quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Enganos

Enganei-me na hora aprazada para o meu encontro com a aparência e a realidade. Cheguei à encruzilhada demasiado cedo e tive de esperar longamente por elas. Ao voltar para casa, a Antena 2 transmitia um programa sobre Hildegard von Bingen. Morreu há 840 anos, precisamente no dia 17 de Setembro. O locutor lembrou-se de citar um estudo de Oliver Sacks, o autor Do homem que confundiu a mulher com um chapéu, sobre as visões da freira medieval. Seriam causadas pela enxaqueca. Ficamos todos mais descansados, ainda bem. Saio do carro, subo meia dúzia de degraus e abro a caixa do correio. Uma carta mas não para mim; dois panfletos de partidos políticos, de sinal contrário, repousam um sobre o outro em terno amplexo amoroso. Comovo-me e esqueço-me de os deitar no caixote do lixo. Transporto-os com cuidado para casa não vão eles soltar-se e acusar-me de interferir na sua privacidade. Agora, oiço a música da freira que sofria de enxaquecas e deixo que o silêncio desça sobre mim. Toda a minha vida foi um longo casamento com as aparências. Que se me perdoe a poligamia.

Depois de acordar

Quando me levantei uma neblina cobria a manhã com uma promessa de frescura. Da janela, olhei-a com desconfiança e recolhi-me de imediato como quem foge do convívio de alguém que tem o ludíbrio por modo de vida. Depois de acordar, levo tempo a sintonizar-me com a luz do dia. Desloco-me em silêncio e mal olho para o que me envolve. Enraízo-me lentamente no estado de vigília para cumprir a agenda que um deus desavindo comigo me deu por destino. Ainda não me ocorreu o nome dos arbustos que florescem no parque da escola ao lado. Há dias que olho para eles e pergunto-me sempre pelo seu nome. Nos campos de jogos, adolescentes correm e gritam, libertam-se do excesso de adolescência que os devora. De súbito, o nome de hibisco vem-me à memória. Serão hibiscos o que daqui vejo. Despacha-te, digo-me. Numa encruzilhada tenho um encontro marcado com a aparência e a realidade. Não posso chegar tarde.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Exercícios de compensação

Um exercício de compensação. Estou a ouvir o Gurdjieff Ensemble porque na sexta-feira não posso estar na Gulbenkian para assistir ao seu concerto. A maior parte das coisas que fazemos são substituições daquelas que gostaríamos de fazer. Eu sei que vivo rodeado de heróis que só fazem aquilo que bem entendem, antevejo mesmo as suas estátuas a ornamentar as ruas do futuro. Como só tenho passado, estive a manhã empenhadíssimo a fazer coisas que tinha de fazer. É uma provação ficcional. Depois regressei, entrei lentamente em casa e sentei-me diante da televisão. As imagens passavam e eu passava com elas, sem saber do que tratavam, raptado pelo vazio que se abria em mim, um buraco negro pelo qual a vida entra sem que possa dali alguma vez sair. A música arménia flutua no ar e logo desce sobre mim. Como um Cristo cansado da morte, abro o túmulo e saio ao encontro de quem não me espera. Irrita-me a lentidão com que o word abre o thesaurus e desisto de alterar uma palavra que me está a irritar.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Um pendor para a repetição

A canícula continua incólume. Mal escrevo isto dou-me conta da aliteração e hesito. Talvez devesse escrever outra coisa, antes que alguém me diga para ir aliterar para outro lado. Há pessoas que têm tendência para me olhar de esguelha e eu compreendo-as. Depois de meses de sossego voltaram, ao espaço escolar aqui ao lado, os gritos agudos e os ruidosos risos da histeria. Mais à frente virá a música dos bailes dos anos setenta e as Oscofórias das eleições académicas. Submeto-me passivo e paciente, como um passageiro que num grande transatlântico viaja em terceira classe. É essa a minha glória, ir pela vida fora sentado em cadeiras de pau. Como disse ontem, tenho uma natureza anafórica e, acrescento hoje, um ser dado à aliteração e à assonância. Já hoje me repeti diversas vezes, embora com modulações de ritmo diferentes. No outro dia respondi a um interlocutor, queria puxar-me o pé para literatice, que os recursos estilísticos são apenas formas de vida, fazem parte de uma ascese existencial como os exercícios espirituais para aqueles que aspiram à glória dos altares. Olhou para mim e havia nele desalento e um democrático desprezo, com o seu olhar a insinuar a minha demência. Na realidade, até eu me canso de mim. Não compreendo por que razão o autor destas palavras me criou assim. Desconheço-lhe os motivos, se é que os tem, os desejos e até a biografia. Nunca tive engenho para narrador omnisciente.

domingo, 15 de setembro de 2019

Uma natureza anafórica

Como o calor não abranda tive de ir a uma superfície comercial dedicada à bricolage. A missão era comprar umas redes para colocar nas janelas e, tendo estas escancaradas para que o ar fresco tempere o desvario, evitar que moscas e melgas mais distraídas entrem impetuosas casa dentro. Ainda não me converti a um amor universal a todas as formas de vida. S. Francisco, decididamente, não é o meu santo padroeiro. Nada me inclina a amar o piolho, a mosca, a varejeira, a vespa, o percevejo, a barata e, acima de tudo, a melga. Aliás, entre mim e as melgas há uma relação tensa. Elas desejam-me como nada nem ninguém me há-de alguma vez desejar e sempre que têm oportunidade até o sangue me bebem. Eu não me faço rogado e mato-as. Só espero que não seja crime. A verdade é que não suporto o amor que elas me dedicam. No parque da escola que há aqui ao lado avisto uns arbustos em flor, um pontilhado rosa a fosforescer por dentro de nuvens de verde. Tento sintonizar os olhos, mas não consigo perceber do que se trata. O conhecimento da flora não é coisa que faça parte da minha carteira de conhecimentos. O domingo, depois do almoço tardio, enlanguesce sob nuvens esparsas, indecisas. Amanhã será outro dia, penso e de imediato me sinto pacificado com a minha inclinação para o lugar comum e a iteração. Num mundo em que toda a gente é inovadora e criativa, a mim coube-me a repetição como destino. Tenho uma natureza anafórica e isso explica tudo.

sábado, 14 de setembro de 2019

As magnas questões da humanidade

Hoje é sábado e não sei o que hei-de dizer de um dia assim. Se estivesse de férias iria comprar um jornal em papel e lê-lo numa esplanada. Não o estando, evito as esplanadas, as conversas que me assaltam e ferem o meu desconhecimento do mundo. Preciso do dia para meditar sobre os grandes problemas da humanidade. Mal acordei, assaltou-me um, e não dos mais pequenos. Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete? Já a exacta formulação da questão é um enigma. Como em tudo na vida, também aqui se formaram dois partidos, que se enfrentam com brios sectários, erguer de cruzes e figas para se protegerem do inimigo. Uns dizem que os gloriosos anjos dançam na cabeça de um alfinete, outros afirmam, enquanto murmuram anátemas, que o fazem na ponta de uma agulha. Sobre o lugar do baile, declaro-me agnóstico. Envolvo-me colérico na disputa teológica sobre se um corpo espiritual ocupa ou não espaço, mas logo me distraio e começo a pensar em anjos bailarinos, imaginando-os a dançar um Bolero, talvez um Tango, mesmo um Fandango, pois também os haverá no Ribatejo, daqueles que protegem forcados e toureiros e que, cheios de afición, hão-de gritar olés, enquanto, na cabeça de um alfinete ou na ponta de uma agulha, dançam um Paso Doble. Não sei de maior amor à humanidade do que pensar em anjos. Talvez um dia escreva sobre as potestades, os tronos e as dominações ou sobre a cláusula filioque, que nada tem a ver com anjos. Esmagam-me as magnas questões da humanidade.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A estupidez sem fim

Venho de uma sala cheia de gente. O pólen do calor pousava lentamente nas cabeças e descia pelos corpos ofegantes, cavando finos sulcos por onde o suor deslizava, pequenos córregos onde buliam restos de poalha. Havia quem se abanasse, quem suspirasse, enquanto o tempo, como uma rapariga grávida, inchava sem quietação. Quando Cronos, desinteressado da tortura, determinou o fim da função, saí. Disfarçado com a farda do silêncio, escapuli-me, procurando sombras e esconderijos fortuitos. Entrei no carro. Este, exposto ao sol como um recém-nascido abandonado na roda, ardia. Levou tempo a arrefecer. Cruzei a cidade como quem atravessa o Saara, sonhando com oásis ou com aqueles reinos do norte que limitaram drasticamente os devaneios de Hélio. Os olhos ardiam. Estão secos, disseram-me. Chegado a casa sentei-me a beber água. Não há água, porém, que me purifique da idiotice com que revesti a vida. Em cima da secretária dorme pacificado um livro. Não faço ideia da razão por que o comprei. Um impulso do momento, o mais certo. Tem por título O tempo em que a luz declina. Talvez a alusão ao declínio tenha desencadeado a compra. Recebo um recado e penso que vem aí tempestade. O vento baforeja o seu hálito quente, sob um céu macilento, terroso, arrastado por uma música envinagrada. Olho para a minha vida e começo a compreender aquelas procissões de flagelantes que assombraram o fim da Idade Média. Não, não era para atingirem o paraíso que se flagelavam, mas para se punir da sua infindável estupidez.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Gatos e malas vintage

Poderia dizer que o meu computador parece um gato. Isso, porém, não estaria de acordo com a realidade. É mais exacto afirmar: o meu computador é um gato. Dei-lhe um comando e ele, irritado e altivo, desatou a soprar ameaçador, com vontade de me trincar. Juro que lhe vi o dorso arqueado, o pêlo a eriçar-se-lhe e os dentes ostensivamente ameaçadores, numa boca de onde nascia um vendaval. Está tudo perdido, pensei sem saber o que fazer para acalmar a fera. Estava nesta indecisão quando ele decidiu calar-se, desarquear os costados e oferecer-se ronronante à actividade dos meus dedos. Respirei fundo, pois o ânimo dos gatos não se confunde com a subserviência canina. Salvo da indisposição da máquina, entro pelo domínio mirabolante da internet. Corro por ela como se fizesse uma maratona. A certa altura sou assaltado por um anúncio da TAP. Diz que vende sacos, a que dá o nome de malas vintage. Lembro-me de em adolescente ter uma que usava para transportar o equipamento de ginástica. Naquela altura eu não sabia que o saco era uma mala e ainda menos vintage. A verdade é que não devia sequer saber o que era vintage, pois sempre fui muito serôdio em tudo na vida. Agora que sei o que é vintage falo de coisas que não interessam a ninguém e confundo gatos com máquinas. A perfeição não é, por certo, o meu destino.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Sinfonia concertante

Toc-toc-toc. Toc-toc-toc. Há nas mãos do calceteiro que compõe a calçada junto ao parque infantil um ritmo musical que lhe orienta a técnica. Um percussionista dedicado. Sabe que a pedra se acomoda apenas com três batidas compassadas e assim vai cobrindo a terra nua, vestindo-a com a brancura do calcário. A batida compõe-se com os outros sons que vêm da rua. Uma criança arrasta um carro que arranha o cimento, as vozes murmuram alto e, mais que tudo isto, o som do silêncio que se desprende da serra. Estes sons chegam-me pelas janelas abertas e perfuram-me o sossego. Diante de mim, empilham-se documentos para ler, dados para analisar, mas nada disto é musical, nada disto tem o poder de compor uma sinfonia concertante como aquela que o acaso dos encontros compõe ali em baixo, com solistas tão inusitados. Uma voz de homem insiste sobre uma qualquer verdade que só ele conhece e as mulheres da esplanada compõem trinados cheios de segundas intenções e pequenas malícias para despertarem a curiosidade entre a assistência. Olho para o céu e penso que o sol terá perdido um pouco do seu vigor. As ilusões nunca deixam de se pagar caro, ocorre-me de imediato.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estratégias editoriais

