domingo, 13 de dezembro de 2020

Ócio dominical

Quando há pouco olhei para a rua, o dia estava turvo, uma mancha de cinza húmida flutuava na atmosfera e caía lentamente no chão. Agora, porém, apesar do céu revestido por nuvens cinzentas, tudo se tornou definido como acontece quando se limpa os óculos sujos e embaciados. As cores tornaram-se mais vibrantes, os amarelos e castanhos das folhas mortas, os verdes daquelas que persistem por dentro da invernia, até os tons baços de muros e paredes ganharam uma nova vibração, um som mais musical. Das caves esconsas dos prédios saem automóveis para enfrentar as exigências de domingo, enquanto, sentado no escritório, bebo café e como uma fatia de bolo-rainha. E ao escrever isto, logo me maravilho com o progresso da igualdade entre géneros. Se não fosse excessivamente brejeiro e dado a más interpretações, diria que antigamente só o bolo do rei podia ser comido, agora também o da rainha se alcandorou ao êxtase da deglutição, mas para evitar mal-entendidos e interpretações falsas e ociosas afirmo que não escrevi o que acabaram de ler. Isto podia mesmo ocultar o mais importante. Assim como o arquitecto divino da costela do homem extraiu a mulher, também um pasteleiro humano de uma amêndoa torrada perdida no bolo-rei gerou o bolo-rainha. E em ambos os casos o segundo produto excedeu em larga medida a qualidade do primeiro. O que prova que Deus escolheu a melhor costela do homem, e o pasteleiro teve a sensatez de evitar criar o novo produto a partir da lamentável fava. Apesar da triste superficialidade do meu escrito, as cores continuam vibrantes, assim como a música que delas se desprende e inunda o universo até às esferas celestes. Como é belo o ócio dominical.

sábado, 12 de dezembro de 2020

A angústia progride

Atravessei há pouco parte da antiga vila, a zona a que por vezes, e talvez sem ironia, chamam histórica. Fico sempre sem saber se estou num filme distópico, uma pós-catástrofe, ou se num daqueles em que a desolação de certas zonas da América é trazida à luz por algum realizador arguto. Numa esplanada, havia pessoas sentadas, hirtas, umas de máscara e outras sem ela, mas todas olhavam para um sítio indefinido que parecia ter deixado de existir há muito. Prédios caídos, paredes por pintar, um comércio feito de ausências, uma tristeza sem fim, como se o futuro tivesse sido arrancado àqueles lugares e agora apenas existissem rugas e ruínas, memórias desfeitas, gente que se perdeu no caminho e ficou parada num tempo que não existe. Ocorreu-me que também eu não destoaria daquele cenário e acelerei o carro, afastei-me o mais depressa que a lei me permitiu. Depois, a tarde começou a enegrecer, a traçar as linhas que a haveriam de levar ao crepúsculo. Quando estacionei e saí, senti-me impelido a dar um pequeno passeio a pé, para me lavar por dentro, para dissolver o óleo rançoso que se acumulara. Agora a noite anuncia-se nos altifalantes de Dezembro, numa voz delida, numa pronúncia cansada. Enquanto escrevo, olho as acácias. Algumas folhas incertas resistem ao avanço da invernia, uma ambulância pára na urgência do hospital, assim a imagino a partir dos clarões azulados que rasgam a escuridão.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Da virtude do fingimento

Ó noite benfazeja, mãe do repouso, madrasta da preocupação! Começar um texto assim, tão exclamativo, tão cheio de pathos, não lembra ao corcunda do demónio. A mim também não me lembrou, mas não encontrei um outro e mais decente começo. O dia, mais pequeno que o de ontem, esteve sorumbático. Chuvoso, flébil, plangente, lacrimoso. Infeliz (ainda não me cansei de adjectivar), envolto numa capa de sombra e cinza. Podia contar uma série de peripécias, mas são humanas, demasiado humanas, deixemo-las desfazerem-se com o passar das horas. Uma das coisas mais curiosas que me coube em sorte é a de me pôr a discutir assuntos que não me interessam para nada. Por vezes, consigo fingir por eles uma paixão que me falta em absoluto. Fingir paixões seria motivo de longa análise em sessões de terapia, caso fosse inclinado para ela e tivesse dinheiro suficiente para as múltiplas sessões semanais que me haveriam de recomendar para que o meu infeliz caso pudesse ser tratado. Já me imagino no divã a fazer associação livre e a contar sonhos que não tenho. Seja como for, não há qualidade social mais elevada do que o fingimento. É um exercício para não perturbar os outros, para evitar que transcorra da nossa mente perversa opiniões malévolas, enviesadas, e assim contribuir para a paz social. Uma das coisas que tenho reparado é que a sexta-feira é um dia propício para escrever as maiores idiotices da semana, mas é o que me ocorre.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Crítica de arte

Acabo de receber uma mensagem do antivírus do telemóvel. Não se trata de me informar de um ataque das forças maléficas, mas de um exercício de crítica de arte. É verdade, o meu antivírus tem uma função que faz crítica artística. Não raras vezes, invade-me o monitor e informa-me que certas fotografias são de má qualidade. Se não quero eliminá-las, pergunta. Desculpa-se, mas não passa de dissimulação, que é material que ocupa espaço e, como se sabe, nestas coisas o espaço é valioso. Na realidade, apenas pretende sublinhar que não nasci para fotógrafo e seria mais razoável desactivar a câmara. Ele não o diz, mas bem o percebo. O mundo virtual ganhou demasiado autonomia, penso, enquanto olho o negro da noite a sugar a cidade. Dezembro completou a primeira dezena de dias e também todas as suas promessas têm pouca realidade. Tenho algumas coisas para fazer, mas o corpo está inclinado para o sossego e adiá-las parece-me um bom conselho. Fecho os olhos, apoio a cabeça na mão e deixo o tempo fluir. Haverá de me fazer falta, mas se fosse lamentar tudo o que me fará falta, bem podia não fazer outra coisa na vida. Oiço uma pequena composição de Arvo Pärt com o nome de O Grito do Veado e medito que muitas são as maneiras como o universo lança gritos ao alto e que a Terra é lugar de uma grande gritaria. Não faltarão razões. Os dias estão estranhos é o quero dizer e agora calo-me.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Invernia

Uma pequena invernia caiu sobre esta quarta-feira. O frio desce sobre a cidade trazido pelo vento, pela chuva, pelo cansaço com que o Outono se arrasta para o sarcófago onde se depositam, ano após ano, as estações mortas. A realidade, depois de uns dias de ausência, veio bater-me à porta. Não com a mão estendida de quem pede esmola, mas com o dedo em riste de quem dá ordens severas. Cumpro-as para fingir que sou bem-comportado. Não há nada melhor do que um belo fingimento. Não por que haja alternativas ao fingimento, mas porque ele pode ser horrível. Há que salvaguardar as aparências. Um célebre teólogo alemão, cujo nome italiano omito, tem um texto chamado As Idades da Vida. Abri-o e folhei-o até chegar ao que seria a minha idade. Deveria estar na era do homem serenado, mas desconfio que, devido a uma inclinação para o serôdio, chegarei lá tarde, talvez demasiado tarde. Ainda há dias me propunha escrever o livro do sossego e agora nego-me a serenidade. Com dias como o de hoje tudo pode acontecer. Vou fazer o que tenho a fazer e esperar que ele passe.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Da imaculada concepção

Um velho Mercedes preto ostenta-se com demora pela Sá Carneiro. As tílias, se o são, lutam em desespero contra o vento, pretendendo, sem êxito digno de crónica, segurar as folhas que restam aos ramos quase despidos. No céu a cinza das nuvens abre-se, uma ou outra vez, e deixa passar alguns raios de sol sem brilho, presos a um pudor de antiga virgem toldada de inocências. Oiço vozes na rua, gente que troca palavras para assustar o silêncio, tanto o temem, ou talvez seja eu que tenhas audições imaginárias. Nunca escreveria o que Peter Handke escreve no seu longo Poema à Duração: No sossego desses lagos / sei o que faço / e, sabendo o que faço, / fico a saber quem sou. Perfilho uma outra ideia. Quanto mais sei o que faço, menos sei quem sou. No sossego dos lagos, pediria a graça de esquecer o que faço e que sobre mim descesse um enorme silêncio. Falta-te fé na praxis, disse-me um dia o meu amigo Rogélio. Não o desmenti. Sisto IV, em 1477, decretou o dia de hoje como o da Festa da Imaculada Conceição, e Pio IX, em 1854, definiu a Imaculada Conceição como dogma dos católicos. Não imaginou ele que, um dia, ninguém sequer entendesse o que era um dogma, quanto mais uma concepção imaculada, embora todos fiquem gratos – continuo dado à hipérbole – pela dispensa dos negócios do mundo. Recebo, primeiro, um vídeo e, depois, uma foto. No primeiro, vejo o meu neto a pintar com aguarelas sobre uma folha de papel pautado. Na segunda, deparo-me com uma daquelas pinturas que só as crianças de dois anos sabem fazer, porque é imaculada a sua concepção. A da pintura e não a das crianças. Presumo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Não ter mão no caminho

São múltiplas as traduções que se propõem para Jeremias, 10, 23, mas a de que mais gosto é a que diz e não está na mão do homem o seu caminho. A tradução de Frederico Lourenço, feita a partir do grego, aproxima-se e diz não é do ser humano o caminho dele. O versículo continua para dizer que não cabe ao homem estabelecer o seu próprio itinerário. Esta velha sabedoria acumulada pela experiência da decepção contraria radicalmente os desígnios do homem moderno, ciente de que não apenas faz caminhos como está convencido de que em sua mão reside o poder de os trilhar. Com toda esta conversa inútil e de aparência beata, quero apenas dizer que me sinto excluído da modernidade. Não sou construtor de caminhos, nem de estradas, nem de rotas marítimas ou aéreas, e não tenho sequer os meus próprios passos na mão ou mesmo no pé. Neste fim-de-semana que se prolonga, hoje é o segundo dia em que os meus pobres planos se revelaram enganadores, se furtaram ao meu desejo e à minha direcção. O que me vale, digo-o sem ironia, é que não conheço ninguém que não seja moderno e não tenha a sua vida nas próprias mãos. Por certo, haverá por aí outras aves perdidas, sombras que, como eu, se enganaram no tempo para nascer e em vez de terem aterrado na Idade Média vieram parar aos dias de hoje. Talvez não fosse nada disto o que queria escrever, mas as frases começam a sair e não há quem lhes ponha mão. Hoje o dia está dado a intermitências. Ora chove, ora faz sol. Tenho de me despachar, pois aquilo que eu não tinha programado chama por mim, como a mais urgente das coisas que há no mundo.

domingo, 6 de dezembro de 2020

O grande livro do sossego

Ontem, após as diligências da manhã, tive a ousadia de pensar numa tarde tranquila, onde me pudesse entregar aos meus devaneios, sem que o mundo e a realidade – raramente são a mesma coisa – me viessem bater à porta. Só uma mente capturada pela mais profunda estultícia, como acontece com aquela que recebi para me guiar na vida, se arroga a estes planos sobre o futuro, mesmo o a mais curto prazo. Este não quis saber dos meus pobres planos e entregou-me ao frenesim de um conjunto de actividades a que tive de me submeter e submeter outros, para desassossego do meu espírito. Contrariamente a certo poeta que, sob o véu da heteronímia, escreveu um livro do desassossego, o meu objectivo é escrever, caso a gramática e o léxico me ajudem, o livro do sossego, o grande livro do sossego. Há uma nobreza sem fim na quietude de espírito, digo-me ao olhar agora para a rua. Está um domingo esplêndido, feito de cinza e humidade. Nele o vento não bole e todos os ruídos da mecânica do mundo parecem suspensos. Depois surgem sob os olhos frases magníficas como a que Ernst Jünger escreveu no seu belo romance Sobre as Falésias de Mármore, referindo-se ao padre Lampros: Ele, que vivia como um sonhador por detrás dos muros de um convento, talvez fosse de todos nós o único a conhecer a plenitude da realidade. Isto explica todo o meu conflito com essa realidade. Como também não me foi dado o dom de sonhar, não tenho meios para conhecer o real. A manhã dominical progride, os crentes apressam-se para a Missa do meio-dia em S. Pedro e eu olho para a rua e vejo o Outono a desfigurar-se lentamente no grande palco do mundo. É uma pena.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Uma obra da natureza

