sábado, 28 de setembro de 2024

Ciência na enfusa

Alguém terá confundido ciência infusa com ciência na enfusa. Eis um equívoco desagradável. Por aqui, chama-se enfusa – não se diz, nesta terra, infusa, embora se possa, ou talvez deva, escrever e dizer – a uma espécie de bilha que se enche com água, eventualmente, com outros líquidos. Aliás, nunca cheguei a perceber a diferença entre bilhas, cântaros e enfusas ou infusas. Também, seja dita a verdade, nunca me interessei pelo assunto. Deixemos de lado os preâmbulos e as taxionomias dos recipientes para transportar líquidos e entremos no assunto mesmo. A ciência infusa é aquela que, transcendendo a compreensão humana, Deus decide infundir num mortal eleito. É uma ciência do outro mundo. Já a ciência na enfusa é aquela que um mortal, esquecido de Deus ou esquecido por este, acumula numa espécie de cântaro – aqui chamado enfusa, recordo – que é a sua mente. A primeira é um dom, a segunda, um vício. A realidade diz-nos que são poucos os casos de ciência infusa, mas são legião os casos de ciência na enfusa. Esta, note-se, não é bem uma ciência, como o são a Física, a Química. Trata-se mais de uma recolecção abundante de informações variadas, sem estruturação digna desse nome, cuja utilidade cognitiva é nula e ainda menor é a sua utilidade prática. Tudo isto para dizer que aquilo que se pratica aqui é uma forma severa de ciência na enfusa, já que este narrador – e ainda menos o seu autor – não foi agraciado (de receber a graça) com a ciência infusa.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Uma hipótese

Estou de cara ao lado. Falso. Sinto que estou de cara ao lado, mas não estou. Por causa das dúvidas, postei-me diante de um espelho e a cara pareceu-me normal, embora isso possa ser discutível. Apesar da afirmação inicial ser falsa, o sentimento é verdadeiro. Tenho parte da cara ainda sob efeitos de uma anestesia. O dentista achou por bem desvitalizar-me dois dentes e anestesiou-me. Não senti nada daquilo que ele fez, mas fiquei com esta estranha sensação de lateralidade facial. No fim da consulta, recebi o conselho de não comer nada na próxima hora, não vá morder-me a mim mesmo. Tudo isto serve para demonstrar uma tese sobre o mundo. Mesmo que, por hipótese, o senhor Gottfried Wilhelm Leibniz tenha razão e este seja o melhor dos mundos possíveis, ainda há nele muita coisa a melhorar. Por exemplo, ser anestesiado, sofrer o ataque do Sétimo Regimento de Cavalaria, dirigido pelo tenente-coronel Custer, antes da derrota em Little Bighorn, contra os dentes, não sentir nada, não ter a sensação de cara ao lado e poder comer mal se sai do consultório. Como se vê, há muitas coisas a melhorar neste mundo. Entre as coisas que poderiam ser melhoradas está o nome do senhor Leibniz. Que pai tinha ele para lhe chamar Godofredo Guilherme? Poder-se-ia melhorar o pai de Leibniz. Também os americanos gostariam de melhorar o resultado da batalha em Little Bighorne, onde foram derrotados pelas forças índias comandadas por Sitting Bull e Crazy Horse. Contudo, desde que os homens foram expulsos do paraíso, as melhorias retrospectivas foram descontinuadas e o Leibniz arrastará pela eternidade fora a alcunha de Godofredo Guilherme e o pobre do Custer nunca vencerá qualquer Touro Sentado ou Cavalo Louco. A anestesia talvez afecte o sistema neuronal. É uma hipótese.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Vida quotidiana

O dia começou sob intensos aguaceiros, mas as coisas foram-se alterando, de tal modo que agora, enquanto escrevo, há um sol alegre, saltitante, uma luz que anima quem passa. As sombras crescem, esculpem relevos fugidios no alcatrão, e adormecem pisadas pela velocidade dos carros, ansiosos de chegar a casa e deixar o motor descansar. No meu carro, o rádio avariou-se, entrou em greve, fez voto de silêncio. Tenho de ver o que se passa, não eu que de rádios grevistas ou com tendências monacais nada sei, mas alguém que se dedique a essas coisas, nem que seja a de me trocar este por um novo, pouco dado à greve ou ao silêncio dos mosteiros. Daqui a pouco vou aproveitar e caminhar, para apanhar ar e encher-me de imagens destes sítios que conheço de olhos fechados – uma evidente falsidade – e onde amealho pontos cardio, os quais me haverão de ser úteis, caso a Organização Mundial de Saúde não se entregue à mentira. Ela ou quem declama as suas recomendações. Acabei de bocejar e logo um pensamento nasceu em mim sussurrando-me que o melhor era dormir um pouco. Há que resistir.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Em memória

Chove e faz calor. Voltei à minha função de boletim meteorológico. É o que faz a falta de ideias. Imagino que esta esteja ligada à vida sedentária a que o tempo chuvoso me obriga. Se caminhasse por aí, alguma coisa me ocorreria. Assim, nada me ocorre. Há pouco, olhei para os frisos – agora já são dois – de orquídeas. Ainda há três em plena floração. As outras, depois da hora de cintilação, adormeceram, deixando cair as flores, como quem se despe para ir para a cama. Hoje, estive numa longa reunião, em videoconferência. Quando acabou, pensei que já não tinha idade para coisas daquelas. Depois, tive de admitir que nunca tive idade – isto é, saco – para aquele tipo de actividade, onde as pessoas derramam as palavras como se elas não tivessem custado toda uma longa história para se formarem e estarem prontas para o nosso uso. Em memória dessa história, deveríamos ser comedidos na sua utilização. Calo-me.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Passagens

Está um dia de Outono, sereno, melancólico e tocado pelo cinzento-claro dos céus. Uma luz pálida derrama-se sobre a cidade. Indiferentes, as pessoas passam, perdem-se no dia-a-dia. Levar e buscar os filhos ou netos à escola, fazer compras, entrar neste ou naquele estabelecimento, passear à trela um cão. Eu olho e deixo o tempo passar. Virá o crepúsculo e, logo de seguida, a noite escura. Que outra coisa pode um mortal fazer senão deixar o tempo passar? Enquanto passa o tempo, também em nós passam os pensamentos e as imagens. Fluem, arrastados por uma água sem nome, e, se formos atentos, vemo-los passar e podemos dizer: ali vão os nossos pensamentos e as nossas imagens, são como ramos de árvores secas arrastados pela força das águas. E isso dá-nos prazer, pois sentimos que nos libertamos deles, do seu peso e da carga emotiva que têm. Essa ingénua rêverie tem um efeito terapêutico, reconciliando-nos com a passagem do tempo. Uma brisa suave – um poeta antigo diria um zéfiro – toca as folhas das árvores, e elas dançam diante dos meus olhos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Véu da ignorância

Voltou a segunda-feira. Os dias da semana têm este problema, substituem-se uns aos outros com inexcedível regularidade e uma monotonia sem fim. O mais curioso é que a sua invenção propunha-se pôr fim a uma outra monotonia, a da indiferenciação dos dias, os quais se seguiam uns aos outros sem nada que permitisse distingui-los. O Sol nascia, fazia a sua jornada e punha-se, como quem entra no quarto para se deitar e dormir. O pior seria a sensação de que os dias iam diminuindo e que poderiam soçobrar na noite eterna. Há muitas coisas que seria muito interessante, embora ocioso, saber. Imaginemos os nossos antepassados de há cinquenta mil anos. Como se relacionariam eles com o dia e a noite, com a passagem das estações ou com as metamorfoses da luz? Sabemos hoje, graças à análise genética, que sapiens sapiens e neandertais se cruzaram e que parte da humanidade possui genes dos neandertais. Esse cruzamento ter-se-á dado há dezenas de milhares de anos, mas parece não ter ficado registado na memória colectiva, na tradição. Sabemo-lo por recurso técnicas analíticas muito sofisticadas. Isto coloca um outro problema, que é o da duração da memória colectiva. Quanto tempo permanecem, cifrados em mitos e lendas, na memória colectiva acontecimentos memoráveis? Quando penso nisto, tenha sempre uma sensação de tristeza pela ignorância efectiva sobre quem somos. Sabemos alguma coisa até há alguns milhares de anos, mas depois o véu do esquecimento é cada vez mais negro, como se uma parte do que somos se devesse ocultar, talvez para que possamos viver com o que somos.

domingo, 22 de setembro de 2024

Mitos e rituais de passagem

Tenho uma neta outonal. Hoje começa o Outono, neste ano de 2024, e ela faz 16 anos. Parece que fazer 16 anos, nos dias que correm, é uma marca importante. Eu não me lembro quando os fiz, mas tenho a certeza de que os 16 não se destacavam dos 15 ou dos 17. Mesmo os 18 eram ofuscados pelos 21, altura em que se atingia a maioridade. Ainda tive de ser emancipado para tirar a carta de condução. Os rituais de passagem mudam com o tempo, mas, o mais decisivo, é que não passamos sem eles. As sociedades modernas, as sociedades desencantadas, colocaram de lado mitos e rituais. O que aconteceu, porém, é que tanto uns como outros se multiplicaram. Por vezes, como ervas daninhas. Não são os grandes mitos e os grandes rituais que dão sentido às existências, mas os pequenos mitos e os rituais insignificantes que assumem esse papel. Por isso, a pequena mitologia, com os seus rituais, do grupo desta minha neta, já não terá qualquer sentido para a irmã, com menos dois anos e meio e muito menos para o meu neto, com menos dez anos. Seja como for, são muito importantes para ela e vou-me despachar para que possa participar numa parte desses rituais e dar força à sua mitologia privada.

sábado, 21 de setembro de 2024

Da autenticidade

Retorno a uma referência anterior, a Gilles Lipovetsky e um título musical de um livro que está na fronteira da Filosofia e da não Filosofia, A Sagração da Autenticidade. A natureza musical deste título deve-se a um empréstimo ao bailado de Igor Stravinsky A Sagração da Primavera. Esta é uma peça musical – e de dança, um bailado originalmente produzido por Sergei Diaghilev e coreografada por Nijinsky – que, durante uma parte da minha vida, considerei como o começo musical do século XX, embora a sua estreia tenha ocorrido em 1913. Nessa altura, considerava que o século XX musical terminava com a terceira sinfonia de Henry Górecky, composta em 1976. Roubava 37 anos ao século, mas sentia que as coisas eram assim. Passei muitas tardes a ouvir a Sagração da Primavera seguida da terceira de Góreky. Há muito que não o faço e deixei de ter qualquer ideia sobre o começo e o fim do século XX musical. Ora, o título do livro de Lipovetsky é uma clara citação da tradução inglesa da peça de Stravinsky, que no original russo parece denominar-se A Fonte da Primavera. Hoje recolhem-se todas estas informações em segundos, desde que se saiba aquilo que se quer perguntar. Ora, sagrar a autenticidade é sagrar um equívoco. O que é ser autêntico? É, ao mesmo tempo, ser sincero – ser uma expressão sincera de si mesmo – e ser autor, autor de si. Por norma, pensamos a sinceridade como expressão espontânea, natural e não fabricada de si, mas isso choca com a autenticidade de ser autor de si, pois esse si já não é espontâneo, mas uma fabricação, ou, melhor, uma ficção. Talvez, e isso salvará o título de Lipovetsky, tudo o que é sagrado o seja por ser equívoco, como o é, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento, o Deus da ira e o Deus da misericórdia.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Cansaços