Talvez seja mais interessante editar livros do que ter leitores que os leiam. Ainda Agosto não tinha acabado enviei um email a uma editora dizendo estar interessado em comprar quatro livros por ela publicados e que não se encontram nas livrarias. É uma editora pequena mas com um catálogo interessante e um design gráfico também merecedor de atenção. Até hoje não recebi qualquer resposta. Talvez ninguém abra os emails, foi o que pensei. Depois ocorreu-me que alguém o tenha lido e que, olhando para o nome do possível comprador, achou por bem que eu não mereceria ter aqueles livros na minha biblioteca pessoal. Resigno-me a esta sabedoria editorial. Se eu fosse editor também só venderia livros a pessoas que tivessem um nome merecedor de os comprar. Seguindo o ensinamento groucho marxiano nem a mim mesmo venderia livros por mim publicados, mesmo que eu estivesse disposto a pagar o dobro do seu valor de mercado, o que não era o caso. Há que manter elevado o nível e evitar que certas palavras caiam sob os olhos profanos de um leitor desconhecido.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Demasiado tarde

A tarde nublou-se. Presumo que se trate apenas de uma pequena trégua na grande guerra das estações. O Verão tem destes ardis e como um camaleão lança mão do mimetismo, disfarçando-se com vestes de Outono para, sem este dar por isso, entrar-lhe em casa, ocupar-lhe o território e daí lançar os seus raides mortais. Mais do que um crepúsculo dos ídolos, estamos perante um crepúsculo das estações, afirmo com a confiança de quem cultiva dogmas. Se vivesse nos dias de hoje, faltaria a Vivaldi matéria para os seus concertos mais célebres, acrescento. Há dias que não oiço os pássaros meus vizinhos. É possível que, descontentes com a vizinhança, tenham mudado de casa. Como os compreendo. Resta-me agora o arrulhar dos pombos, o matraquear das persianas embaladas pelo vento, algum latido disperso e o infinito cacarejar da humanidade que se junta numa esplanada aqui em baixo ou chama pela filharada no parque infantil. Leio uns documentos a que não posso furtar-me e penso o que sobre eles hei-de escrever. Sensato seria não escrever nada, mais sensato ainda era não saber escrever. O cume da sabedoria teria sido Tamuz ter silenciado Thoth para sempre. Agora, porém, é demasiado tarde. Aliás, é sempre demasiado tarde.

sábado, 7 de setembro de 2019

Coisas de sábado

O sábado goteja gingão pelas paredes de caliça do dia. Cobre-o não a seda ou a cambraia, mas o veludo com que sufoca aqueles que entraram para dentro da sua casa. Estou sentado à sua mesa e perscruto-lhe os humores. A minha secretária está um caos, digo-lhe. Livros empilhados, uma garrafa de água vazia, duas esferográficas à espera de irem para o lixo, uma pilha para o comando do carro, cartões que não couberam na carteira oferecida pelas minhas netas, uma conta por pagar, moedas esquecidas e os cabos para ligar a máquina fotográfica ao computador. Detesto esta confusão, mas nos últimos dias tenho-a cultivado como uma espécie de compensação para o que vem aí. Talvez amanhã ou na segunda, tudo entrará na ordem. Os livros encontrarão o lugar nas estantes, as moedas recolher-se-ão esbaforidas na carteira e todas as coisas descobrirão no remanso dos respectivos lares a paz por que anseiam. Tudo isto é desolador, mas não mais desolador que o resto, mesmo aquelas emoções extremas com que nos iludimos e julgamos darem sentido ao que não tem sentido. A manhã já acabou e ainda não pus um pé fora de casa nem espiei a avenida onde, adivinho-o, gente ocasional desfila na passerelle ensolarada, com recortes de sombras que descem devagar dos ramos das árvores públicas, com as quais o município disfarça o deserto em que tudo isto se está a transformar.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Enlouquecer

As pessoas enlouquecem devagar, penso ao ver um grupo de mulheres sentadas à mesa do canto de um café cujo nome prefiro ocultar. De cabelos eriçados, zambras, o rosto cavado por rugas que nada disfarçará, fazem-se fotografar, em abandono estrepitoso, por fotógrafo de ocasião, um conhecido de há muito. Ele ainda não sabe que elas perderam a réstia de siso que as fazia, noutros tempos, calar tormentos, as dores que o ócio faz nascer em carnes secas e corações desocupados. Os homens enlouquecem de outra maneira, digo para mim mesmo. Começam a caminhar cada vez mais depressa para dentro do silêncio, até emudecerem. Então, com olhos mortiços e meditabundos, lançam olhares de suspeição para um ponto que só eles vêem. Se alguém passa por eles e os cumprimenta, nem dão por isso, tão presos à sua loucura e aos mundos que só ela ilumina. Fotografadas, as mulheres da mesa do canto entregam-se, em alvoroto, a risadas entumecidas pelo desvairo, presas aos vestidos cambados que nos protegem dos seus corpos macerados pelo tempo. A porta abre-se e entra uma mulher ainda bem longe da loucura, traz com ela uma criança de uns dois anos a quem chama Amélia, Amélia. Faz-se silêncio no café para que o nome da criança ressoe dentro da consciência dos clientes. E ele ecoa límpido, fazendo replicar as sílabas no desfiladeiro da boca da mãe. Findo o eco onomástico, o murmúrio do lugar retoma a sua rota entrecortado pelas gargalhadas de quem já nada tem a perder. O telemóvel avisa-me. Uma conhecida marca de GPS tem os novos mapas prontos. Um sinal do destino. Levanto-me e saio. Ao cruzar a porta, oiço Amélia, Amélia, mas isso já pertence a outro lugar, e não àquele que me espera e onde me preparo para enlouquecer. Há pouco ouvi a sirene dos bombeiros. Deve haver fogo por perto.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A casa do tempo

Para ir de casa ao lugar que me permite enfrentar os decretos da necessidade tenho de atravessar a cidade de lés-a-lés. Serve-me a travessia para exercícios de vigilância. Espreito aqui, lanço uma espiadela ali, faço-o à velocidade modorrenta com que um carro pode andar no espaço urbano. Tento descobrir-lhe o ânimo, compreender-lhe o espírito, tudo isso a partir de um corpo difuso, feito de prédios, rotundas, avenidas, castanheiros, quintais com limoeiros e buganvílias, pessoas que não sem bravura enfrentam o martelar furioso do sol. Não tenho alma de bairrista, penso quando passo perto do castelo. Falta-me o pathos que anima aqueles que amam o lugar sobre todas as coisas. Não pertenço ao espaço, nenhum lugar é o meu lugar. A minha casa é o tempo, sussurro para me distrair. É uma casa alugada a termo certo, embora não o conheça. Há alturas em que me sento perto da janela e olho o horizonte, mas o que vejo é a areia da ampulheta a deslizar pela fina garganta de uma para outra âmbula. Fascina-me essa queda contínua. Talvez por nela se esconder o mistério da minha morte, que será a única coisa que neste lugar assombrado não tem mistério.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A sombra do coração

Um piar mecânico insinua, na sua intermitência, uma máquina em manobra. Olho pela janela, mas não consigo descobrir onde se encontra. Pára, descansa do cântico uniforme, repetitivo, monótono, para, passados instantes, retomar a cadência invariável com que, ao avisar da sua presença, me entra pelos ouvidos. No parque infantil do espaço público contíguo, um baloiço, ao ir e vir, grasna compassadamente, como uma ave cujos bicos rangessem. Os carros ronronam, são gatos semiadormecidos, apenas acordados pelo silvar das sirenes que, cavalgando ambulâncias, abrem caminho em direcção ao hospital. Esta música vacilante e rude acentua uma sombra que me nasceu dentro do coração e inquinou a vista, dando-me uma paisagem turva, desfocada. Os olhos com que vemos o mundo, ocorreu-me, não estão ligados ao cérebro mas ao coração. Perdem a precisão do contorno mas ganham rigor na compreensão. Um novo ruído chega-me aos ouvidos, parece o de uma serra a abrir caminho, não sem dificuldade, por uma planície de ferro. Imagino o pioneiro a enfrentar a dureza da campina. A coruja mecânica retoma a melopeia, agora mais afastada. Os raios solares, ao embater nos prédios, também eles rangem. São cães a rosnar rentes ao corpo enfraquecido pela sombra do coração.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

A vida na província

Há pouco o calor caía em pingos grossos sobre as ruas. Há que pagar a conta de um arranjo doméstico e por isso não tenho outro remédio senão meter-me sob a intempérie bonançosa que cobre o rosto da cidade com a máscara do inferno. Entro na sede da empresa prestadora do serviço, sou recebido por uma temperatura decente e uma rapariga afável e diligente. Pago, dou o número fiscal e o email para receber, por essa via, a factura digital. Admiro o zelo e a ausência da pergunta se pretendo contribuinte. Saio, pego no carro e sou obrigado a passar pelo mercado. Hoje é terça-feira, a zona está cheia de gente e de viaturas que deslizam lentamente. Fico numa passadeira largos minutos, enquanto à minha frente flutuam os peões, com sacos na mão. Vejo pessoas conhecidas que nunca imaginei no mercado. Um dirigente político e um rapaz do meu tempo, bon-vivant e femeeiro contumaz, lá vão eles absortos e domésticos, prestáveis, reluzentes de suor, ajoujados às compras. Contribuem com denodo para a harmonia doméstica. Carros apitam, mas os peões vão na passadeira sem pressa, a pensar se terão esquecido alguma coisa ou onde deixaram o automóvel. Uma mulher jovem pára e acende um cigarro. O fumo evola-se entre os lábios e ela desaparece. Aproveito uma aberta e esgueiro-me. Tenho os vidros abertos e sinto o calor entrar para dentro do carro. A viagem será curta e evito o ar condicionado. Chego à avenida marginal e a exuberância que havia no mercado desapareceu. A garrulice que entretinha as gentes perdeu-se e a monotonia da província cresce para dentro de mim, como um punhal que procura no coração o alvo que o espera. O calor sangra pelas paredes.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A disciplina do exagero

Há dias em que acordamos rodeados de sombras. A janela com uma discreta abertura deixa passar um fiapo de luz que embate nos objectos para os transformar em fantasmas, aqueles mesmos que saíram dos nossos sonhos. Um acto falhado deixar assim a janela, pensei. Fazemos tudo para evitar as trevas mais negras, temerosos que assaltem o coração. Somos tripulantes de um navio de cabotagem, daqueles que fazem navegação costeira. As sombras são as águas que nos indicam que a luz está já ali. Confortados por essa certeza, voltamo-nos na cama, para que um sobejo de sonolência ainda permita um ou outro devaneio. Depois, levantamo-nos e quando nos confrontamos com o espelho fazemos uma careta, para disfarçar aquilo que o aleivoso teima em mostrar. Submetemo-nos então à água lustral para nos redimirmos da noite e nos purificarmos do lixo que vive no mais fundo de nós. Ao pensar tudo isto, entro pelo dia e lembro-me de um verso: Deixai toda a esperança, vós que entrais! Rio-me da minha propensão para a hipérbole, mas o que seria de todos nós sem a dura disciplina do exagero?

domingo, 1 de setembro de 2019

Setembro chegou

Gostava de saber lidar com o mês de Setembro, mas foi uma das muitas coisas que nunca consegui aprender. É um mês astucioso e esquivo. Quando se aproxima, o corpo macerado pelas penitências de Julho e Agosto deixa-se iludir pelo declinar dos dias e pensa-se liberto do calvário do Verão. Puro engano. Só agora a época estival começa. Não devia pensar assim deste mês, até porque lhe pertenço de corpo e alma, embora seja daquelas pertenças que não resultam da eleição mas do curso natural das coisas. Fui fazer uma visita familiar antes que chegasse a hora do almoço. A cidade suava solidão por poros mal abertos. Sempre que a atravesso sinto uma sensação depressiva. As ruas vazias, o sol violento sobre o casario, o alcatrão a fumegar. Por vezes, sob uma chapada coberta de sombra, um cão estira-se dolente, incapaz de se erguer, símbolo do abandono que corrói os alicerces que sustentam por aqui a vida. Ao almoço, pus uma nódoa na camisa. Consta que é a minha única especialidade. É a prova de que entre mim e a mecânica do mundo há um desacerto inultrapassável. Se fosse capaz inventava uma língua onde pudesse dizer como a realidade me é estranha, mas nem para isso sou capacitado. Acho que vou dormir uma sesta, como se fosse um verdadeiro castelhano.

