domingo, 2 de fevereiro de 2020

Contra o coração

Depois de tomar o pequeno-almoço fui acometido por um súbito estado meditativo. Isto não traz nada de bom, pensei. Um sol esplêndido cai sobre as ruas, as pessoas aspiram os primeiros aromas da Primavera, a natureza não desdenha de começar a despir os andrajos invernosos e de procurar nas lojas da moda alguma roupa para a estação que há-de vir. Deveria ir celebrar a vitória da luz, mas lembrei-me de imediato que não tardará muito e o Estio entrará de rompante pelos corpos, inundando-os de suor, roubando-lhes energia, fazendo-os sonhar com as ondas do oceano. Sentei-me e fui arrastado para o livro do deve e haver da vida. Diante de mim está um telemóvel novo, comprado há três semanas, mas que continua intocado como uma virgem. Ainda não tive coragem para ler as instruções. Sempre desconfiei de instruções e ainda mais de aparelhos que precisam de instruções. Estou a afastar-me do assunto. O balanço é pior do estava à espera. Uma vida erguida entre duas falácias. Quando se é novo, o coração anseia a novidade porque é novidade. Quando se é velho, o coração inconstante cultiva a tradição porque é tradição. Ocorre-me, então, que o coração deveria ocupar-se apenas em bombear com presteza o sangue e deixar-se de considerações para as quais não lhe foi concedida competência. O mal do coração é querer meter-se onde não é chamado, emitir opiniões, dar conselhos que não passam de palpites enviesados sobre o que deve ser. Se a humanidade não tivesse coração, melhor andaria o mundo. O sol com o seu fato domingueiro de provinciano chama-me. Vou? Não vou?

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Um problema de família

Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém, está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste criado ex nihilo. Contente com o latinório não se conteve e rematou ex nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Falar por enigmas

Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em Creta e os Inuit no Alasca e entro no fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade, um Inuit perdido no horror de um pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O pobre destino da caligrafia

Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo, desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável, enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico, expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada. Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois, sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica, libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a chinela.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Amor máquina

Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos, mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê? Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa. Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do mundo.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Um estóico falhado

Cheguei à tarde desta terça-feira irritado e irritado com a minha irritação. Deveria ter entrado no clube dos estóicos e entregar-me à apatheia. Olhar com indiferença olímpica os acontecimentos que, por vezes, me acontecem e deixar o mundo correr para a foz, sem julgar ter o dever de lançar bóias aos náufragos que encontro. As Parcas, porém, não me quiseram ver perdido entre gente que se entregava a tal filosofar, arrancaram-me da sombra do pórtico pintado e, no seu sábio julgamento, determinaram que no meu lote também cabe a irritação. Quis enganá-las e a conselho médico comecei a tomar um betabloqueante. Pensei, na minha ingenuidade, ou estupidez, conforme as opiniões, que tinha, ainda em vida, entrado no paraíso pela porta da química. Não havia irritação que me chegasse. Nestas coisas, a história tem sempre desenvolvimentos que estão ocultos aos protagonistas. Os betabloqueantes deixaram de betabloquear as irritações e o paraíso foi dando lugar ao purgatório e, agora, ao inferno. Eu sei o que o leitor está a pensar. O inferno são os outros. É verdade, se crermos nas homilias de Sartre. Eu não tomo partido sobre elas. Oiço o ruído irritante de um aspirador e penso comigo que deveria falar com essas Parcas ou Moiras, caso esteja mais inclinado para o grego do que para o latim. Depois, achei melhor não as irritar e deixá-las longe de mim. Esperam-me horas de grandes inutilidades e isso realiza-me profundamente. Fosse eu um estóico e tudo me seria indiferente. Bastava adequar-me à natureza. Estaria irritado, mas feliz.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Ficções e fingimentos

Se tivesse engenho para a poesia épica, hoje escreveria sobre a epopeia da caldeira aqui de casa. Assaltou-me, porém, uma dúvida. Tendo em conta que ela decidiu fazer de morta, talvez o talento requerido fosse o do poeta trágico. Uma tragédia o não haver aquecimento nem água quente. A expectativa é que cheguem os técnicos e façam manobras de reanimação e ela ressuscite, sem que tenha de ir para o hospital ou para a morgue. A tarde ergueu sobre si um véu de chuva. Cobre-se com ele e caminha como uma noiva para o altar. Como ela, também a tarde desconhece que é ali, no altar, que se cumpre o seu destino de vítima sacrificial. Ainda me acusarão de querer destruir o instituto do casamento. Longe de mim tal ideia, chego mesmo a ter grande admiração por quem se casa quatro e cinco vezes. A persistência é uma virtude louvável e digna dos maiores encómios. Os técnicos já deveriam ter chegado. Daqui a pouco espera-me uma função daquelas que pela sua profunda inutilidade se tornam absolutamente imprescindíveis. E são coisas destas que me fazem amar esta pátria. Somos especialistas em ficções. Fingimos que gostamos, fingimos que pensamos, fingimos que sabemos, fingimos que fazemos. É um dom que nasce da combinação genética com a educação que o meio promove. Se os poetas são uns fingidores, são-no porque são portugueses. O que arrasta a extraordinária conclusão de que só existem poetas portugueses. Os outros ou não são poetas ou se o são, são portugueses mas não o sabem. O que faz a falta de água quente.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Dia de nevoeiro

Cheguei à janela e disse é hoje. É tal o nevoeiro que D. Sebastião não pode perder a oportunidade para regressar do seu infausto exílio. Para tornar a hipótese verosímil, não sei bem onde, ouve-se a voz de Tony de Matos cantar Tempo Volta para Trás. Todos sabemos que a preocupação do artista não era propriamente o nosso pobre rei maltratado nas terras da moirama, mas a Severa. Pensei de seguida que se D. Sebastião chegasse agora ao aeroporto da Portela, logo a seguir viria a Severa e os problemas que nos afligem ficariam todos resolvidos. Estou proibido pelo autor destas palavras de ter opiniões políticas. Um narrador, diz-me ele dia sim dia não, não se mete em política. Isso é coisa de autores. Eu anuo com servilismo, mas sempre posso dizer que já conheci uns tantos D. Sebastiões, vi-os chegar e partir e todos continuam à espera que ele chegue. Um domingo de nevoeiro é sempre propício às minhas meditações sem nexo. Para tornar as coisas mais densas, contrariamente ao que canta o artista, as horas para mim não são dias, nem estes são anos. Aos fins-de-semana passa-se o contrário. Os anos para mim são dias e os dias são horas. O que me atormenta não é que a Severa se tenha ido, mas a possibilidade que ao virar a esquina dê com ela. Há encontros que devemos evitar. O nevoeiro não faz intenção de se dissipar. Tenho de me apressar, antes que D. Sebastião aterre, eu não possa acenar-lhe e gritar viva o Rei. Ah, esquecia-me, de política não posso falar.