Os dias continuam volúveis. Anunciam-se cheios de sol, mas logo se deixam seduzir pelo canto flébil das nuvens, cobrindo-se de uma luz anémica. A meio da manhã, ainda o dia estava exuberante, tive de sair para dar umas voltas urgentes e resolver alguns assuntos. A cidade, vista de dentro do carro, parece bem mais anémica do que o dia, havendo nela uma tristeza e melancolia que anunciam os dias do abandono, a rasura estrita da memória. O castelo, porém, com a estátua do rei que deu o foral, permanece vibrante, enviando a sua luz feita de séculos sobre as inquietações de quem por aqui vive. Na avenida marginal, vi alguns patos, mas não parei para ir espreitar o rio, para lhe saber o caudal e a disposição com que corre para os braços de um outro, bem maior e mais poderoso. Em todo o lado se vêem hierarquias, pensei, talvez sejam uma obra da natureza, apesar da palavra designar literalmente a autoridade do sagrado. Se me desse a especulações teológicas, não seria desagradável meditar na sacralidade da natureza ou na natureza do sagrado, mas esse dom não calhou no lote que me foi destinado. De súbito, um raio de sol fendeu o paredão de nuvens e caiu sobre uma oliveira da escola ao lado. A árvore cintila, dançando entre a cinza e a prata, enquanto o vento lhe faz tremer os ramos. Ao longe, um veículo pesado de mercadorias cruza-se com uma ambulância que arremessa para os ares fulgurações de azul, indicando a pressa que tem para chegar ao destino. Sentado, vejo tudo isso e penso que já faltarão pouco dias para o Outono se despedir. Então, constato que todos os meus pensamentos são puros e inúteis, e isso alegra-me.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Verrumar a razão

As tardes de sexta-feira ganharam uma inclinação para a rapidez. Mal se desvia os olhos e a noite já tomou conta da cidade, esmagando-a entre a humidade da terra calcária e a capa de cobre do veludo da noite. Seria aconselhável evitar estes tropos, mas é possível que numa outra vida tenha gasto o tempo no cultivo da retórica. Nunca se sabe o que nos pode acontecer, diz-se, mas ainda menos se sabe o que nos pode ter acontecido. Nisto não há nenhuma adesão à possibilidade da reencarnação, mas ajuda a escrever o texto. Devia levantar-me da secretária e ir fechar as janelas da sala lá do fundo, mas ainda não ganhei coragem para enfrentar, por segundos, as iluminações de Natal da Sá Carneiro. Mergulho na ideia de um fim-de-semana prolongado, graças à estranha combinação entre uma pandemia viral e a imaculada concepção da Virgem. Isto prova que mesmo o mais afastado se pode tornar próximo. Se estes estranhos encontros têm o condão de alegrar o espírito, a colecção de dogmas que presidem à religião que esta pátria em tempos praticou é uma aguçada ferramenta para verrumar uma pobre razão habilitada apenas ao que não tem mistério nem contradição. Se alguém me acusar de ter escrito o que escrevi, desde já o desminto.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Metamorfoses do dia

Estes dias de Outono lembram os belos dias ensolarados de Inverno. O sol, apesar de cintilante e vigoroso, traz à memória temperaturas baixas, o desejo de vestir roupas quentes e andar pelas ruas para desfrutar a luz. Isto escrevi-o ao meio-dia, mas, para provar que tudo está submetido ao império da metamorfose, o rosto do dia alterou-se radicalmente e ainda não são quatro da tarde. O sol está tão anémico que nem uma colher de óleo de fígado de bacalhau seria capaz de o revigorar. Atravessei a cidade várias vezes e não vi nada de notável. A culpa não é da cidade, mas dos meus olhos que se habituaram de tal maneira que até o mais excepcional, caso exista por aqui, passa incógnito no meio do que se tornou comum. Leio que um milhão de portugueses já deve ter tido contacto com o vírus. Através de email, enviaram-lhe um postal de Boas Festas, falaram por telemóvel? Pena que o vírus não seja dado à meditação melancólica e solitária, ao refúgio num eremitério. Nada pior do que vírus exuberantes, amantes da comunicação, sempre prontos a participar em festas e romarias. Uma carrinha comercial pára debaixo da acácia desfolhada, sai dela uma mulher vestida de verde seco e máscara branca, arrasta dois sacos de compras para a entrada de um prédio e desaparece. A carrinha faz então uma manobra, retoma a via e também desaparece na curva. E nestes acontecimentos está toda a sabedoria do mundo. Coisas e pessoas aparecem e desaparecem, e mesmo que deixem rasto, ele logo se há-de apagar.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Presentes de Natal

É a hora em que se coloca o problema dos presentes de Natal, e um enorme tédio faz-me abrir a boca e bocejar. Depois destes anos de experiência, cheguei à conclusão de que a ideia de Baltazar, Belchior e Gaspar foi nefasta e estragou o espírito do acontecimento. Ficou tudo encadeado, literalmente preso por cadeias, com o ouro, o incenso e a mirra, que logo a alucinação se espalhou, com toda a gente a pensar que é o Menino Jesus e que os outros são Reis Magos. Trata-se do Natal e não do Carnaval. Ninguém percebe isso? Neste, as pessoas podem disfarçar-se à vontade, inclusive de Menino Jesus e de Reis Magos. Certamente, ninguém levaria a mal. Eu sei que a indústria e o comércio do Natal precisam de viver, mas o exercício, além de inútil, é cansativo, mesmo com o recurso ao comércio online. A escola aqui ao lado, depois de uns dias de interregno, voltou a funcionar, há alunos nos campos de jogos e ninguém ali parece preocupado com as compras de Natal. A grande notícia do dia é que a senhora directora-geral da saúde foi apanhada pelo vírus, embora eu esteja convencido que mais importante do que isso foi a Batalha de Austerlitz, que ocorreu há 215 anos. Uma coisa é certa, o vencedor da batalha não será contaminado pelo novo coronavírus. Nem pelo velho, assinale-se. Ficou imune.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

No último mês do ano

Como quem não quer a coisa, o ano entrou no seu último mês. Hoje é feriado. Comemora-se a hora em que se decidiu acabar com o domínio de um rei castelhano. O acontecimento já não comove ninguém. Dei uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais. Apenas o i aproveita a ocasião para ouvir o melancólico pretendente ao trono de Portugal, que lá se encontra retratado com um boné na cabeça, para nos lembrar que será um homem da lavoura, um daqueles portugueses saudavelmente ligados à terra. Ontem, o meu neto veio, com os pais, cá a casa, já a noite tinha caído. Quando entra na sala decorada para o Natal, com a árvore e os presépios, pára a meio, abre a boca e olha espantado e encantado para o que o rodeava, não sabendo para onde se dirigir, nem o que fazer, atónito que estava. Vai ter pela primeira vez consciência de que o Natal é um tempo diferente. Talvez fosse a essa atitude que os filósofos gregos atribuíam o nascimento da filosofia. Refiro-me ao abrir a boca e arregalar os olhos, como se a vida e o mundo contivessem uma oferta de prazer que transbordaria qualquer medida. Na praceta aqui em baixo, pais e filhos desfrutam o sol do feriado. Em nenhum lado, porém, pressinto a vontade de pegar num qualquer Miguel de Vasconcelos e defenestrá-lo. Isso tranquiliza-me. É um sintoma de que nos tornámos um pouco mais civilizados. O que se passou, quando o corpo do agente castelhano caiu na rua, não foi coisa bonita de se ver. É o que dizem. Nesse dia eu não estava em Lisboa.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Ciclos de festividades

Estamos no tempo do Advento. É um tempo essencial da liturgia católica, mas que já ninguém, isto é uma hipérbole, foi-me sublinhado, faz a mínima ideia do que seja. Uma cultura pode secularizar-se, pode até tornar-se descrente e viver de costas voltadas para o núcleo de crenças que a formou, mas se perde aquilo que um dia lhe ritmou a vida, os ciclos de festividades entretecidos na vida quotidiana, então está muito doente. Vive para a escravatura. Tudo isto disse-me, na conversa de ontem, o padre Lodo. Só pensei nisso hoje, agora que a hora de almoço já passou e tenho de enfrentar uma tarde em que a realidade reivindica as suas prerrogativas, isto é, a minha participação na escravatura. Também eu perdi o ritmo que deveria pautar a minha existência. Hoje, por exemplo, passei a manhã em visitas a lojas para encher a vida de coisas cuja utilidade nos foi assinalada por um génio maligno, um diabrete ocioso e perdulário, que, sem parar, cogita a maneira de nos perder. Seja como for, muito eu gosto destas expressões que não dizem nada, o Natal com os seus presépios, árvores e restante parafernália já está montado cá por casa. Temo, porém, que sirva para pouco, caso as crianças não ponham cá os pés, confinadas na capital. O bosque da escola ao lado está exuberante nos verdes e cinzas que o compõem, enquanto um sol desmaiado semeia vestígios de luz nas paredes dos prédios. Pombos voam entre telhados e eu penso no pouco sentido de tudo o que existe, mas é apenas um pensamento provocado pela dificuldade de digestão do almoço. Talvez pudesse ter sido mais frugal, ocorre-me.

domingo, 29 de novembro de 2020

O desaguar dos domingos

Visto da cadeira do meu escritório, o domingo desliza placidamente em direcção à foz. De imediato se levantou uma discussão sobre o tipo de fozes – é um plural horrível, que nem a semelhança com vozes poupa ao escárnio – cabem aos dias da semana para desaguarem uns nos outros. Cheguei a acordo. Tudo depende. Os domingos, por exemplo, podem desaguar em delta na segunda-feira, mas que o de hoje se há-de abrir num estuário de águas negras, embora límpidas. Há pouco, falei com o padre Lodovico. Continua abatido com o confinamento, a falta dos jantares de sábado à noite. Perguntou-me o que ando a ler. Disse-lhe o Sillanpää. O finlandês, questionou como se afirmasse. Disse-lhe que sim. Não conheço, sublinhou e pediu-me para lhe ler uma passagem ao acaso. Não foi ao acaso, mas li em todas as condições sociais o tempo já vivido aparece à memória ansiosa com um solene esplendor. Interessante, há muito que noto isso, comentou. Nas confissões, continuou, não é raro observar as maiores idiotices feitas no passado envoltas nesse solene esplendor. Sempre me intrigou, acrescentou, essa luz com que o presente envolve até o mais indesejável que se foi obrigado a viver. Tenho de pensar mais nisso, concluiu. Numa das acácias da praceta restam ainda algumas folhas que tremem ao vento. Num dos ramos, um anjo medita sobre o mistério da encarnação. No céu, nuvens brancas e negras disputam a primazia. Uma rapariga sem máscara e calçada com ténis brancos atravessa a rua, e eu recolho-me, como se vivesse num ermitério. Sítio para onde deveria ter entrado há muito, caso não fossem as tentações do mundo. Escrevo isto, e alguma coisa dentro de mim desata a rir. Sempre encontrei graça nesta ideia de considerar o riso um nó que tivesse de ser desatado.