sábado, 31 de agosto de 2019

Prisões e previsões

Ontem houve por aqui um pequeno sarrabulho entre claques de futebol, cujos membros, num acto de exemplar cidadania, decidiram prestar-se ao treino da polícia de intervenção. Esta não foi ingrata e não se fez rogada. Distribuiu umas bastonadas para desenjoar da falta de actividade, algemou uns tantos figurantes e deve tê-los levado para o conforto de uma esquadra, para lhes fazer um casting para uma telenovela. Uma animação. Estas iniciativas são sempre de louvar pois têm objectivos pedagógicos. Servem para mostrar que afinal o Estado tem autoridade e que ainda não estamos com vontade de nos divertirmos numa guerra de todos contra todos, mesmo que seja apenas à pedrada. Hoje a avenida estava serena, arvorava até um ar de inocência, mas as avenidas são assim, umas dissimuladas, que logo escondem a má vida em que andaram. Agosto vai terminar pacato e paroquial, como convém na província e me convém a mim, ao mais provinciano dos provincianos. Fui consultar a previsão para os próximos dez dias e Setembro chega envolto numa ferocidade inominável. Promete subir aos quarenta graus. Ainda tentei argumentar, mas S. Pedro respondeu-me torto e de má cara. Se achas que quarenta é muito, então imagina lá a temperatura que está no Inferno. Perante um argumento destes, calei-me. Ele sempre foi o primeiro Papa, e um Papa como se sabe é infalível. Portanto, se nestes dias enlouquecer, saibam que o culpado é o santo que regula o mercado das temperaturas. Os supervisores são todos assim.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Do tamanho de ervilhas

Sou informado que ondas cerebrais são detectadas em cérebros de tamanho de ervilhas cultivados em laboratório. Tamanho de ervilhas, afinal ainda posso ter esperança. Talvez ainda consigam descobrir no meu cérebro alguma actividade. Eu bem tento animá-lo. Faço-lhe respiração boca-a-boca, incentivo-o, chego a prometer-lhe que, caso se ponha a trabalhar, o hei-de levar à Disneylândia. Ele, porém, não se comove, esquece-se de emitir as tais ondas que me raptariam ao estupor, à estupidez e, se não for pedir muito, à estultícia. A sexta-feira chegou marejada de dolência, que escorre pelos poros do dia. Ainda não é uma daquelas sextas-feiras festivas que me rouba ao pesado tributo que há que pagar às ninfas da necessidade. Escrito isto, sou tomado por uma angustiante dúvida. Serão ninfas ou sereias? Talvez sejam sereias. As necessidades têm a sua melopeia inconfundível que, se não lhe fecharmos os ouvidos, se apodera de nós, para que nos devorem em festa e sem piedade. Sou um asceta falhado, um monge sem mosteiro, penso enquanto oiço o rumor dos carros na rua. Valeu-me um sisudo livro que me recordou o nome do herói da série americana Tudo em Família. Archie Bunker, o qual também possuía um cérebro destituído de ondas cerebrais. É nestas coisas que nos sentimos pertencer a uma fraternidade, a qual não é tão pequena quanto isso. Para onde quer que nos voltemos, deparamos com um Archie Bunker, até nos mais insuspeitados postos de comando deste mundo. Como eu dizia, ainda há esperança para mim.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Dias com má estrela

Há dias que nascem marcados por uma má estrela, isto a crer na influência dos astros sobre as coisas que acontecem. O abastecimento de água à cidade foi suspenso por umas horas. A electricidade recusa-se, não sem veemência, em chegar a uma série de tomadas aqui em casa, enquanto flui despreocupada e sonolenta noutras. Um dos estores avariou-se, negando-se a subir e a descer. Pior que tudo, porém, é o zelo roncante com que o funcionário de uma empresa de jardinagem teima em cortar a relva que decora os espaços públicos entre prédios. Tenho coisas para fazer que dispensam a presença do vruuuum laminador, mas não me parece que tão cedo o jardineiro vá jardinar para outras paragens. Enquanto a relva é degolada ao som de um rondó mecânico, desfolho os livros que agora me chegaram. Num deles leio “também os raciocínios estritamente circulares são válidos, ainda que não sejam cogentes”. Apesar da falta de cogência, fico aliviado, eu que vivo entre rotundas e tenho uma propensão indisfarçável para a circularidade. De raciocínio, note-se. No outro livro, logo salta à vista a frase “Dentro de si o músculo do coração aperta-se, enrola e malha na parede do peito”. A máquina calou-se, mas temo que seja apenas um truque para me levar a crer na perfeição do mundo. Em silêncio percorro o meu exército de raciocínios circulares. Vejo-os perfilados, temerosos, de coração apertado a bater sem compasso, à espera das ordens de um sargento enlouquecido. O ruído voltou, um pouco mais longe. Regresso a um dos livros e recebo a notícia, aliás destituída de novidade, de que há um número infinito de verdades lógicas. Não sei se hei-de exultar ou não. Há dias em que o infinito me assusta como se fosse um cão raivoso que me persegue para aplacar na minha carne o desespero da sua raiva. Estou cansado e manhã só vai a meio.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Maldita realidade

Regresso lentamente à realidade. É um exercício penoso. Descobri que os dias de afastamento me trouxeram mais dois quilos. Chamei embusteira à balança, asseverei-lhe que o melhor era ir trocar a pilha, mas ela permaneceu muda e sem pestanejar. Então, lancei-lhe um anátema. Encolheu os ombros, como se as questões religiosas lhe fossem indiferentes. Voltei a pesar-me. Mais dois quilos. Odeio balanças persistentes. Algumas são volúveis, mas não a que me coube em sorte. Saí e fui pôr o carro a lavar. Estava sujo de irrealidade, com manchas de fantasia e nódoas feias de tanta extravagância. A casa está um pouco mais quente do que quando a deixei. Abri-lhe as janelas para que a manhã entrasse com o seu exército de frescura e as vozes apócrifas que escuto sentado à secretária, como um pássaro no poleiro. Desconfio que tenho coisas para fazer, mas filio-me de imediato no clube dos procrastinadores. Entro para a grande sala, perguntam-me o que quero e eu respondo “um whiskey”. Fazem uma leve vénia. Espero, espero, espero que o empregado deixe de procrastinar. Se houvesse vento, seria mais fácil suportar a realidade, pensei. Um homem com umas longas barbas atravessa a passadeira. Tem o ar de profeta do Antigo Testamento. Aguardo o momento em que, iracundo, se volte e comece a profetizar. Ele, porém, senta-se numa esplanada e daí a pouco vejo-o a beber uma cerveja. Maldita realidade, é o que me acode ao pensamento.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Terra Plana

Compreendo bem o drama da imprensa nas pavorosas tardes de Agosto. Como se sabe nesse mês, em que os dias já declinam, não se passa nada, os acontecimentos recusam-se a acontecer, as ocorrências evitam ocorrer, os sucessos não querem suceder, os incidentes não incidem e os eventos não eventam. Alegam férias, excesso de calor, embora a razão seja sempre a mesma. A pouca vontade de trabalhar. Os jornalistas então vivem o pesadelo das páginas em branco, da falta de matérias para partilharem com os sequiosos leitores de novidades. Hoje, por exemplo, uma conhecida revista, na edição online informa que em Novembro – claro, em Novembro já é mês para que se passem coisas – decorrerá no Texas a terceira conferência anual da Terra Plana. E como o espaço é coisa que não falta, são elencadas dez razões para crer, o que nos permite entrar de imediato no domínio da lógica doxástica, que o nosso planeta é plano. Aliás, e este é o meu contributo para a teoria, se a Terra fosse redonda não seria um planeta mas um redondeta. Eu sei que a pilhéria é desoladora, mas não me ocorreu outra melhor. Culpada de tudo isto é a NASA que quer ocultar Deus dos olhos dos mortais, esse Deus invisível, a quem ninguém viu, o Deus que se escondia atrás da nuvem e, agora, da NASA. Agosto estrebucha, a sua morte nunca é pacífica. Encosto-me a uma sombra e leio em Eugénio de Andrade: Estou à espera / duma tarde semelhante ao sono das maçãs. Também eu espero qualquer coisa de que não me lembro. Além da esperança não me falta fé, pois creio que o nosso planeta se manterá plano e não arredondará até Novembro. O pior é que sou um raciocinador instável, daqueles que acreditam que acreditam numa coisa sem de facto acreditar nela.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Inadimplência

Uma infelicidade não ter estudado leis e não saber latim. Um mal nunca vem só, foi o que pensei quando, arrastado por uma mórbida curiosidade, consultei o dicionário para saber o que eram clientes inadimplentes, dos quais uma certa marca de automóveis se queixa e, por ínvios caminhos, persegue. Pensei logo que não seriam grande coisa, tão horrível era a palavra que o jornal empregava para classificar tais clientes. Mesmo sem saber o significado, a última coisa que eu queria ser era um inadimplente. Consultado o Porto Editora que tinha à distância de um click, a coisa era mais simples do que parecia. Gente que, talvez por falta de memória, por distracção ou por dificuldade de se relacionar com o tempo, não cumpria, no prazo acordado, um pagamento ou um contrato. Pessoas pouco católicas têm a tendência de lhes chamar aldrabões, mas isso é falta de caridade. Por vezes sou assaltado por estranhos pesadelos, nos quais me entrego a pesados estudos do Direito. A tarefa principal é a de construir listas de palavras onde a ordenação jurídica opera para se ocultar do mais culto dos mortais. São sonhos de cortar a respiração. Lembrado desses devaneios oníricos, depois de tomar café, fui a uma loja de chineses, com o promissor nome de Compraky, e adquiri três cadernos pautados, com a capa a dizer notebook, e que hei-de encher, durante os meus piores sonhos, com vocábulos que só a ciência do Direito tem o poder mágico de evocar. Tudo isso é preferível, pensei, do que chegar a inadimplente. É duro ser ignorante.

domingo, 25 de agosto de 2019

Da vida selvagem

Há uma forma de fazer filosofia, hoje com as acções em alta no mercado de valores intelectuais, que dá uma importância desmesurada às classificações. Em qualquer assunto proliferam uma quantidade indefinida de espécies catalogadas por nomes que, em geral, terminam com o sufixo -ista. A filosofia é então uma tarefa infinita de sufixação e criação de categorias para lá incluir a fauna que se dispersa numa selva que não pára de crescer. Parece ser o único sítio no planeta em que a vida selvagem não se encontra em perigo. Ter pensamentos destes antes de um almoço de domingo não é sintoma de grande saúde mental. Por outro lado, estas coisas não interessam a ninguém a começar por mim, embora eu seja um exemplo acabado de pessoa que se interessa por coisas que, na verdade, não a interessam para nada. No sítio onde estou, avisto uma chaminé antiga, daquelas redondas, feitas de tijolo, que se elevam, impantes, sobre a pequenez do casario e que indicam a existência de um forno. Espero ver o fumo sair dela, mas a minha esperança é defraudada. À sua exuberância fálica corresponde uma esterilidade de facto. O almoço parece atrasado, as vozes lá de dentro sussurram e eu, sem saber o que fazer, sigo a pista dos contigentistas e dos necessitistas, como quem segue no rasto de animais exóticos, embora sem esperança de criar um zoo e cobrar entradas aos excursionistas de domingo e a deslumbradas turistas de telemóvel em punho. O talento para os negócios foi uma virtude que a divindade achou por bem não distribuir pela minha pobre pessoa. Não fora isso e abriria um jardim zoológico.

