literatura com esses nomes, explorar as
características de cada árvore, dando-lhe uma alma racional e desejos
humanos, criando-lhe genealogias, dotando-a de tradições e de traições. Isso
porém seria fazê-la cair, expulsá-la do Éden onde habita e misturá-la ao
mundo sombrio dos homens. Abstenho-me de pensar em tal coisa e dirijo-me à
janela. Imagino-me que sou eu que passo na avenida, atravesso a passadeira e empurro
a porta do bar. Debalde, ele continua fechado. Então volto para trás, perco-me
na curva. Daí a pouco oiço a porta da rua a abrir e alguém a entrar. Sou eu. Reúno-me
comigo mesmo, sento-me na secretária e olho o pequeno bosque da escola aqui ao
lado. Os pinheiros estão mais copados e os cedros desenham cones secretos por
amor à geometria. Hoje é quarta-feira, dia 13 de Maio. O mundo contínua envolto
em estatística e até eu me entrego, por desfastio, a exercícios estatísticos.
Vi na televisão umas imagens do santuário da Cova de Iria. Estava vazio, mas
não oferecia a desolação que outros lugares de encontro das multidões oferecem
quando ninguém os habita.
terça-feira, 12 de maio de 2020
Em estado catatónico
Tenho uma relação difícil com a burocracia. Possuirei alguns
genes avariados, ou mais avariados do que a norma, que me colocam em estado
catatónico mal tenha que tratar de guias, certificados, certidões e o mais que
uma imaginação delirante passa a vida a conceber. Dou de barato o pagar e o
repagar, mas a fina trama onde se tece toda a relação com o leviatã
ultrapassa-me, excede a pobre inteligência que me foi concedida e activa em mim
alguma hormona que me põe à beira de um colapso. É verdade que mesmo aqui se
manifesta a minha propensão para hipérbole, e isso é ainda mais idiossincrático
do que a desavença com a tirania da administração. Suspeito, mas é apenas uma
suspeita, a existência na minha alma de uma herança anarquista. Algum avô
longínquo, no segredo da sua juventude, terá sonhado terras sem poderes ordenadores.
Por causa de tudo isto fui à rua, uma viagem sem sentido e quando cheguei ao
destino o destino só se abriria para mim caso tivesse feito marcação. Sempre achei
que não somos nós que marcamos a hora, mas talvez tenha existido alguma
metamorfose ontológica e o destino se tenha tornado complacente dando a
oportunidade de negociar a hora em que se dispõe a atender-nos. Ainda não me
habituei à nova realidade e talvez viva num tempo que já acabou. Bem me esforço
por bater à porta da nova era, mas as minhas pancadas são demasiado leves para
que sejam escutados no reino nascente, onde as festas são de tal maneira luxuriantes
que não há porteiro que escute quem quer entrar. Como se vê, a pendência
burocrática não me dá ensejo a dizer seja o que for com nexo. O sol que encontrei
na rua era desagradável, quente e doentio, havia nele catarro e um ar amarelado
que não me dispôs melhor do que estava. A cidade cheia de carros, os
castanheiros da marginal exuberavam na floração e não vi ninguém conhecido.
Espero em desespero um email que me há-de salvar, indicar-me-á o caminho onde
me esperarão umas guias que me hão-de conduzir à caixa multibanco ou, se tiver
juízo, ao conforto do homebanking. E
eu que queria falar da palavra cavanhaque e de um certo general francês, enrodilhei-me
em mais uma triste história. Hoje é terça-feira, dia 12 de Maio. Ganhei o
hábito de fazer de calendário e não há quem me faça perder o vício. Num
apartamento vizinho alguém se apaixonou pelo aspirador e arrasta-o dengoso casa
fora. Infinitas são as parafilias, mas recuso-me a fundamentar tal afirmação.