Hoje tem chovido. Quase sempre bátegas de água violentas, que logo param, como se as nuvens se cansassem desse esforço de enviar sobre a cidade uma água benevolente que se não lavar os corpos, talvez ajude a branquear as almas. Antigamente, as pessoas preocupavam-se em branquear a alma, que se enegrecia em contacto com a fuligem da vida e o carvão do desejo. Hoje, a preocupação maior é a do branqueamento de capitais. Quem os tem procura branqueá-los e a justiça, que os acha negros como o breu, tenta, talvez com pouco sucesso, localizá-los para tratamento e reciclagem. Estou a desviar-me do assunto. Das bátegas de águas, do céu cinzento, das pessoas a recolherem-se sob varandas, pois ninguém acha decoroso num dia de Setembro andar de guarda-chuva na mão para o que der e vier. Agora, enquanto escrevo esta emissão do boletim meteorológico local, os raios solares encontraram uma abertura entre o chumbo das nuvens e derramam uma luz pálida sobre as paredes cobertas de fungos do Hospital. A semana, refiro-me à útil, acabou, sem que a utilidade tenha deixado um rasto de memória. Houve demasiado calor e a memória dá-se mal com temperaturas elevadas. Um alarme de um carro começou a implorar socorro, mas ninguém parece disposto a estender-lhe a mão. Ah já se cansou, como eu também já estou cansado. Maldição, o alarme recobrou as forças rapidamente. Vou fechar as janelas, recostar-me, fechar os olhos e deixar que a peça Für Alina, de Arvo Pärt, me ajude na meditação.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Valor e preço

Um amigo enviou-me um link para uma entrevista a António Feijó, doutorado pela Brown University e professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras, na área da Literatura, da Universidade de Lisboa. Sobre a universidade e o papel das Humanidades ele diz: A História e a Filosofia são, neste momento, modos de introduzir salubridade no discurso público. Depois, dá as razões. São plausíveis, mas não vêm ao caso. O tema interessante é o da salubridade. A referência é feita numa espécie de contra-argumentação da ideia partilhada por muitos universitários das áreas científicas e tecnológicas de que as Humanidades são dispensáveis, um desperdício, dada a sua inutilidade. Ora, se elas contribuem para tratar de um discurso público de natureza patológica, então têm uma utilidade social, o que as torna dignas de serem mantidas no mundo universitário. Partilho da ideia de Feijó de que uma Universidade sem Humanidades é uma instituição amputada, na verdade uma mera escola profissional, centrada no ensino vocacional. O que me suscita dúvidas é a sua crença de que a História e a Filosofia são modos de introduzir salubridade no discurso público. Platão sempre achou o discurso público, a doxa (δόξα), patológico e a Filosofia representava mais uma fuga da epidemia do que um colírio para tratamento da doença. E a questão não está apenas na natureza estruturalmente patológica do discurso público, mas também no caso de tanto a História como a Filosofia, mesmo as praticadas na universidade, poderem ser focos infecciosos, injectando na opinião pública doses maciças de miasmas. Por mim, deixava de lado a utilidade das Humanidades e centrava-me na glória das coisas inúteis, pois é nesse desprendimento da utilidade que reside a grandeza e o valor da Literatura, da História e da Filosofia. Elas têm valor, as outras áreas têm preço.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Commercium sexuale

O filósofo francês Luc Ferry destaca, como um dos acontecimentos capitais dos tempos modernos, aquele que marca uma clara diferenciação com outros tempos, a transição do casamento combinado para o casamento por amor. Esta ideia está conectada com uma outra sublinhada, agora por Gilles Lipovetsky, a da sagração da autenticidade. O casamento passou a ser uma expressão autêntica dos sentimentos das partes e não um mero arranjo contratual, para, citando o Kant da Doutrina do Direito, ordenar aquilo que o filósofo nascido em Konigsberg descreve com o requinte que se segue: Com efeito o uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outro é um gozo, pelo qual cada parte se entrega à outra. Isto foi escrito no § 25 Do Direito Doméstico. Não menos interessante é o começo do § 24: A comunidade sexual (commercium sexuale) é o uso recíproco que um homem pode fazer dos órgãos e faculdades sexuais de uma outra pessoa (usus membrorum et facultatum sexualium alterius). Estamos perante transacções comerciais, nas quais o casamento confere um direito – mas um direito recíproco – aos usos dos órgãos sexuais da outra parte. Não admira que Kant nunca tenha casado, se era assim que ele via a sexualidade e o casamento. Parece óbvio que o amor não fazia parte deste universo. O Eros submetia-se a uma regulação jurídica. O casamento por amor, no âmbito da expressão de uma natureza autêntica, vai libertar o Eros. A desregulação deste tem uma consequência agora conhecida por todos, o divórcio. O Eros esfria rapidamente, o amor dissolve-se no quotidiano, o casamento acaba e lá se vai, acompanhado por um alívio, o direito de usar os órgãos e faculdades sexuais da outra parte, os quais, na verdade, se tornaram soporíferos.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Provérbios

Os provérbios são uma forma de sabedoria que assenta na mais pura equivocidade. Lembrei-me disso ao ver uma referência, em Ernst Jünger, a um muito conhecido: A palavra é de prata, o silêncio é de ouro. O provérbio é composto por duas proposições e nenhuma delas é universalmente verdadeira. Este facto não se deve a que ambas as proposições sejam expressões metafóricas, nas quais se predicam qualidades (a prata e o ouro) que, do ponto de vista da experiência, não cabem ao sujeitos palavra e silêncio. Não é isto que falsifica o provérbio, mas uma outra coisa, também ela expressa de forma metafórica. Quantas vezes o silêncio é de chumbo? Por outro lado, quantas vezes a palavra usada ou dada é de um ferro oxidado, de ferrugem? O interessante, e, por isso, os provérbios são, efectivamente, uma forma de sabedoria, é que os falantes de uma língua sabem identificar o momento de usar esse provérbio, conseguem reconhecer quando ele é pertinente e ajustado, isto é, justo, e quando ele não tem qualquer sentido. O que torna, então, um provérbio uma forma de sabedoria não é tanto o seu conteúdo proposicional, mesmo que metafórico, mas a capacidade do falante o usar de modo adequado. É por isso que os provérbios são formas de sabedoria prática e pragmática, pois implicam saber quando se devem usar e em que contexto. Fora de tempo ou deslocados da situação, são apenas risíveis.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Castigos

Quando leio ou vejo as notícias sobre os incêndios que devastam parte do país penso que a revolta da natureza contra a nossa espécie é terrível e inexorável. A partir do século XVII, a civilização europeia assumiu uma dimensão prometaica. Convencemo-nos – e também parte do planeta – de que, guiados pela razão, pela ciência e pela indústria, atingiríamos neste mundo, através de um progresso crescente, a felicidade que a religião prometia para o outro. O símbolo desta crença que nos guia há três séculos é Prometeu, o titã que, na mitologia grega, desafiou os deuses ao roubar-lhes o fogo para o dar à humanidade. O castigo de Prometeu foi imediato, o dos homens diferido no tempo, mas parece mobilizar como instrumento de punição esse fogo que recebemos como dádiva suprema para nossa libertação do império dos deuses. Estes estão a vingar-se. Ora os deuses não são outra coisa senão a natureza que não suporta já a nossa dominação. Os desequilíbrios da meteorologia são o raio de um Zeus furibundo com a espécie dos mortais que decidiram pensar que são imortais e que tudo o que existe está aí apenas para servir os seus apetites. Gostaria muito de crer que a ciência e a tecnologia – uma encarnação do fogo de Prometeu, isto é, da razão – seriam suficientes para pôr as coisas nos eixos e que tudo acabaria por encontrar o caminho para uma vida normal. Cada dia que passa é uma razão a mais para não crer nesse mudar de agulha tranquila na vida dos homens. Não há quem tenha por missão pôr as coisas nos eixos ou endireitar o que está torto.

domingo, 15 de setembro de 2024

Preguiça

Um dia entregue à preguiça, um estado que teve – e ainda terá – má imprensa. Combinaram-se, para conspirar contra ela, uma transformação na ordem do mundo e o efeito de uma má tradução de um termo latino proveniente do grego. A passagem para os tempos modernos marcou a decadência da atitude contemplativa e a emergência, primeiro, do louvor à acção e, depois, ao trabalho, o que levou Ernst Jünger a dedicar uma obra à figura metafísica do trabalhador. A má tradução tornou a acédia em preguiça e fez entrar esta no rol dos pecados mortais. Os monges do deserto usaram a palavra acédia para designar a falta de cuidado com a vida espiritual. Trata-se de um estado de alma que leva ao torpor do espírito, a um fechamento sobre si do monde, uma não abertura à Graça. Tomás de Aquino, muito depois, integrou-a na lista dos pecados capitais e fez dela o fundamento de todos os outros. A tragédia dá-se na tradução de acédia por preguiça, o que alargou o âmbito do estado pecaminoso. Aquilo que dizia respeito a uma atitude do espírito contaminou o domínio do corpo. A partir destes dois acontecimentos a diligência tornou-se a norma e a preguiça o desvio não apenas vicioso, mas mortal. Foi a isto que entreguei o meu corpo e o meu espírito neste domingo, para além de ter ido almoçar com parte substancial da família. Curiosamente, a preguiça, contrariando a visão de Tomás de Aquino não desencadeou a gula, tendo-me contido, não vá a balança sair por aí desencabrestada aos saltos.

sábado, 14 de setembro de 2024

Movimentos

Raymond Abellio, uma estranha personagem – na estranheza inclui-se a colaboração com o infame governo de Vichy – de um mundo que já acabou, pelo menos ele deixou de ser reeditado, o que será uma espécie de fim do mundo para qualquer autor, num dos seus livros, na parte final, faz uma meditação sobre aquilo que denomina a imobilidade suíça. A certa altura escreve: Mas o que significa esta imobilidade se Rousseau, Wagner, Nietzsche e Lenine se exaltam aqui e, a partir daqui, põem o mundo em movimento? Talvez, penso, a imobilidade acabe por gerar tal frustração que aqueles que vivem nela se exaltam e tentam arrastar, ou arrasar, o mundo. No entanto, este primeiro pensamento é, de imediato, substituído por outro. Essas pessoas seriam, por natureza, uns exaltados, incapazes de compreender o valor supremo da imobilidade. O mundo sempre se movimentou. Nunca faltou gente para atormentar os outros devido à sua ânsia de movimento. Rousseau, Nietzsche, Wagner e Lenine seriam todos eles personagens doentes, que na imobilidade suíça recuperaram forças para cada um, a seu modo, espalhar pelo mundo a patologia que o atormentava. Dir-se-á com razão que sem estes atormentados não haveria história humana. A questão, porém, é a de saber se perderíamos alguma coisa por não haver história. Hegel pensava que a história é o longo processo em que o Espírito, tendo-se alienado na natureza, sai desta e, encarnando no homem, faz uma longa viagem de retorno a si mesmo. Ora, por que razão teremos de ser nós a pagar o preço da viagem do Espírito para casa?