sábado, 28 de novembro de 2020

Universos paralelos

Antigamente nem me ocorreria fazê-lo, mas de há uns tempos para cá, vou a uma aldeia aqui perto, já em plena serra, comprar laranjas. Um enclave minúsculo tem um microclima que proporciona uns frutos excelentes. À beira da estrada os pequenos produtores locais vendem as suas laranjas e outras coisas que cultivam nas hortas. Hoje fui lá mais uma vez. Chovia e enquanto fazia o caminho para cá e para lá, pensava que todos vivemos em vários universos, que, sendo paralelos, possuem portais que permitem transições confortáveis entre eles. A noite caiu há muito, o dia foi invernoso e rendeu-me pouco. De lá de dentro vem um comentário, as orquídeas este ano estão malucas. Não digo nada, mas sei o que se passa. Estão prontas para antecipar a floração. Não são como eu, sempre pronto a retardar seja o que for. Não são apenas as orquídeas, contudo, que estão malucas. Também o mundo sofreu uma súbita aceleração na tontice e anda um pouco fora dos eixos. Não faltam por aí moços pimpões prontos a proclamar que hão-de pôr tudo na ordem. Depois de escrever esta frase, dou-me conta de que nunca uso a palavra pimpão e não faço ideia por que razão ela me ocorreu. Talvez os moços sejam mesmo apimponados. No telemóvel, recebo um vídeo do meu neto entregue a um jogo de colocar umas bolas de cor em buracos. Isso basta para que a noite me seja benévola.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O peso da identidade

Também eu não conhecia Frans Eemil Sillanpää, um finlandês que ganhou o Nobel da literatura em 1939. Como muitas vezes acontece, um acaso levou-me a ele e consegui comprar os dois romances que a Editorial Inquérito, há muitas décadas, traduziu pela mão de José Marinho. Tratam-se de Silja e Santa Miséria. Estou a ler este último. A personagem central, um homem um pouco lento de raciocínio, vai recebendo nomes diferentes ao longo da vida. Fiquei a invejá-lo, também eu poderia receber diversos nomes conforme os anos se fossem acumulando. Tinha várias vantagens. Diversificaria, coisa que está muito em voga no espírito do tempo. Depois, evitaria o cansaço da identidade. Ter uma identidade é um peso que chega a ser insuportável, ir tendo várias é como se não tivesse nenhuma, o que seria uma grande liberdade. A noite cerrou-se já. Acompanho com zelo o minguar dos dias, enquanto o Outono progride. Hoje dei uma volta, depois de almoço, pela praceta e ruas adjacentes. As folhas molhadas amontoam-se debaixo das acácias, os ramos parecem antenas ocupadas em captar algum sinal de vida alienígena e as pessoas são agora incógnitas sob as máscaras que as protegem dos vírus e do mau olhado. Entrei em fim-de-semana. Nesta expressão ressoa sempre uma qualquer ameaça de apocalipse, mas pode acontecer que o problema resida em mim, uma mente, além de lenta, demasiado impressionável por certas palavras. É o que faz o peso de ter uma identidade.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Algumas armadilhas

São quase cinco da tarde. Fez-se silêncio, depois dos adolescentes que frequentam o centro de línguas se terem evaporado. Um sol outoniço mostra um sorriso triste nas paredes da escola e nas copas dos cedros e pinheiros do pequeno bosque que por lá existe. As sombras, com as suas garras de seda fria, avançam sem pudor e cobrem já uma vasta superfície. Há pouco quis usar a palavra estaleiros. Não me ocorria, tentava ludibriar a memória, estender-lhe armadilhas, mas ela ganhava sempre. Desisti e googlei sítio onde se constroem navios. Gentil e afável, o Google devolveu-me estaleiro. Fiquei-lhe grato, embora a situação não fosse embaraçosa. Por vezes, acontece-me em público. O nome de um livro ou de um autor, e a minha mente é uma cisterna vazia. Comecei a evitar esse tipo de exibições. É como se gaguejasse da memória e isso é sempre perturbador e desconcertante para quem assiste. As tílias desnudaram-se por completo, e as folhas dos jacarandás começam a amarelecer. Na Sá Carneiro, os carros deslizam devagar, desolados, enquanto alguns mascarados enfrentam o Carnaval. Não tarda, e as iluminações natalícias acender-se-ão para acolher a noite com uma névoa despudorada de tristeza. Se tivesse cigarros, fumaria um. Não tenho.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Uma manhã de Inverno

Foi chuvosa e fria a manhã. Juntamente com o vento, a água despiu as acácias da praceta aqui em baixo. Por baixo delas, o chão ficou coberto de um tapete com estranhos padrões, onde se combinam, segundo o ritmo de um quadro abstracto, os amarelos, os castanhos, diversos verdes, tudo isso salpicado pelo branco do calcário dos passeios, que irrompe aqui e ali. Uma sirene uivou sobre a cidade. Anuncia a aproximação da uma da tarde, um hábito que terá ficado dos tempos em que a pequena vila vivia das indústrias que por aqui havia. Agora toda a gente trabalha nos serviços e os seus horários já não se hão-de regular com sirenes, mas pelo brilho do smartphone ou, no pior dos casos, pela pulsação do quartzo dentro de um relógio. O sol atravessa uma camada mais fina de nuvens e uma luz esbranquiçada invade as paredes dos edifícios. Navegamos já na última semana de Novembro. Não tarda e estará aí o Natal e o Ano Novo, onde se haverá de estar mais confinado do que confiado. Chegou a hora de almoço. A tarde espera-me com o seu punhal de aço inoxidável. O mais sensato será retemperar forças.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Contar ovelhas

Cheguei a casa já a noite, com as suas asas de veludo negro, tinha descido sobre a cidade. O desgosto com esta frase só pode ser ultrapassado pela contemplação das cornucópias natalícias da avenida. Olhei-as, enquanto conduzia, e elas cornucopiavam tanta tristeza que a avenida, a mais concorrida deste lugar, exalava tamanha melancolia que não cabe na exiguidade das minhas frases. Há coisas e pessoas assim. Trazem nelas mais melancolia do que aquela que cabe num dicionário e numa gramática. Não porque queiram ser melancólicas, apenas por lhes terem retirado qualquer coisa que não se sabe bem o que seja. Leio que no Utah andavam de helicóptero a contar ovelhas quando depararam com um monólito perdido na paisagem desértica e vermelha. Na verdade, não era bem um monólito, pois não era feito de pedra, mas de metal. Pergunto-me o que encontraria eu se me pusesse a contar ovelhas. Provavelmente, nada, pois não teria à disposição um helicóptero nem a paisagem desértica do Utah. Só ovelhas, um ou outro carneiro, papel e lápis. Talvez uma calculadora para me ajudar nas somas. É a desvantagem de viver na semiperiferia do mundo. Em contrapartida, quando fui levantar uns livros à lavandaria, falo a sério, comi uma fartura. Quente, nada oleosa, doce, como só uma fartura sabe ser. Bem podias comer outra e deixares-te de lugares comuns e frases frívolas, rosnou o homúnculo que habita a caverna da minha consciência. Perguntei-lhe se queria que lhe fizesse um hematoma na testa. Recolheu a penates. Como eu.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Da repetição

Chegámos então a segunda-feira. A vida é muito repetitiva, de sete em sete dias volta-se ao mesmo, até que vem o dia em que não haverá mais dias, nem semanas. Aí nada se repetirá a não ser essa repetição infinita de nada acontecer, mas nessa altura nada disso nos diz respeito. Nem a nós nem aos outros, esta é a verdade crua. A inexistência de cada um é indiferente a ele e a todos os outros. Sem excepção, sublinho. Não faço ideia por que me vieram agora estes pensamentos à cabeça. Num livro, leio que ela, sem nome, quer por prenda de anos que ele a leve à pensão, se não o corpo, o dela, explode. Tudo isto parece um bocado hiperbólico, já que muitas haverá que não são levadas à pensão e não se ouvem por aí explosões. A crer no que leio, a realidade deveria ser um teatro de guerra entre bombardeamentos e deflagrações, mas a vida desliza tranquila. Oiço a Montserrat Figueras a cantar música composta no tempo do Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão. A Figueras não voltará a cantar, infelizmente, mas nós ainda a podemos ouvir. No friso das orquídeas, a branca já lançou umas hastes e ameaça florir antes de todas as outras. Como certas pessoas, também há plantas que sofrem de hiperactividade, perdem a noção do ritmo e vão pela vida fora em acelerações e travagens sem nexo. Por mim, prefiro a hipo-actividade, deslocar-me pela travessa da lentidão, pois sempre se há-de chegar à praça do serôdio bem a tempo. A segunda-feira não me ajuda. Como se pode ler.

domingo, 22 de novembro de 2020

O tempo passa

As minhas netas estão cá a passar o fim-de-semana, mas alguma coisa mudou. Ainda há uns meses, vinham para o escritório e, em voz baixa, brincavam aos colégios, o que envolvia multiplicidade de funções e de máscaras sociais. Ora mães, ora alunas, ora professoras, ora empregadas, ora directoras, ora discutindo em que turma a filha deveria ficar, ora fazendo avisos sérios sobre que avaliações daquelas não seriam permitidas. Passavam horas assim, usando a secretária da avó, sem me incomodarem, sem perceberem o prazer que eu tinha em observá-las pelo canto do olho. Agora, esse jogo acabou. Foi levado pela trama das conversas secretas, dos risinhos sobre assuntos de natureza iniciática, pelas séries da Netflix ou pelos vídeos do Youtube. A mais velha fica a olhar para o infinito e não tarda a mais nova segue-lhe o caminho nessa procura do que está para além do que é visível. Isto prova que os dias passam, e com eles passam as semanas, os meses e os anos. Foi isso que pensei há pouco ao ver-me ao espelho. Não senti náusea ou repugnância pelo que via, apenas a constatação de que nós insistimos em fazer o tempo rodar e ele vinga-se. Há coisas, porém, que têm uma natureza eterna. O mau gosto, por exemplo. Ontem, saí à noite e pela primeira vez, este ano, tive de enfrentar as iluminações natalícias. Em duas rotundas o Menino Jesus continua a ser assado numas brasas vermelhas, sem que nenhum vereador municipal se apiede e O retire daquela inominável situação. Quanto às cornucópias da Sá Carneiro, encimadas por um crescente e uma estrela, nem sei o que possa dizer. Talvez sejam símbolos metafísicos cuja hermenêutica me escapa. A ignorância é um belo e aprazível lugar para viver.

sábado, 21 de novembro de 2020

Uma luz excessiva

Está uma bela Primavera outonal. Reverberam, nas acácias, as folhas amarelas batidas pela cintilação da luz. Na desolação em que a vida caiu, estes dias luminosos, onde o calor excessivo está proibido, cingem a vida com uma promessa maior que o desalento semeado pelo génio maligno que preside ao reino das doenças, pandemias e negócios correlativos. Quando a situação deflagrou sobre as nossas cabeças, a ingenuidade que nunca falta aos homens, perversos que sejam, pensou que seria coisa de dias, duas ou três semanas e tudo voltaria ao que estava. Passaram dias, semanas, meses, e nada voltou ao que estava. Isto não deveria ser novidade, pois nunca, mesmo nos tempos de bonança, se volta ao que estava. Um gato espreguiça-se na relva da escola aqui do lado. Estira-se, o corpo arqueado, e quase o vejo a abrir a boca. Depois, enrosca-se e logo se levanta, sacode o pêlo e entrega-se, com a língua, a abluções rituais. Talvez se imagine no Ganges, talvez seja apenas um gato sem culto nem rito e faz aquilo que o código genético lhe ordena. Da aparelhagem chegam-me as vozes de The Hilliard Ensemble e a música sacra escrita por Pérotin, magister Pérotin magnus, que nos finais do século XII e nas primeiras décadas do XIII encarrilou a música medieval em direcção à estação ferroviária da Renascença. Também naqueles dias – ditos da idade das trevas – havia luz como hoje, talvez uma luz excessiva que cegava quem para ela olhava, mas estas considerações estão-me proibidas. Não porque me façam mal, mas talvez porque eu seja um homem da Idade Média, um monge copista que se perdeu nestes dias. Ah como eram suaves aqueles tempos em que sentado no scriptorium, primeiro como livreiro e depois, já velho, como amanuense, rodeado pelo pergaminho, a pedra-pomes, a tinta e as penas, copiava lentamente os vetustos tratados da antiguidade. Depois, aterrei aqui e é o que se sabe.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Solidão solar