sábado, 25 de janeiro de 2020

Exercícios melancólicos

Ser avô não é um dado, mas um exercício difícil e persistente. Depois de um mês de afastamento, o meu neto esteve comigo. Olhou-me com olímpica distância. Nos seus catorze meses mal condescendeu em estar ao meu colo, embora lhe agradassem certas cabriolices que fazem parte do repertório que qualquer avô tem para lidar com netos renitentes. Preferiu fazer explorações solitárias. A certa altura descobriu umas pequenas pinhas que eu nem sequer sabia existirem. Achou que as poderia partilhar comigo. Dava-me uma, esperava que eu a devolvesse e colocava-a onde estava. Recomeçava de imediato o jogo. Foi-se embora há pouco e deixou um buraco no meio do sábado. Deveria remendá-lo, mas uma preguiça ancestral insinua-se em mim e prende-me a coisas triviais. Depois de uma manhã ocupada, deveria ir à rua e comprar o jornal de fim-de-semana. Há uns anos tinha uma verdadeira obsessão pela imprensa hebdomadária, comprava uns quatro semanários. Depois, alguns foram morrendo, outros mudaram de sexo e mesmo o que resistiu perdeu a aura sagrada que tinha naqueles anos. Hoje olho com condescendência para a prosa que se produz. Se a leio é por desfastio, muito longe do entusiasmo com que no final da adolescência ou início da juventude comecei a comprar os meus jornais. Ó miséria, lembrei-me que o primeiro jornal que comprei com devoção foi o Motor, naqueles anos em que as corridas de automóvel faziam parte do imaginário de uma adolescência à procura de rumo, como todas as adolescências. Agora sou avô e há muito que morreram em mim os ecos da luta entre Jackie Stewart e Emerson Fittipaldi, entre os Tyrrell e os Lotus.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Romantismo tardio

Rápida, a noite aproxima-se no veleiro do entardecer. Como asas gigantescas, as velas da tarde enfunadas pelo vento arrastam a luz e murmuram uma litania dolente para a semana que agoniza. Dois corvos levantam voo do pequeno bosque e desaparecem do meu campo de visão. Anjos negros à procura de almas perdidas nos interstícios da serra, esse conjunto de morros cinzentos, curvados sob o peso dos anos. Não é preciso muito para o romantismo voltar e exibir o seu coração descarnado diante dos olhos atónitos do espectador. A primeira vez que entrei na sede da CGD, na João XXI, em Lisboa, para ver uma exposição, pensei que tinha aterrado numa catedral transposta da Idade Média para os nossos dias. Uma visão romântica das novas divindades. Também hoje visitei uma capela do novo deus e não sei bem por que razão achei que estava num confessionário. Na avenida, os carros lançam já os seus holofotes sobre o horizonte. Circulam devagar, presos à escuridão que avança. Também eu tenho de sair. Esperam-me num café ou, talvez seja mais certo, não tenho nada para dizer. É sexta-feira.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Os quatro caracteres

A humidade destes dias abriu caminho por dentro da secura do clima. Não é uma terra fácil. Exige um carácter compassivo mesmo aos mais coléricos. Sem a virtude da paciência será difícil enfrentar e suportar os humores climáticos. Tenho pena, ou não fora um exemplo de melancólico, embora haja que descontar a tendência para a hipérbole, tenho pena, dizia, que a psicologia se tenha vindo a esquecer daquela velha divisão dos caracteres em quatro, todos eles belos como metáforas à deriva num campo em flor. Esta última frase mereceria ser riscada e não sem violência. O apelo ao pathos através destas estratégias para caçar ingénuos deve ser proscrita. Fica lá, só para eu não me esquecer que há coisas que nunca se devem escrever. Voltando aos caracteres, eles faziam uma bela divisão com os seus nomes. Fleumáticos, melancólicos, sanguíneos e coléricos. O facto de serem quatro ainda os torna mais dignos de admiração. A perfeição do número par, que se opõe à imperfeição de qualquer ímpar, contrasta com o caos classificativo com que hoje em dia designamos as pessoas. Como se pode negar a eficácia de dizer ali vai uma melancólica? É pena que tenha casado com um colérico. Assim nunca poderá ter filhos fleumáticos. Tornou-se moda, uma triste moda, ser contra as classificações. Por tudo e por nada, se grita não me classifiques que eu estou para lá de todas gavetas com que organizas a realidade. Presunção e água benta, penso eu, cada um toma a quer. Um ditado ao gosto popular nunca fica mal para pôr fim a um texto.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Contemplação e pontos Cardio

Com tantos tortos por endireitar e o mundo tão fora dos eixos, e eu sentado à secretária a pensar coisas que não hão-de salvar ninguém. Foi o que me ocorreu quando dei comigo a olhar com demora a Adoração do Cordeiro Místico, do retábulo de Ghent, uma obra dos irmãos van Eyck, agora restaurada. Se pensarem como motivo da minha contemplação os olhos humanos do Cordeiro ou o jorro do sangue do seu corpo para o cálice, estão enganados. O que me retém é a ordem perfeita com que os adoradores são dispostos na adoração, não tanto porque essa ordem seja uma convenção cristalizada dos poderes sociais, mas antes o resultado da própria natureza mística da figuração simbólica do Cristo. Meu Deus, um dia destes ainda me torno um erudito. Não devia dizer estas coisas, pois contrariam a vulgata social que hoje faz de cartilha maternal pela qual todos aprendem a ler o que se passa por aí. Recebo uma mensagem. A aplicação que me controla o exercício diz-me que está tudo OK!, com exclamação para enfatizar a situação. Depois percebo que é um estratagema reles para motivar-me a estar ainda dezassete minutos activo e obter mais um ponto Cardio. Desconfio que se obtiver todos os pontos Cardio em jogo ganho uma viagem a Ghent, mas talvez o mundo não funcione segundo as minhas conjecturas e, mal faça uma, ela receba imediata refutação. Uma outra mensagem põe-me perante um dilema, plausivelmente falso. Será a amizade um sentimento ou uma virtude? Para piorar as coisas, alguém que desconheço, de um país do leste europeu, pede-me amizade. Não lhe consigo pronunciar o nome. Ainda bem que não é um pedido de casamento, pois os meus pontos Cardio não seriam suficientes para tamanha comoção.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Pobre Katharina