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Contra o sono, marchar, marchar
Depois de almoço sofri um ataque indescritível de sono. A
cabeça pendia, as pálpebras fechavam-se e em todo o corpo um torpor exigia que me
acastelhanasse e, sem escrúpulos nem remorsos, dormisse uma boa sesta. Tartamudeei
aquele velho slogan que fez a nossa
independência, de Espanha nem bom vento nem bom casamento, e acrescentei nem
bom vento nem bom aconselhamento. Resisti como se resistisse a um inimigo tenebroso,
convoquei as forças benévolas, lembrei o primeiro de Dezembro e os quarenta
conjurados e não me deixei arrastar para o mundo sombrio do sono, onde sempre
se pode ser surpreendido por sonhos que a sensatez nos deveria interditar. Meu
Deus, agora deu-me para a aliteração, ainda por cima em s. Se fosse em r poderia
escrever o rato roeu a rolha da garrafa do rei de Roma. Duas vezes somos
meninos, sussurra-me uma voz que me habita sem pagar renda. Aberta a janela, o
ar reanimou-me, as aliterações passaram. Um vento irrequieto brinca com a
folhagem das árvores, o sol joga às escondidas entre as nuvens e os carros,
como animais vindos de um universo paralelo, correm ofegantes, circundam
rotundas e aceleram entre baforadas de fumo e buzinas enrouquecidas pelo pólen
das árvores. Os dias úteis da semana começam levados pela incerteza, constato,
enquanto, mais uma vez, o alarme de um carro estacionado ali em baixo dispara, enche
o ar com os seus urros ateados pelo medo de ser levado por sabe-se lá quem. Também
estes animais metálicos desenvolveram um amor canino pelos seus donos. Hoje é
segunda-feira, dia 11 de Maio. Nesta data nasceram o imperador Justiniano I e
Salvador Dali. Para contrabalançar morreu Afonso Costa. As acácias estão compostas,
embora lhes falte o aprumo dos ciprestes e a altivez dos cedros.
domingo, 10 de maio de 2020
Falta de vitamina D
Os almoços tardios de domingo são ainda o sinal de uma
sabedoria vinda de um tempo que parece ter-se acabado e que, como qualquer
outro tempo, não voltará mais. Talvez no futuro que está mesmo ao pé da porta todos
descubramos uma vocação para a arqueologia e comecemos a escavar o solo em
busca de vestígios de uma vida que vivemos há muito. Armados de pá e picareta,
como se vê pelos instrumentos não faço a mínima ideia de como os arqueólogos
trabalham, escavaremos a rocha dura da memória para descobrir como era a vida nesse
passado longínquo em que habitámos outro mundo. Digo isto não porque tenha
vocação de Júlio Verne ou me entregue ao vaticínio e artes correlativas, mas
porque não me ocorre nada melhor para dizer. Por falar em Júlio Verne, a
literatura de antecipação científica, ao contrário da policial, nunca exerceu
sobre mim qualquer fascínio. Nunca devo ter achado o futuro um território digno
de louvor, ao contrário de todos os que entoam loas ao que há-de vir, não
sabendo eles o que está para vir. Prefiro os policiais pois tratam de coisas
arcaicas, de todos aqueles Cains que, dissimulados, matam os Abéis. Paro a
verborreia, e se Abel não se pluraliza ou não o faz como papel? Encerro a
questão dizendo-me que não sou o Ciberdúvidas nem tão pouco conheci algum Abel
nesta vida quanto mais dois, para ter necessidade de pluralizar o nome com
certeza e segurança. Com ou sem Abéis no plural, prefiro livros policiais. Devia
ir apanhar sol. Consta que fornece vitamina D e, embora eu não saiba qual a
função desta, estou certo que se ela estivesse dentro dos parâmetros normais eu
não escreveria coisas como estas. Hoje é domingo, dia 10 de Maio. O dia hesita
entre a tristeza e a alegria, como eu hesito em se faço aquilo que tenho de
fazer ou faço outra coisa para a qual não tenho obrigação. De imediato penso
naquela oração aprendida na infância e digo não me deixeis cair em tentação, ao
que acrescento logo uma tentação é uma tentação. Opto por fazer o que me
apetece.