O dia está a chegar à colina do crepúsculo, um sol sem vontade de viver demora-se ainda uns instantes numa das paredes do hospital, depois penso sobre as palavras e ocorre-me que as haverá em maior número do que coisas para dizer com elas. Isto, todavia, é uma formulação obscura e deve ser banida do texto. Não foi uma semana fácil, mas hoje é véspera de sábado, aquele dia que, de manhã, faz parecer que todas as possibilidades estão abertas. Vieram-me à memória antigas manhãs de sábado em que, depois de comprar um maço de jornais, me sentava no café a lê-los. Muitos deles já morreram, jornais e cafés, assim como esse meu hábito. Hoje cultivo uma sóbria solidão e as coisas do mundo reverberam muito menos dentro de mim. Outrora, agora não sei, nas aldeias, os velhos sentavam-se ao sol e ficavam em silêncio. Cismavam, deitavam contas à vida, enxotavam algum cão, se se aproximava. Se alguém os cumprimentava, respondiam lentamente, como se fosse penosa a viagem entre a cisma e as regras do mundo. Um dia, desapareciam do seu lugar, deixavam de cismar e morriam com a vida revolvida naquelas horas intermináveis de solidão solar. Talvez pensassem que o sábado era eterno. Talvez pensassem no que não tinham feito. Talvez pensassem em nada.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Quase

Ocorreram-me de manhã duas coisas. Haveria de escrever sobre elas. Guardei-as na memória. Que melhor sítio do que esse para se guardar seja o que for? Não contei com um possível bug no software instalado na minha mente e o resultado é este. Não faço a mínima ideia do que me ocorreu. Por certo, não se perderá nada, mas fiquei sem assunto, embora não sofra da angústia da página em branco. Na praceta, existe um centro de línguas. Antes ou depois das aulas, os adolescentes estão por ali naquela difícil tarefa de adolescer. Eles gritam, elas trocam segredos e risinhos. Depois, ouvem-se mais gritos, uma rapariga diz é mentira, grasnam as gargalhadas, e o crepúsculo desce sobre eles mais depressa do que passa o intervalo. Num vaso, três bolbos deixam escapar outros tantos jacintos, que se multiplicam em flores, de onde se evola um perfume delicado e persistente. Olho-os e digo prefiro as orquídeas. Eles encolhem os ombros e respondem é o costume. Vejo um anúncio, de um alfarrabista, ao primeiro volume da História Universal da Pulhice Humana, do inevitável Vilhena. Asseguro desde já que o autor fez parte da minha formação. Quase tenho pena de não ter idade para voltar a ler o Vilhena. Quase.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

A dama do Tivoli

Acordei ainda bem antes do despertador anunciar que a hora de sair da cama chegara. Tinha tempo e faltava-me sono. Pego no meu leitor de livros digitais e leio um pequeno conto, umas dez páginas, A dama do Tivoli, de Knut Hamsun. Como acontece sempre com as obras deste autor, fiquei preso ao texto. Acabei de o ler e ainda esperei pela hora de despertar. Há pouco, porém, quis lembrar-me do desenlace da narrativa e ele tinha-se apagado. O que teria acontecido? Fiquei perplexo e temi que ao despertar, como acontece quando sonho, a história se tivesse diluído na minha consciência. Depois, fiquei na dúvida se teria de facto acordado e lido o conto ou se tudo isso não passava de um sonho que teimava em persistir. Agora, porém, sei que não estou a sonhar. O dia resvala veloz e esbranquiçado, uma mulher de casaco amarelo transporta um saco de papel preso ao braço, atravessa a passadeira e perde-se no lado oculto da avenida. De seguida, um homem de máscara azul caminha sem pressa, olha, atónito, para a esquerda e para a direita, enquanto os carros passam furtivos. É triste a história da dama do Tivoli, como são tristes os transeuntes que passam pela avenida, como é triste a cor do céu nesta quarta-feira. Ao menos, podia chover. Seria bom para a agricultura e ajudava a encher as barragens.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Não é bom sinal

Os dias continuam a minguar. Eu empequeneço com eles, mas quando eles, em súbita reviravolta, deixarem de diminuir, eu não deixarei de me tornar mais pequeno. A natureza, com os seus ciclos, é uma armadilha. Dá aos homens uma ilusão de eternidade para os distrair da sua finitude, desse contínuo encurtar da linha da vida. Quando, hoje, atravessei a cidade pela primeira vez, pensei que o Verão de S. Martinho se atrasara. Não é bom sinal a pontualidade falível dos santos. Algum assunto momentoso os reterá para que não cumpram a tempo e horas os seus compromissos. Nas ruas, pessoas mascaradas deslocam-se devagar, como se lhes faltasse a energia e tivessem entrado num ritmo de câmara lenta. A gravidade resplandece agora naquela parte do rosto que ainda é visível. Há notícias de surtos, alteram-se as contabilidades, há quem diga não tarda e está tudo confinado como em Março. Outros vão em silêncio ou passeiam cães à trela. Eu olho para tudo isto e penso que é terça-feira, e este foi o pensamento mais profundo que me ocorreu durante todo o dia.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Morte e ressurreição

As acácias, só de olhar para elas, eram-me ainda há dias motivo de prazer. São agora causa de decepção. Estão a outonar mal, como aquelas pessoas que, com o aproximar do fim, deixam cair o manto da dignidade com que se cobriam. Quando vier, com a sua melíflua rudeza, o Inverno destas paragens, elas, as acácias minhas vizinhas, serão apenas troncos e ramos, súplicas dirigidas aos céus, esqueletos petrificados para sobreviver ao frio. Depois, chegando o tempo ressuscitarão. Talvez tudo acabe por ressuscitar, quando chegar o tempo. Deveria evitar este tom oracular. A profecia não me coube como dom. O dia já esmoreceu, a luz abandonou a tonalidade quente com que há pouco cintilava e arrefeceu. Vai arrastar a palidez até que a noite a cubra de escuridão. Abro um livro e deparo com uma interrogação: Où allez-vous? Ora essa, aonde haveria eu de ir. A lado nenhum. Um grito lancinante corta o entardecer. Fico à escuta, mas apenas oiço o nevoeiro dos carros que passam ao longe.

domingo, 15 de novembro de 2020

O valor da paciência

Está um domingo melancólico, polvilhado de cinza, coberto por um grande véu de tule encardido. Os pombos que andavam arredios voltaram para os prédios envolventes. Não tarda, suspeito, chegarão os anjos com as suas enormes asas, cantando em coro numa língua desconhecida pelos homens. Nada do que escrevi representa uma descrição da realidade, mas como acontece sempre, um devaneio do meu espírito, caso eu tenha um. Toda a realidade, a minha, existe apenas na minha mente de narrador. Há pouco recebi uma chamada do padre Lodo. Disse-me que o confinamento o entristece, que precisa de sair à tarde e fazer o seu jantar de sábado com os amigos, o que não foi possível ontem. Quantos anos ainda terei pela frente, perguntou-me como se fizesse uma afirmação. Lembrei-lhe que a paciência é uma virtude de alta cotação que a Companhia dele deve ensinar. Deu uma gargalhada e respondeu-me que até o Lenine achava o mesmo e não consta que estivesse preocupado com o céu ou que fosse jesuíta. E os Settembrini sempre tiveram uma posição ambígua perante a paciência, acrescentou. Desligou, informando-me que tinha de ir dizer missa, mas que andava com pouca paciência para o vírus. Também eu estou com pouca paciência, não para o vírus, mas para mim. Tenho de ler não sei quantas coisas que não contribuirão nem para o meu agrado nem para a salvação de quem as escreveu. O almoço será tardio. Há uns maduros que não param de insistir que possivelmente não passamos de cérebros conservados numa cuba a ser estimulados por computador, que não há como contrariar isto. Ora, se assim fosse, eu que sou destituído de cérebro, não existiria. Portanto, o melhor é encontrarem outra narrativa que resista ao meu contra-exemplo. Ou será que este texto encerra uma contradição insanável?

sábado, 14 de novembro de 2020

Não tenho ideias, tenho desarranjos fisiológicos

Um acaso levou-me a ver um vídeo sobre a área em que cumpro a corveia que me permite enfrentar a gélida necessidade. Ao fim de trinta segundos, tinha reconfirmado que aterrei num país estrangeiro, com uma língua fruste e onde as pessoas capricham em vestir-se mal, como se isso fosse garantia para a qualidade do que fazem. Por princípio, não atento no que vestem, mas, por vezes, a exuberância do mau gosto é de tal ordem que sou obrigado a ver aquilo que evito ver. Sempre se dirá que não há correlação – utilizar esta noção estatística dá logo um ar científico à arenga – entre o que se é e a forma como nos apresentamos, que os grandes génios não atentam a essas coisas. Claro, mas não há coisa pior do que querer ter a aparência de um grande génio não porque se o seja, mas porque se imita o desleixo com que eles apedrejam os outros com a sua figura. Além do mais, o exterior nunca deixa de ser uma emanação do interior. Deveria ter apagado estas considerações, nas quais me deixei cair, talvez motivado pelo processo com que o corpo digere o almoço de sábado. Muitas das nossas ideias. Refaço, muitas das minhas ideias, se é que lhes posso chamar ideias, nascem de processos fisiológicos. Uma digestão mal feita, uma vibração indevida na batida cardíaca, um atraso na ida à casa de banho, um ataque de sono, um desvario de qualquer hormona que decida, sem me consultar, afastar-se do que é esperado e outras coisas do género de que omito, por pudor, a nomeação. Para ser honesto, eu não tenho ideias, nem pensamentos, nem argumentos, tenho apenas reacções a desarranjos no corpo. O que me aborrece, porém, é a acácia que tinha até ontem um belo fato de folhas amarelas, de um amarelo levemente torrado, a lembrar tâmaras ainda não completamente maduras, mas que impelida por algum desarranjo hormonal, se começou a despir, deixando ver uns membros raquíticos. A beleza é um exercício difícil.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O aspirador de tempo

Há uns tempos a esta parte que sinto uma distorção na realidade. Chego a sexta-feira após o almoço e aquilo que se apresente à consciência não é o fim-de-semana prestes a começar, mas uma sensação de que ele está quase a acabar. Isto não vem acompanhado por qualquer angústia, apenas pelo sentimento de que alguma anomalia existe ou na percepção do tempo ou no próprio tempo. A minha imaginação, coisa pouco confiável visto ser dada a delírios frequentes, diz que há, em qualquer parte, um buraco por onde o tempo está a ser sugado com voracidade. Dentro desse bocarra haverá um aspirador de grande potência que sorve as partículas do tempo a uma velocidade inabitual. No entanto, o melhor é o leitor não dar crédito a qualquer palavra que este narrador diga sobre este assunto. Delírios e hipérboles são a sua especialidade. A sexta-feira continua com vinte e quatro horas, cada hora com sessenta minutos e cada minuto com sessenta segundos. Esta é a realidade, mas o problema é que toda a realidade, nos dias que correm, parece sofrer de uma qualquer deformação, de um qualquer aleijão.  Por exemplo, o meu telemóvel continua a enviar-me sinais. De súbito, tive uma iluminação. É por ele que o tempo está a ser sugado. As partículas temporais entram nele e são enviadas, de imediato, para o grande buraco. Um telemóvel não é um telemóvel, mas um terminal do grande aspirador de tempo. Agora vou tomar a medicação.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O peso das coisas subtis