Passo os olhos pelos jornais e descubro que cinco pinturas roubadas há quarenta anos na cidade alemã de Gotha tinham sido recuperadas. Entre elas encontra-se uma de Hans Holbein, o Velho, que o jornal indicava ser Santa Catarina, um quadro de 1509. Havia naquela mulher uma tal tristeza que duvidei que se tratasse de alguém tocado pela graça da santidade. É o retrato de Katharina Schwarz, onde no lugar da beatitude se encontra uma infelicidade resignada com o mundo e consigo mesmo. Procurei outros retratos de mulheres do mesmo Holbein. Neles há sempre um elemento desconcertante, como se a beleza tivesse sido proibida àquelas mulheres e lhes restasse apenas o ar austero para assegurarem um lugar no mundo. Exceptua-se uma representação de Maria, onde o amor pelo Menino a resgata dessa rispidez fria e lhe dá uma beleza contida e secreta. Olho pela janela e descubro que sob a copa das árvores do pequeno bosque consigo avistar uma rotunda cuja estatuária, tão do agrado popular, me faz lembrar as soturnas representações do realismo socialista. Sorrio e volto os olhos para a infeliz Katharina. Apesar da beleza das mãos, a imperfeição do rosto rapta-a e cerra-a num mundo de onde nenhum príncipe, mesmo de gosto plebeu, a há-de resgatar. Na rotunda, os carros circulam devagar, talvez em contemplação, enquanto a minha memória me traz, sem que eu saiba a razão, um filme alemão visto há uns anos com o estranho nome Adeus, Lenine! Pobre Katharina, pensei.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Erros meus

Cometem-se erros por ignorância. Não se sabe como se escreve um vocábulo, mas incitados pela preguiça natural que faz parte do ser humano escreve-se aquilo que parece ser a palavra e não o que ela é. Outros erros há que são mais interessantes. Sou atingido por eles com regularidade. Ainda ontem escrevi usou no lugar de ousou. A quase homofonia explica aquilo que os dedos, comandados por um cérebro confuso, digitaram. Colocamos esses erros sob o manto do descuido e com este tapamos não o erro, mas o que se passa na nossa mente, a ameaça de caos que a atinge. Semelhanças diversas, com o passar do tempo, fazem com que as fronteiras que distinguiam certas palavras sejam cruzadas e um caos ortográfico atinja as regiões policiadas do léxico. Não deverias começar a semana – de trabalho, claro – com meditações dessas, diz-me a consciência, sempre pronta para moralizar e dar conselhos a quem não lhos pediu. Levantam suspeitas, continuou, e roubam-te o ânimo para enfrentares os dragões, os quadrilheiros e as amazonas mórbidas que te hão-de saltar ao caminho. Tapei os ouvidos interiores e pedi-lhe com delicadeza que se calasse. Tenho uns emails para ler, decisões para tomar e, acrescentei não sem acinte, sei tomar conta da vida sem que precise dos teus conselhos de rameira convertida em puritana. Vindo da praceta ao lado, oiço um barulho. Parece um martelo a percutir pedra. Imagino que estão a cuidar da calçada, mas retenho a curiosidade. Talvez seja uma ilusão e o melhor é não a desfazer, antes que tenha de me interrogar por que razão ando a imaginar coisas.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Críticas impertinentes

Não sem um sorriso compassivo leio que Baudelaire e Verlaine seriam dois versejadores muito inábeis na forma e baixos e banais no conteúdo. Depois a diatribe continua por mais um parágrafo, dezassete linhas em que a espada crítica enche os alvos com vários golpes. Ambos sangram com abundância e, nos espectadores, há lágrimas a rolar pelas faces. Na continuação, conclui-se que tão má poesia é vista como genial porque na sociedade onde ambos versejam a arte não é levada a sério. Quem o disse, perguntará o leitor, dado à poesia, condoído do pobre crítico, que deveria saber tanto de literatura como eu de chinês. A vida é feita destas coisas. Comecei o domingo assim, com uma má leitura, dir-me-ão, mas não tarda ponho o livro de lado para ir ver a rua e deixar-me embalar pelas ondas luminosas que se desprendem do Sol. A natureza tem sempre o condão de lavar a alma, quando não é ela que a suja, pois esconde no mais fundo de si um verdadeiro talento para desencadear a concupiscência. Esta palavra recordou-me as quatros virtudes cardeais, mas só me lembro de três. A força, a temperança e a justiça. Dou voltas à memória e, como ela se ri das minhas pretensões, recorro à informação em linha. Ah, exclamei ao ver estampado num texto a sabedoria. É o que me falta para ser virtuoso, pensei, embora nem toda gente esteja de acordo sobre se essa é a única virtude que me falta. O leitor não desespere, porém. O autor impertinente que ousou afrontar Baudelaire e Verlaine também escreveu coisas como Guerra e Paz ou Anna Karenina. Vou almoçar.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Heróis e peregrinações

Está um entardecer soturno o deste sábado. Passei a manhã a trabalhar, depois acabei por ir almoçar ao bar da esquina. Contrariamente ao que acontece à noite, tinha pouca gente, o que me permitiu ler umas páginas de um artigo sobre ficção. Quando saí, voltei a aventurar-me pela cidade. A continuar assim torno-me um verdadeiro peregrino. Isso recorda-me a peregrinatio ad loca infecta, de Jorge de Sena. É isso o que eu sou, um peregrino em lugar infectado, e, posso-o assegurar, também estou contaminado ou, o que será mais justo afirmar, sou um dos contaminadores. Seria interessante contar aqui as peripécias da minha caminhada, mas ela foi pouco aventurosa. Não tive de enfrentar gigantes, nenhum bando de maltrapilhos me saiu ao caminho. Foi uma andança compassada e pequeno-burguesa, de quem digere o almoço e aproveita os raios de sol para se iluminar um pouco. O autor destes textos bem podia fazer de mim um herói dos antigos, mas suponho que ele deve ter sido infectado por alguma literatice moderna e acreditará em anti-heróis. Hoje surpreendi-o numa discussão com alguém que não conheço sobre a natureza da narrativa, defendendo, contra a opinião do interlocutor, que uma narrativa não precisa que todos os elementos se acordem e conjuguem, pelo contrário. Convém que o texto seja atravessado por presenças e acontecimentos inúteis e que nada contribuam para o desenlace da intriga. Escondi-me, antes que ele desse por mim. Nessas coisas, não me meto. Faço o que me mandam, pois este é o papel do narrador e o seu principal dever, que nem sempre cumpro, é o da obediência. A luz, como um funâmbulo, equilibra-se no arame esticado entre o dia e a noite. Não tarda e há-de despenhar-se. Talvez ressuscite na madrugada.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Das placas toponímicas