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Vida quotidiana

Está um calor dos diabos. Foi o que me ocorreu ao acordar de uma sesta involuntária diante do computador. A culpa, para me poupar o sentimento de culpabilidade, atribuí-a ao almoço. Deslocado na capital para tomar conta de netas, chegado pela hora de almoço, aterrei num pequeno restaurante goês. Não é que tenha sido desrazoável, mas com o passar dos anos – ou das décadas, para ser mais exacto – o que seria quase uma refeição frugal transformou-se num excesso que, mal me sentei para escrever, me arrastou para essa figura deplorável de velho a dormir sentado não diante da televisão, mas de um computador. Não sei se fui acometido por algum sonho, mas desde que não tivesse dado sinais exteriores de perturbações oníricas, a situação é suportável. O mesmo não posso dizer caso me tenha entregado ao exercício de ressonar. Estou a tentar disfarçar, a evitar conversas. Enquanto isso, continuo a ouvir Luc Ferry, um filósofo francês que tem um conjunto de minicursos ou de conferências no Spotify. São excelentes, embora num registo que hoje é pouco apreciado em Portugal, onde se dobrou o joelho à filosofia anglo-saxónica. Quem quiser ficar com uma visão global da Filosofia e não tiver problemas com o francês, não será tempo perdido. Além de cursos sobre a história da Filosofia, existem outros sobre problemas contemporâneos onde é o filósofo que fala e não tanto o professor de Filosofia, excelente, diga-se. As netas ainda não chegaram a casa, elas que estão a retomar o ritmo escolar das sextas-feiras. Acabadas as aulas, programas com as amigas. Não tardará e dispensam a presença dos avós. Para piorar a situação, o mais novo já vai no segundo dia de aulas. Quando fizer seis anos, já levará dois meses de submissão à realidade. A realidade, porém, é que continua um calor dos diabos.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ignorância

Abro ao acaso uma obra de Herberto Helder e leio A cerejeira é uma aparição, / a febre devora as macieiras, todas / as árvores se consomem de sonho. São construções vivas, focadas no silêncio, suspensas na luz. Penso que também sou uma aparição, mas ao contrário da cerejeira não me tocou o esplendor de florescer. E podia ainda pensar-me macieira febril ou imaginar que faço parte desse mundo vegetal e sou uma das árvores consumidas pelo sonho. Não sou também atacado pela febre ou por sonhos, dos piores, daqueles que se sonham acordado, suspenso não da luz, mas da inacção? Não é o silêncio a minha casa, a construção mais viva que ergui? Talvez eu seja uma árvore que se perdeu da floresta a que pertencia. Conheço casos, e não poucos, de pessoas que são anjos caídos na Terra. Outros, ainda mais numerosos, de homens e mulheres que deveriam ser um animal, um cão, um gato, mesmo um hipopótamo, mas que, por um equívoco, tomaram a forma humana. Não sei se sou um homem sonhado por uma árvore ou uma árvore que sonha ser homem. A ignorância tomou conta de mim e leva-me pela mão.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ocultações

Hoje fui reler o que escrevi ontem, coisa que muitas vezes não faço. E devia. Numa releitura rápida descobri coisas que não deveriam estar escritas como o foram ou pontuações destrambelhadas. A leitura após a escrita corrige alguma coisa, mas não é suficiente para vencer a cegueira de quem escreve. Esta é uma cegueira muito especial, pois é uma cegueira que vê o que não está lá, mas é incapaz de ver o que está. Poderia adoptar outra estratégia. Escrever o texto do post e deixá-lo a repousar durante um tempo, para o ler de novo depois do descanso e introduzir as correcções devidas. Isso, porém, entra em conflito com a minha natureza e com a minha gestão do tempo. Tarefa começada é para acabar o mais rapidamente possível. Outra solução era deixar-me destes textos, o que tinha a feliz consequência de eliminar todos os erros, enganos e equívocos, todas essas maldições começadas por “e”. Não tenho tempo para pensar nisso. Um súbito silêncio abateu-se por aqui. São cinco da tarde e a máquina que me assombra desde ontem calou-se. Terá sido o fim da função diária ou o operador foi apenas fumar um cigarro e beber um café? Não tarda, saberei. Acabei de reler o que tinha escrito. Descobri que no lugar de texto tinha escrito testo. Fico a meditar nesta troca. É possível que o dedo se tenha equivocado ao bater no teclado. O “s” está acima do “x”. No entanto, há uma explicação mais interessante, de índole psicanalítica. É um acto falhado que denuncia a minha intenção de tapar (esconder) qualquer coisa. Parece que a máquina se calou definitivamente. Assim seja.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Assombrar

Passam-se coisas estranhíssimas no cérebro humano. No caso, no meu. Há uma palavra que sempre que quero utilizá-la não me lembro qual é, mas sei sempre a palavra francesa para o mesmo conceito. Então, vou ao dicionário Francês-Português e digito – é um dicionário online, já não posso com os de papel – a palavra francesa e acedo à portuguesa. Um assombro. A palavra é mesmo essa, assombrar. Tenho de ir ver o significado de hanter. Não faço ideia por que motivo o meu inconsciente censura assombrar, mas deixa vir incólume à consciência hanter. Queria falar daquilo que me está a assombrar e estava, mais uma vez, em apuros. A assombração não vem de qualquer fantasma, mas de uma máquina que, na rua, regurgita um barulho demoníaco, enquanto faz subir e descer pessoas que cuidam das paredes exteriores do prédio. Ainda não percebi o que estão a fazer, mas o barulho e o cheiro de um qualquer produto sintético assombram-me e introduzem um factor de distracção nas minhas tarefas. Os piores fantasmas, os mais malignos, quero dizer, são estes dispositivos mecânicos que decidem reproduzir, ampliando, o barulho dos infernos. O que me inquieta neste momento – a máquina calou-se – é não saber a razão por que nunca me recordo da palavra assombrar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Diversificação das fontes

Devemos diversificar as fontes. Acabei de ler o Mistério dos Três Corpos, de Liu Cixin, primeiro volume da trilogia O Passado do Planeta Terra. Para cumprir o imperativo da diversificação não vou passar para o segundo romance, A Floresta Sombria, mas deixar por uns tempos a ficção científica e mergulhar na literatura sobre a segunda Grande Guerra, com Stalinegrado, de Vassily Grossman, o romance que antecede a obra-prima de Grossman, Vida e Destino. O que é notável em Grossman é que consegue – pelo menos naquilo que li dele e também no que li na crítica – manter uma elevadíssima qualidade literária, apesar de estar submetido a um mundo político que era impiedoso no controlo da arte. Talvez o caso mais extraordinário desse controlo seja o do compositor Dmitri Shostakovitch. O facto de os regimes totalitários darem uma atenção muito especial ao controlo da arte e de estarem sempre extraordinariamente preocupados em separar a verdadeira arte da arte degenerada são sintomas de que na arte se joga qualquer coisa de decisivo para a humanidade. Não se sabe que coisa decisiva é essa, mas que ela existe está atestado não apenas pelo interesse que a humanidade tem nela como na necessidade de controlo que o poder despótico sente. Hegel via na arte dos gregos uma manifestação sensível do Absoluto, e talvez seja essa presença, sob mil disfarces, do Absoluto que toca os homens e desespera os impiedosos pastores do rebanho humano. Talvez estes pastores não suportem a diversificação das fontes, pois é o anúncio da diversificação das realidades. Não tarde e vou caminhar junto ao rio, agora que o mar ficou longe. Quem não tem cão caça com gato, eis mais uma manifestação da minha cultura ao gosto popular.

domingo, 8 de setembro de 2024

Algoritmos inadequados

Logo de manhã irritei-me com a balança. Não gostei do peso que me devolveu quando a pisei. Talvez a tenha insultado, já não me recordo. Consultei os registos e descobri que, afinal, o caso não era para tanto. Um aumento de trezentos gramas, nem chega a ser um verdadeiro aumento. Talvez lhe tenha pedido desculpa, mas também não tenho a certeza. Concluí mesmo que, afinal, as férias nem foram devastadoras. Para celebrar essa não devastação ofereci-me uns livros. Um deles foi um romance da escritora austríaca Marlen Haushofer, A Parede. São 292 páginas de texto, com a particularidade de não terem cortes. Não há capítulos, pontos ou qualquer outra estratégia que permita ao leitor descansar. Na contracapa, encontra-se uma bela citação do romance: Por vezes, é como se a floresta começasse a ganhar raízes dentro de mim e usasse o meu cérebro para conceber as suas ideias ancestrais e eternas. Uma chamada. Um amigo do outro lado. Conversamos um pouco até que ele me diz que um outro amigo, fomos todos colegas de faculdade, está com pouco mais de cinquenta quilos, o que tendo em conta a altura dele é muito preocupante. Qualquer coisa nos pulmões se desarranjou e começou a multiplicar-se, segundo um algoritmo inadequado à condição humana. Haverá alguma esperança, oiço. Espero que sim. Começo a ficar cercado por pessoas em que qualquer coisa se desarranja e se multiplica segundo algoritmos inumanos. Não vale a pena uma pessoa irritar-se com a balança.

sábado, 7 de setembro de 2024

Fantasias

Nos últimos tempos tenho dedicado algum tempo a ouvir, mais do que a ver, uns vídeos produzidos por nostálgicos de l’Ancien Régime. Sonham com a sociedade estratificada que começou a colapsar em 1789 e cujo estertor continuou até à primeira Grande Guerra. Vociferam – por vezes, com argumentação esteticamente interessante – contra o igualitarismo, o progressismo e todas as maleitas que o Iluminismo e a Revolução francesa terão trazido ao mundo, que seria, antes disso, um paraíso. O mais curioso é que muitos destes pacientes da nostalgia pelo Ancien Régime, caso vivessem sob ele, não teriam sequer direito à palavra, quanto mais à nostalgia. São plebeus que se sonham os aristocratas que nunca seriam, são os homens livres que, no mundo que sonham, nunca seriam. Fantasiam com elites a que imaginam pertencer, caso o mundo fosse outro e não o que é, embora estejam num mundo que, devido ao tenebroso igualitarismo que zurzem, os não impede de fazer alguma coisa para aceder a um qualquer género de elite. Este tipo de pensamento esconde duas coisas. Por um lado, esconde – melhor, disfarça e mal – uma vontade de poder enorme, de um poder que eles justificariam pela vontade divina. Por outro, oculta uma real impotência em lidar com as coisas tal como surgem na vida. Num mundo em que existe uma coisa como a Inteligência Artificial, num mundo em que a espécie humana adquiriu o poder de se reconfigurar através da intervenção técnica, sonhar com as categoriais sociais e mentais do Ancien Régime não será diferente de um adulto sonhar em retornar à vida feliz da infância, caso a tenha tido, ou imagine que a tenha tido. Há mesmo quem tenha extraordinários programas de resistência, como, por exemplo, escolarizar os filhos em casa, para que eles não sejam contaminados pelo tempo que lhes foi dado viver.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Imbecilidades

A semana, a primeira deste Setembro, está a acabar. Hoje termina a semana útil e amanhã termina a inútil. O mais curioso é que todas as semanas começam com um dia de descanso, para terminarem num dia igualmente de descanso. Há nisto uma mensagem subliminar. A utilidade dos dias úteis está envolta pela inutilidade do primeiro dia, o domingo, e a inutilidade do último dia, o sétimo ou o sábado. A mensagem é que toda a utilidade é inútil, embora tenhamos a sensação estranha de que toda a inutilidade, nos nossos dias, foi capturada pelo útil. Enquanto escrevo estas coisas sem nexo oiço um grupo musical a ensaiar. Não consigo perceber se os ensaiadores estão na escola aqui ao lado ou se, mais longe, na praça central da cidade. Seja onde for, não preparam nada que torne a existência – refiro-me à minha, a dos outros é corveia que lhes compete – mais agradável. Entretanto, o ensaio parou, mas isso está longe de ser uma notícia tranquilizadora. A falta de assunto para o dia de hoje está directamente ligada ao estado catatónico em que me encontro. Há pouco li que, segundo a abalizada opinião de uma comentadora televisiva, há pessoas, e ela conhece-as, que ficaram imbecis desde que o Facebook começou. A sua actividade, dessas pessoas que ficaram imbecis, é de postar fantasias sobre elas próprias. Ora, também este narrador posta fantasias sobre si próprio – um si próprio que também é uma fantasia – e não o faz no Facebook. Isto significa que se pode ser imbecil em muitos lugares. Contudo, há uma coisa em que a comentadora está equivocada. As pessoas não ficaram imbecis. Já o eram, mas não tinham espaço público para o mostrar. Falo a partir da experiência pessoal. Não foi a escrever estas coisas que por aqui escrevo que fiquei imbecil. Já o era. Agora, posso tornar isso público ou semipúblico, pois sempre sou um imbecil anónimo, embora não frequente, mas talvez devesse, as reuniões dos imbecis anónimos, pois nunca se sabe quem lá se pode encontrar.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Angústia, decepção e tormento