Há matérias tão subtis que esmagam quem com elas tem de contactar por obrigação ou dever irremissível. Não se trata desse peso que resulta da acção da gravidade sobre os corpos, mas de um outro que advém de certas coisas se furtarem aos efeitos gravíticos e se abaterem sobre espíritos preparados para a trivialidade e não para subtilezas metafísicas. Isto disse-me há pouco o meu amigo Rogélio. E continuou a diatribe, embora eu já soubesse aonde ela ia dar. Numa época onde se propagandeia que tudo é para todos, o que acontece é esmagar essas pobres almas – transcrevo as palavras dele – com subtilezas para as quais não têm vocação nem o mundo lhas exige. Isto faz dos nossos tempos uma era de infelicidade, pois a única infelicidade que existe é arcar com o peso de coisas que não foram feitas para nós. Enquanto falava, ia fumando a sua inevitável cigarrilha. Como costuma acontecer, ri-me e disse-lhe que a teoria dele tinha um aspecto que que me agradava de sobremaneira. Desligava a infelicidade do sentimento e dos afectos, e isso é uma enorme vantagem num mundo onde não há cão nem gato que não fale de afectos. Foi com esta conversa que me distraí e não vi chegar a noite. Agora está tudo escuro, na rua as pessoas parecem almas penadas, e as luzes dos estabelecimentos e da iluminação pública semeiam irrealidade sobre a minha irrealidade, sobre mim, um dos pobres que se sentem esmagados pelo peso metafísico das coisas subtis. Hoje não deveria ter escrito uma linha.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A sensatez do santo

O tempo é um animal implacável. Foi o que pensei ao ver a fotografia de uma pianista que em tempos exerceu um enorme fascínio sobre mim. O passar dos anos não teve piedade para com ela, como por vezes acontece a certas mulheres. Ou talvez a fotografia a tenha apanhado num dia infeliz. Ou, a melhor das hipóteses, estou a ver mal e confundo-me com facilidade. Para a vingar, oiço-a numa sonata para piano de Brahms, e esqueço-me do tempo, do arado que sulca a pele dos mortais, para que eles se cansem de si e da vida. Hoje é dia de S. Martinho. Antes de a pandemia nos ter trazido ao sítio onde estamos, havia por aqui perto grande feira e não pequenas romarias. Tudo em honra do Santo, mesmo as enormes bebedeiras, a estúrdia campestre e as bravatas de senhoritos que são já uma encenação museológica, embora ainda não o saibam. Confesso que gosto desses equívocos trazidos pelo passar do tempo, em que as pessoas ficam presas ao que eram e julgam-se assim merecedoras de uma distinção que ninguém reconhece ou dá por ela. Soubessem elas a verdade e talvez se rissem de si próprias. E o que é a verdade? A verdade é que não passamos de nada, vamos a cominho de lugar nenhum, onde florescem ininterruptamente ninguéns. A poeira ou as cinzas são a nossa verdade, embora o santo não descure as castanhas e a água-pé. É sensato, apesar de santo.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Experiências arcaicas

Cheguei a casa já a noite caíra. Não foi, porém, um grande trambolhão. Escorregou e, tentando equilibrar-se, segurando-se aqui e ali, estatelou-se sem se magoar, sem fazer barulho. Com ela veio a cerração e o mundo tornou-se mais secreto. Outrora, a noite era um grande mistério, uma prova iniciática. Hoje, não passa de um conjunto de pequenos enigmas que não tocam o coração nem o espírito de ninguém, a não ser por convenção. Se está muito escuro, liga-se a luz eléctrica, e os arcanos são engolidos pelos sucedâneos do dia. Num livro de poemas, leio a palavra umbral. Fico a recitá-la devagar, como o fazia quando era criança. Pegava numa palavra e repetia-a vezes sem conta, até o seu sentido se dissolver na consciência. Era um rito encantatório ou talvez tivesse já nessa época um instinto homicida relativamente às palavras. Estava a dizer que gostava muito do som umbral. Também gosto de limiar e, ainda, de fímbria. Que experiências arcaicas nos fazem gostar daquilo que gostamos? Poucas coisas sabemos, e as que sabemos o melhor seria não as saber. Aos ombros, transportamos a ignorância. Enquanto ela cresce e o seu peso se avoluma, o corpo começa a penetrar na terra e acaba por desaparecer. Devia poupar os eventuais leitores a estas derivas retiradas das memórias grotescas de um candidato à loucura perdido à porta do manicómio. O gosto pela hipérbole continua bem vivo.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A beleza, de novo

Os campos de jogos da escola ao lado estão cheios de vida. Ao sol, camisolas de múltiplas cores cintilam e, como anjos travessos, as bolas sobem e descem, partem de mãos exaustas para serem recebidas por outras, ávidas, desejosas de tocar no anjo, para logo se cansarem e o arremessarem aos ares. Então ele sobe em turbilhão, quase que se suspende naquele ponto onde as forças da gravidade e do arremesso se equilibram, para logo cair. Um raio de sol fúlgido perfura a tarde e os olhos vislumbram por instantes essa beleza infinita, que, de tão bela, seria para nós, seres decaídos, mortal. Não há coisa mais perigosa do que a beleza, não pela perversão que possa conter, mas pelo bem que a habita. Quem suportaria tal bondade sem que o coração sucumbisse? Olho para o que escrevi e penso que as segundas-feiras não me fazem bem. As acácias amarelecem e no friso das orquídeas há uma, nova em casa, exuberante na floração malva. As outras entregam-se a uma plácida hibernação, onde as folhas verdes descansam dos dias em que tinham de carregar sobre os seus ombros a beleza com que incendiavam os olhares dos circunstantes. Os campos já estão vazios, o sol declina e eu oiço o Stabat Mater, de Pergolesi. Stabat mater dolorosa… E talvez seja esta a beleza possível. Ou não.

domingo, 8 de novembro de 2020

O belo e o bom

A primeira semana de Novembro já entrou no mausoléu do passado. Embalsamada, espera que a esqueçam. Vai demorar o seu tempo, mas chegará o dia em que dela só restarão pequenos vestígios. Aquilo que nos acontece, seja o que nos alegra ou o que nos dói, possui uma intensidade espúria. Fora do nosso sentimento, praticamente ninguém nota. Está um domingo volúvel. Ora chove, ora faz sol. Temo pelo Verão de S. Martinho. Não é que seja dado a feiras e romarias, mas esse Verão parece-me benévolo e abençoado, ao contrário do outro. As notícias do mundo cansam-me, as da humanidade ainda mais. Quanto às notícias de mim próprio, a essas censuro-as. Já basta o que basta. Uma aplicação acaba de me informar que esta semana não só atingi os pontos cardio recomendados, como ultrapassei bem essa marca. Nem sei como agradecer a todas estas coisas que tanto se interessam por mim, que me controlam a saúde e o que mais lhes aprouver. Há instantes os telhados húmidos resplandeciam sob a luz solar, agora, porém, as nuvens cobriram o sol e tudo se tornou mais baço. Do bar da esquina saiu o Esteves, aquele da tabacaria. Também ele está baço. Deve ser do tabaco. As palavras são seres pouco confiáveis. Escrevi tabacaria e tabaco, logo me apeteceu acender um cigarro, sorver o fumo lentamente, intoxicar-me com aquelas substâncias que não conduzindo ao inferno, hão-de levar ao hospital. Como é belo uma pessoa sentar-se numa varanda, olhar o horizonte, beber um copo de vinho e fumar um cigarro. E com isto desminto aqueles que dizem que o bom e o belo são a mesma coisa. O Esteves continua a fumar no passeio. Por ele passa alguém que não o cumprimenta. Depois, passa outra pessoa e eu ainda oiço um olá Esteves, como vai isso? Talvez eu ande a ouvir o que não devia. Será que terei por aí algum cigarro perdido?

sábado, 7 de novembro de 2020

Uma época desprezível

Vivemos numa época desprezível, a época em que o cliente tem sempre razão. Não acordei mal-humorado, pelo contrário. Estou a reler um romance, Le Tentateur (Der Versucher), de Hermann Broch. É uma obra densa, não traduzida para português. Na edição francesa, tem mais de 550 páginas, numa letra minúscula. Quando o li há anos, a letra era bem maior. Fiz uma pesquisa para tentar encontrar uma edição mais nobre, isto é, com mais páginas e caracteres mais adequados aos meus olhos. Não há, mas descobri o comentário de um leitor, melhor de um cliente. Afinal a obra-prima inacabada de Broch é uma porcaria. Tem demasiadas descrições e meditações filosóficas que nunca mais acabam, o que estraga a história. O cliente, aquele que tem sempre razão, decreta que o génio literário Hermann Broch não sabe escrever, comete erros na narrativa. Este mundo, em que a clientela tomou conta de tudo, não passa de uma mercearia de aldeia, pouco asseada e de honestidade duvidosa. Para estes clientes, o escritor é um merceeiro que vende intrigas para distrair a clientela e amealhar uns cobres para a reforma. Omito a palavra que disse agora. Olho para a rua, esqueço o Broch e o cliente e lembro-me da minha videochamada de ontem. O meu neto, pela primeira vez, disse olá avô, e isso trouxe-me uma grande alegria. Rememoro o acontecimento, enquanto escrevo e olho a avenida. Uma mulher de máscara abre o saco e procura, em desespero, pela chave do carro. Lá a encontra, depois de o revolver, com gestos de enfado e complacência, durante minutos. Um homem ergue um braço e na mão, como uma bandeirola, ondula uma máscara batida pelo vento. De seguida, passam, sem o atavio protector, uma mãe e uma filha. Vão como se não tivessem pressa. Uma das acácias da praceta já amareleceu quase por completo e eu olho-a reverente e fascinado pela cor, enquanto dentro de mim ainda oiço olá avô e penso no livro de Broch, com aquelas letras que não foram feitas para mim. Amanhã será domingo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

As pequenas coincidências

Nunca deixo de admirar certas perfeições que existem no calendário, como acontece hoje, em que o sexto dia do mês corresponde à sexta-feira. Pequenas e infrutíferas coincidências alegram-me e fazem-me pensar que nem tudo no mundo estará assim tão mal. Se as coincidências ainda funcionam, não se perca a esperança. Chegado aqui, o pensamento turva-se-me, pois não sei qual haverá de ser o objecto dessa esperança. A tarde desce ronronante a calçada, apesar da chuva fria e da noite próxima que traz a escuridão sobre a terra. Da janela do meu escritório olho os campos ao longe. Estão verdes, mas na verdade não é essa a cor que vejo, mas um cinzento violáceo cada vez mais escuro, como se espalhasse, pela terra, uma imensa nódoa negra. Não param as mensagens no meu telemóvel. Trazem notícias sobre um mundo delirante, tecido de pequenos nadas que têm por finalidade empequenecer a realidade. Na Sá Carneiro, os carros passam com os seus fogaréus incendiados, enquanto nos passeios húmidos, as pessoas foram substituídas pela tristeza, que caminha invisível e, a cada passo, se expande para dentro dos olhos de quem observa. Nos bares, há luzes amarelas e mortiças, e, entre o folhedo de uma tília, diviso o círculo verde que me anuncia a farmácia. Estou aqui, penso, e não sei nada acerca do que vejo, nem do que está para lá da minha visão, como se tudo se me tivesse tornado incompreensível e insignificante.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma tarde cheia

Bebo lentamente o café. Não uso açúcar, o gosto é intenso e o amargor que a torrefacção lhe dá explode na boca, em instantes de prazer mais longos do que seria de esperar. É possível que esta inclinação do paladar para os sabores difíceis, para aquilo que é amargo, reflicta qualquer coisa do meu carácter que prefiro desconhecer. Deste modo meditativo, entro na tarde. Anuncia-se longa, cheia de videoconferências, esses exercícios de piedade que não convertem ninguém, mas que são essenciais numa realidade que perdeu qualquer sentido do que é razoável. Durante anos vi crescer à minha volta a irracionalidade e o niilismo, como se houvesse em algum sítio cujo nome me recuso a nomear uma fábrica de fomento de entropia nas instituições. As pessoas, essas ou sofrem os efeitos sem perceber o que se está a passar, ou são agentes, quase sempre ingénuos, do processo tenebroso que estende a teia por tudo o que é lugar. Não devia escrever coisas destas depois de almoço. Podem afectar a digestão, ainda por cima estou a ganhar o terrível hábito de falar por cifras. Ontem, estava-me a esquecer, ouvi o conjunto musical da escola aqui ao lado. Imagino uns professores cuja idade se deverá omitir a tocar um arremesso de rock sinfónico. Fico feliz, não pelo interlúdio musical que me oferecem – dispenso-o de bom grado – mas por aqueles músicos. Depois, penso que talvez nem fossem eles, mas apenas uma aparelhagem a reproduzir qualquer coisa gravada numa outra época. É possível. Vivemos num tempo de simulacros. Mansamente, vou deixar a tarde deslizar sobre mim com as suas videoconferências, as suas injunções à salvação das almas que se querem perder e odeiam salvadores, os seus sacerdotes perdidos num labirinto, sem que um fio de Ariane tenham para poderem voltar à luz do dia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Uma parábola