Há muito que não fazia uma caminhada. Depois de um almoço tardio, em vez de me sentar e adormecer em frente do computador decidi pôr-me a andar. Literalmente. Cinquenta minutos por ruas e travessas. Aqui e ali, observava as placas toponímicas, as quais não poucas vezes têm motivo de meditação. Numa inscrevia-se o nome de um farmacêutico do século XIX, cujas virtudes desconheço por completo, outra dizia Rua do Jardim de Infância, embora não consiga perceber a relevância da escolha, imagino que deve ter sido objecto de profunda investigação. A vida na província tem sempre estas animações. O amor ao local é tão transbordante que o mais efémero merece aspirar ao reconhecimento eterno. Não deveria falar destas coisas, pois tudo se torna motivo de ofensa, mesmo a mais simples incompreensão. Aliás, nem deveria ler as placas. O verdadeiro caminhante vai de olhos em frente, concentrado no seu objectivo, sem deixar que as tentações literárias interferiram no mover das pernas. Que lhe interessa que o Largo General Humberto Delgado tenha sido em tempos Rossio de S. Sebastião? Desde que possa avançar passeio fora, o resto não tem relevo. Quando cheguei perto de casa, a luz do dia velava-se, mas as ruas ainda buliçosas estavam invadidas com gente a sonhar fins-de-semana, pais sem ocupação e avós reformados à espera de filhos e netos, que as escolas iam vomitando das suas entranhas. Nas esplanadas não havia anjos nem deuses, apenas pessoas enfastiadas. O langor das pequenas cidades inscreve-se no rosto dos habitantes, como um quebranto que reza alguma terá o poder de espantar.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Problemas teológicos

O advérbio que não seria advérbio mas conjunção, depois de demorada ecografia, revelou o sexo. Afinal não era conjunção mas advérbio, um rapaz presumido pronto para qualquer conexão. Imagino que a continuar assim terei na classificação das palavras motivo de escrita para os próximos anos. Por causa das coisas, guardei longe de mim a gramática de Lindley Cintra e Celso Cunha, que tanta estima tinha gerado em mim, e coloquei em cima da mesa uma outra dita prática, daquelas de onde todo o gosto aristocrático foi banido em nome do respeito que se deve à ciência. Imagino-me já perdido nela em investigações sem fim sobre a nova nomenclatura. Percorro-a em diagonal e parece-me cheia de palavras bárbaras e expressões oblíquas. Isto digo eu que não pertenço ao clube dos linguistas e não me interesso por este tipo de teologia. Fora o problema da processão do Espírito Santo e outro galo cantaria. Até João Escoto Eriúgena haveria de citar, para dar ares de entendido. Um sopro roncante vindo da rua choca não sem ira contra os vidros. Forma-se então uma melodia em que o bafo acidulado do vento lembra o som de uma fita magnética a que se junta o batimento improvisado das persianas percutidas pela flébil mão da ventania. Ainda me acusam de não saber o significado de flébil e usar palavras a esmo. A música do mundo está onde menos se espera, pensei já esquecido da acusação. Janeiro desliza destemperado em direcção à foz. As suas águas, porém, não engrossarão Fevereiro, pois este, mesmo quando bissexto, debita menos tempo que qualquer outro dos rios que formam o grande lago do ano. Tamanha irregularidade mostra que a fonte de onde se deu a processão do calendário pouco devia à perfeição.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Erros funestos

Ontem confundi uma conjunção com um advérbio. Dei por isso porque uma musa deleitosa, apesar de invisível, mo soprou ao ouvido. Há erros funestos, mesmo que tenha tido como auxiliares a minha desatenção, uma certa preguiça para consultar na memória a cantilena das adversativas e um dicionário famoso que, para me certificar sem esforço da classificação da palavra, consultei e me propôs um erro sem que eu pestanejasse. Não fora isso, e hoje não choveria a cântaros. É evidente que tendo em conta a quantidade de chuva, a causa não reside apenas no meu erro gramatical. Se fosse só ele, hoje o tempo seria de aguaceiros com boas abertas. O conjunto de erros gramaticais praticados ontem deve ter sido enorme, para que o tempo esteja assim. Por muito que esta teoria contrarie a ciência meteorológica, a verdade é que aquilo que acontece tem as causas mais insuspeitas. Nunca se sabe bem que erros sintácticos se cometem nos dias de Verão para que um calor abrasador caia sem piedade sobre nós. O céu que avisto daqui está escuro, mas vejo alguns telhados a reverberar o que indica que uma réstia de sol se infiltrou na densa cortina de nuvens. Daqui a pouco sairei de casa. Espera-me o suplício de Sísifo. Rolarei a pedra até quase ao cimo da montanha, mas algum pecado gramatical cometido na adolescência há-de arrastar-me encosta abaixo. Hei-de levantar-me e recomeçar a empurrar o penedo.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Poréns