No capítulo 28, se é que se podem chamar capítulos aos pontos em que a obra se divide, de O passo da floresta, Ernst Jünger escreve: É angustiante o modo como os conceitos e as coisas mudam o seu aspecto muitas vezes de um dia para o outro, produzindo consequências diferentes das esperadas. O referente do excerto é completamente indeterminado. Que conceitos e que coisas? A frase seguinte dá uma pista: Esse é um sinal da anarquia. A pista pode ser, para muitos leitores, decepcionante. Afinal, está-se no campo da política, onde estamos solidamente habituados a que as coisas e os conceitos mudem de um dia para o outro e que as consequências sejam as mais inesperadas. Aliás, o campo da política é o território da mobilidade. A frase de Jünger, fora do seu contexto, é bastante promissora. Imaginemos que as coisas, as mais triviais, mudam de um momento para o outro. Por exemplo, o copo que tenho à minha frente e que vou deixar na secretária. Amanhã, ao sentar-me a essa mesma secretária, o copo é uma careira onde se transporta a colecção de cartões com que um homem moderno deve andar acompanhado. Seria uma coisa muito mais exaltante do que as mudanças nas instituições políticas. Não menos entusiasmante seria a anarquia conceptual. Por exemplo, o conceito de círculo – não, não me estou a referir à palavra círculo, mas à representação geral e abstracta – deixar de representar uma porção de plano limitado por uma circunferência e passar a representar, num dia, a medida do afastamento de duas semi-rectas que têm a origem num mesmo ponto – o vulgar, ângulo – e, num outro, representar um ser vivo microscópico, procariota, desprovido de sistemas de membranas internas, a que agora damos o nome de bactéria. Ora, se Jünger, um autor de que gosto, se sente angustiado pela alteração das coisas e dos conceitos ligados ao mundo da pólis, o que se sentiria ele se essas mudanças se dessem nos outros domínios da realidade, por norma mais conservadores e com uma forte inclinação para a estabilidade. Viveria um tormento, imagino. Tormentosa também é a leitura do livro. A tradução portuguesa tem 101 páginas, mas as letras são tão pequenas que cada passo dado na floresta é extremamente cansativo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Flatus vocis

Não é raro deparar-me com coisas escritas por mim há uns anos e ficar perplexo não por aquilo estar escrito, mas por aquilo que fui e que me levou a escrever o que escrevi. Temos uma inclinação para a identidade, isto é, para nos pensarmos como sendo os mesmos numa linha contínua no tempo. A memória socorre-nos na presunção dessa identidade. Ora, muitas das coisas que se escrevem não cabem no grande armazém da memória. Se as encontrássemos num sítio que não reconhecemos como nosso, não as identificaríamos como tendo a nossa autoria. Eu sou aquilo de que me lembro, mas há muita coisa que, apesar de ter sido, não cabe na montra da identidade. Posso dizer com propriedade eu não fui aquilo. Uma identidade fundada na memória é uma coisa frágil. Ora, em que outra coisa podemos fundar a nossa identidade a não ser na memória? Imagino que a identidade seja um flatus vocis, um termo que tem som, tem sentido, mas que não se refere a nada, e talvez isso seja o melhor que nos possa ter acontecido.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Influenciar e dominar

Pega-se num livro e olha-se para a capa. Suja-a a declaração O Bestseller Internacional Traduzido em Mais de 20 Idiomas. Para a coisa não ficar por aí, chapa-se A Arte de Influenciar Pessoas e Dominar Multidões. O livro em causa foi publicado em 1895 e foi discutido em meios académicos. Ser traduzido em mais de 20 idiomas não é nada de excepcional e o objectivo do livro não é ensinar qualquer arte, e muito menos a de influenciar pessoas e dominar multidões. É um estudo que pretende perceber determinado fenómeno, que foi discutido e criticado, como acontece a qualquer estudo académico. Que o tratemos assim é prova de que o provincianismo continua a fazer parte da ambiência mental dos portugueses. Parte da ideia de que haverá compradores para a obra não pela sua qualidade científica, mas porque esses compradores estão desejosos de influenciar pessoas e de dominar multidões. Tudo isto é, além de infantil, muito cansativo. Vou fazer uma caminhada para desintoxicar.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A pesada carga

A história dos europeus é, por vezes, assombrada pela luz que chega da antiga Grécia. Esta assombração, porém, não provoca o terror, mas uma nostalgia que parece inultrapassável, como se a velha Hélade fosse, para nós homens de uma era sombria, uma idade de ouro, a nossa autêntica idade de ouro. Acontece que a nostalgia pode tornar-se pesada, muito pesada, e que, de forças enfraquecidas, não suportemos o peso sobre os ombros. Talvez por isso, nos estejamos a afastar desse modelo, sentido como tirânico. A sensação que se tem é que estamos apostados em cortar o fio de Ariadne que nos permite retornar à luz e à vida, para nos perdermos no labirinto que, como Dédalos inconscientes, construímos. Esta sensação pode ser apenas o resultado de este ser um narrador envelhecido, que já não descortina a luz do mundo. Isso seria o melhor que poderia acontecer, mas duvido. Os sinais desse esquecimento da idade do ouro, dessa conjugação de arte, pensamento e política, são tão evidentes que parecem corroborar que alijámos dos ombros a pesada carga que a perfeição grega sobre nós fazia cair.

domingo, 1 de setembro de 2024

Realidade e repetição

O último dia de férias. Amanhã, retorno à realidade, com a sua procissão de coisas inúteis. Para dizer a verdade, só retorno porque decidi fazê-lo. Um acto do meu livre-arbítrio. Sempre se poderá argumentar que esse acto livre não passa de uma ilusão. Eu estou determinado a realizá-lo por um conjunto de causas que desconheço, e é essa ignorância que me oferece a doce ilusão de que aquilo que faço depende da minha escolha. Isso foi pensado por um judeu de origem portuguesa, Baruch Espinosa. Por interessante que o pensamento de Espinosa seja, eu não partilho da sua falta de fé no livre-arbítrio. A minha fé – qualquer posição sobre o livre-arbítrio, por excelentes que sejam os argumentos que se possua, será, em última análise, uma questão de fé e não de prova racional – a minha fé, dizia, é de que possuo livre-arbítrio e que, por vezes, escolho aquilo que faço, podendo fazer uma coisa diferente. Por exemplo, poderia ter decidido, em vez de escrever isto, ir a uma esplanada, beber uma cerveja e contemplar o sol a afogar-se no mar. Nada me impedia e tenho várias esplanadas, com vista sobre o pôr-do-sol, mesmo à mão de semear, embora na areia e no mar nada se semeie e eu não tenha alma de agricultor. Ao fim de várias décadas de convívio com a minha alma, ainda não compreendi que tipo de alma é que me coube em sorte. Talvez seja uma alma sem tipo, como, no romance de Musil, o homem é sem qualidades. Hoje, ao telemóvel, tive uma longa conversa com o padre Lodo, mas não discutimos o problema do livre-arbítrio, uma das coisas em que eu e o velho jesuíta meu amigo estamos de acordo. Explicou-me, longamente, por que razão, este ano, não esteve por aqui, onde a Companhia tem um belo local de férias. Ao ouvi-lo pensei que estava a repetir-se, mas, de imediato, reconheci que também me repito e sou mais novo. Com o avançar da idade temos uma tendência para a repetição. No meu caso, parece haver uma predilecção pela anáfora. Imagino que o uso da repetição seja uma luta contra o desmemoriamento. A realidade aproxima-se, mas um dia hei-de esquecê-la. Não haverá anáfora que resista.

sábado, 31 de agosto de 2024

Repressão e censura

Leio num jornal online a frase a repressão é a mãe do desejo. A proposição não é particularmente inovadora ou, sequer, interessante, apenas explora uma promessa de erotização. Vivemos num mundo que se saturou de tal modo de psicanálise que tudo o que tenha o seu aroma se torna cansativo. Contudo, a frase recordou-me uma outra coisa, os livros que o antigo regime censurava e proibia. Sempre me pareceu que se essas obras fossem livres, o seu impacto social seria tendencialmente nulo. O acto censório era um modo de propaganda dos livros, muitos deles medíocres, outros de tal modo complexos que só seriam lidos por especialistas, os quais, apesar das proibições, encontravam sempre modo de os ler. Um dos livros vítima da censura portuguesa foi O Anticristo, de Friedrich Nietzsche. Contudo, que impacto poderia ter um livro que discute as raízes da cultura europeia e questões de natureza axiológica? O impacto que tem hoje, isto é, nulo. No acto de censura de um livro há uma crença de que os livros podem mudar o mundo. Uma crença exagerada. Mais facilmente uma descoberta tecnológica muda o mundo do que um livro ou mesmo um arsenal de livros. Repressão e censura de livros são exercícios não apenas moralmente inaceitáveis como inúteis.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Devaneio

O dia tal como tem estado ofereceu-me duas possibilidades para o pós-almoço. Ou sentar-me aqui onde estou a escrever e acabar por adormecer, ou ir caminhar, aproveitando o dia cinzento e fresco. Escolhi a segunda opção. Fiz alguns quilómetros absorto, acompanhado pela música de Alban Berg. Talvez devesse caminhar sem música, prestando atenção ao caminho, deixando-me contaminar pela surpresa que nele, por certo, sempre haverá. Isto seria a realização de um ideal de vida. Prestar uma atenção sem falha a cada coisa que se faz, evitando a distracção que nos rapta do tempo presente e nos envia para um não tempo, onde a imaginação se entrega às suas divagações, criando mundos oníricos que se sobrepõem ao mundo em que nos movemos. Ouvir música, enquanto se caminha, é um compromisso. A imaginação é sustida e a atenção é mobilizada pela realidade daquilo que se ouve. Podemos imaginar que a arte, do ponto de vista, daquele que a contempla – visual ou auditivamente – representa um pacto que evita tanto as utopias subjectivas da imaginação quanto a crueza da submissão à realidade que nos cabe. Agosto aproxima-se do fim e isso é a única coisa que me ocorre neste momento.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Causa sui