Sento-me e distribuo o pão pelos pobres. Cada um traz três pratos. Não pense o leitor que encho cada um dos que se apresentam à minha frente. Aquilo que cada pedinte leva cabe num único prato e as mais das vezes sobra. A caridade, porém, deve ser inovadora e abrir o leque das distribuições, pois vendo assim tanta louça à frente, o esfomeado, apesar de comer o mesmo, pensa que come mais, não tardando a comer menos, convencido de que quanto mais pratos lhe derem, maior a ração. Também o doador caridoso fica com a alma mais cheia. Chega a casa e diz à mulher, olha hoje dei três pratos de pão a cada pedinte que me cabe cuidar. Estou muito contente, a minha consciência transborda e o meu coração exulta. Ela, a mulher, pergunta-lhe, então, se endoideceu. Ele não sabe o que lhe responder. Desde quando é que te dedicas à caridade? Ele olha-a de viés e vai ver televisão. Distribuir o pão de um prato por três, multiplicado por dezenas de candidatos é um trabalho árduo e está exausto, mas orgulhoso com a sabedoria dos chefes da caridade. Os pedintes iam agora poder reflectir sobre que pão tinham mais dificuldade em comer. Bastava-lhes apontar um dos pratos e logo uma bateria de análises lhes diria a estratégia que deveriam seguir para o deglutir. Toda a gente andava feliz. Também eu estava muito feliz, mas quando acordei deste sonho pensei por que razão haveria de sonhar coisas tão idiotas. Talvez esteja na tua natureza, disse-me o homúnculo que habita na caverna da minha consciência. Pela primeira vez, estou de acordo com ele.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

O cruzeiro da noite

Cheguei aqui, ao lugar onde escrevo, já a tarde tinha sido engolida pela boca voraz do tempo. Olho pela janela do escritório, o hospital ao fundo, com as suas luzes vermelhas, amarelas e esbranquiçadas, é um cruzeiro tomado pela tristeza da doença a sulcar as águas negras do oceano da noite. As acácias da praceta, batidas pelo vento, ondulam as folhas exíguas banhadas pela tinta da escuridão. Lá em baixo, adolescentes ensaiam breves urros, num exercício de uma memória secreta que prende a humanidade a essas eras em que os homens ainda não o eram, e não havia hospitais, nem cruzeiros, nem luzes, nem quem se sentasse num escritório e escrevesse apenas porque não tem nada para dizer, apenas para ocupar parte desse tempo que medeia entre duas noites eternas, apenas porque não sabe o que fazer com a vida ou com a azáfama dos dias. Invejo os que têm uma mensagem, uma causa para viver e para morrer, um horizonte cheio de objectivos a alcançar, troféus para disputar. Como são beatos, na sua face sorridente. Sou como aquelas garrafas que alguém, não sem alarido, despeja agora no vidrão. Também eu fui despejado no mundo, uma garrafa entre garrafas que, depois de bebida, será atirada para o caixotão que a guardará até que volte ao pó de onde veio. Um carro pára, liga os quatro piscas e o amarelo que se apaga e acende vai alfinetando o veludo da noite. Num outro carro, alguém usa a buzina, e para todos estes acontecimentos não descubro linha que os cirza e com eles possa fazer uma coberta para o frio que há-de vir.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Crepúsculo e romantismo

Escrever ao crepúsculo deveria dar uma tonalidade romântica ao discurso, pensei, enquanto olhava para o céu cinzento do anoitecer. Quando penso nos grandes românticos, é sempre em paisagens crepusculares que os vejo chegar. Depois, o meu pensamento deu um salto, e vi-me internado num hospício. Tinha enlouquecido e, para defesa da sociedade, fora compulsivamente internado. Uma nova acrobacia e esqueço-me dos românticos e da minha loucura, e os meus olhos fixam-se na mulher que passa na praceta. Perscruto-lhe o rosto sob a máscara azul. Os olhos são promissores, belos e profundos, há neles sombras douradas sobre florescências de verde. Poderia apaixonar-me por aqueles olhos. Oiço-me dizer: quais olhos? Os daquela mulher, respondo. Não sejas idiota, ninguém, onde estás, consegue ver os olhos de quem passa lá em baixo. Comecei a pensar que talvez já estivesse internado no manicómio. Tenho delírios e visões, falo comigo mesmo. À minha frente, uma reprodução de um quadro de Caspar David Friedrich, pintado nos anos trinta do século XIX. Um homem caminha, perto da floresta, de cabeça curvada ao crepúsculo. Vai pensativo. Aquela figura não me é estranha e, de súbito, sinto uma grande vontade de falar com ele. Entro pelo quadro e persigo-o. Chamo-o, mas ele finge não me ouvir. Aproximo-me e torno a chamá-lo, ele volta-se para mim e descubro que aquele homem sou eu perdido num anoitecer de um século acabado há muito.

domingo, 1 de novembro de 2020

Todos-os-Santos

Já passavam das quatro da tarde quando me apercebi de que estávamos no mês de Novembro, no dia de Todos-os-Santos. Sempre achei espantosa esta solução para a difícil questão da celebração de cada um dos santos, tantos devem ser que não há calendário litúrgico que tenha dias disponíveis para acolher tal profusão de santidade. Não fora a minha vontade ser fraca, também eu haveria de trabalhar para fazer parte dessa legião que hoje se celebra. Seria um santo anónimo, que ninguém conheceria, mas se alguém visse uma estátua minha numa Igreja, haveria de ler na dedicatória: ao santo desconhecido. Mais tarde, começariam a dizer que era um santo anónimo. Passados mais alguns séculos, haveria o culto do Santo Anónimo. Seria eu, sem que ninguém o soubesse. Eu, da humildade da minha santidade, distribuiria as graças que me fossem dadas e também broas, daquelas de que muito gosto, e se fosse o caso e mo pedissem, um belo copo de tinto. A vontade, porém, é fraca. Não tenho inclinação para o jejum e outras práticas que conduzem directamente à glória dos altares, mas que tenho pena, lá isso tenho.

sábado, 31 de outubro de 2020

Despedida de Outubro

Outubro despede-se em glória, deixando atrás de si um halo de luz e um rasto daquele calor que torna a vida aprazível. Quando a tarde se aproxima do crepúsculo lembro-me dos momentos em que um grupo de velhos amigos se reunia à volta da mesa e deixava que o pão e o vinho abrissem o caminho a longos discursos, em que cada um corrigia a maldade do mundo e a perversidade dos corações, ou então falava da beleza ou da ocultação do sagrado. Ninguém, entre os convivas, cria nas suas próprias palavras, mas o momento era-lhes propício, e todos tinham jurado que, sendo adequada a altura, não haveriam de lhe faltar com a eloquência que fosse a sua. Bebíamos e falávamos, tudo nos parecia naqueles dias possível, embora soubéssemos que nos estávamos a mentir. Mentíamos para ocupar o tempo, pois a verdade é tão crua e tão seca que logo mata o discurso. Agora os meses limitam-se a passar. Por vezes, telefonamo-nos, perguntamos pelos filhos e pelos netos, se já os há. Há dias recebi uma chamada. Se queria ir jantar. Estaria presente a, e aqui omito o nome. Vão gostar de se ver. Eu não vejo aquela cujo nome não digo há mais de trinta anos e recuso o convite. Não suportaria destruir a beleza dela que ainda subsiste na minha memória pela frivolidade de um encontro. Há que saber hierarquizar as coisas, disse.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pensamentos

Ocupo o tempo não sei se em jogos florais se em guerras do Alecrim e da Manjerona. Como um pedinte que não pode abandonar a esquina onde recebe no chapéu roto as moedas com que transeuntes indiferentes aliviam a consciência, também eu, movido pela estrita necessidade, vivo num universo de mais pura irrelevância, concebido por um génio maligno, que tem ao seu serviço legiões de espíritos impuros. Caso exista um céu e que aos homens seja dado conquistá-lo, muito difícil me parece a tarefa, tendo de viver em lugar onde aquele que não se nomeia ordena, meticuloso, o caos. Este pensamento sombrio chegou-me depois de outro mais luminoso. Olhei para o Sol, para a luz, para o revérbero das paredes e disse-me que talvez este ano haja Verão de S. Martinho. Contrariamente ao Verão propriamente dito, o do santo alegra-me. Num leilão de livros online, vejo um livro de um jesuíta que foi meu professor. Uma das grandes figuras da cultura portuguesa do século passado. O seu livro, porém, vale à partida 1 euro, embora o mais provável é que não valha nada. É o mercado a funcionar. Também eu me leiloaria, não fora a inutilidade do gesto. Assim, em vez de me sujeitar a licitações fui comer uma broa dos santos, coisa que aqui tem maior culto e arrasta mais devoção do que os próprios santos do altar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A felicidade da falência

O dia acrepuscula-se não tarda. Ainda o sol está no horizonte e a luz já é frouxa, arrastando tonalidades de sombra e recordações da noite que há-de chegar. Atravessei a cidade várias vezes. Fui e vim, fingindo ter um destino. Não tenho destino, tenho necessidades, e são elas que me fazem ir e vir. Não as tivesse e seria inerte como uma estátua, imóvel como uma rocha que lançou as raízes no fundo da terra. E nessa pura imobilidade estaria toda a minha perfeição. Perfeito é o que não se move, que não muda. Seja como for, não é o meu caso, que a necessidade torna volúvel. Também os pássaros meus vizinhos são dados à imperfeição. Voam em círculos, ora largos, ora apertados, desenham figuras de ócio com as asas, planam como surfistas que cavalgam as ondas. E cantam. Tento decifrar-lhes a linguagem, mas no momento em que parece que lhe descubro um sentido, um novo gorjeio lança-me na incerteza, deixa-me perplexo, até que reconheço que falhei mais uma vez. Todos os dias elejo uma actividade em que seja impossível ter sucesso, aplico-me a ela com denodo e vigor, até que chega o momento da derrota e eu sinto toda a felicidade que há na falência do próprio desvario. Então leio Und dieser Zustand verging nicht. Não percebo, mas na outra página está a tradução, a mais adequada das traduções a esse estado que me acompanha em cada falência que construo com o ânimo de um conquistador.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Paixões vulgares

De manhã fui de tratar de assuntos do carro. Tudo agora obedece a uma organização que se pretende eficaz e protectora. Valha a verdade que os funcionários não são muito eficientes no cumprimento de regras de protecção, como se lhes faltasse a fé no credo sanitário que nos guia. Assunto tratado, rumei para a minha secretária onde me esperam mil insignificâncias e outras tantas minudências, com as quais atendo aos ditames da necessidade. Faço-o, ao atendimento, não só na secretária, mas também na entrega à pura representação de um papel para o qual me falta o talento e, com a passagem dos dias, o ânimo para não deixar morrer de fome a ficção com que entretive a existência. Com a pandemia e o uso da máscara, quase me sinto um velho actor grego. Ia mentir, mais uma vez, ao leitor. Estava pronto para escrever que não sabia se represento comédias ou tragédias. Eu sei. Tendo em conta quem sou, a tragédia, reservada aos caracteres nobres, está-me interdita. Apenas posso representar comédias, só me cabem as paixões dos homens vulgares. Dou por mim a escrever com o dedo no vidro que cobre o tampo da secretária. Depois recordo-me que Cristo, na perícope da adúltera, escrevia com o dedo no chão. O que terá escrito no pó apenas Ele saberá. O que escrevi no vidro, nem eu sei. Preciso de tomar café e isso tem o mérito de evitar prolongar indefinidamente esta conversa inútil.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os dias decrescem