Quando fechei as persianas a noite ainda se apressava ao longe para chegar à hora marcada. O horizonte porém estava negro. Ao escrever isto, paro e fico a olhar demoradamente para a conjunção. Em certos países de língua portuguesa usam porém como nome, sinónimo de defeito ou mácula. Ela tem muitos poréns, imagino eu. Enquanto olho para a chuva penso que também eu possuo muitos poréns. Depois, tomo consciência da aliteração em p e deixo de pensar e de possuir, não vá ofender a estilística, fico só com os poréns. Cultivo-os como se fossem um dom precioso e com isso espero tornar-me virtuoso. Há dias em que não tenho nada para dizer, mas insisto em falar, muito gostava de saber por onde anda o meu amor ao silêncio. A mulher que sob um pequeno chapéu-de-chuva atravessou uma passadeira na avenida poderia dar uma história. Inventava-lhe um desgosto amoroso para explicar a pressa, o coração dorido pelo abandono, mas já ninguém quer saber de gente enjeitada e os abandonos são, num mundo como o nosso, uma oportunidade a reclamar o talento de quem foi trocado. Também as coisas do coração ou do sexo, para nos mantermos no estrito domínio da fisiologia, têm a sua economia e o mercado há-de ter os seus nichos à espera dos ousados que enfrentam com bravura uma ou outra falência. Os carros vomitam raios de luz que a chuva recorta em tiras, transeuntes recolhem-se nos estabelecimentos abertos e toda esta gente sem metafísica há-de chegar a casa. Resta-me comer chocolate com a mesma verdade que uma pequena o comia perdida num poema de certo autor cujo nome não me apetece citar.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Jardins de Epicuro

A melancolia da manhã encheu a cidade com pequenos farrapos de tristeza, vestígios de um Inverno que, passados os dias de chuva lacrimosa, se negou a si mesmo, parecendo em ânsias para se tornar numa Primavera exuberante nos seus rebentamentos. Ao longe, num campo de jogos, adolescentes entregam-se ao futebol, jogo para que parecem ter uma infinita capacidade de reinvenção, traçando regras que o momento exige, galgando por cima delas de seguida, se atrapalham. Oiço o ronco de uma moto, um ronronar monocórdico perfurado por rápidas acelerações, onde o motor guincha numa estridência de irritar o mais indiferente dos homens. Dos homens e das mulheres, deveria escrever, pois também as há envoltas no manto ondulante do epicurismo, com o qual saem à rua, cultivam o seu jardim, e se abstêm das convulsões que um excesso de pathos traz à vida. Conheci algumas que se lavravam assim na vida, cujos casamentos se fizeram felizes por imperturbados pelo ímpeto da paixão, mas devo abster-me da inconfidência, um vício que a razão condena sem remissão. Em cima do muro da escola aqui do lado, um gato pardo caminha devagar, tranquilo, sem exuberâncias de trapezista, também ele um cultor secreto de Epicuro. Pára, agacha-se e fica especado a olhar um alvo invisível. Arqueia o corpo e logo desce para o lado de lá, desaparecendo da minha vista para entrar no jardim que o espera.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Semanas de cinco dias

Fosse eu um revolucionário, e bater-me-ia pela semana de cinco dias. Três deles dedicados ao provimento de bens para enfrentar o mar encapelado das necessidades e dois para descansar dessa árdua corveia. Não se pense, porém, que o meu intuito é solapar a economia de mercado. Ela saberia adequar-se, talvez até em demasia, à nova realidade. A minha intenção é mais penetrante. Funda-se na ambição de dar uma maior racionalidade ao calendário. Passaríamos a ter anos com setenta e três semanas, nos quais desapareceria aquela incerteza de saber a que dia da semana corresponde o dia do mês. Estariam sempre casados, num casamento indissolúvel. Nas escolas, ao lado da tabuada ensinar-se-iam as correspondências entre os dias do mês e os da semana e ao fim de uns anos ninguém precisaria de consultar um calendário. Nos anos bissextos, como o actual, o dia superveniente seria declarado o dia órfão, pois não teria nem pai nem mãe, já que não pertenceria a nenhum mês nem a nenhuma semana. Poderia ser também chamado o dia sem-abrigo. Devido à sua superveniência, ocorreria depois do último dia de Dezembro e antes do primeiro de Janeiro. O que se faria nesse dia deixo-o à consideração do leitor. Tudo isto é muito mais razoável do que afinar os dias da semana com as fases da Lua, com o estendal de irracionalidades que isso traz ao mundo. O pior é que não tenho talento para revolucionário e acomodo-me desavergonhado com semanas de sete dias, impotente para enfrentar o obscurantismo desta divisão do calendário, produto da magia negra, a qual como se sabe tira a sua luz das fases lunares, fundamentalmente da lua nova. Alguém me diz, ou eu imagino-o, que também a minha mente é iluminada por essa luz. Não tenho ambição de contrariar seja quem for.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Um problema de listagens

Há quem faça listas de coisas a fazer, de livros a ler, autores a conhecer, lugares a visitar. Também eu fiz listas sobre coisas diversas. Nunca tiveram, tanto que me recordo, qualquer préstimo, pois no fim de feitas nunca mais olhava para elas. Isto não foi um acaso, mas tendo em conta a frequência com isso sucedeu, só pode ter sido fruto de uma natureza geneticamente fadada para o descuido e pouco preocupada com a verificação. Há dias em que penso, talvez por algum transtorno momentâneo, que deveria ter ficheiros completos dos livros, música e filmes que fui adquirindo. Disponível no telemóvel, evitaria compras repetidas e a consumação da minha inegável tendência para a iteração. Nunca me ocorreu, todavia, começar a fazer esse tipo de base de dados. Hoje continuo a fazer listas, mas apenas se vou às compras. Faço-as com a esperança de não me esquecer de nada. Senti um pingo no nariz. Passei a mão por ele e era sangue. Levanto-me e antes de me levar confirmo, ao espelho, que era mesmo sangue. Estancado o corrimento, sento-me e anoto numa agenda: não tornar a falar de listas para evitar sangramentos do nariz. Agora vou saber como está a tarde na rua.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Ordens são ordens

Ordens são ordens, leio num livro que tenho em cima da secretária. Uma tautologia terá parecido ao autor destas palavras um início auspicioso para qualquer texto. O número de possibilidades é suficientemente grande para alimentar a escrita de textos anos a fio. Amanhã começaria outro dizendo maçãs são maçãs. No dia seguinte escreveria gritos são gritos. Não devias fazer-me utilizar a palavra tautologia, digo para o autor. Ele silencia-se como um cartuxo. Não resisto e continuo a catilinária contra ele. A palavra pode ter uma interpretação linguística e outra lógica, que não se deveria lançar a confusão na mente dos leitores. Ele olha-me com desprezo, enquanto eu acrescento usar tautologias não passa de um uso vicioso da linguagem. Cala-te, disse-me. O teu papel é o de narrador, portanto narra alguma coisa que mereça ser contado. Pensei que muitos são os eventos neste mundo, mas raramente encontro um que mereça ser narrado. O que gostaria de narrar seria não eventos. Por exemplo, falar daquele filho que não tive porque o espermatozóide se atrasou no encontro com o óvulo que estava à espera dele. Há desencontros assim que nos roubam a possibilidade de contar histórias interessantes. As sextas-feiras não ajudam a manter a razão num estado aceitável de sobriedade. O sol declina com rapidez e, de súbito, abrem-se os portões para as catacumbas da noite. Nestas soam as sete trombetas e as muralhas de Jericó do fim-de-semana desabam. Não tarda vem a segunda-feira, pois ninguém, apesar de assim ter sido ordenado, cuidou de fazer correr os filmes de sábado e domingo em câmara lenta. Alguém que não percebeu que ordens são ordens.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Neblinas matinais