sábado, 24 de agosto de 2019

Pescadores de paciência

Passei uns dias num sítio – em Portugal, note-se – onde a temperatura recusa afrontar-me. Pelo contrário, sempre foi cordata e raramente me desmentiu a sensação de estar num daqueles países do norte, de onde imagino que há muitos séculos um desconhecido antepassado teria saído e aportado por aqui, para distribuir uns genes que, apesar de trambolhões e naufrágios, chegaram a mim, fazendo-me sonhar com paisagens frias sob a névoa, bosques e frutos silvestres, que só naquelas paragens haveria. Isto, porém, não merece confiança, pois sou dado a imaginar coisas e à prática da hipérbole. Nesses dias, de manhã, dava longos passeios perto do mar. Fazia parte da digressão entrar por um molhe e ir até ao farol. No molhe, encontrava invariavelmente uns quantos pescadores à linha, com as suas cadeiras, as canas, os anzóis, sacos e cabazes misteriosos. Quase sempre solitários. Por vezes, levantavam-se, recolhiam a linha manejando o carreto, que grasnava não sem gravidade. Depois, executavam um movimento de corpo, um balanceamento de trás para a frente, quase um passo de dança que lhes permitia lançar mais longe o anzol e logo se sentavam, a olhar hipnotizados as águas ou a fumar distraídos um cigarro. Nunca vi um peixe que fosse. Talvez eles se dediquem à pesca apenas como exercício de paciência ou para pagar alguma promessa, pensei numa altura. Agora que falo disto, lembrei-me de mim. Também eu sou um lançador de anzóis a que nenhum peixe morde o isco. Deveria ir pescar para outro lado, mas é tarde e o crepúsculo não deixa de ter o seu encanto.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Questões de pombos

Há pouco, na esplanada onde fui tomar café, entraram dois ou três pombos, que se saracotearam, de peito feito e cauda trémula, por ali, entre o prazer de uns e o nojo de outros. Em quase tudo, a humanidade reparte-se e, se o assunto toma dimensão, logo se formam partidos, onde gente açulada por algum chefe se prepara para degolar os oponentes. No caso dos pombos, eu era neutro, verdadeiramente apolítico. Nem prazer, nem desprazer. Achei-os, como sempre que os vejo andar, completamente ridículos e um pouco raquíticos. Mais o branco que os cinzentos, pois o peito era menos exuberante e a penugem parecia amarfanhada. Como é de desconfiar, não sei nada de pombos, a columbofilia nunca tocou sequer o círculo mais longínquo dos meus interesses. Falo agora deles porque, apesar de tudo, não é tão desolador quanto falar da espécie humana. Eles, honra lhes seja feita, não ostentam a designação de animal racional, que nós humanos tão orgulhosamente exibimos, embora isso pouco corresponda à realidade. E não se pense que estou a colocar-me fora da humanidade, num lugar sobranceiro para alardear a minha suposta mas nunca provada racionalidade. Pelo contrário. Que racionalidade haverá em escrever sobre pombos que entram numa esplanada? Nenhuma, dirá o leitor, e eu concordo de imediato. Eles lá se foram embora, num passo hesitante, depois levantaram voo e eu fiquei sem assunto. Também é verdade que podia falar sobre a mistela que uma mulher já entrada na casa dos trinta ia levando à boca. Agora, porém, seria eu que ficaria enojado e pronto para tomar partido a favor de alguma forma de abolicionismo. Tenho de me precaver destes impulsos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Desastres manuais

É um trauma antigo. Tenho uma relação difícil com os tubos de cola. Fundamentalmente, com aqueles minúsculos de onde sai uma substância translúcida que consegue até grudar o céu ao inferno, imagino eu. Exigem uma perícia no manuseamento que a natureza ou Deus decidiram não me conceder ou, para persistir no registo religioso, o diabo me roubou. O certo é que, sempre que me aventuro em unir aquilo que o tempo ou o descuido desuniu, fico com os dedos lambuzados com a maldita mistela, a qual, sem me dar tempo para reagir, seca e forma uma película sobre a pele. Irrita-me a insensibilidade digital a que fico sujeito. Não una o homem aquilo que foi desunido, parece-me uma injunção a não desprezar. Suspeito que haverá um produto que dissolva a mixórdia que me envolve os dedos, mas nunca me lembro de o comprar, caso exista. Fico assim cativo da minha inabilidade estrutural. Quando isto acontece, como há pouco, olho para as minhas mãos, como se contemplasse a mola propulsora de um desastre. Depois, rio-me. Nem disso, por pequeno que fosse, seriam capazes. Os trabalhos manuais sempre foram uma penitência excessiva e se oiço a palavra bricolage afasto-me de imediato, num exercício de verdadeira prudência.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Do falhanço como obra de arte

Falhar a vida é uma tarefa meticulosa, um exercício contínuo que exige uma persistência sem limites. Apesar da péssima fama com que a turba, acicatada pelos funâmbulos do mérito, acolhe o falhado, este pode ser altamente criativo. Não é descabido pensar a falência existencial como obra de arte. O candidato a falhado pega na matéria da vida e trabalha com ardor sobre ela. Estica-a, encolhe-a, testa-lhe a plasticidade. Um golpe aqui, uma pressão acolá, um corte mais além. Sempre que suspeita um plágio, uma citação ou até uma mera referência, ele retorce a sua vida, até que a torna incompreensível. Nessa altura, quando a obra se torna inédita, de uma originalidade irrecusável, começam a sussurrar nas costas do artista do falhanço. Crescem os dedos acusadores. De tanto se alongarem, alguns destes dedos transformam-se em verdadeiros estiletes. Os sussurros são já a vozearia que a alcateia não consegue calar, mas como há quem se faça eunuco por amor do reino dos céus, também o falhado se faz surdo por amor da sua falência. Com o meu falhanço às costas, deixo que Setembro se aproxime e com ele me seja atirado à cara o daguerreótipo da minha vida. Há sonhos que se deveriam apagar mal acordamos, penso enquanto me preparo para ir ver como está o mundo lá fora.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A vida quotidiana

Um brilho áspero desce dos céus e poisa impenitente sobre os ombros dos transeuntes. Estes caminham ajoujados ao peso dos raios solares, suspiram e limpam o suor a lenços sujos e já gastos. Em sentido contrário vem uma mulher coberta de folhos, saracoteando-se no pequeno palco que a rua lhe oferece. Alguns olhos, tomados por uma febre raquítica, prendem-se aos requebros e imaginam desfolhadas. É difícil perder o atavismo rústico, pensei. Por fim, fez-se silêncio lá dentro. As vozes incomodavam-me a visão. Abro a janela e deixo entrar o ar vindo da rua. Com ele chegam as imagens do que se passa lá fora. O escritório torna-se um hall onde se encontram as mais inusitadas pessoas. Olham-se desconfiadas, garras afiadas, aturdidas por se encontrarem ali. Um homem baixo, olhar velhaco, tira uma navalha do bolso, enquanto a mulher dos folhos pára os bamboleios. Prepara-se para gritar. Um pombo aproxima-se da janela, mas afasta-se de imediato assustado. Também ele viu aquilo que só eu vejo. Bato as palmas, aquela gente sai pela janela, que fecho de imediato. Lá em baixo, o homem de olhar velhaco esconde a navalha, enquanto as ancas da mulher dos folhos retomam o seu ondular campestre. Então, enlouqueço lentamente. O melhor será cobrir os móveis com gualdrapas, digo, mas ninguém quer saber daquilo que eu digo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Um cavalo desenfreado

Olho para o relógio e sinto na face um ricto de desagrado. A tarde correu mais depressa do que tinha pensado. O almoço prolongou-se, sem que uma fronteira definida o colocasse perante um fim imperativo. Nestes dias em que os grilhões do dever se abrem para criar uma ilusão de liberdade, relógios e calendários são tomados por uma imprecisão nefasta, banhando-se no negro oceano da vagabundagem. O tempo, assim liberto da vigilância apertada, é tomado por um galope desenfreado, como se fugisse de uma maldição ou perseguisse uma recompensa rara e irrecusável. São estes pensamentos que me atormentam em Agosto, o mais difícil dos meses. Viajo sempre com grande dificuldade na paisagem que este mês oferece, vítima de um dilema que ainda não estou em condições de resolver ou sequer de partilhar. Abro um livro e leio: «As raparigas mantinham-se fascinadas, com o olhar vidrado». A ideia de um olhar proveniente de olhos de vidro cativa-me de imediato. Só esse olhar poderia deter o tempo, aprisioná-lo, suspender-lhe o vício de se mover sempre para a frente. Depois, penso na infelicidade das raparigas com olhos de vidro. Comovo-me e devolvo-lhes o olhar animal que era o delas. O tempo desata logo num galope desenfreado, até que as raparigas, arrastadas pela fúria do cavalo, morrem de velhice. Lá fora, os carros passam indiferentes ao meu luto, à dor de tão rapidamente o tempo ter levado com ele as promessas do meu amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Pensamentos lúgubres

Há palavras que detesto, mais por uma questão estética do que ética, e outras de que gosto, porventura pelas mesmas razões, mas não estou certo. Gosto da palavra deriva quando usada na expressão à deriva. Há em mim uma inclinação para simpatizar com todos os que andam ao sabor das ondas ou da corrente, daqueles a quem a vida não concedeu poder para governarem o precário bote da existência. Sinto com eles uma espécie de irmandade, um vínculo indissolúvel. Estar à deriva é a autêntica condição humana, digo para mim mesmo. Estes, porém, são pensamentos lúgubres para um domingo de Agosto. Há dias que imagino como seria bom ser um profeta do Antigo Testamento e fazer sair da minha boca a cólera que habita no coração divino, mas temo que, caso alguém me escutasse, acabaria por rir-se de mim. O tempo dos profetas coléricos acabou e os que restam andam ao sabor da corrente. Como não sabem nadar, acabam por se afogar. Estes, todavia, continuam a ser pensamentos sombrios. Ao passar diante de um espelho, este devolveu-me a imagem de um profeta rubicundo e irado. Antes mesmo de começar a distribuir anátemas sobre o mundo, ri-me de mim mesmo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O canto do galo

Nestes dias tenho ouvido um galo cantar por volta das seis da manhã. Para honrar um modo de vida que está a ser rapidamente rasurado, levanto-me e vejo o alvorecer do dia. É uma hora assombrosa. A realidade parece ter saído há momentos dos dedos do criador e, mesmo a mim, um pessimista velho e contumaz, tudo parece ainda possível. A aurora traz consigo um excesso de promessas que o corpo e a vontade são incapazes de cumprir. Muitas vezes, os homens tomaram a aurora como símbolo de um mundo novo a vir, esquecendo que ela não era mais que o resultado de uma prestidigitação astral, da ilusão do sol orbitar o lugar que nos foi dado para viver, ou do mais prosaico rodopiar da terra em torno do seu eixo. Naqueles instantes, porém, não quero saber nada disto. Aspiro o ar fresco da madrugada, embebedo-me de promessas e quase elevo aos céus uma oração, para que os poderes do alto suspendam o tempo. Não sou convincente, os deuses não me escutam, e não me resta senão ir de novo para a cama, para acordar numa hora menos dada a ilusões e promessas que não se hão-de cumprir.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Aves e anjos

Nos fios do telefone conto seis andorinhas. Há alguns dias que as vejo naquele lugar. Estão ali suspensas sobre a terra. Parecem descansar ou, então, têm uma missão que não consigo vislumbrar. Não há por aqui ninhos que justifiquem a sua presença, mas o meu conhecimento de ornitologia, como praticamente de tudo, é nulo, o que me impede de compreender os seus hábitos, movimentos e modos de vida. Na minha mesa tenho um livro sobre metafísica e lógica modal. Encolho os ombros e penso que melhor fora ter um tratado de angelologia. Apesar de ninguém se interessar pelo assunto, não há saber mais profícuo que aquele que nos informa sobre a natureza, o papel e as divisões taxionómicas desses intermediários entre os homens e Deus. Se percebesse os anjos, ocorreu-me, talvez fosse capaz de captar o sentido das andorinhas insistirem em ficar paradas nos fios de telefone. E, não há como evitar a hipótese, num qualquer mundo possível, as andorinhas serão mesmo anjos disfarçados que, necessariamente, vigiam os nossos actos. Podia bater as palmas e elas voavam, pensei, mas não tenho direito de distrair os anjos quando estão em missão.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Questões de espírito