Como um fósforo que mal se acende e logo o vento apaga, o dia amanheceu iluminado por um fogo descido do céu. Olhei-o surpreso, ainda mal refeito daquele momento de estupor que cai sobre mim ao acordar, mas de imediato as nuvens em tropel tomaram conta do firmamento, cobrindo a terra com uma mantilha de cinza. Outubro, esse mês de amenidades e prenúncios, caminha para o fim, enquanto os dias se estreitam e as noites erguem asas cada vez maiores. Vejo vultos na rua, gente com afazeres, alunos esquecidos das aulas, homens em trânsito entre negócios, mulheres que trazem na cara a faca da decepção, gente a quem a idade quebrou o vigor. Um cão corre à desfilada, no passeio do lado de lá. As torres do castelo, as duas que ainda avisto, contemplam com desdém a cidade. Hoje evitei as notícias logo pela manhã. Talvez tivesse deixado de crer que a leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno. A frase de Hegel fascinou-me em tempos, mas o deus que ali se cultua, descobri-o, é perverso, vingativo, e o seu odor não é o do incenso, mas o do enxofre. Olho a avenida, os carros passam, uns adolescentes trocam palavras agudas, enquanto eu penso que a cidade onde vivo é uma aldeia que bem merecia ser elevada a vila. Tem um castelo e um rio, um jardim público, uma praça grande que serve de brasão. O que mais precisará?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Uma Antígona melancólica

Olhei para um livro do Régio que tinha na secretária e ri-me do título, As Raízes do Futuro. Quando se chega a certa altura da vida, aquilo que era um mero pressentimento torna-se uma realidade iminente. Pouco interesse para o caso o tamanho da iminência. O pior nem é isso, mas a pergunta sobre o que se fez nesses dias em que havia um futuro, ou talvez nem seja nada disso e a única coisa a fazer seja celebrar o dia, beber o cálice até ao fim. Isto contou-me a Lu, quando me encontrou e convidou para tomar café com ela. Perguntei-lhe pela irmã, disse-me que fora apenas um susto, que tudo lhe ia bem e logo encerrou o assunto. Estava inclinada para a confidência e para a melancolia, coisa muito rara nela. Talvez as Antígonas devam morrer jovens, pensei, enquanto ela discorria sobre a existência, num exercício que parecia reunir a contabilidade e a confissão. Ouvi-a em silêncio, na minha mente perpassavam imagens dela quando nova. O tempo é sempre devastador, ouvi-a dizer. Respondi que ela não se podia queixar. Deixa-te disso, já não temos idade para galanteios desses. Depois, calou-se, olhou-me e exclamou: agradeço-te. Apesar de tudo faz-me bem. Rimo-nos e eu acrescentei temos de fingir. Sim é o que nos resta, disse. Saímos do café e separámo-nos. Ela foi à vida dela e eu comprar uma solução hidroalcoólica para desinfectar o que tiver a desinfectar.

domingo, 25 de outubro de 2020

Luz imóvel

A luz que ilumina a avenida, curvada à cinza que se desprende do exército de nuvens, dá uma estranha ilusão de imobilidade, como se o tempo tivesse suspendido a voracidade com que devora os seus filhos e se recusasse a passar. Imagino que o sentimento da passagem do tempo se deve todo ele às metamorfoses da luz, como se estas fossem sinalizadores de que não é na eternidade que vivemos, mas que tudo tem um princípio e um fim. Uma mulher vestida de preto, atravessa a passadeira. Outra arrasta atrás de si, pelo passeio molhado, um cão. Vestem-se de invernia. Lençóis de folhas mortas estendem-se junto aos passeios, enquanto os carros passam endomingados, uns à procura de um lugar para descansar, outros a dirigirem-se para outro lado, como se os seus condutores tivessem um destino, uma Penélope à sua espera, uma guerra para combater. Talvez estejam apenas atrasados para a Missa do meio-dia, aonde vão de consciência contrita e certos da indulgência que hão-de receber as iniquidades que, durante a semana, não se esqueceram de realizar. Um raio de luz mais intenso atravessou a atmosfera e fendeu a realidade, o tempo recomeçou a sua caminhada e o pequeno encanto de há minutos estilhaçou-se.

sábado, 24 de outubro de 2020

Triste tristeza

Suspendo a música e o sábado abre-se num vale de triste tristeza. Não tens vergonha de um truque tão fácil? Olho para o homúnculo que proferiu estas palavras e hesito entre ordenar que se vá deitar na caverna da minha consciência ou começar uma discussão com ele. Acabo por lhe responder e pergunto-lhe se ele queria que eu dissesse alegre tristeza. Depois, antes que abrisse a boca, fiz-lhe um gesto imperativo e ele desapareceu. Nem sempre as coisas são assim tão fáceis. Daqui a pouco irei a casa da minha mãe. Terei máscara, ela também. Impedirei que se aproxime de mim, pois não se sabe se sou um filho radioactivo e ela já não tem idade para estar perto da radioactividade. A seguir sairei e caminharei ao deus-dará, que é aquilo que tenho feito a vida toda, mesmo que eu o disfarce, mesmo que eu finja, nunca o meu caminho foi outro do que ir e vir à toa, sem destino nem propósito. Deixa-te de ficções. Voltaste, perguntei ao homúnculo. Voltei. Revolvem-me o estômago as tuas tiradas patéticas. Um pouco de pathos no discurso fica bem, retruco. Olhei para a cinza que envolve a rua e fiquei a meditar na fealdade do verbo retorquir. Os gramáticos, talvez por ociosidade, classificam os verbos em regulares e irregulares. Uma classificação miserável para esconder o moralismo que há neles. O que terão, os gramáticos, contra os modos de vida irregulares? Se fosse gramático, classificaria os verbos entre belos, horrendos e os que nem se dá por eles. Esta é a verdade crua. Muitos verbos passam por nós e nem damos por eles, falta-lhes a beleza que nos prende ou a fealdade que nos afasta, quando afasta. A campainha tocou. As minhas netas acabam de chegar. Correm para mim e o homúnculo assustado foi dormir.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Desactualizado e obsoleto

O Office informa-me que tem disponíveis actualizações, mas há que fechar algumas aplicações. É um mundo quase perfeito. Sê-lo-ia se também eu me pudesse ligar à rede, encerrar algumas aplicações, enquanto instalava actualizações que haveriam de fazer de mim o mais actual dos seres ao cimo deste pobre planeta. Digo-o com a máxima seriedade. Olho-me no espelho e, mesmo com máscara, não consigo esconder quanto as minhas aplicações estão desactualizadas. Isto quanto ao software. Quanto ao hardware a única palavra decente para me descrever é obsoleto. Sobre o meu estado de obsolescência há diversas teorias. Uma defende que me fui tornando obsoleto com o passar dos anos. É uma teoria sensata, mas benévola. Outra, menos benévola e menos sensata, estará mais próxima da verdade. Já nasci obsoleto. Nasci pronto para ser descontinuado. Há pessoas que nascem voltadas para o futuro. Eu nasci voltado para o passado. Não é que o passado seja um lugar mais aprazível que o futuro, mas é o horizonte que me coube. Esta conversa não tem pés nem cabeça, isso, todavia, é um efeito colateral de ser sexta-feira. Tenho de ir à rua. Não vou aglomerar-me, será que preciso de pôr máscara? Espirro. Uma, duas, três vezes. Uma dúvida abre-se no meu espírito. Estes espirros são sinais de desactualização do software ou da obsolescência do hardware? Cala-te, digo-me. Obedeço.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sacrifício ritual

Cheguei a casa exausto. Sentei-me em frente à televisão e liguei-a num canal desportivo. Homens trepam por uma montanha cavalgando bicicletas resplandecentes. Desenham-se-lhes rictos estranhos nos rostos. O cansaço, a luta contra o declive, a contabilidade de quem vai à frente ou atrás, tudo isso rouba-lhes a contemplação das paisagens magníficas que os envolvem e assistem indiferentes ao seu sofrimento, ao sacrifício ritual que os leva ao altar, onde, por um passe de mágica, se transformam de vítimas propiciatórias em sacerdotes escolhidos pelos deuses, para oficiar as cerimónias em seu louvor. Recomponho-me, respiro fundo, desligo a televisão e deixo os ciclistas entregues aos segredos da montanha, presos aos olhos dos espectadores que os aclamam como se fossem um exército vitorioso chegado do campo de batalha. Eles ainda não sabem que esse esforço desmedido é inútil. De pouco lhes servirá o nome num registo que o tempo fará esquecer. Essa inocência engrandece-os, pois toda a grandeza nasce de um não saber, de uma virgindade existencial que mergulha incauta nas águas turvas da vida. Hoje atravessei a cidade várias vezes. Nem dei por ela. Ela também não deu por mim, o que nos reconcilia. Reparo que as folhas das acácias começam a amarelecer. Têm um ritmo diferente das tílias e dos jacarandás. Cada coisa terá o seu ritmo, mas um maestro invisível subjuga-as à sua batuta para que uma música tensa e vibrante se erga da terra. O sol brilha anémico, alunos de um centro de línguas esperam agitados o começo da aula e eu esqueço-me dos pensamentos que me assaltam. As nuvens lembram grandes transatlânticos à deriva no oceano sombrio do céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ausência de sentido

O tempo desbarbariza-se. Há nuvens, vai chovendo, mas o vento sopra com mansidão e, no céu, lagos de azul deixam o sol chegar à terra. No campo de jogos da escola vizinha, um grupo de adolescentes corre sem pressa, num ritual de aquecimento que talvez anteceda algum jogo. Medito nas coisas que, com o tempo, se me foram tornando incompreensíveis. É possível que a morte não seja uma determinação biológica, mas um evento semântico. Quando a realidade perder sentido, então a morte chega para resgatar a pessoa da turbulência em que vive trazida pela ausência de significação com que o mundo se revestiu. Tudo é mais confuso do que se pensa e talvez não haja coisa mais obscura do que as razões que movem a morte. Um raio de sol ilumina a frota de nuvens que atravessa o meu horizonte. Elas resplandecem, enquanto eu penso no que tenha para fazer ainda hoje. Uma árvore podada estende os dedos curtos para o céu, mas nenhum anjo poisa nela. Os adolescentes recolheram-se, os carros passam na avenida, as pessoas entram e saem dos cafés, e eu olho para as páginas de um livro em que se discute a vexata quaestio se uma máquina pode pensar. Eu sei que não posso, mas não sou uma máquina.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

História de uma desconhecida

Entretive a manhã com certos problemas cuja solução atormenta os homens há muito. Não se pense que estive dedicado à sua resolução. Nem pensar. Entreguei-me apenas a torná-los claros para os distribuir a quem os queira apanhar. Ninguém, por certo. Valeu-me o toque da campainha. Era o correio. Trazia-me um embrulho com livros que comprara num alfarrabista online. Dois deles pertencem àquela colecção de capa amarela da Editorial Minerva. São edições do início dos anos sessenta do século passado. Um não foi aberto. Comprado na Bertrand, da Rua Garrett, custou 22$00. Não faço ideia quem seja o autor, Orio Vergani. O outro está aberto, possui uma assinatura feminina e a data de 13 de Abril de 1972. Quem foi a autora, Florence Barclay, também desconheço. Comprei os livros apenas porque a capa me agradou e o seu preço não era propício a arrependimentos e contrições. Talvez os venha a ler ou talvez os arrume e me esqueça deles e, quando um dia os meus livros forem parar a um alfarrabista, quem os descobrir vai dizer que um nunca foi lido, pois continuará fechado, e o outro pertencia a uma mulher, o que sendo verdade já não será toda a verdade. Penso no que se terá passado naquele longínquo 13 de Abril. Talvez ela tenha dado um salto a uma livraria, talvez alguma amiga se tenha lembrado do seu aniversário, talvez um apaixonado tenha encontrado na dádiva pouco imaginativa de um livro a expressão do seu amor. Porventura foi apenas uma mãe – aliás de origem estrangeira – que tenha oferecido aquele livro para completar a educação sentimental da filha. Continua a chover e não tarda terei de ir falar sobre questões que não interessam a ninguém que me vai ouvir. Se lhes falasse da antiga dona do livro, mesmo desconhecendo-a, seria outro o seu interesse e entusiasmo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sentimento num dia de chuva