Durante a semana levanto-me todos os dias à mesma hora. O dia hoje mal tinha rompido. Ao abrir as persianas os meus olhos chocaram com a densa neblina que fazia o pequeno bosque da escola ao fundo parecer irreal, uma cortina incerta e escura sobreposta a outra cinzenta, misteriosa, feita de uma seda fina. O hospital e o colégio, onde gastei alguns, não muitos, anos da minha vida, tinham desaparecido, como se um taumaturgo os tivesse apagado, para gáudio de uma multidão embasbacada com a proeza. Percebi que na rua estaria frio e a minha memória genética rejubilou. Alguns dos meus genes devem ter vindo aos trambolhões dessa Europa fria, atravessada por nevoeiros densos e invernos rigorosos, pela qual o meu corpo suspira quando o Estio desalvora por estas terras, de onde os anjos fugiram há muito. Como todas as memórias, também esta há-de ser falsa, e os meus genes terão vindo de algumas tribos do sul. Um pombo decidiu vir arrulhar para o parapeito de uma das janelas. O som irrita-me, bato nos vidros e ele voa para outras paragens. Olho com atenção as árvores. Parecem um exército de gigantes marchando lentamente na planície. Às costas trazem mochilas e nas mãos metralhadoras que hão-de ser silenciosas. Sem barulho dispararão sobre o inimigo. Este resistirá com bravura mas, como acontece com todos os dias, acabará por se entregar, alçando uma bandeira branca para anunciar a noite. As botas cardadas ecoam nos meus ouvidos. Desligo-lhes o som e penso em tudo o que não me apetece mas tenho de fazer.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Benchmarking

Vi muita coisa, disse para mim. Depois lembrei-me que a frase podia ser um plágio descarado e decidi esquecer-me dela. Se a deixei ficar onde estava foi porque não tinha outra para começar. Convém termos um armazém de frases para iniciarmos os textos, caso contrário ficamos com eles encravados na ponta dos dedos, à espera da frase inicial para saírem teclas fora e manifestarem-se como uma epifania na brancura imaculada do monitor. Só escrevo no portátil, note-se. Nada de coisas manuscritas. Sou uma pessoa moderna e sou-o há tanto tempo que a modernidade envelheceu em mim. Acabei de receber um convite para gostar de uma página do facebook. Vou ignorá-lo. Evite-se a poligamia ou, pelo menos, disfarce-se. Há quem esteja disposto a gostar de qualquer página que lhe apareça. São os militantes do gosto. Em certas alturas agarro a razão e prendo-a ali junto ao cérebro. Tenho sempre a esperança de escrever coisas sensatas. O que acontece, porém, é que nunca tive grande habilidade para fazer nós e a razão escapa-se-me quando menos espero. Hoje foi por causa de uma palavra que encontrei num documento que a realidade me mandou ler. A palavra era benchmarking. Mal a pobre razão deparou com o vocábulo eriçou-se, retesou-se, quebrou a frágil amarra que a prendia à massa cinzenta que ainda hei-de ter e fiquei neste estado. Sei uma quantidade de histórias terríveis, mas também isto é plágio e o melhor é não contá-las. O sol matinal reverbera e uma luz quente entra pela janela. Lá fora está frio e isto é tudo o que sei do mundo. As minhas histórias não pertencem a este mundo

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Maldita realidade

O contacto com a realidade torna-me estúpido. Quero dizer mais estúpido do que estava programado nos meus genes e estes já continham uma dotação generosa de estupidez. A realidade é uma coisa tecida de fantasias, ilusões, jogos perversos, ideias gratuitas, pensamentos fúteis, acções vãs e o mais que não tenha pés nem cabeça. Quando tudo isto é misturado forma-se uma solução aquosa que faz lembrar um oceano revolto, continuamente alimentado por um turbilhão de coisas insensatas. Como num sonho caio lá dentro e farto-me de esbracejar para não ir ao fundo. Sou salvo pelo despertador. Encho os pulmões de ar, digo maldita realidade e tento recompor-me. O que quererá dizer esta alegoria, perguntará o leitor. A partir de certa idade começa-se a divagar e perde-se a capacidade de falar claro. Conheço casos mais radicais que o meu. Gente que começou a diminuir o número de palavras que usa. Os melhores chegaram ao silêncio. Não perguntam, não respondem, não dizem. Só abrem a boca para comer, beber e bocejar. Foram directos ao assunto e, em vez de divagarem através de alusões inócuas e destituídas de sentido, calaram-se. Eu ainda preciso de emitir sons, embora quem os ouve há-de julgar que rifei a razão numa quermesse de festa de aldeia. Talvez não esteja completamente fora da verdade.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Dia de Reis

De manhã, quando me dirigia para o reino da realidade, parei na passadeira que, descido o viaduto, antecede a rotunda que leva à marginal. Duas sílfides passavam lentamente, inseguras e graciosas, quase a dissolverem-se na atmosfera. Não deixei de as olhar nem mesmo quando chegaram ao passeio e começaram a dura subida que as esperava. O condutor de trás, de vocação menos contemplativa, buzinou, as sílfides evaporaram-se e eu arranquei em direcção ao destino. Enquanto conduzia, pensava que me tinha enganado na mitologia. Deveria ter visto Reis Magos ainda montados em camelos, turbantes nas cabeças, os presentes seguros nas mãos reais. As sílfides não fazem parte desta história e não deveriam andar por aí a confundir-me, a ponto de criar um engarrafamento. A avenida estava hoje mais exuberante do que ontem. Apesar do frio, as cores saltitavam na paisagem, as árvores revigoradas olhavam compassivas os transeuntes, abençoando-os com as ramadas despidas. Mais logo irei espreitar se os Magos sempre chegaram ao presépio. Só espero que nenhuma sílfide se interponha no caminho e me desvie para outro universo onde não exista Natal, nem Menino, nem Reis vindos do Oriente.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Um domingo sem qualidades