Uma pessoa perde-se. É de tal modo desmesurada a obra de Fernando Pessoa que um leitor, mesmo medianamente atento, deixa escapar inúmeras facetas. Descobri há pouco que também escreveu histórias policiais. Acho que lhe chamava novelas policiárias. Talvez também tenha escrito ficção científica. É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande, foi o pensamento que me ocorreu quando descobri que nem o policial escapara ao poeta. Não devia pensar coisas destas, pois pode indispor aqueles que andam sempre com a pátria na boca e a bandeira na lapela. Isto, porém, são coisas que não cabem nestas narrativas. Para dizer a verdade, eu não pensei que É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande. Foi o pensamento que se pensou em mim. Se se tiver atenção, descobre-se que muitos dos nossos pensamentos não são nossos, mas são coisas que se passam em nós sem que tenhamos qualquer responsabilidade delas. Somos responsáveis pela censura ou não desses acontecimentos que se dão na nossa mente, mas não criamos a maior parte deles. Talvez uma parte substancial da obra de Pessoa seja desse género, coisas que ocorrem na sua mente e que ele, em vez de censurar, regista. Ele deve ter sentido isso mesmo e ficou perturbado, tentando encontrar pensadores para muitos dos seus pensamentos poéticos. Daí a heteronomia. Se ele fosse mais radical, admitiria que toda aquela obra não tinha autor. A obra compusera-se nele, mas tinha-se autocriado. Como diria Espinosa, a obra, como Deus, é causa sui.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Sem laço

Em 1906, Arthur Moeller van den Bruck, um pensador alemão, com uma costela holandesa, ou neerlandesa, afirmava Uma perspectiva inesperada abriu-se assim diante da arte moderna: ser ela própria a cultura moderna! Passaram 118 anos e a profecia de van den Bruck parece falhada. A evolução da arte moderna afastou-a, de algum modo, do poder de dar forma a uma cultura moderna, uma cultura que se tornasse uma visão global e unificada do mundo. Pelo contrário, a arte moderna integra o amplo espectro daquilo a que poderíamos chamar o grande estilhaçamento. Por todo o lado, o que emergiu foi uma contínua pluralização espiritual e cultural, sem que se percebe nas infinitas manifestações culturais qualquer laço comum, a não ser o da sua radical autonomia e, por isso, não possuir qualquer princípio unificador partilhado com todo o resto. Não há uma cultura moderna, mas múltiplas culturas modernas, como não haverá uma arte moderna, mas múltiplas artes modernas, deslaçadas – culturas e artes modernas – umas das outras. Os nossos tempos são assim de estilhaçamento e deslaçamento. Uma unidade global do espírito poderá ter existido no passado, mas não existe no presente. Do futuro, nada sabemos. Em 1906, ainda se vivia sob a sombra de um passado que, agora, está morto.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Um acontecimento

Hoje, pela primeira vez nesta época balnear, passeei-me à beira-mar. Enquanto caminhava sobre a areia e sentia a água nos pés, pensava que era monsieur Hulot, num dos extraordinários filmes de Jacques Tati, no caso, Les Vancances de Monsieur Hulot. O filme é de 1953, ainda não tinha este narrador nascido. Demorei muitas décadas para poder encarnar a personagem que Tati filmou e encarnou, diga-se. O senhor Hulot era mais alto, mas pouco, do que este narrador e tinha uma inclinação pelo cachimbo, que não consta no rol das inclinações de quem narra este episódio. Partilhamos, porém, a inclinação para o desajeitamento, embora seja necessário fazer uma ressalva. Enquanto monsieur Hulot acentuava esse estado de pouco ajeitamento, este narrador disfarça, não poucas vezes com sucesso. A vida tem destas coisas que não sabemos como nos calham. Poderia ser uma encarnação de Ivan, o Terrível, mas não. Saiu-me na lotaria o senhor Hulot. O grande acontecimento, porém, foi mesmo estar à beira-mar, coisa que em tempos era banal, mas que se tornou excepção. Ainda fui desafiado para entrar dentro de água, mas exclamei de imediato vade retro Satana, que é como quem diz Afasta-te, Satanás, a que acrescentarei vai tentar o diabo, se quiseres mergulha tu. Eu tenho de passear, com o meu panamá genuíno na cabeça e as mãos atrás das costas, para ver o que se me apresentar diante dos olhos.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A obra, não a biografia

Uma parte da manhã passei-a numa visita a uma casa-museu do século XIX. O proprietário foi um artista distintíssimo numa arte que então dava os primeiros passos. A visita foi guiada. O discurso da guia foi uma verdadeira hagiografia do antigo proprietário. Ora, este terá tido uma faceta privada pouco digna da glória dos altares, e não me refiro a picarescas aventuras sexuais, mas que o torna uma personagem ainda mais interessante. Há uma tentação de associar a grandeza em certa área das actividades humanas à bondade moral ou mesmo à santidade. Lembro-me de ter saído da escola primária, como então era conhecida, com a sensação de que Portugal só tinha sido governado por grandes heróis que eram, ao mesmo tempo, grandes santos. Estariam todos, imaginava eu, no céu. Ora, todos nós temos um fundo obscuro e, não poucas vezes, quanto mais luminoso se é em certa área – na arte, por exemplo – mais escura é a alma do ponto de vista moral. Era bom que isso fosse entendido num museu, mesmo de província, e que os artistas fossem apresentados na sua complexidade, embora a vida dos artistas seja uma curiosidade. O fundamental, enquanto artistas, não é a sua vida, mas a sua obra. As hagiografias surgem muitas vezes para colmatar uma certa incapacidade para comentar e explorar a obra. No caso de hoje, o que foi mostrado e comentado foram aspectos episódicos da biografia luminosa do autor, o seu peso social, mas nada se explorou da obra, do porquê da sua importância, da sua relação com as tendências da época.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Um problema de arrumação

Sem saber como fui ter a uma página da FNAC onde se exibia, depois da escolha de uns quanto doutos escolhedores, as 12 melhores obras literárias portuguesas, no âmbito da ficção narrativa, dos últimos 100 anos. Na verdade, dos últimos 108 anos, pois a escolha foi efectuada em 2016 e, tanto quanto dei por isso, nada surgiu no nosso país que merecesse elevar-se àquele empíreo ou entrar nesse restrito cânone. É feita uma breve consideração de cada obra, apresentado o começo e mobilizada uma frase sobre o autor, um juízo de autoridade que legitima a sua escolha. As obras não estão classificadas. São 12, ordenadas alfabeticamente. A que surge em primeiro lugar é A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Ora sobre este, foi escolhida a frase É um inimigo político, mas é um grande escritor. O autor é António Salazar. Que se saiba, Salazar, apesar de ser especialista em classificar pessoas como inimigos políticos, não tinha qualquer autoridade enquanto avaliador de escritores. No lugar de Aquilino, mesmo morto, ficaria ofendido. De todos os começos apresentados, o de que mais gosto, considerando a época do ano em que estamos, é o do Vergílio Ferreira:  É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olha-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. Há outros excelentes. Por exemplo, se estivéssemos no Outono, teria escolhido o de Fernando Pessoa: Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. É óptimo para ser apreciado em finais de Novembro. Caso estivesse num Inverno chuvoso, escolheria o de José Saramago: Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias. Sou um narrador ribatejano, note-se. Contudo a frase absoluta, que nunca esqueci é a de Herberto Helder: – Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. O que me fascinou, quando li o livro pela primeira vez, foi Se eu quisesse, enlouquecia. Agora, o que mais se me adequa é Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Dissidência

A Antígona Editores Refractários tem um pequeno projecto de publicação de cinco obras literárias, a que deu o sugestivo nome de Sementes de Dissidência, embora esta designação seja equívoca. Numa sociedade como a nossa a dissidência não precisa de ser semeada, pois qualquer um pode dissidir, sem que isso lhe traga consequências relevantes. Pode ser mesmo motivo de promoção. Não é, porém, a pertinência do nome do projecto, mas o começo das duas primeiras obras publicadas, ambas romances. A primeira – Caruncho (2021), de Layla Martínez – começa assim: Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. Eis um começo pujante. A outra – Niels Lyhne (1880), de Jens Peter Jacobsen, tem outra tonalidade: Ela tinha os olhos negro e faiscantes dos Blid, com sobrancelhas finas e rectilíneas; deles era igualmente o contorno saliente do nariz, o queixo firme, os lábios carnudos. Perante estes começos, podemos especular que no caso de Layla Martínez estamos perante uma narração na primeira pessoa e no caso de Jacobsen de uma na terceira pessoa. Podemos, então, perguntar que tipo de narração estará mais próxima da verdade, quero dizer, qual delas ficciona de modo mais adequado a verdade do que narra. A narradora de Layla Martínez narra percepções subjectivas, enquanto o narrador de Jacobsen faz uma descrição objectiva. Podemos pensar que aquele que fala de si mesmo sabe muito melhor o que diz do que qualquer outro. Não creio que uma autobiografia esteja mais próxima da verdade de uma pessoa do que uma biografia dessa pessoa feita por alguém preocupado com a objectividade do que escreve. Hoje, amanhã tenho o direito de mudar de opinião, prefiro uma narrativa na terceira pessoa. O começo de Jens Peter Jacobsen, menos tonitruante que o de Layla Martínez, moveu o meu espírito a dar-lhe a precedência na leitura, apesar de ser a segunda obra do projecta da editora, e o de Laila Martínez, a primeira. Também sou capaz de dissidência.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A gravidez dos mitos

Em Vico encontramos uma explicação em plano inclinado para a dificuldade que se tem perante os mitos, propriamente, os mitos da antiguidade clássica greco-latina. O autor italiano não usa mito, mas fábula, que traduz a palavra grega para mito. Por que razão se tem dificuldade em crer nos mitos? Eis a explicação. Eles nascem geralmente indecentes e, por isso, tornam-se impróprios, o que significará que estão alterados, o que os faz inverosímeis, o que dá lugar a que se tornem obscuros, o que conduz a que se tornem escandalosos, o que terá como consequência que sejam inacreditáveis. Encontramos um grupo de avaliações morais, são histórias indecentes, impróprias, escandalosas. Encontramos um grupo de avaliações epistémicas, são histórias inverosímeis, obscuras e inacreditáveis. O eixo em torno do qual giram estas duas rodas de avaliação dos mitos é a alteração. Os mitos são escandalosos e inacreditáveis porque estão alterados. Originariamente, escreve Vico, seriam narrações verdadeiras e severas, ainda uma avaliação epistémica e uma avaliação moral. Ora, em torno de que eixo giram estas duas avaliações? O eixo é a origem. Na origem, as narrativas dizem a verdade e expõem a conduta séria e rigorosa. Depois, quando o comboio do tempo traz as coisas e as narrações para cada vez mais longe dessa origem, mais elas se degradam moralmente e se tornam, ao nível do conhecimento, inacreditáveis. Repare-se, ainda, numa subtil distinção. Na origem, os mitos são verdadeiros e severos, mas nascem indecentes. Uma coisa é a origem e outra é o nascimento. O que nos leva a supor que a gravidez mítica é um processo de duvidosa moralidade que transforma uma história severa e verdadeira numa indecência inverosímil.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Um excesso

Na edição de 2007, da Bertrand Editora, das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu, o nome em destaque não é o de Rainer Maria Rilke, mas o de Vasco Graça Moura. O tradutor surge como mais importante do que o autor. Talvez a ideia seja de que não é possível traduzir poesia, mas esta pode ser reescrita e, nesse caso, o reescritor é o autor. Peguei no quarto soneto a Orfeu, aquele que começa por O ihr zärtlichen, tretet zuweilen (Ó vós ternos, por vezes entrai) e, desconhecendo a língua, pedi uma tradução automática. Uma tradução automática rasura o poético do poema, mas devolve-nos imagens e materiais semânticos usados na construção original. A tradução de Vasco da Graça Moura propõe um novo poético, adaptado à língua portuguesa, do soneto de Rilke, mas trabalha com imagens e materiais semânticos provenientes, como não podia deixar de ser, de Rilke. Podemos discutir, e tem-se discutido, se na poesia o essencial é o som ou o sentido. Ora, nos poemas de Rilke, por certo, a grandeza nascerá de uma combinação entre som e sentido. O trabalho de tradutor de Vasco da Graça Moura é pessoal na dimensão sonora, mas tem uma dívida impagável ao sentido construído por Rilke. A capa da Bertrand Editora é uma tomada de posição sobre a discussão entre som e sentido, proclamando visualmente que o som é mais decisivo na poesia do que o sentido. Uma tomada de posição excessiva, parece-me.