Há pessoas pacientes e dadas à extrema minúcia que registam tudo o que julgam digno de nota. A mim sempre me faltou a inclinação para a minúcia e, se pensar bem, o dom da paciência. Por norma, não registo seja o que for. Nunca deixei de admirar aqueles que mantêm longos ficheiros de citações e notas, que elaboram com diligência e espírito de futuro. Na verdade, sempre fui dado a uma anarquia contida, a uma desordem que encontrava a sua raiz numa certa ordem que reside na memória e que me foi dada por herança genética. Era e é neste suporte, na memória, que confiava os meus registos. Se mantivesse um registo de citações não deixaria de lá inscrever a resposta que Madame de Montsousonge deu ao pobre Jan, que, acossado pelo despeito ou pelo ciúme, pôs em causa a sua virtude: «A minha virtude é o meu único luxo». A ambiguidade da última palavra é o segredo da sublimidade da resposta. Será a virtude um objecto de preço elevado? Será ela uma coisa dispensável? Será o sinal de excelência? Será uma mera extravagância? Que pena eu não usar a prática do registo de frases memoráveis, agora que a confiança na memória se desvanece. Em breve esquecerei a frase, depois Madame de Montsousonge. Por fim, o livro onde li tudo isso. É uma pena, pois sempre podia utilizar a frase para parecer espirituoso, eu a quem sempre faltou espírito.

domingo, 11 de agosto de 2019

Adormecer

Há um barulho por aqui que me incomoda o repouso. Parece alguém a bater com um maço numa estaca, mas, tendo em conta que o ruído se prolonga há muito, não é provável que haja um braço tão obstinado. Penso, então, numa conspiração da natureza para me atormentar nestas horas em que deveria entregar-me ao mais escandaloso dos ócios. Se fechar a janela tudo cairá no silêncio, mas não me apetece sair daqui. Tenho dois livros entre mãos. Hesito sobre qual deverei usar como soporífero. Não que sejam desinteressantes e enfadonhos. Não são. Durante muito tempo, se acordava por volta das cinco da madrugada, era tomado por uma insónia que me impedia de dormir as horas que faltavam, o que provocava em mim um pequeno tormento, que só tinha fim quando o despertador dava sinal para sair da cama. Descobri que o melhor remédio é ler. Pego num livro, leio até que o sono chega e eu deixo-o cair. É isso que vou fazer agora. Uma pessoa nunca pensa que chega a este grau de decadência, mas a realidade é o que é.

sábado, 10 de agosto de 2019

Conversas de esplanada

Espreguiço-me devagar por dentro do sábado. A trama inesgotável do mundo cansa-me e há muito que desisti de esperar que alguma sensatez desça sobre a turbamulta. Esta gosta de ulular, o que, não fora o ruído, parece-me muito adequado. Na esplanada, duas mulheres em modo balzaquiano tagarelam de mesa para mesa, sem que cuidem de moderar o débito sonoro. A inevitável excelência das respectivas filhas não me espantou. Raras são as mulheres que, ao falar da prole, resistem à tentação da hipérbole. Se falam dos maridos são mais comedidas, quando não francamente omissas. Nessas alturas a retórica escasseia e a imaginação não encontra combustível com que se ateie. Isto é o meu cinismo a pensar alto sobre a comédia humana. Tento ler uma crónica do Expresso, mas bocejo. Salva-me a ideia de que no Douro alguém envelhece chá chinês em pipa de Vinho do Porto para o vender na China. O mundo é um lugar muito mais perfeito do que aquilo que estou disposto a admitir. O tempo escoa-se entre os dedos. Levanto-me, e as mulheres em modo balzaquiano ainda competem no encómio filial.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Sextas-feiras de Agosto

São elusivas as sextas-feiras de Agosto. Acordam devagar, bocejam, espreguiçam-se e levantam-se como se fossem qualquer outro dia. Não vale a pena sentir-se afrontado com o desplante. Rapidamente, Agosto entregará a alma ao criador e as esquivas sextas-feiras logo perderão o traço fugidio com que agora se disfarçam. Hoje pude consultar a data em que, a partir dela, todas elas serão como as de Agosto. Faltam três anos e nove meses. Encolhi os ombros e fui tomar café a uma esplanada. Há que beber o cálice até ao fim, pensei. Colónias de turistas enchiam o ar com linguajares diversos. Fiquei por ali a ouvir aquela babel, enquanto olhava o horizonte em busca de sinais de chuva. As línguas diferem mais pelo ritmo do que pelas palavras, constatei mais uma vez. Uma tatuagem descia do ombro para o braço, e toda a harmonia e beleza que havia na jovem mulher tatuada se dissolvia ali, na pele maculada por cores soturnas e imagens gastas. Ao pensar nisso ri-me do meu gosto desajustado e conservador. Abri o livro, mas a prosa resistiu às minhas incursões. O concerto das nações impedia-me a leitura. Levantei-me, antes que o dragão da tatuagem se soltasse da mulher e lançasse sobre mim o fogo do seu desprezo.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Da origem da homossexualidade

Estar de férias é uma possibilidade única para aumentar a cultura científica. Faço os possíveis para não dissipar uma oportunidade. Até ontem, infelizmente, nunca tinha ouvido falar do bispo cipriota Neophytus da Igreja Ortodoxa Grega. Não fora o ócio, teria perdido o seu contributo decisivo para a ciência. Confrontado com a vexata quaestio da existência de gays, acabou por dar uma das explicações científicas mais notáveis sobre o fenómeno (ver aqui). Com modéstia, sua Excelência Reverendíssima explicou que a causa reside nos pais. Se o pai, num momento desavisado de luxúria, se enganar no caminho natural e sodomizar a mãe, o rapaz nasce gay. É o que acontece com pais que sabem pouca Gramática e nunca ouviram falar de homonímia. Confundem recto caminho com caminhar pelo recto (o sr. bispo perdoar-me-á a brejeirice e o leitor, o fácil trocadilho). Seja como for, a sabedoria do alto dignitário da Igreja Ortodoxa é um autêntico ovo de Colombo, uma evidência mais evidente que a do cogito cartesiano, uma inspiração para todos. Assim, nem preciso que sua Excelência Reverendíssima venha explicar por que existem lésbicas. É óbvio, a partir da sua sábia lição, que se o pai, ignorante em Geografia, perder o norte e confundir a boca da mãe com a vulva e se se entregar, confuso e desorientado, à prática da cunilíngua, a rapariga a nascer só pode ser lésbica. As lições práticas de tal conhecimento científico são fáceis de extrair. Há que estudar Gramática e Geografia para evitar a homossexualidade. O bispo pode ser Neophytus de nome, mas não é neófito nenhum na via da ciência.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A virtude da preguiça

Quanto mais depressa se aproxima a catástrofe mais rapidamente corremos para ela. Fiquei espantado com a minha sabedoria. É o que dá ler os jornais, essa oração da manhã do homem moderno. O que vale são as férias. Quer lá uma pessoa saber o que pode acontecer amanhã se agora se pode entregar ao exercício virtuoso da preguiça. A Igreja Católica, é certo, decidiu condená-la, mas é uma condenação espúria, para não dizer imoral. Que a Igreja tenha condenado a acídia, compreende-se. Só um espírito maligno pode ficar melancólico por receber bens espirituais, mas traduzir isso por preguiça e meter esta nobre virtude no rol daquilo que há-de perder eternamente uma pessoa é inaceitável. Há quem tenha feito um elogio da preguiça, mas tendo em conta o sogro do autor, o panegírico foi desprezado. A estultícia dos homens nunca acaba. Se estes fossem mais preguiçosos talvez as catástrofes fossem coisas mais longínquas, pensei. Não sei se foi da chuva da manhã, mas hoje só me ocorrem pensamentos sombrios e ideias sem sentido. Talvez não tenha nada para dizer, como é habitual, e o melhor é calar-me.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Fine-tuning

Pouco depois do almoço, antes de adormecer no primeiro sítio em que me hei-de sentar, dei uma vista de olhos pelas vendas de livros que há na Internet. Numa propunha-se A Noiva Despida, de autor anónimo, noutra A Viúva Grávida, de Martin Amis. Não comprei nenhum, mas pude entregar-me a uma benfazeja meditação. A ordem do mundo é uma das coisas que nunca deixa de me surpreender e de me maravilhar. Pessoas influenciadas pelo indeterminismo poderão dizer que tudo se deve ao acaso. Eu, pelo contrário, vejo nisto um exemplo de fine-tuning, essa sintonia precisa que nos mostra não apenas a harmonia que reina sobre o caos como a exactidão com que tudo é disposto neste mundo, para que o desarranjo não leve a melhor sobre a arrumação. É claro que num universo bem ordenado como o nosso, primeiro despe-se a noiva e só depois se morre deixando-a grávida. Não faria sentido morrer deixando uma viúva e só depois desse infausto acontecimento despir a noiva para a engravidar. Ela poderia ficar perturbada e não conseguir conceber ou, então, o noivo já morto ser vítima de um despropositado ataque de impotência. Evitemos o absurdo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Despoletar

Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des- tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a aplicação que me controla o fitness – meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão, peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.

domingo, 4 de agosto de 2019

As tarde de Agosto

Ontem as netas foram-se embora com os pais. Ao sair, a mais nova voltou-se e, misturando a ironia e o imperativo, disse: agora, os avós não vão chorar. Não sei o que admirei mais, se o atrevimento, se a capacidade para ficcionar, pois nunca os avós choraram quando elas se foram embora. Hoje, domingo, o almoço foi mais tardio. A verdade é que a casa ficou vazia, sem a agitação delas, os pequenos dramas das raparigas e a esperança toda que há dentro de crianças que caminham para adolescência. Também é verdade que deixei de ter bicicletas para levar a remendar furos, uma das minhas actividades nos últimos dias. Eu sei, eu sei, que sempre se podem reparar câmaras de ar em casa. Antigamente, não sei se hoje, havia os remendos Tip-Top, mas não sou dado ao exercício da bricolage e falece-me o talento para a mecânica. Arrumadas as bicicletas, o tempo cresce-me. Assim, posso banhar-me no silêncio e nadar em oceanos de palavras, lembrando-me dos Verões em que as tardes se dilatavam quase até ao infinito e eu lia o Ciclone e o Condor, o Falcão, onde o meu grande herói era o Major da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. Agora que o Major Alveja já não abate nenhum avião da Alemanha nazi, entretenho-me a ler as Memórias de um Morto. O tempo não está para gente tão viva quanto o piloto luso-britânico. Quando o meu neto crescer, hei-de falar-lhe do grande Major, o meu herói dos tempos da escola primária. Tenho que fazer os possíveis para não me esquecer.

sábado, 3 de agosto de 2019

Incongruências em Agosto

De que tecido serão feitos os sábados de Agosto? Não sei porquê, mas esta pergunta assaltou-me há pouco ao chegar a casa. Tenho dias assim, o meu cérebro, devido a algum desarranjo neuronal, dispara à queima-roupa perguntas incongruentes. A incongruência reconhecida da pergunta tranquilizou-me. Teria de lhe dar uma resposta sem sentido, como, por exemplo: os Sábados de Agosto são de popelina, enquanto os de Novembro são de repes. Assim estou dispensado. A rua de onde vim tinha um cheio a férias grandes, uma rua feita de sombras pesadas e ausências notadas quando chegam os dias oficiais para as pessoas se cansarem de tanto descanso. Estamos num tempo em que toda a gente acha que vai ler livros, dar grandes passeios, passar tardes admiráveis entre amigos. A realidade, porém, não há-de estar pelos ajustes. Eu recolho-me em mim e penso num eremitério onde me pudesse excluir da humanidade. Logo me vem à memória a frase o homem solitário ou é um besta ou é um deus. Nunca tendo dado pela existência em mim de um traço divino, inclino-me para a primeira possibilidade. É o que dá ser assaltado por perguntas incongruentes. Tanto quanto sei, mas sei poucas coisas, nunca Agosto fez bem a ninguém.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Chocolate negro