Os netos têm o talento especial de deixar um buraco vazio na casa dos avós quando se vão embora. Ontem fui pôr as duas netas a Lisboa, depois da estadia de alguns dias aqui. Hoje tudo está mais calmo, a televisão calou umas vozes aguçadas que imitam crianças a entrar no labirinto da adolescência e ninguém me vem pedir folhas, minas de lapiseira ou um agrafador para não sei quê de secreto, jogo congeminado num quarto de porta fechada ou mesmo diante dos meus olhos, no escritório, em voz sussurrada. As raparigas quando nascem trazem consigo a competência de se rirem dos rapazes e uma aptidão natural para o murmúrio. O domingo nasceu sem qualidades. Não são só os homens que podem não ter qualidades, também os dias da semana estão capacitados para perder a adjectivação e serem apenas o domingo ou a terça-feira, substâncias puras sem acidentes. Antevendo o silêncio e para compensar a ida a Lisboa, uma Lisboa que me pareceu mais fria do que o habitual, comprei romances de Amos Oz, Ian McEwan e Leo Perutz. Deste nunca li nada. Pensando bem, agora que a tarde se aproxima, talvez este domingo possua algumas qualidades e, diria contristado, não particularmente agradáveis. É o túnel obscuro que liga a fantasia dos últimos dias à realidade que me espera amanhã. Os exércitos inimigos marcham já sobre o território imaculado que me cabe defender e ampliar. A minha falta de fé na causa cresce, mancha negra na pureza branca do linho. Talvez no próximo fim-de-semana o meu neto me venha ver.

sábado, 4 de janeiro de 2020

O quingentésimo primeiro texto

O texto de ontem foi o quingentésimo. Esta não é uma palavra que se use impunemente. Pensei que quinhentos era uma boa conta para dar por terminada a função. Como é habitual em mim, pus de lado a boa resolução e, tomando o pior dos caminhos possíveis, volto de novo a este simulacro de diário. Também é verdade que um narrador tem menos liberdade que um escravo. Ele é uma espécie de marioneta manipulada pelos humores do autor. Esta deriva pela teoria da literatura é a confissão de um fracasso. Se não é falso que o mundo fervilha de assuntos palpitantes sobre os quais escrever, também não o será a minha nula vontade de o fazer. A sombra da oliveira que vejo daqui não fervilha, nem traz nela qualquer lição e no entanto não consigo parar de contemplá-la. Move-se tão lentamente que parece eterna, e nesta aparência de eternidade se embala o olhar. Oiço, vindo de lá de dentro, uma injunção para que uma das netas vá tomar banho. Não oiço réplica, o que significa que o imperativo foi pronunciado no tom exacto. A exactidão do tom é uma sabedoria difícil, mas que, adquirida, evita que a realidade se entregue a derivas que turvam os ambientes e cansam os actores. E isto é tudo o que me apraz escrever no quingentésimo primeiro texto.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O estado do mundo

Hoje acordei tarde e durante o pequeno-almoço senti que o estado do mundo me obsidiava. Enquanto comia, olhava a paisagem envolvente. Estava serena, apenas uma leve neblina toldava o sol. A escola aqui ao lado, o hospital mais ao longe, até as fumarolas habituais numa aldeia da serra ocupavam o lugar que é o seu. O estado do mundo, porém, não deixava de me assediar o pensamento. Tive de respirar fundo e lembrar-me de que a minha vocação não é a de salvador. Isso tranquilizou-me. Quando me sentei para escrever, estava apaziguado, embora pressinta no ar uma cólera esparsa, que se solta em borbotões e corre avulsa por mentes infectadas por algum tumor. Há pouco, bandos de crianças invadiram o parque infantil. Gritavam palavras que não consegui perceber, depois foram arrastadas para o lugar de onde tinham vindo e o silêncio cresceu emparelhado com a sombra projectada pelos cedros do pequeno bosque mais ao longe. Uma sirene anuncia que nos aproximamos da uma da tarde. Os dias são pequenos barcos a deslizarem rápidos, arrastados pela corrente turbulenta do tempo. Não há nada como metáforas mortas, pensei ao acabar a última frase. Não fora a morte das metáforas e ninguém se entendia. Talvez aquilo que me preocupava no estado do mundo fosse apenas o excesso de metáforas vivas em circulação. Há que enviar exércitos bem armados e matá-las sem dó nem piedade. Chegámos a sexta-feira, a esta, e não tenho palavras para o desconsolo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Um pouco de esperança


Tenho estado a ouvir o Helicopter Quartet, de Karlheinz Stockhausen. Se tivesse sido bafejado com algum tino, deveria abominar a obra, mas Epimeteu, quando chegou a minha vez de receber os dotes que restavam para os seres humanos, não encontrou a bolsa onde guardara o tino e despachou-me mesmo assim. Não há Prometeu que me valha. Estou com dificuldades de acertar com o dia da semana, parece-me, pela tristeza das ruas, que hoje é segunda-feira. Não sei bem por que razão, mas estou a começar a embirrar com a designação numérica do ano. Esta duplicação do vinte parece-me uma redundância inútil, já bastam as minhas iterações, pleonasmos, repetições e tautologias. Cheguei tarde para a duplicação do dezanove e demasiado cedo para a do vinte e um. Cada um tem a duplicação que merece. O efeito de ouvir Stockhausen é este tipo de discurso desconexo, com um certo laivo esotérico, como se tivesse sido convidado para uma loja maçónica. Não fui. Acabado o Helicopter Quartet, passei para os Hymnen. Os ruídos do mundo são a música das esferas celestes, ocorreu-me, antes que tivesse tido tempo de me autocensurar. Já não me lembro se nos desejos de passagem de ano – aquela coisa que deve acompanhar o mascar das passas de uva – incluí ter um pouco mais de sensatez. Tenho de consultar algum especialista no assunto para saber se os desejos esquecidos se mantêm válidos após a falência da memória. Talvez ainda haja esperança.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O primeiro dia