domingo, 18 de agosto de 2024

O poder da acção

Num comentário a um longo romance de Fiódor Dostoiévski, alguém – um leitor ingénuo, por certo – escreve que as primeiras cem páginas são difíceis, mas, depois, chega a acção a sério, aquela que capta a atenção do leitor. E esse comentador terá as suas razões. O romance, tal como o compreendemos hoje, é uma invenção da modernidade europeia, essa modernidade que decretara que a acção se sobrepunha à contemplação. O importante não é aquilo que o homem pensa ou observa de modo desinteressado, mas o que faz. O romance narra esse agir humano e os leitores, tomados pelo espírito moderno, não compreendem que um romancista – seja Dostoiévski ou Eça, o Eça de Os Maias – se entregue a longas descrições que pressupõem um espírito capaz de se abstrair do que se move para contemplar aquilo que está aí e parece permanecer. Os modernos precisam de mergulhar na acção, talvez como refrigério por não saberem o que fazer, neste mundo, da alma que lhes coube em sorte. Há muitos anos, na década de oitenta no século passado, quando foi exibido aqui, nesta cidade onde me acolho, o filme de Akira Kurosawa A Sombra do Guerreiro, o programador local agendou-o para uma sessão de um sábado à noite. Estranhei a opção e ainda mais estranhei o facto de a sala, com uma lotação para mil espectadores, estar cheia. Programador local e público pensaram estar perante um filme de guerra ou de artes marciais. Sentia-se a decepção dos espectadores pela ausência de acção, pela natureza contemplativa que percorre o filme. Houve uma explosão quando foi exibida uma batalha bem activa. Isto são memórias com mais de 40 anos e há muito que não revejo o filme. Talvez seja uma boa ideia para a noite deste domingo, onde, na verdade, não espero qualquer acção. Melhor, onde dispenso qualquer acção.

sábado, 17 de agosto de 2024

Poder absoluto

Retornei ao sítio de calor de onde tinha partido ontem e fui recebido com um abraço caloroso, demasiado caloroso. Os neurónios suspendem a sua função, que já não seria muita, e o mundo fica mais turvo. Dei por finda a estadia junto do mar, cansado de mais de um mês de litoral. Para dizer a verdade, não é tanto cansaço do litoral como saudades do escritório, a minha cadeira. A minha secretária, as minhas estantes. É o meu reino, onde o poder não necessita de negociação e, por isso, é absoluto, tal como o de Luís XIV. Esta coisa de um poder absoluto é sempre uma mentira, pois mil coisas conspiram contra esse poder, até as mais benévolas. Ninguém, nem Luís XIV, tem, teve ou terá poder absoluto sobre si mesmo, sobre o seu corpo, o seu desejo, quanto mais um império sem limites sobre os outros e o mundo. Somos limitados e finitos, o resto são fantasias para disfarçar essa limitação e essa finitude, as quais, elas sim, são absolutas. Agora, vou beber água para me hidratar.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O prazer do fogo

Acabei de fazer uma viagem de 17 graus centígrados. Saí de um sítio com 41o e cheguei a outro com 24o. A crónica de hoje de António Guerreiro, no Público, gira em torno do fogo. O título é Brincar com o fogo. E o lead diz: A Terra foi vista como um reservatório de energias inesgotáveis. Continuámos a brincar com o fogo e agora o planeta arde. Até certa altura pensava-se que a hipótese de as coisas acabarem devido a uma guerra nuclear era grande. Depois, o medo atenuou-se, embora não se perceba bem a razão desse atenuar. O medo seguinte, mas também cada vez mais atenuado, é de que tudo acabe devido ao aquecimento global. Ora, nem um conflito nuclear está posto de lado, nem há qualquer acção efectiva que vise travar o aquecimento global. Tirando uns infelizes militantes que atiram tinta a quadros, a generalidade das pessoas não quer saber de aquecimentos globais. Nós, seres humanos, somos fascinados pelo fogo. Poucos são aqueles que não sentem prazer em ver as labaredas de uma fogueira, o que significa que no fundo da alma de cada ser humano há um pequeno pirómano. Nesta altura, esses pequenos pirómanos parecem estar a tomar conta de cada um de nós e, em vez de temermos o fim pelo fogo, desejamo-lo cada vez mais e com mais intensidade. O ideal seria a combinação da revolta da natureza através do fogo e uma guerra nuclear. Enfim, hoje acordei com uma leve dor de cabeça e uma inclinação para a hipérbole. O planeta arde, mas isso não assusta a nossa alma de pirómanos. Pelo contrário, é como se estivéssemos numa noite fria de Inverno diante da lareira para contemplarmos as labaredas que dançam na lenha que arde. O prazer do fogo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Moda

Robert Musil, o escritor de O Homem Sem Qualidades, acreditava que a fealdade não impede a moda de surgir. Escreveu isto num ensaio de 1931, “A Moda”. A certa altura, com o pretexto de exemplificar essa fealdade, escrevia e as saias curtas de mulher igualmente usadas até há pouco representavam, para uma observação imparcial, a repartição mais desfavorável da figura feminina que imaginar se possa, uma vez que se gerava um rectângulo elevado assente em duas pequenas andas curtas. Saliente-se que por saia curta o autor considerava a saia pelos joelhos. Como pôde ele ler a parte visível das pernas das mulheres como duas andas curtas? A apreciação estética que faz é fruto de um hábito e de preconceitos sobre o que se deve vestir e o que se deve mostrar – ou ocultar – no corpo da mulher. Ninguém da minha geração pensaria as pernas desocultadas de uma mulher como um dispositivo artificial tipo andas. Quando Musil escreve que a fealdade não impede a moda de surgir, talvez devêssemos compreender as coisas de uma outra maneira. Toda a moda se funda numa manifestação da beleza. Aqueles que a pensam como feia apenas não conseguem perceber o que de belo nela se manifesta. A moda estaria, deste modo, ligada à transmutação dos valores estéticos e, por isso, ela é sempre reservada a uma pequena vanguarda. Isto permite ir mais longe na especulação. Aquilo que é belo não apenas é difícil, como pensava Platão, mas tem em si um princípio de inquietação que conduz a contínuas metamorfoses, as quais são apreendidas, por instantes, pela moda, para logo se transformarem, esperando que a moda as capte numa nova imagem do que é belo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Derrelicção

Sem se dar por isso, duas semanas de Agosto estão cumpridas. Há uma estranha percepção sobre a duração. Duas semanas nos dias de hoje passam muito mais rapidamente do que duas semanas há sessenta anos. Isto coloca um problema interessante. Enquanto nos tornamos mais lentos, o tempo torna-se mais rápido. Imagino que a rapidez do tempo está na proporção inversa da rapidez do ser humano. Dito de outra maneira, quanto mais lentos nos tornamos, mais rápido é o tempo. Isto, claro, é uma ilusão, mas o que faríamos nós da vida se fôssemos destituídos de ilusões? Um dos erros perceptivos que sempre me fascinou foi aquele que ocorre quando se está sentado numa carruagem de um comboio parado na estação e o comboio ao lado começa a movimentar-se. O deslocar do último gera no observador parado a sensação de que é ele que se move. O pior é que agora estou parado no comboio da existência, enquanto a realidade galopa em direcção ao futuro, mas nenhuma ilusão me acode. Sinto que o mundo vai desencabrestado por aí fora e que eu fico irremediavelmente para trás, sentado num comboio parado a que nunca se dará o sinal de partida. As pessoas não caminham em direcção à morte. É a vida que avança e se esquece delas no caminho. É a isto que se chama derrelicção.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Um gigante e uma vaca

Imagino que seja um livro com informação um pouco desactualizada, mas talvez não. Não sei, não sou sequer um curioso cuja curiosidade o leve a estar continuamente actualizado no assunto. O livro data de 1987 e tem por autor Steven Weinberg, um físico norte-americano que recebeu o Prémio Nobel, juntamente com outros dois físicos, por ter unificado duas das quatro forças que superintendem as interacções entre partículas e objectos, tema que não vem agora ao caso. Devido ao livro, Os Três Primeiros Minutos – Uma Análise Moderna da Origem do Universo, o autor foi agraciado pelo Presidente dos Estados Unidos com a Medalha Nacional de Ciências. Depois do Prefácio do livro, este segue com a Introdução: O Gigante e a Vaca. Esta começa com uma referência a um conjunto de mitos vikings – Edda – sobre a origem do Universo, mitos em que, apesar de não existir nada, havia um gigante chamado Ymer e uma vaca que tinha o nome, aliás inspirador, de Audhumla. Weinberg conclui que a explicação dada pelo mito nórdico para a origem do Universo não é muito satisfatória. Passa, então, para um resumo do «modelo-padrão», aquilo a que se chama normalmente a teoria do big bang. Ele escreve: No início houve uma grande explosão. Não uma explosão como aquelas com que nos familiarizámos na Terra, partindo de um centro definido e espalhando-se de maneira a englobar cada vez mais ar circundante, mas uma explosão que ocorreu simultaneamente em toda a parte, enchendo o espaço inteiro desde o início, cada partícula de matéria fugindo de todas as outras. Mais adiante, continua: Cerca do primeiro centésimo de segundo, o tempo mais recuado de que poderemos falar com confiança, a temperatura do universo era aproximadamente de cem mil milhões (1011) de graus centígrados. Ora, apesar de ter passado o tempo do gigante Ymer e da vaca Audhumla, o tempo anterior ao centésimo de segundo a que podemos recuar com confiança (o que é uma façanha tremenda da razão humana) e o tempo anterior (na verdade, não havia tempo) ao big bang abrem a porta para todos os gigantes matreiros e para todas as vacas encantadas reencarnarem. Quem primeiro propôs a teoria do big bang, denominando-a hipótese do átomo primordial, foi um padre católico, professor de Física, em Lovaina, George Lemaître. Consta que o Papa da altura ficou entusiasmadíssimo e julgou que tinha sido encontrada uma prova científica da criação do mundo por Deus. Parece que Lemaître lhe terá dito para não se meter por esses caminhos da ciência, tão ínvios quanto os de Deus. Talvez, imagino eu, quisesse preservar o encanto da narrativa do Génesis, aliás, mais imaginativa do que a do Edda nórdico.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Beleza