sábado, 9 de maio de 2020
Ah mais um sábado
Como se fosse um fim-de-semana normal, levantei-me mais tarde que o habitual. O tempo pareceu-me incerto quando o espreitei da varanda. Na rua havia gente, pouca, que andava devagar, máscara afivelada ao rosto, certa de ter um destino que a espera no deambular pelas ruas. A balança mostrou-se amistosa, o que prenuncia que o tratado de não beligerância acabará por ser assinado. Tenho pela frente, a primeira vez desde que tudo isto começou, uma ida em força às compras. Até aqui, havia alguém que valendo-se da idade o fazia, mas o mundo é incerto e tudo tem um fim. Quem tinha idade para ir às compras teve de voltar para a realidade. A realidade é um país distante onde as coisas acontecem segundo leis que ninguém conhece. Não é porto de abrigo, nem seguro, nem sequer é um porto, mas um oceano proceloso onde os mortais, por vezes, mergulham. Recordo-me que há que procurar a máscara, pôr a jeito luvas e gel, caso seja necessário. O dia entristece-se e já começou a descer a colina que o levará a outro. Não sendo mais, também não é menos estúpida a vida dos dias do que a dos homens. Mal nascem começam a subir a escarpa inclinada que os levará ao meio-dia, então não lhes resta alternativa senão descer até se afogarem no mar, enquanto outro nasce com o mesmo destino. E é a isto que se resume todo o seu ser. Pressinto que tal sorte daria motivo a grandes meditações metafísicas, mas por agora prefiro chocolates. Para dizer a verdade, continuo sem assunto. Hoje é sábado, dia 9 de Maio. O vento bate contra a vidraça, as persianas tamborilam e penso que deveria cortar o cabelo e ver um filme. É pena que não existam filmes em que se saia de cabelo cortado. Poupava tempo. Tenho de ir mudar de roupa.
sexta-feira, 8 de maio de 2020
Nada de nostalgias
Hoje não tenho nada para dizer, mas isso não é diferente do
que acontece nos outros dias. Posso falar do tempo cinzento, das premonições
que indicam chuva, mas um post de uma
amiga no Facebook trouxe-me uma
longínqua recordação. A postagem tinha um vídeo. Luís Miguel Cintra a dizer um
poema de Ruy Belo. E lembrei-me do ano em que o poeta morreu e como esse ano além
dele levou também Jorge de Sena e ainda, no quadro do meu mundo de preferências,
Jacques Brel, que era também um poeta. Isso aconteceu há mais de quarenta anos,
mas julgo que nunca me habituei à ausência deles, à impossibilidade de
escreverem novos poemas ou de cantar novas canções. Uma voz em mim, talvez a
minha consciência, diz-me que devemos evitar a melancolia, fundamentalmente se
somos velhos. Acato com bons modos o conselho, procuro o último LP de Brel, Les Marquises, olho demoradamente a capa
onde um céu azul e nublado deixa escapar BREL. Ponho-o a girar e deixo-me levar
para o tempo em que tinha pouco mais de vinte anos e tudo parecia possível,
embora não o fosse. Nada de melancolias, digo-me em forma imperativa e depois
rio-me, não da melancolia mas de mim. Brel canta Mourir cela n'est rien
/ Mourir la belle affaire / Mais vieillir... ô vieillir. Hoje já
ninguém aprende francês. Cuidado com a nostalgia, rosna a voz em mim. Eu
cuido-me, prometo. A culpa de tudo é do dia ou de não ter nada para dizer, ou
do vírus ou de ser tão patético que chego a sentir dó de mim, senão desprezo.
Hoje é sexta-feira, dia 8 de Maio. Um punhal perpassa pelo ares e crava-se na
parede. Ela sangra, a brancura da cal toma colorações de carne e um fio escorre
pelo chão, faz um pequeno lago, hão-de chamar-lhe Mar Vermelho. Tenho saudades
de ir a um restaurante, o que é mais sensato do que pensar que já tive vinte
anos, o que provavelmente é mentira. Os narradores são intemporais.
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