Hoje atravessei a cidade de lés-a-lés. Estava modorrenta, ainda com menos gente do que é habitual, o casario, aquele mais antigo, não tinha melhorado de aspecto desde a última vez que o vi. Deveria sentir-me deprimido. É a obrigação de qualquer um que um dia a tenha visto vibrante na sua pequenez, a fervilhar de negócios e de gente, mas não me senti. Pelo contrário, estava bem disposto e cheio de bonomia. Até o que está decrépito me pareceu novo. Tudo se deve, porém, ao chocolate negro que por vezes, furtivamente, me tenta. O chocolate negro, informa-me um estudo, pode aumentar o bom humor e aliviar os sintomas de depressão. Eu caio de joelhos agradecido. Só tenho medo que o hábito faça passar o efeito. Ainda hoje, em consulta com o cardiologista, lhe disse que a substância hipotensora, quando a comecei a tomar, tinha um óptimo efeito sobre os meus estados de alma. Tudo o que me aborrecia e irritava deixou de o fazer. Se queriam que o branco fosse preto, eu queria lá saber. Com os anos o efeito passou e quando trocam o preto pelo branco fico irritado. O meu problema é se o efeito do chocolate negro também passa. De que valerá comê-lo se a realidade depressiva me parecer depressiva? Não há coisa pior que a realidade. Seja como for, acho que, nesta terra, toda a gente deveria comer chocolate negro.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A libertação dos alienígenas presos

As notícias de Verão não deixam de ser espantosas e Agosto não começa nada mal. Leio que dois milhões de americanos acreditam que há extraterrestres presos numa base militar dos EUA e que um número não especificado quer invadir o lugar para libertá-los. São causas como esta que me fazem acreditar, e muito, na humanidade, no seu espírito generoso, embora as coisas possam não ser tão simples quanto isso. E se os extraterrestres forem inimigos, a sua libertação não configurará um acto de alta traição? Os americanos são assim. Um povo impulsivo. Propõem-se fazer coisas sem pensar nas consequências e não há quem os alerte. É evidente que eu também acho aborrecido que se prendam extraterrestres por dá cá aquela palha, mas como europeu pertenço a uma longa tradição marcada pela prudência, apesar das duas guerras mundiais, e faço parte daqueles que abominam a impulsividade. Se estão presos, os extraterrestre alguma fizeram. Esta é uma sabedoria lusa e, como toda a sabedoria lusa, é profunda. Ainda pensei sugerir aos libertadores tentarem a via judicial. Todo o preso terá direito a um advogado e a um julgamento justo e imparcial. Isto sou eu que o digo, uma pessoa crente no Estado de Direito, mesmo quando se trata de espécies alienígenas. Julgo, porém, que os libertadores se ririam na minha cara. O melhor é evitar humilhações, pois Agosto só agora começou.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bolas de Berlim

Num sítio que no Verão costumo frequentar havia umas bolas de Berlim que me habituei a comer sem que a consciência me acusasse de qualquer delito. Alguém mais maldoso sempre pode censurar-me de ter uma consciência frágil, mas havia, claro, atenuantes. Só comia bolas sem creme e estas, apesar de fritas, pareciam que quase não tinham passado pelo óleo. Não há nada como a nossa capacidade para fantasiar. Eram muito boas, em resumo. Constou-me que o estabelecimento fechou e ao cerrar portas levou com ele as bolas de Berlim. Tudo o que é perfeito neste mundo acaba, foi o que constatei ao ouvir a notícia e daí extraí a conclusão que o paraíso não pode ser na Terra. Acontecem muitas coisas péssimas neste mundo, eu sei, mas agora nem sei se hei-de voltar ao sítio. Gosto imenso de praia, desde que não haja muito sol, pessoas e areia. No entanto, ainda não compreendi o que iria fazer a uma praia se o sítio das bolas de Berlim se finou, levado pela voragem do tempo, deixando-me a rememorar a glória de antigas expedições para incrementar o colesterol. A saúde é uma dura penitência.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Lugares para medíocres

Estava a ler a apresentação de As Lojas de Canela, de Bruno Schulz, feita por Aníbal Fernandes, quando deparo com a resposta que terão dado ao escritor polaco perante a oferta que este fez dos seus préstimos literários à revista Novos Horizontes: “Não precisamos cá de Prousts”. O engenho da estupidez humana, apesar de tudo, nunca deixa de ser espantoso. Uma revista literária que não quer um Proust é como uma equipa de ciclismo que só aceite quem mal saiba andar de bicicleta. A analogia não é brilhante, eu sei. Que coisa essa de misturar as belas letras com um desporto popular. Foi, porém, o que me ocorreu. Se eu tivesse capacidade de fazer analogias soberbas seria um Proust. Com esta minha falta de talento, porém, talvez tivesse sido aceite na revista onde Schulz foi rejeitado. Não há lugar onde um medíocre não possa entrar.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Coisas de avô

Ao mexer no telemóvel deparei-me com uma fotografia minha com o meu neto ao colo. Eu olho para a câmara, um pouco formal; ele, para o lado, como se nos seus oito meses já soubesse demasiado do mundo e não estivesse para se submeter aos ditames do fotógrafo de ocasião. É a vantagem da inocência. Estar voltado para a frente ou para o lado é indiferente. O importante é que não o deixem cair e saibam que ele existe. Não sei se foi a visão da foto que desencadeou as saudades ou se foram estas que, sem eu dar por isso, me conduziram àquela. Ser avô é uma condição especial que, antes de se ser, é inimaginável. Mal se vêem, avô e neto estabelecem laços secretos de continuidade, que depois têm de ser cultivados com esmero e persistência, mas que são uma afirmação exuberante da vida. Aquela que começa a declinar sente-se redimida por aquela que acaba de chegar. Não se trata de uma espécie de justiça cósmica à maneira do célebre fragmento de Anaximandro, mas do estabelecimento de uma continuidade que rompe as densas paredes do futuro. Para o que me haveria de dar, por causa de uma fotografia? O melhor é fazer-me à vida. Enquanto os pássaros meus vizinhos continuam as suas cantatas nupciais, eu ponho o telemóvel no bolso, arrumo uns papéis e preparo-me para enfrentar o dia. Julho apresta-se para entregar a alma ao criador, não tarda receberá a extrema-unção e dará o último suspiro entregando-se nos braços descarnados e ressequidos de Agosto. Nesse momento, do herbário do tempo, cairá mais uma folha morta.

domingo, 28 de julho de 2019

Atrasos

Hoje acordei confuso. Havia uma ânsia em mim motivada, por certo, por um daqueles sonhos matinais que têm o condão de serem sonhados num estado em que vigília e sono se misturam, o que lhes dá uma mais forte aparência de realidade. Havia qualquer coisa para fazer, muito urgente, mas desconhecia o quê e o onde. Sabia apenas que deveria ser agora, mas agora estava na cama, despreparado para tarefa tão imperativa. Isso acrescentava desnorte à confusão. O barulho de uma sirene, porém, devolveu-me à realidade e pensei que era domingo. Suspirei e levantei-me. Tudo começou a entrar no grande castelo do esquecimento até que, ao chegar aqui, vejo uma velha fotografia de um jogo de futebol realizado muitos anos antes de eu nascer. Uma reminiscência, porém, começou a desenhar-se em mim e o sonho voltou-me à memória. A urgência de me levantar talvez estivesse ligada a esses tempos iniciais em que, ao domingo, tinha de ir à missa da catequese e, depois, a esta. O que tem isto a ver com a fotografia? Tudo. A partir de certa altura troquei as injunções à santidade do catequista pela visita ao campo que aparece na fotografia, onde rapazes um pouco mais velhos do que eu lutavam com denodo – e pouca santidade, diga-se – por uma bola de couro, que, por vezes, caía no rio. O que me entristece é não saber se, no sonho, estava atrasado para a missa ou para ir ver o jogo de futebol.

sábado, 27 de julho de 2019

Uivar à lua

Os dias de sábado nem sempre são dos mais promissores. A esplanada estava composta, na mesa ao lado uma família fazia-se ouvir. A rapariga não sem desenvoltura falava nos concertos a que queria ir. A maioria dos nomes eram-me desconhecidos, mas o que recebeu um maior ênfase foi o de Quim Barreiros. É universitária, pensei, não sem que uma sombra de tristeza me invadisse. Ao que se chegou, meditei, para que um universitário seja reconhecido por este tipo de gosto. Mais à frente, a conversa confirmou-me o prognóstico. Encolhi os ombros e abri o jornal. O mundo nunca nos desilude. É constante na sua venalidade. Houve um tempo em que se teve a ilusão de que uma maior educação tornaria as pessoas mais civilizadas, refinaria o gosto e, em momentos de maior fantasia, até se pensou que as tornarias melhores. A realidade, porém, resiste. A família continuava a declinar as suas preferências, com o orgulho de uma velha estirpe que rememora antepassados. Fechei o jornal, paguei e saí para o silêncio que há dentro de mim. Talvez tenham razão, porventura a realidade não será mais que umas brejeirices debitadas ao microfone. Um anjo passou. Dei por ele porque um cão começou a ladrar desaustinado. Também a mim me apetece ladrar ou uivar à lua.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

On s'habitue c'est tout

“On s’habitue c’est tout”, foi isto que pensei enquanto bebia um copo de sumo de toranja. Quando introduzi este ritual na minha pacata existência, o sabor agreste – para não dizer amargo – da toranja era ainda uma revelação que me dava um prazer especial. Os anos passaram, a cerimónia matinal consolidou-se e, hoje em dia, confesso que o sabor do sumo começa a parecer-me demasiado doce. Foi por causa disso que me lembrei do verso da canção de Brel. Uma pessoa habitua-se e é tudo. Como sou um tipo anacrónico, quando era novo, enquanto os outros rockavam por tudo e por nada, eu ouvia música francesa e, entre todos os grandes da canção francesa, o de que mais gostava era do Brel, que por acaso não era francês, mas belga. Ainda hoje gosto bastante, mas aquele pathos do “ne me quites pas” não me comove ou não cai bem com a minha disposição de ânimo. Tudo isto pertence a um tempo em que eu tinha tão pouca idade que pensava que era existencialista. Lia os romance do Sartre e do Camus, sonhava com a rive gauche e achava que não poderia haver melhor coisa no mundo do que estar condenado à liberdade. Isto alguma influência teve na minha vida, mas é melhor nem pensar nisso. Agora, bebo sumo de toranja pela manhã e lembro-me de restos de canções do Brel. “On s’habitue c’est tout”.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

A nova santidade

O tempo não deixa de ser um motivo inesgotável de conversa. Saber das suas metamorfoses talvez seja a mais alta sabedoria que se pode adquirir. Hoje, porém, não vou falar dele. Não é que tenha outro assunto, não tenho, mas não se deve dar demasiada atenção a S. Pedro. Parece estar a perder as suas qualidades como gestor meteorológico. Compreende-se. Não é só o peso da idade. São todas as outras actividades que são distribuídas aos santos. Tendo em conta o elevado número de pecadores e o diminuto número de santos, até almas pouco caridosas perceberão que eles, os santos, sempre dados ao sacrifício, estão à beira do burnout. Deixemo-los então em paz. Hoje de manhã pus-me a caminhar. Consta que faz bem, o cardiologista recomendou-me, embora eu não tenha percebido lá muito bem o sorriso escarninho que arvorou. Ajuda a controlar a tensão arterial, combate o colesterol, elimina os males provocados por uma vida sedentária, escutei. Incrédulo, diga-se. Animado pela bondade do exercício, mas sem amor por ele, lá pus os pés ao caminho. De vez em quando passavam por mim crentes da mesma religião, um sorriso seráfico e a esperança de chegar ao céu da boa saúde. Só espero que eu não ostente tal estado patético na cara. Já basta o que ela é, quanto mais ter nela estampada a beatitude dos altares. Enquanto caminhava, ia meditando sobre esta nova religião. O pior são os radicais, disse para mim mesmo. Esses não caminham. Correm, correm, de rosto contorcido, a língua de fora, um aparelho ligado ao braço, parece que vão explodir. Esperarão também eles setenta virgens quando chegarem ao paraíso? Sempre que via um desses candidatos a mártires, eu abrandava o passo. Há que ter cuidado, já não tenho idade para me radicalizar.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O pedalador