Há títulos de livros extraordinários. Por exemplo, The Fragility of Goodness, de Martha C. Nussbaum. Contudo, a tradução para português deixa de funcionar. A Fragilidade da Bondade perde o impacto sonoro devido à repetição das duas sílabas finais de fragilidade e de bondade. Um expediente seria traduzir por A Fragilidade do Bem, mas não seria a mesma coisa. Aliás, a tradução existente em português, na variante brasileira, faz a tradução literal. Martha C. Nussbaum não é apenas uma muito interessante e talentosa filósofa, mas é uma criadora de títulos excepcional. Além do citado, vejam-se os seguintes: Cultivating Humanity; Political Emotions; Frontiers of Justice; Upheavals of Thought; Not for Profit; The Cosmopolitian Tradition. Poder-se-á pensar que a natureza retórica destes títulos é uma estratégia comercial. Imagino que a autora se ofenderia. A qualidade linguística estará ligada, de alguma forma, à qualidade do pensamento. Os primeiros textos filosóficos completos que nos chegaram são os diálogos platónicos. Aquilo que que foi escrito antes, e foi alguma coisa, perdeu-se ou permaneceu em forma fragmentária. É possível pensar que esses textos pré-socráticos, é assim que se chamam, teriam qualidade poética e retórica. Os textos de Platão, os diálogos filosóficos, nasceram de uma ruptura dentro do próprio filósofo. Este era um jovem escritor de tragédias, mas fascinado pela figura de Sócrates, de quem queria ser discípulo, aceitou a imposição deste e destruiu as tragédias que tinha escrito. Contudo, não se conseguiu livrar completamente de si mesmo e passou do teatro trágico ao teatro filosófico, onde encenou as aventuras da própria razão. Para tornar as coisas mais interessantes, não são poucos os diálogos onde, ao lado de uma exploração racional de um problema, Platão constrói ou usa mitos. Poder-se-á pensar, e haverá quem o pense, que esses mitos, tal como os belos títulos da contemporânea Martha C. Nussbaum, têm um efeito retórico, quase de natureza comercial. Imagino que Platão ficaria ofendido. A beleza do título ou o encanto dos mitos fazem parte da verdade, que recusa revelar-se caso não haja um módico de beleza. Dessa beleza que a arte do século XX e XXI expulsou de si mesma, numa confissão de que se tinha divorciado da verdade, mas que, apesar do desígnio de muitos artistas, essa beleza acaba por voltar, contra a vontade dos próprios.

domingo, 11 de agosto de 2024

Pensamentos sem sentido

Hoje, fui à praia, mais uma vez. Dizer que fui à praia é uma hipérbole, pois fui ao bar da praia, onde me sentei a beber um café e a comer um pastel de nata, enquanto olhava o mar. Não passei, claro, do bar, mas prometi que voltaria à praia, isto é, ao bar. Não sei bem porquê, aquele bar, que até hoje me era indiferente, passou a ter um valor para mim. Que valor? Não faço ideia, mas apetece-me lá voltar amanhã e no outro dia. Este apetite de voltar a um sítio é a melhor prova de que esse sítio merece a visita. Apesar do meu contencioso com a praia, o mar sempre me fascinou. Não, não é tanto o mar que me fascina, mas a visão do mar. Olho para o mar e sinto uma vertigem – isto é uma metáfora. Essa vertigem quer dizer que estou perante algo que me ultrapassa infinitamente. Sinto-a, ou sentia-a, quando olhava o céu estrelado. O mar e o céu estrelado são símbolos daquilo que me ultrapassa infinitamente, daquilo que me é incomensurável. Há muitas décadas, nas noites estivais de céu estrelado, procurava um sítio onde a poluição luminosa não me incomodasse e ficava a contemplar as estrelas. Tentava suspender o pensamento, mas este resistia e trazia-me sempre as mesmas questões: Para quê tudo isto? Porquê tudo isto? Depois, fui estudar filosofia, mas acho que não adiantei nada. As questões permanecem, mas já não me entrego à contemplação dos céus nas noites estreladas. Tudo isto é inexplicável. O oceano, o céu estrelado, a minha perplexidade perante ambos. Oiço passos, é uma das minhas netas. Não sei se elas sentem uma vertigem perante o mar ou o céu estrelado. E o meu neto, ainda nos cinco anos, algum dia olhará o mar ou o céu estrelado e perguntará para quê e porquê tudo isto? Se nenhum deles o fizer, o que andei eu a fazer neste mundo?

sábado, 10 de agosto de 2024

Obrigações

Tive de ir à praia. Função de avô. Em tempos, que me parecem muito recuados, tinha prazer nesse ritual da ida à praia. Depois, foi desaparecendo. Nem ritual, nem areia, nem sol, nem água do mar salgado. Uma esplanada com vista para o mar ainda é uma coisa que me dá prazer, pois contemplar a linha do horizonte, onde o oceano e o céu se fundem na ilusão do olhar, abre o espírito à rêverie, a esse sonho acordado onde os mistérios do universo se fundem com os segredos ultramarinos. Devo estar a tornar-me uma pessoa insuportável, se não o era já. Não cultivo nem a praia e os banhos de sol e mar nem a viagem, turística ou outra. Estar onde se está e viajar na sua própria morada é a mais difícil e desafiante das viagens. Voltou-me o gosto pelas hipérboles. De tarde, consegui escapar-me à função da ida à praia, com a desculpa esfarrapada de ter de ir fazer compras, coisas que só eu sei o que são, embora não imagine o quê. É certo que fui olhado com condescendência, mas é coisa que suporto bem. Sobre este narrador, há duas teorias. Uma é que sofre de autismo. Outra é que falhou a vocação de monge eremita. Por mim, aceito qualquer uma. Talvez as duas sejam verdadeiras. Tenho de ir às compras. Um dia cheio de obrigações.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Mudos e surdos

Não é devido à qualidade da escrita – que é desmesurada – que vou citar Flannery O’Connor, mas por uma motivação lateral à literatura. Quase no início de O Céu é dos Violentos, diz-se O seu tio ensinara-lhe Contas, Leitura, Escrita e História, a começar em Adão expulso do Jardim e seguindo por aí abaixo, passando por todos os presidentes até Herbert Hoover, e avançando especulativamente até à Segunda Vinda de Cristo e ao Dia do Juízo Final. Este tio era profeta e talvez devêssemos olhar para os próprios historiadores como profetas. Fazem profecias sobre o que se passou. O tio profeta não apenas profetizou acerca do futuro – ou do fim do futuro, para ser mais preciso – como profetizou sobre o passado, a história de Adão e a expulsão do paraíso. Dir-se-á que os historiadores, não têm no seu bornal metodológico a profecia, que se atêm aos factos e isso é diferente das especulações sobre o início da humanidade e o fim da mesma humanidade. Ora, o grande problema é que os factos são mudos, não dizem nada, não usam língua gestual ou comunicam através de sinais de fumo ou de maquinetas que usam o código de Morse. Perante a mudez factual, os historiadores, dissimuladamente, sacam, de um compartimento escondido no dito bornal, a profecia e, movidos pelo Espírito Santo, põe-se a profetizar sobre o passado. Isto coloca um problema teológico que me apresto, para ajuda da humanidade, a resolver. O problema é o seguinte: como entender que diversos historiadores, perante os mesmos factos mudos e movidos pelo mesmo Espírito Santo, profetizam coisas diferentes? A explicação é mais simples do que pode parecer. Os diversos historiadores têm graus diferentes acuidade auditiva ou, para ser mais claro, diferentes níveis de surdez. O que é dito é o mesmo a todos, mas cada um ouve o que pode. Este é o meu contributo, sem preço, para deslindar um tomentoso problema teológico e, também, epistemológico. Sobre factos mudos, profetizam historiadores surdos.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O perigo do ócio

Por vezes, em momentos de ócio mais hiperbólicos, dou comigo a meditar um pensamento trivial sobre a possibilidade de o universo, depois de uma época de contínua expansão, ter um instante de suspensão e, de seguida, começar a contrair-se. O momento de suspensão, um momento desmesurado, se comparado com a escala da vida humana, seria destituído de tempo. Melhor, nele haveria o presente, mas não passado ou futuro. Tudo se suspendia, inclusive o movimento e a duração. Um acidente, porém, recolocava o universo em movimento, mas agora de contracção. Invertia-se o movimento que levara o universo ali, e este fazia o percurso em sentido contrário. Aqui, além do presente, sempre pontual como agora, haveria também passado e futuro, mas em sentido contrário. A certa altura, o universo chegava à configuração em que havia Terra e vida nesta, mas como se vinha do futuro para o passado, os seres vivos vinham da morte. Quem, na época de expansão, tivesse morrido velho, agora começava como velho e ia-se tornando cada vez mais novo, até desaparecer no útero materno, ou, melhor, até ao momento em que a cópula que lhe dera origem acontecia, começando do fim para o princípio com o intuito do óvulo fecundado expelir o espermatozóide fecundador, e este, juntamente com os irmãos falhados, regressar ao sítio de onde tinha partido, embora não seja fácil de conceber como a devolução à origem se daria. Talvez o órgão reprodutivo masculino possuísse, em vez de uma força para a emissão de material genético, uma força de sucção desse material, para o fazer desaparecer. Com tudo isto, se prova que a ociosidade é a mãe de todos os males e que convém manter as mentes sempre ocupadas para que não pensem em coisas destituídas de sentido.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Um deus caprichoso

Por aqui, o tempo é particularmente volúvel. Altera-se segundo apetites de um deus desconhecido. Se observarmos de perto os deuses gregos e latinos, percebemos, de imediato, que são caprichosos e, também nisso, imitam os homens. Teve de vir de outro lado a ideia de um Deus único, e nessa unicidade esvaiu-se o capricho, a volubilidade, mas também a forma humana. Nesse esvair-se de tudo o que era humano, os seus desígnios tornaram-se insondáveis. O que será mais terrível para o animal humano, esse animal que sabe que vai morrer e tem a capacidade de pensar na imortalidade, a volubilidade dos deuses ou a insondabilidade de Deus? Imagino que tenha sido este dilema que levou Nietzsche, cuja formação não era filosofia, a anunciar que Deus está morto. Eis um modo fácil de se livrar de um dilema. Fácil e rendoso, pois os europeus adoptaram como verdadeira a proclamação daquele que, após algumas obras tonitruantes, enlouqueceu, entrando assim pela morte dentro. A morte de Deus trouxe, porém, um novo politeísmo, tão volúvel quanto o antigo. Os novos deuses são também caprichosos, mas não sabemos quem são. Eu não sei qual é aquele que aqui rege o clima, mas tem uma notável inclinação para a súbita variabilidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Um país estrangeiro

Abro um daqueles livros de autores portugueses quase desconhecidos que vou comprando em alfarrabistas. Não para os ler, alguns nem tentarei. Procuro, por vezes, alguma voz desconhecida que se manifeste nas páginas do livro, uma voz que não seja a do autor. Hoje, ao desfolhar, no original, um romance de 1911, de Virgínia de Castro e Almeida, deparei-me com inúmeras anotações a lápis. O romance denomina-se Fé. O anotador ou anotadora do livro, a certa altura, indigna-se: Saúde por salut é um galicismo intolerável. A auctora deixou-se arrastar pela saude [foi assim que a autora grafou a palavra] e fraternidade da Republica. Noutro ponto, perante uma visão imanente e não transcendente do divino, anota: Isto é o velho e sediço pantheismo. Quando uma personagem proclama que Todo o bom catholico deve combater pelo triumpho da sua Egreja!, anota-se: Tambem me parece. Na página 220, surge um extraordinário comentário: Esta scena de amor entre os dois veladores do cadaver do pobre Baby é repelente. Bernardo manifesta-se o (ilegível) sem escrupulos que quer roubar a mulher ao marido e aos filhos para se satisfazer, sem respeitar a camara mortuaria de um anjinho. Gabriella é uma qualquer (ilegível) ridícula do sentimento, a resvalar para cabra. A auctora que compara um beijo lascivo a uma primeira comunhão, ou nunca beijou, ou nunca comungou. Perante a afirmação que considera o cristianismo a religião de inercia ensinando a resignação e a atonia, empurrando a humanidade para o aniquilamento, a reacção é peremptória: Isto tudo já é velho e muito batido e já foi tudo rebatido. Tudo isto é palha, não presta para nada. D’aqui a pouco surge o super homem de Nietzsche. A partir deste ponto, nas últimas cem páginas, não há qualquer anotação, talvez o super-homem não tenha surgido. Apenas, abaixo da data Julho de 1911, que assinala o fim da escrita do romance, surge uma outra anotada a lápis: 13-12-1911. Na capa do livro, porém, encontra-se a sentença final, ainda a lápis: Não presta. Talvez existissem poucos leitores em 1911, o que não será completamente verdade, mas não os podemos acusar de serem passivos. Recorra-se à frase batida de L. P. Hartley: O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Narradores cruéis