Chove. A água interpõe entre os meus olhos e o hospital um véu de cinza. Tudo o que vejo é digno de um daqueles filmes sombrios que vinham do leste europeu. São imagens de exaustão, de um cansaço trazido pelos fungos às paredes dos edifícios. Procuro um nome para dar ao sentimento que toma conta de mim, mas não o encontro. São tão poucas as palavras que possuímos, mesmo aqueles que usam um vocabulário mais vasto, para uma realidade demasiado extensa, mesmo que essa realidade não seja mais do que a gama dos sentimentos humanos. Recebo uma mensagem da Protecção Civil. Avisa-me que vai haver chuva e vento forte nas próximas 48 horas. Risco de inundações. E eu debito um credo apropriado. Creio na Protecção Civil toda poderosa, informadora das ocorrências no céu e na terra, creio nos seus emails e sms. Creio…. De súbito, a memória irrompe neste devaneio patético e transporta-me para o tempo em que havia grandes inundações no Tejo. Nessa desgraça adivinhava-se uma grandeza sem voz, ânimos temperados pelo confronto com o desatino da natureza. Agora tudo se tornou um problema de gestão de caudais. Ao escrever isto não consigo deixar de sorrir. Também eu preciso de introduzir um programa de gestão da verborreia. Um dos homúnculos que habite na caverna da minha mente diz mesmo que nunca se viu quem tanto escrevesse sem ter nada para dizer. E isto é a pura verdade. Se eu tivesse alguma coisa para dizer, calava-me.

domingo, 18 de outubro de 2020

É falso tudo o que vou contar

Tudo o que vou contar é falso. Se o leitor acreditar numa palavra que seja, fica por sua conta e risco. Eu bem o avisei. Ontem fui visitar a minha mãe e, em vez de poluir a atmosfera com os gases do carro, pus os pés ao caminho. Saindo de casa dela, decidi que, também eu, tal como o velho genebrino Jean-Jacques me entregaria às minhas rêveries du promeneur solitaire. Pus-me a caminhar pela cidade, por sítios onde raramente ou nunca passo a pé. A certa altura a imaginação começa a importunar-me e a perguntar por que motivo, em dado momento da história do país, qualquer vilória, com poucos milhares de habitantes e uma existência tão cosmopolita como uma paróquia perdida sabe-se lá onde, quis tomar o nome de cidade. Não lhe soube responder e continuei a promenade. Quando passava diante de um cemitério, numa avenida que leva de uma rotunda a outra rotunda, que por sua vez levará a uma terceira, ocorreu-me um episódio da semana que tinha passado. Recebo uma chamada no telemóvel. Estou, respondo. É o senhor e declinam o meu primeiro nome. Ainda com bonomia digo o próprio. Aqui fala a Doutora… Ah, respondi, o seu pai conseguiu pôr-lhe o nome de Doutora. Deve ser muito nova. Quando fui ao registo civil para registar a minha filha também quis pôr-lhe o nome de Doutora, mas não me deixaram. Cheguei lá e disse quero registar a minha filha recém-nascida. E o nome, perguntou-me o funcionário já entradote. Quero que se chame Doutora e acrescentei dois apelidos da mãe e dois do pai, só para ela treinar a letra quando, na escola, escrevesse o nome. Não pode, retorquiu. Doutora não consta da lista de nomes autorizados. Não? Olhe, acrescentei, não estava preparado para isso. Que nome lhe hei-de pôr? Pode chamar-lhe Isabel, Madalena, Teresa, Sofia, Fátima ou Maria, que era o nome da Nocha Chenhora, foi assim que ele pronunciou. Eu respondi, se era o nome da Nocha Chenhora, fica Maria, e Maria ficou. Os tempos mudaram e agora há muitos pais a porem como nome aos filhos Doutor e Doutora. Lembrei-me de uma outra história, tão verídica como esta, de um rapaz também ele doutor e presidente da junta, mas talvez a conte num dia destes, se numa nova promenade me entregar a nova rêverie. Tudo o que narrei é falso, repito. Se acreditou numa só palavra, não culpe este pobre narrador, um mitómano contumaz, cuja papel é inventar coisas que nunca se passam.

sábado, 17 de outubro de 2020

Um sábado perfeito

No pequeno bosque da escola ao lado, as árvores petrificadas lembram estátuas esquecidas de uma civilização há muito abandonada. São símbolos a lembrar o passado, mas escondem a chave para os decifrar. O vento suspendeu a sua agitação e o sábado deixa-se invadir por uma luz tocada pela anemia. Olho o arvoredo e deixo-me devanear sobre a perfeição que existe em certos dias de Outono. Sou um ser outonal, não porque a idade assim o diz, mas porque sempre o fui. Por vezes, agrada-me a inocência de seres primaveris. Raramente a minha disposição é compatível com a exuberância dos estivais. Aos invernosos, olho-os com reverência, mas deixo-os pairar a uma distância conveniente. A vida é um exercício difícil de aproximações e distâncias, de procura de afinidades electivas, de gestão do espaço, no qual convém desenhar fronteiras que em caso algum devem ser atravessadas, mesmo se se tem passaporte. Dou uma vista de olhos pela imprensa, um velho hábito que não consigo erradicar, apesar de se ter tornado inútil. Deveria chamar-lhe um vício. O mundo continua a ser mundo e naquilo que leio poucas razões encontro para que não me torne num misantropo inflexível. Tivessem os homens a perfeição dos cedros, dos pinheiros, dos ciprestes que avisto e talvez a passagem da espécie pelo planeta não fosse um cortejo de indignidades. O vento voltou a soprar e levou com ele todos os meus pensamentos. Fico-lhe grato, pois melhor do que pensar é não pensar, ter a inocência de uma árvore presa ao seu silêncio.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Uma tarde animada

Mal entrei no Facebook deparei-me com um post de uma amiga cá de casa a agradecer sensibilizada a todos aqueles que lhe estão a endereçar felicitações pelo aniversário. Ao mesmo tempo, aproveitou a ocasião para informar que não fazia anos. Será mais tarde, para a próxima semana. Ainda bem que me eximo de distribuir parabéns pelo Facebook. Depois, saí e fui buscar a minha neta mais velha à estação da rodoviária. Foi a primeira viagem que fez sozinha, com mil recomendações parentais, pedido de guarda ao motorista, controlo da mãe e da avó através do telemóvel e os avós no terminal rodoviário à espera do expresso, ainda mal ele tinha saído de Lisboa, não fosse a viagem ser feita a 300 km por hora e a pobre adolescente ter de esperar num sítio inóspito, digno de uma distopia. Pobre, pois o que há-de ser alguém que, na adolescência, tem de ler coisas como estas: A definição de quociente entre dois quaisquer números racionais, sendo o divisor não nulo, coincide com a definição já dada para o quociente entre dois números racionais não negativos. Foi isto que li num livro que ela tem aberto ao lado do caderno em que escreve, enquanto a avó a massacra com exercícios, que metem mais e menos, quocientes, fracções e o que mais o peçonhento com pés de cabra há-de inventar para a perdição de uma rapariga numa tarde sem aulas. Comentei entre dentes que me parecia péssima literatura. Quando comecei a ler fiquei entusiasmado, o argumento tinha mistério. Qual será a definição de…? Fiquei suspenso, confesso. Chego ao fim e descubro que coincide com outra definição já dada. Afinal o prosador, sem imaginação, termina a narrativa com o mesmo desenlace do que a anterior. Para a compensar da tortura já marquei mesa para o restaurante de que ela mais gosta aqui na zona. Tremo só de pensar a hora em que terei de lhe ensinar a fazer inspectores de circunstâncias, ou a discutir se a liberdade da vontade é compatível com uma natureza completamente determinada, ou obrigá-la a escolher entre o imperativo categórico e o princípio de utilidade para avaliar a bondade das suas acções. Como se vê, está a ser uma tarde de sexta-feira muito animada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Uma súbita nostalgia

Não é implausível que, uma vez ou outra, no céu da minha consciência perpasse uma nuvem de nostalgia. Não uma nostalgia vulgar por alguma coisa que se viveu ou amou, mas pela mais autêntica das nostalgias, aquela que nasce de um amor nunca tido ou de uma coisa jamais realizada. Foi isso o que me aconteceu há dias, continuou Rogélio, um dos meus velhos amigos, quando vi à venda um livro do italiano Giovanni Papini. Nunca o lera, mas recordei as capas soberbas com que as Edições Livros do Brasil o punham à disposição do público português. Ao vê-lo, trata-se de Gog, na montra de uma papelaria esquecida numa vila remota do interior, nem hesitei. Uma estranha ânsia tinha tomado conta de mim, pois temi que, mesmo sem ninguém dentro do pobre estabelecimento, além do proprietário, algum cliente secreto ou invisível se interpusesse entre mim e o objecto do meu desejo. Ao pegar-lhe senti uma comoção, das mais autênticas que me tenho imaginado, e folheei-o com avidez. Há dias que o arrasto para onde quer que vá. Aqui Rogélio mostrou-me o livro. Estava ferozmente anotado nas margens com uma letra ilegível que reconheci ser a dele. É verdade que esta história não interessa a ninguém, mas também, embora sem nostalgia e de coração seco, me decidi a procurar o livro no primeiro alfarrabista que o oferecesse a um preço decente. Chegou-me hoje, com evidências claras de as suas páginas nunca terem suportado o peso do olhar de um leitor. Hesito por onde começar. Pela visita de Gog a Einstein, ou a Lenine, ou a Freud? Talvez comece pela que fez a Knut Hamsun. Ou talvez nem o leia ou nem sequer o tenha comprado, apenas tenha sonhado tudo isto quando, sentando-me diante do computador para trabalhar na salvação da humanidade, adormeci, até que alguém me comunicou que o meu ressonar deveria incomodar os vizinhos do prédio mais distante da rua.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

De perder uma alma

Antes de termos chegado ao lugar onde estamos, na escola aqui ao lado havia um conjunto musical, a que eu dava o nome de grupo de baile. Nas tardes de quarta-feira, a banda dedicava-se a ensaiar êxitos dos anos sessenta e setenta do século passado, num exercício de nostalgia que sempre achei estranho num sítio povoado por gente nascida depois do virar o milénio. O confinamento emudeceu aqueles bravos rapazes devotos da Nossa Senhora da Boa Memória, um deles, o único que identifico, chegou a estudar comigo. Este ano ainda não os ouvi, presumo que não recuperaram nem a voz nem a vontade de viajar para o tempo em que, conjecturo, terão sido felizes. Isto, contudo, sou eu a especular. Não os oiço, como não vejo há uns dias os anjos que vivem no telhado do prédio do lado. Imagino que se foram confinar para algum lugar longe dos homens, antes que sejam contaminados e lancem o caos nas urgências celestes, onde os anjos tratam as suas afecções mais persistentes, embora, como se sabe, eles não necessitem de ir para os cuidados intensivos. A sua condição não lhes permite grandes males e, por isso, não precisam de grandes remédios. O padre Lodo ligou-me esta manhã. Não devia ter escrito ontem, sublinhou o não, que os meus pecados eram insignificantes, que só Deus tem o metro para medir a significância pecaminosa de cada um. Estaria eu, disse-me ele, prestes a cair na tentação da blasfémia. Estava preocupado com a minha alma. Disse-lhe que não se preocupasse com ela, caso eu tivesse uma. Aqui faltou-me um módico de caridade e não consegui evitar um traço agnóstico suspenso sobre a conversa. Fora um exercício de pura humildade, declarei em tom compungido. Depois, acrescentei, quando for a Lisboa, ligo-lhe. Vamos jantar com o grupo habitual. Desta vez, respondeu com o seu português italianizado, tem de ser aquele que tem uns pastéis de massa tenra de fazer perder uma alma. Esse mesmo, respondi.