Que dia este de Julho, exclamei para mim mesmo. Almocei tarde e deixei-me ficar em frente da televisão a ver a etapa do Tour. Um ciclista fugia, fugia, embrenhava-se estrada fora. Ia sozinho, como se um monstro tortuoso o perseguisse. Talvez a ideia de ser devorado por um dragão lhe desse forças nas pernas e lá ia ele, a subir e a descer, curva e contracurva, indiferente à paisagem, surdo para os incentivos, os olhos no futuro e um medo terrível do passado. Se fosse S. Jorge, por certo, esperava o dragão e matava-o, mas hoje não abundam heróis como aqueles que havia noutros tempos. Os heróis de hoje pedalam, que ped’alma, como escrevia o O’Neil. E enquanto o semideus pedalava eu adormeci em frente ao televisor, adormeci com o meu “passado a tiracolo”. Eu dormia e o ciclista, um italiano, dava às pernas, abandonado, afogueado, “com o provir na pedaleira”. Parecia que lhe tinham chegado fogo ao rabo. Talvez fosse uma baforada do dragão, admito agora que penso no assunto, e o pobre, que não era S. Jorge, toca de se despachar, para chegar à meta que deve ser uma espécie de coito, onde, a quem nele se abriga, nada pode acontecer. Terei sonhado? Terei ressonado? Não ouvi protestos. Quando acordei, lá estava o italiano no coito, protegido contra dragões, à espera que chegasse o camisola amarela, que tinha perdido o comboio e se atrasara vinte minutos, pois também os camisolas amarelas chegam tarde quando os comboios cumprem horário. O melhor é não sair de casa. Pode ser que apareça por aí um dragão e não tenho santidade suficiente para o enfrentar nem força para dar ao pedal, que a pedaleira está enferrujada e o passado a tiracolo pesa-me mais que o futuro.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Generalizações precipitadas

A dado passo da entrevista, um historiador e agora romancista, diz que o D. Carlos era um esbórnia. Faria mais sentido dizer que andava na esbórnia, mas sejamos sensíveis às liberdades poéticas. Dado ou não à pândega, teve um destino cruel que sempre julguei imerecido. Quem parece que ficava muito bem no lugar de rei era o último incumbente. As raparigas estavam todas apaixonadas por D. Manuel, o que não deixaria de ser um sinal da sua capacidade política, embora seja possível pensar que há nesta frase uma generalização precipitada. Imaginemos as pobres camponesas do interior, aquelas que nunca puseram os olhos numa folha de jornal, como poderiam imaginar o jovem rei em uniforme militar para que o seu coração se enternecesse e, por causa de sua alteza, se entregasse, tremente, ao sonho melancólico de um amor impossível? A verdade é que todos nós gostamos de fazer generalizações. Pessoalmente, esse prazer nasce-me da inclinação para a hipérbole. Talvez o meu gosto em exagerar a realidade se deva a algum defeito de visão em que nunca tenha reparado. Nem sei por que motivo me pus a escrever sobre os últimos Braganças que ocuparam o trono deste país. Julho nunca é um mês fácil. Também ele é dado a hipérboles e o exagero será a sua razão de existir. Como eu, Julho também terá um secreto defeito na visão.

domingo, 21 de julho de 2019

Sonâmbulos

Os longos domingos de Verão. Os almoços tardios prolongavam-se pela tarde, o calor zunia e as pessoas enfrentavam com estoicismo os desmandos do lugar e do clima. Nesses estios inacabáveis tudo parecia mais perfeito. A inocência do olhar transformava as coisas mais simples em acontecimentos memoráveis. Depois, enquanto o olhar perdia a inocência, a realidade desfazia-se da perfeição, como se, para nos experimentar, um deus nos obrigasse a essa dupla perda. Será isso a que se dá o nome de queda. Olho para as minhas netas e ainda vejo nos seus olhos, tão ávidos de realidade, essa doce ilusão, aquela que faz de um simples nada um grande acontecimento. Também o almoço de hoje será tardio e elas hão-de lembrar-se dos domingos de Verão, dos seus almoços, dos pequenos nadas, das corridas de bicicleta, como eu me lembro de uma entoação de uma tia-avó, de uma sombra que a certa altura se desenhava no quintal da casa onde nasci ou do vento a soprar as folhas das roseiras que ali havia. Na infância, somos sonâmbulos, doença que a adolescência nos há-de curar. Depois, quando a vida começa a declinar tornamo-nos de novo sonâmbulos, evitando, sempre que for possível, que a realidade nos incomode em demasia.

sábado, 20 de julho de 2019

Trabalhos manuais

Peguei num romance que começa com uma descrição de soldados de papel. Os primeiros são os couraceiros cabeças-redondas de Cromwell, os quais acabaram por ajudar ao funesto desenlace que levou Carlos I ao cadafalso. Talvez a decapitação faça parte das prerrogativas reais, pensei. A história está cheia de regicídios, mas hoje é sábado e o melhor é não pensar em coisas dessas. Voltando aos soldados de papel, lembrei-me que havia quem coleccionasse soldadinhos de chumbo. Talvez existisse gente que coleccionava soldadinhos de papel ou, melhor, de cartão. Por falar nisto, lembrei-me de um fatídico acontecimento da minha existência. No meu tampo, havia, para além do exame de admissão, um exame da quarta classe. O mais difícil para mim era, de longe, a prova de trabalhos manuais. Tínhamos de apresentar uma obra construída pelas nossas próprias mãos. Havia quem fizesse navios em madeira e outras coisas que eu nem imaginava serem possíveis. Eu, pobre de mim, não sabia o que as minhas mãos poderiam fazer. Não sei como nem porquê, calhou-me construir um moinho de cartão. Tinha de recortar as figuras e montá-las, fazendo dobragens e colando. Uma tortura. O pior foi que não conseguia colar aquela geringonça. A professora ao aperceber-se da minha inépcia, perguntou-me que cola estava a usar. Ao constatar que o problema não era da cola, deu-me três estalos na cara. Nesse momento devo ter tido pena que ela não fosse Carlos I de Inglaterra e eu, no abandono dos meus nove anos, um Cromwell justiceiro. Não sabia, porém, história de Inglaterra e limitei-me a ficar calado. A verdade, porém, é que a senhora não perdeu a cabeça no cadafalso e eu lá consegui colar o moinho. Nunca deixei de odiar os trabalhos manuais.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Ó sôtoura

Ó sôtoura, como está? E a família? Silêncio. Tudo bem, tudo bem. Ah sim, sim. Silêncio. Tem razão, tem razão. Silêncio. Também sou da sua opinião. Avançamos assim. Silêncio. Claro, claro. Acho que é o melhor, sôtoura. Nada a perder. Silêncio. A minha mulher é da mesma opinião. Silêncio, a mulher ao lado faz um esgar de concordância. Avançamos, avançamos. São indecentes. Silêncio. Pois, pois, logo se vê. Silêncio. Se achar melhor, passo por aí um dia destes. Silêncio. A sôtoura é que sabe. Silêncio. Cumprimentos lá em casa. Prazer em ouvi-la. Silêncio. Nada melhor que estar numa sala de espera de uma daquelas clínicas onde vão pessoas que só se dão com sôtouras e sôtoures e têm negócio entre mãos ou sabe-se lá entre quê, pensei enquanto deixava correr o tempo até que me libertasse da missão que ali me prendia. Nunca deixa de me espantar um certa casta de pessoas que insiste em partilhar com os outros a sua vida, talvez porque julguem que os outros não existem, ou por considerem a sua vida tão gloriosa que nos oferecem o relato para que, nós pobres mortais, sejamos iluminados e participemos, ainda que só por ouvir dizer, daquela glória mundana. Estas pessoas estão sempre a avançar, com tanta edificação, enquanto eu não avanço nem recuo. Mantenho-me parado, tão parado que, ao pé desta gente que avança sem parar, sou uma autêntica e genuína estátua. Ó sôtoura, também eu posso avançar?

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Do estado de ânimo

Os ânimos andam agastados por esse mundo fora. Talvez as pessoas não saibam o que hão-de fazer com a vida que receberam e então, para passar o tempo e enquanto a morte não chega, agastam-se umas com as outras, com a pátria e o mundo. Entregam-se a vitupérios e exprobrações, parecem prontas para lançar frondas por tudo e por nada. Nunca na vida imaginei, é curta a minha imaginação, que houvesse tantos cavaleiros andantes. Cavaleiros e amazonas, diga-se, pois também há por aí umas senhoras exaltadas, de prosápia em riste, que, como os justiceiros masculinos, estão dispostas, se crermos no que dizem, não só a tornar patente a estupidez dos outros como a ocupar o lugar da padeira de Aljubarrota, mas agora montadas a cavalo e brandindo a espada da sua inexcedível superioridade. Pensava sobre tudo isto enquanto caminhava pelas ruas aqui perto. Esperava-me uma daquelas tarefas a que não nos podemos eximir ou que decidimos que não nos podemos eximir porque a queremos executar. Contrariamente ao estado do mundo, as pessoas por aqui andam de ânimo calmo, não se lhes nota outras motivações senão aquelas que decorrem das necessidades que a vida impõe. Vão às compras, falam de futilidades, adornam-se conforme podem e caminham devagar sob a luz solar. Daqui, parece-me certo, não partirão exércitos para pôr o mundo nos eixos nem gente para endireitar o que está torto, e isso, confesso, deixa-me feliz e tranquilo. É melhor deixar passar o tempo com bonomia do que entregar-se à exaltação que sempre anima os cavaleiros andantes e as padeiras de Aljubarrota que pululam nesse estranho espaço virtual a que se deu o desditoso nome de redes sociais.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Vida civilizada

Se as pessoas não fossem tão susceptíveis, diria que hoje está um dia glorioso. Uma luz suave, um céu densamente nublado e, acima de tudo, sem o calor sufocante de Julho. Sento-me à secretária e faço o que tenho de fazer. Num dia como o de hoje é um exercício menos penoso, quase sou levado a crer que o que faço merece ser feito. Sei que não, mas a capacidade que o tempo me deu para me iludir parece ser um recurso inesgotável. Se não me iludisse, penso de imediato, a vida seria insuportável. A realidade é um monstro malcheiroso e a verdade tem um peso para o qual os ombros humanos não foram feitos. Isto lembrou-me aquelas pessoas que dizem sou muito frontal, digo a verdade na cara de toda a gente. Eu sou um caso perdido. Dispenso frontalidades e evito dizer a verdade sempre que posso. Não é por mal, nem por cobardia, mas por delicadeza. Por que razão hei-de submeter os outros à minha sanha de dizer verdades? A vida civilizada não é mais que um exercício prolongado de esquecimento da verdade. Será que estou a dizer a verdade ou estou, civilizadamente, a mentir? Ainda bem que as nuvens continuam firmes no seu lugar.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Esperança

Fui à caixa do correio e não havia nada. Espera-se sempre alguma coisa, mas a esperança, o mais das vezes, é infundada. Um dia não haverá caixas de correio, nem correio, nem gente que faça esse trabalho de trazer aquilo que a esperança espera. O futuro é uma incógnita, digo-me para me consolar. Olho para a rua e o céu está cinzento e sinto a opressão da atmosfera. Também aqui o corpo reclama, com esperança, uma tempestade. Não daquelas que chega e, num ápice, destrói meio mundo. Queremos sempre coisas à medida, nunca nos contentamos com aquilo que há. Uma tempestade ligeira, com chuva, relâmpagos e trovões, e a opressão desapareceria. Seria libertadora. Tenho de me despachar. Alguém está à minha espera daqui a pouco. Eu não sou mensageiro de boas notícias, constato. Que mania de dividir as coisas em boas e más. A vida passa indiferente às minhas pobres avaliações. É apenas um pulsar cego, sem causas nem desolações. Não espera nada e ri-se de quem, perante o seu império, fala de esperança.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Questões de igualdade

Os irmãos têm uma propensão inextinguível para a igualdade ou, talvez seja mais acertado, um sentido fino e doloroso para as desigualdades que sofrem. Ontem, depois de se combinar com a neta mais velha o almoço de hoje, a irmã, excluída por razões espácio-temporais, reivindicou de imediato o direito de ir almoçar sozinha com os avós. Exclusão com exclusão se paga, pensei. Ficou prometido. Não há nada que requeira mais cuidado e sensibilidade que a gestão das diferenças entre irmãos. Hoje, quando saí para o almoço combinado, o sol caía sobre a pele como uma lâmina afiada, abrindo sulcos por onde o calor penetrava no corpo, para explodir por dentro, liquefazendo o sangue e inundando a pele com um suor insuportável. Não nasci para este tipo de temperaturas, pensava, enquanto a neta exultava com as actividades da manhã, bendizia o facto de estar a jogar à neta única e, para meu pesar, cantava loas ao Verão. Agora que ela voltou para onde estava, tenho de lhe ir comprar um livro, mas já não me lembro do título. As pessoas arrastam-se, procuram as sombras e, apesar da inclinação estival que trazem no coração, talvez tenham uma leve nostalgia dos dias em que o inferno não fazia propaganda na Terra.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Cirurgia ocular

Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos, a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial, como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera, fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente, por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada. Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Ainda é cedo

Combinando esplendor e volúpia, as árvores da avenida lançam uma sombra lenta e furtiva sobre a brancura calcária dos passeios. Vejo-as de cima, a exuberância da copa batida pela aragem, o verde tisnado pelo sol de Julho, e respiro fundo. A tarde caminha como uma rameira fugitiva, mas muito ainda terá de penar até se entregar, não sem prazer, nos braços da noite. São assim os dias por aqui. O peso do céu esmaga a terra e as pessoas vão rua fora, oficiando paciências, esperando que a vida resolva o que nunca resolverá. Perambulo pela casa como se fosse personagem de um romance de Xavier de Maistre e descubro sempre um motivo de interesse. Um livro de que me esquecera fora do lugar, um CD que não oiço há muito, a fotografia de algum neto, outra em que estou ao colo da minha avó materna. Entre avó e neto vão cinco gerações, penso enquanto me aproximo de outra janela. Na praceta, lá em baixo, não se vê vivalma. Ao longe, os carros estacionados no Hospital reverberam, enquanto as paredes do edifício escurecem sob o peso das colónias de fungos. Encaminho-me suavemente para o sítio onde, benevolente, a loucura me aguarda. Ainda é cedo, digo ao olhar para o relógio.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Estados de alma

O mais assisado é não ter estados de alma. Este tipo de pensamento acomete-me muitas vezes, principalmente quando sou confrontado com as coisas inúteis que o destino me destinou. Ora, se o destino as destinou, quem és tu, pobre mortal, para te insurgires? Nada de insurgentes, diz-me a consciência. Então, antes de me irar, recorro à ataraxia, essa tranquilidade de ânimo ou ausência de inquietude. Faço-o, não porque o ânimo me seja tranquilo por natureza ou porque, em verdade, não seja inquieto. Faço-o porque gosto da sonoridade do vocábulo. Os antigos cultores da ataraxia tinham um objectivo moral. Eu tenho uma razão estética, o som da palavra. Por outro lado, com esta idade, irritar-me é uma coisa desagradável. Por isso, levanto-me e, à janela, fico a olhar demoradamente o horizonte. Este não me defrauda. Mantêm-se inalterado e não me pede nada que não seja olhar para ele. Ali em baixo, as pessoas passam e também elas desejam não ter estados de alma, mas não sabem o que é a ataraxia e a alma, tomada de inquietações, logo lhes salta dentro do corpo.

domingo, 7 de julho de 2019

Novas pedagogias

Entardeço nesta tarde de domingo. O corrector ortográfico do Word solidariza-se comigo e sublinha a vermelho a palavra entardeço. Um erro. Ainda bem que já não estou na escola primária, onde a partir de três erros o professor se entretinha a aplicar uma reguada por cada nova ofensa à ortografia, uma senhora então muito digna de respeito. Era um exercício didáctico da melhor qualidade, que o digam aqueles – eram sempre os mesmos – que cada vez que calhava haver um ditado saíam de lá com as mãos a arder. A eficiência era nula, mas o prazer – prazer pedagógico, note-se – do professor devia ser imenso. O corrector do Word pertence já a uma nova mentalidade educativa, talvez influenciada pela OCDE. Sublinha a ortografia desviada a vermelho e a sintaxe inovadora a verde. Dá conselhos em vez de reguadas. Na verdade, é um corrector patriótico e republicano, preocupado em que não esqueçamos a bandeira nacional, admoestando-nos com bonomia e espírito liberal. Seja como for, tenho de lhe agradecer. Não me reconhece a possibilidade de me tornar tardio. Eu que sempre fui serôdio em tudo, que tenho por sina chegar tarde aonde os outros só chegam cedo, não posso entardecer. No entanto, o mesmo corrector permite-me escrever amanheço sem sublinhar o vocábulo. Talvez haja aqui uma insinuação, cujo significado prefiro ignorar.

sábado, 6 de julho de 2019

Uma tarde de Julho

O telemóvel informa-me que aqui mesmo estão 28º e o céu parcialmente nublado. É verdade, pelo menos as nuvens cobrem o sol. Num sábado de Julho as coisas não estão más. O normal seria estarem uns 38º ou 40º, as pessoas afogueadas, a arrastarem-se pelas sombras e a maldizer S. Pedro, o verdadeiro mentor dos estados do tempo. O santo tem sido condescendente. Talvez ele próprio ande um bocado desregulado, tenha perdido a tramontana e esquecido as noções básica de espaço e tempo. Mesmo que seja grande a sua santidade, também os santos se gastam. O que eu queria dizer é que estou grato pela amenidade climática. Esta temperatura só me dá sono, mas não me desregula o humor e não me faz pensar em coisas que uma pessoa de bem nunca deve pensar. Enumero as tarefas inúteis que ainda tenho para fazer. São algumas, constato. Hei-de fazê-las, pois o bem da humanidade depende delas. Oiço os latidos de um cão. Oiço palavras cujo sentido me escapa. Oiço a arenga de um pássaro que não se cala. A tarde desliza devagar e, não tarda, a cabeça vai pender, os olhos fecharem-se e hei-de ressonar em harmonia com o que oiço. Longínquas estão as tarde de Verão em que uma voz imperiosa me mandava dormir. Eu fechava os olhos, contava os minutos, cheio de inocência, e nunca dormia. Abominava a tortura. Agora é o que se vê.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Das semelhanças

Passei por uma pessoa conhecida, uma mulher que se aproximará da casa dos cinquenta, que não via há muito. Surpreendeu-me que se tivesse tornado tão parecida com a mãe, como se o tempo se aplicasse a seleccionar aqueles traços que, durante décadas dissimulados, estabelecem uma relação com o passado e assim tentasse eliminar os que diferenciam e são arautos de um salto na estirpe. A natureza, ponderei enquanto trocava algumas palavras de circunstância, é mais cuidadosa do que se pensa e tem horror ao desconhecido. Poderia ter evitado este antropomorfismo, mas não me apetece. Hoje acordei e ao ver a paisagem coberta por uma bela neblina comecei a atribuir sentimentos e objectivos humanos à pobre natureza, pura e inocente de todos esses pecados. Uma pessoa prudente evitaria atribuições dessas, passou-me pela cabeça, enquanto me despedia. Logo segui o meu caminho e esqueci as semelhanças, a natureza e a própria prudência. Na paisagem árida da minha mente, talvez motivadas pelo vazio, passam muitas ideias que melhor fora nunca tivessem vindo à existência. O pensamento, porém, é um cavalo selvagem e a mim faltam-me os dotes e a paciência para o domesticar.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Inconstância

Chego à janela e olho lentamente o céu. Os dias continuam nublados e isso é uma bênção. As pessoas protestam porque o Verão parece ter sido adiado. Protestariam se ele tivesse vindo exuberante, aninhando-se no desconchavo dos dias e daí lançasse uma cortina de fogos, que haveria de lembrar o inferno, com anjos caídos, horrendos, negros como baratas. Por falar em anjos caídos, sempre poderia dedicar-me a escrever uma angelologia. Dividir os anjos entre fiéis e rebeldes, e discutir a magna questão se Adão foi criado ou não para que os homens substituíssem no céu o lugar daqueles anjos que se deixaram levar pela empáfia e sofreram, mesmo destituídos de corpo, os efeitos terríveis e inexoráveis da gravidade. Como se vê, sou inconstante de objectivos. Comecei a propor-me falar de anjos e logo mudo de opinião e quero discutir a origem dos homens. Desconfio que, a continuar assim, ainda acabo a perguntar-me sobre a génese dos percevejos. Seja como for, o céu continua cinzento. As nuvens não deixam que se avistem os anjos bons e os maus, como se sabe, andam demasiado ocupados a sugestionar os pobres mortais, semeando-lhes searas de armadilhas para que eles, levados pelo descaso, se percam e a sua alma fique mais escura que um tição.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Julho

Só hoje dei por Julho ter chegado. Sabia que o calendário indicava que estávamos em Julho, mas este ainda não se apresentara diante de mim, mostrando-me credenciais e comprovativo de existência. Esta frase fez-me lembrar uma peculiaridade da burocracia nacional, a certidão de nascimento. Apresento-me, identifico-me com o bilhete de identidade, mas alguém diz: prove que nasceu. É um exercício difícil provar que se nasceu. Vale-nos a certidão. Também Julho apresentou a sua certidão de nascimento. Isto não torna as coisas mais fáceis. Pelo contrário. Há pouco peguei num livro onde um filósofo actual me informa que “jamais poderemos ter a esperança de tornar as nossas palavras perfeitamente precisas”. As pessoas esperam pouca coisa, pensei. A minha esperança é que as palavras se tornem perfeitamente imprecisas. Assim ao dizermos uma coisa, o leitor suspeita que estamos a dizer outra e isso parece-me muito consolador. Acabariam os mal-entendidos. Olho o céu, e uns cirros mancham a pureza do azul. Cá em baixo, na terra, os homens apressam-se pela avenida. Temem chegar tarde ao comboio que os há-de levar a Agosto.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Ares de família

Respiro fundo e penso que este é um belo exercício para clamar a vinda da paciência. Estou há horas numa tarefa repetitiva, destituída de sentido, fabricada por gente misericordiosa, sempre activa na descoberta da melhor forma de fazer da vida dos outros um exercício de penitência. Talvez eu mereça, mais que qualquer outro, essa penitência. A estupidez é um pecado capital que se paga caro e eu não me distingo particularmente pela inteligência. Decidi acompanhar o ir e vir do látego com as sonatas para piano de Beethoven. A certa altura, estas tornaram-se também elas repetitivas. Não percebia já o movimento da música, apenas ouvia, como se viesse de outro mundo, o martelar ameaçador das teclas. Parei. O Youtube ofereceu-me, então, as sonatas de Schubert pelo Claudio Arrau. Olho para a fotografia deste e acho o seu rosto, marcado pela idade, uma estranha combinação entre Nietzsche e Arnaldo Matos. Não estou bem, pensei. Levanto-me, esfrego os olhos, dou uns passos pela casa. Chegou a hora das alucinações. Troco o Beethoven pelo Schubert e volto à expiação. Antes de recomeçar ainda me pergunto: Nietzsche, Arrau e Arnaldo Matos seriam primos? As voltas que a vida dá.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A verdadeira arte

Podia vir aqui contar a história do faroleiro Richard Garman, mas não o faço. Há que evitar o excesso de ficção e, desse modo, propagar histórias falsas por esse mundo fora. Já basta o que basta. Também é verdade que não haveria quem a ouvisse. Inspirado por Santo António, sempre a poderia contar aos pássaros meus vizinhos, mas estes parecem-me demasiado ocupados para se entreterem com o que lhes pudesse dizer. Esvoaçam diante da janela, poisam no parapeito, fazem tangentes arriscadas à esquina do prédio. Acima de tudo, não se calam e eu não sou santo o suficiente para lhes fazer entender a minha língua. A luz desta segunda-feira tem o condão de me irritar. Há nela um sintoma de falsidade, uma mancha esbranquiçada que alastra pelas paredes e telhados, um odor a trevas mascarado de brilho. Não sou daqueles que na natureza vêem o metro da virtude. Também ela é dissimulada, pronta a fazer-nos cair numa armadilha. Eu sei que o que estou a escrever não tem nexo, mas também eu perdi há muito o norte. Acima de tudo, esforço-me por adiar aquilo que tenho de fazer. Ainda oiço o sagaz conselho que estava num daqueles livros de instrução pública que me calharam em sorte: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Pobre sagacidade e infeliz conselheiro. Há coisas que o melhor é nunca as fazer. Procrastinar é uma arte. A verdadeira arte.