Sou um narrador pacífico e incapaz de uma narrativa que me eleve. Por vezes, cultivo o riso sobre mim próprio, mas talvez isso seja um truque para esconder a minha impotência narrativa. Há narradores cruéis. Usam as palavras como estiletes. Por exemplo, aquele que narra Os criados estão contratados sob os auspícios da segurança social e perderam muitas das suas fraquezas que Swift tão bem descreveu. São funcionários e não lacaios queixosos e cheios de manhas. Raramente são vistos senão à hora das refeições e ninguém pode dizer que é possível pedir os seus favores nas horas tuteladas pelo sindicato hoteleiro ou coisa assim. Mas têm o mesmo olhar vingativo e sonolento que avalia melhor o hóspede do que um despachante da alfândega faria. Onde está a crueldade? Na anulação do valor do trânsito do mundo que levou certas pessoas de lacaios queixosos e cheios de manhas ao estatuto de funcionário, protegido pela segurança social e pelo sindicato hoteleiro. De que vale ter mudado de estatuto, de deixar de ser lacaio e passar a ser funcionário, se se tem o mesmo olhar vingativo e sonolento? Este é um narrador cruel. Quando o Conde, uma das três personagens que animam os entretiens das Soirées de Saint-Pétersbourg, fala dessa figura tenebrosa do Carrasco, procura nela a grandeza própria, apesar da distância que todos os homens, perante ela, sentem dever manter. Quem leu a autora, percebe de imediato que este narrador cruel só poderia ter sido criado por Agustina Bessa-Luís. Talvez o narrador de Agustina lamente o fim dos lacaios e a magnífica escrita da autora sirva apenas como um requiem de um mundo que acabou, como acabou uma certa casa de família transformada em hotel privado, isto é, em turismo de habitação. Os mundos perdem-se no tempo e não há narrativa que os salve.

domingo, 4 de agosto de 2024

Do reino e do império

Se se ouvir o título A Monarquia do Medo pensa-se de imediato numa série da Netflix, talvez ligada ao tráfico de droga e ao ajuste de contas entre cartéis ou entre a polícia e os traficantes. Contudo, é um belíssimo título de um livro de filosofia, de Martha C. Nussbaum. O título, na verdade, é The Monarchy of Fear – A Philosopher Looks at Our Political Crisis. O livro trata de um assunto que me está vedado, pois eu sou um narrador sem opinião, coisa imposta por um autor despótico. Em vez de A Monarquia do Medo, caso me tivessem perguntado, proporia O Império do Medo. Teria outra ressonância. Numa monarquia do medo, o medo reino sobre os súbditos, mas nem todos os reinos são reinos do medo. Podem ser reinos constitucionais. Num império do medo, aquilo que se escuta é o domínio absoluto do medo sobre aqueles que lhe estão sujeitos. Num império há sempre qualquer coisa de obsessivo, como o cineasta japonês Nagisa Oshima mostrou em Império dos Sentidos, embora seja em Império da Paixão que Oshima torna mais clara a ligação entre império e medo, onde o medo se torna senhor daqueles que lhe vão ficando sujeitos.

sábado, 3 de agosto de 2024

Histórias

O livro foi impresso em 1971, na Sociedade Astória, Ldª, de Lisboa. No talão, que o livreiro devia ter devolvido ao editor, mas que não o fez, constava o preço de 65$00. Contudo, rabiscado a lápis, no canto superior direito da primeira página, estava uma outra informação, que reproduzo: 65/81#50. Imagino que o livreiro terá, com o passar do tempo, adequado o valor de venda do livro. Quando e onde o livro foi vendido não sei. Há, contudo, uma informação na quinta página que mostra que o livro mudou de dono em 1975. Escrita a esferográfica preta está a seguinte informação: Moçâmedes e, debaixo da localidade, a data 4/11/75. Abaixo desta informação encontram-se dois traços grossos feitos a marcador preto que ocultam um nome, imagino que do proprietário original. Uma história possível é que o livro tenha sido comprado em Portugal e o proprietário o tenha levado para Angola, onde o terá cedido a um novo proprietário no dia 4 de Novembro de 1975. Este voltou a Portugal e trouxe com ele o livro. Os herdeiros venderam-no a um alfarrabista, onde o comprei. Contudo, a história pode ser outra. O livro foi vendido em Moçâmedes por 81$50. O proprietário trouxe-o para Portugal e quando ele ou os herdeiros decidiram vendê-lo a um alfarrabista ocultaram o nome, mas deixaram à vista o local e a data de compra. O livro é uma obra de Alejo Carpentier, com o título de O Século das Luzes. Foi traduzido por Alfredo Margarido para as Publicações Europa-América. Serão poucos os que hoje sabem o que foram as Publicações Europa-América e ainda menos quem foi Alfredo Margarido, um intelectual influente naquele tempo. A obra original foi publicada em 1962, o que significa que demorou nove anos a chegar a Portugal. Naquele tempo, tudo era mais vagaroso.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Apetrechadas de asas

No canto XI, da Odisseia, Homero escreveu: Reconheceu-me a alma de Aquiles de pés velozes, neto de Éaco, / e chorando dirigiu-me palavras apetrechadas de asas. O segundo verso mostra a amargura de Ulisses com a sua sorte. Chora, mas mesmo assim as suas palavras são apetrechadas de asas. Elas não apenas voam, como são elevadas. As palavras voam de uma boca que as proferes para uns ouvidos que as escutam, mas a dimensão volátil talvez seja a menos importante na expressão metafórica usada, pois isso é o que acontece em qualquer situação de comunicação linguística. Ora o que distingue as grandes palavras das pequenas, é a capacidade de umas se elevarem, enquanto as outras voam baixo, um voo raso, perto do chão. Há nos gregos um culto desmedido das grandes palavras, dos discursos elevados, dessa capacidade de as palavras se elevarem, ao sair da boca de quem as profere, e dizerem um mundo que só do alto se observa: Filho de Laertes, criado por Zeus, Odisseu de mil ardis, / homem duro! Que coisa ainda maior irás congeminar? / Como ousaste descer até ao Hades, onde moram os mortos /sem entendimento, fantasmas de mortais estafados? A citação parece contrariar esta ideia de as palavras se elevarem. Ora, Aquiles fala dos mortos que não possuem entendimento, fantasmas de mortais estafados. Ao fazê-lo, ele que está morto e habita o Hades, exceptua-se dessa condição e pelas suas palavras mostra possuir entendimento. São as suas palavras que, ao elevarem-se, o raptam da condição da mortalidade dos homens comuns. Não é a velocidade dos seus pés ou a coragem no campo de batalha que o elevam, são as palavras que, ao erguerem-se e voarem para Ulisses, o erguem acima da condição mortal de todos os mortos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Aleijados

Em Sombra, o último livro de poemas de Maria Andresen, há dois poemas com referências ao último filme de Ingmar Bergman, Saraband. Em ambos surge Henrik, filho de Johan, mas não é referido o conflito intenso entre pai e filho. Há um momento, após uma tentativa falhada de suicídio de Henrik, em que este procura o pai e este diz-lhe que nem aquilo (o suicídio) foi capaz de realizar. Maria Andresen prefere a constatação de Henrik … sinto uma dor / constante, / sou um aleijado. O filme centra-se na relação de Johan (Erland Josephon) com Marianne (Liv Ullmann). Discute-se se Saraband é ou não uma continuação de Cenas da Vida Conjugal. Bergman defendeu que não. Ele é o autor, mas, como qualquer autor, a sua interpretação da obra vale tanto quanto qualquer outra, pois aquilo que está em causa não são as intenções que presidiram ao filme, mas o próprio filme. Voltando atrás, se o filme se centra na relação, após 30 anos de separação, entre Johan e Marianne, a tensão entre pai e filho é obsidiante. Que ilusões um pai alimentou acerca de um filho para que tamanho ódio nasce dentro dele? Talvez o pai fosse um aleijado e procurasse no filho o ser saudável que não era. Por aqui, está um começo de Agosto nublado e fresco. Julho entrou na vasta terra do nada. Fê-lo em silêncio, e o silêncio é toda a dignidade que resta a quem abandona a existência para entrar ali onde nada é ou sequer parece ser.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Preocupação

Estou quase preocupado comigo. Imagino que seja um efeito estival, mas dei por mim a comprar livros de ficção científica. Isaac Azimov, Robert Heinlein, Philip Dick, Ursula Le Guin, Frank Herbert, Ray Bradbury. O ano passado, por esta altura, comprei e li uma série de aventuras de Arsène Lupin, da autoria de Maurice Leblanc. Passado o tempo quente, e ainda durante ele, voltei à literatura não adjectivada e a outras leituras mais sérias. A minha preocupação centra-se na interpretação destas inclinações. Será que estou a regredir e não tardará estarei a ler a Enid Blyton? Depois, serão as aventuras, em banda desenhada, de Texas Jack e do Major Alvega, para descer, de seguida, às adaptações infantis das aventuras do Pinóquio? É evidente que, para me proteger de mim mesmo, tenho na secretária, bem à minha vista, a Teoría de la Constitución, de Carl Schmitt, e os Discursos à Nação Alemã, de Johann Gottlieb Fichte. Mais de um século separam estas obras, mas não será inútil para compreender muito do que se passa neste mundo – e talvez fora dele, quem sabe – dar alguma atenção aos autores e a estas obras, em particular. Se, por vezes, a coisa se mostrar um pouco árida, abre-se um romance de ficção científica, deixa-se este mundo, e entra-se noutros mundos possíveis, piores do que este, por certo, mas que nos aliviam do peso que este tem em si.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Uma doença nos olhos

Uma senhora milanesa escrevia – por certo, desesperada – a 28 de Setembro de 1938, numa carta a Benito Mussolini, o seguinte: É impossível que uma mente divina, sobrenatural, como a vossa não consiga encontrar uma solução pacífica para o desentendimento. A segunda grande guerra estava à porta e a aflição explica a hipérbole na consideração da mente do Duce. Há, ainda uma outra coisa. A pobre senhora não percebia que quando alguém, num lugar de poder, julga que possui uma mente divina, sobrenatural, então os homens podem esperar o pior. E o pior é a guerra. O homem comum que reconhece as suas limitações, quando está no poder é prudente. Contudo, outro homem comum, mas sem sentido das suas limitações, perde a prudência e alimentado pela húbris arrasta os outros para o inferno. São inúmeras as cartas de mulheres que, naquele Setembro de 1938, incensando o ditador italiano, pedem com ardor maternal que ele salve o país da guerra. Elas não percebiam que estavam a pedir ao diabo para acabar com o inferno. Isso acontece não poucas vezes na vida dos homens e não apenas em assuntos ligados ao poder. Quantas vezes as vítimas vêem no algoz um salvador? Que doença distorcerá o olhar dos seres humanos para que tão mal saibam julgar aquilo com que lidam? E isto não é uma questão de educação, de acréscimo no ciclo de estudos ou de colecção de diplomas. Talvez seja um problema de oftalmologia, uma doença nos olhos. À falta de melhor, esta parece uma boa explicação.