Cheguei a 2020 cansado, o que não me parece lá muito boa ideia. O mais indicado era ter aterrado no novo ano em plena forma física, exuberante e cheio de prognósticos favoráveis. Na verdade a única coisa que me apetece, agora que o primeiro dia se está a escapulir, é bocejar. Terei dormido pouco, é verdade. No entanto, é isso que me acontece sempre e não ando por aí a abrir boca. Quanto ao resto, consta que o mundo não se alterou apesar dos réveillons e fogos-de-artifício. Chegado de Lisboa, sento-me à secretária e revejo a agenda para os próximos dias. A realidade, depois de uma semana de fantasia, começa a bater à porta. Bem tento fechá-la, mas faltam-me as forças. O dia esteve frio, nas ruas as pessoas vestiam-se como se estivessem no Inverno. Por uma vez não se enganaram na estação. O ideal, penso, seria eliminar as pessoas destes textos. Apagá-las sempre que se apresentam em cena ou talvez apagar-me a mim. Pegar numa borracha e sem pressa ir extinguindo cada um dos meus traços, até que não fique no texto nada a que possa chamar meu. A isto chamou-se em tempos ascese, o exercício de renunciar a si mesmo, coisa que caiu em desuso e é vista como uma grave patologia. 

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Calendários

Ao barbear-me, cortei-me no pescoço. Uma pequena mancha de sangue alastrou na pele, mas logo suspendeu a viagem, como se lhe faltasse energia e desistisse sem razão aparente do progresso. Vejo-a no espelho, contemplo-a por instantes, depois limpo os vestígios do crime e entro pelo dia. É uma entrada tardia na última etapa do ano. Este é um rally, um estranho rally com 365 etapas, mas em que todos os que chegam ao fim fazem-no ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que se sentem obrigados a mostrarem-se alegres, numa insuspeitada celebração da mais pura igualdade. Se pudesse introduziria um princípio de diferenciação no calendário. Para uns o ano seria mais rápido, para outros, mais lento. Enquanto uns comemoravam a chegada de 2025, outros arrastavam os pés pelo ano de 2012, para não falar naqueles que ainda dormitavam pelo século passado. A cada um seria permitido escolher o seu ritmo ou, caso duvidemos do livre-arbítrio, cada um teria o ritmo que os seus genes determinariam. Desconfio que o calendário foi uma invenção de alguma seita proto comunista com a inconfessável finalidade de humilhar os mais rápidos e favorecer aqueles que se arrastam ano adentro sem vontade que o tempo passe. Não sei se é porque o ano está prestes a deixar-nos, mas o sol está lacrimoso, enviando-nos uma luz turva, anémica, impotente para alegrar corações. Só espero que logo se esqueçam do ritual das passas, que não suporto a função. Agora vou fazer a pequena lista das pessoas a quem tenho de ligar passada a fronteira do ano. Só para não haver esquecimentos.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Desinteresses

Moribundo, o ano está a dar um ar da sua graça. Magníficos dias de Inverno, onde o sol e o frio se conjugam para alegrarem os pobres mortais. Durante algumas horas, a luz radiosa mostra-se exuberante, tornando manifesto aquilo que os dias sombrios esconderiam. À minha frente tenho o longo ensaio de Elias Canetti, Massa e Poder. Percorro-lhe o índice. Há nele muitas referências à Antropologia. Pergunto-me se valerá a pena, se poderá ajudar a interpretar o nebuloso tempo em que vivemos. Oiço os Gurre-Lieder, de Arnold Schoenberg, dirigidas por Zubin Mehta. É uma das obras a que volto com regularidade. Esqueço-me do ensaio de Canetti. O espírito humano é muito volúvel, pensei. Tão depressa se interessa por uma coisa, como, sem razão aparente, a deixa de lado. Tornei-me especialista em deixar coisas de lado, em retirar delas o meu interesse e deixá-las em paz. Imagino que o livro de Canetti me agradeça o desinteresse. Um dia também a vida me deixará de lado, desinteressada do meu desinteresse, cansada de mim. O sol começa a empalidecer, carros desfilam pela avenida Andrade Corvo, enquanto o tenor dá voz à desdita de Waldemar. “Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido.” É promissor o início da obra de Canetti. Depois dos Gurre-Lieder irei ouvir o Pierrot Lunaire.

domingo, 29 de dezembro de 2019

O rally dos idiotas

Um carro ronca furioso numa das avenidas aqui perto, os travões guincham, suspendem por instantes o gorgolejar do motor, mas logo este retoma o matraquear com que responde ao acelerador, pisado sem piedade. O condutor deve imaginar-se piloto de rallies em plena competição e sentirá toda a realidade da sua existência no ruído com que esfaqueia o silêncio dominical da província. O que não falta por aí são campeões destes, pequenos quixotes deslumbrados pela mecânica, que nunca competiram a não ser no rally da idiotice. A bazófia do condutor foi exibir-se para outro lado, pois caiu um silêncio sepulcral sobre as ruas. Lá em baixo, na Sá Carneiro, peões marcham decididos, enfrentam inimigos terríveis e procuram no caminhar a salvação para as desditas do corpo ou da alma. Um casal passeia-se de mão dada, cada um temeroso de que o outro fuja. Pela janela entra um raio de luz. Traça uma linha oblíqua no chão. Olho-a fascinado, depois volto para este texto. Hoje hei-de almoçar mais tarde. De novo, um carro roncante invade o meu território sonoro, mas será outro, já que o ronco se transforma num ronronar cordato até desaparecer dentro da cisterna do silêncio.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O sábado declina

Estou à espera do meu neto, mas não vou poder pegar-lhe ao colo. Não que ele queira, pois isso impedi-lo-á de mexer onde não deve, não o deixará fazer uma sementeira de CD e livros pelo chão. A culpa deste impedimento é das netas e do malfadado jogo de badminton a que fui sujeito, como se tivesse de cumprir uma pena ou de pagar uma promessa. Com o passar das horas, as dores lombares parecem expandir-se e o voltaren, uma espécie de santo, está renitente em operar um dos seus milagres. Lá em baixo, com o retorno do tempo mais seco, as crianças invadiram o parque infantil e as suas vozes afiadas chegam até mim. Quando se calam, faz-se um grande silêncio. No horizonte, a serra é um vulto imóvel e cinzento, uma fronteira que separa dois mundos. O sábado progride em direcção à noite. Leva com ele a ilusão do fim-de-semana e ostenta orgulhoso no dorso o título de último sábado do ano. Está um sol convidativo e o mais assisado será levantar-me daqui e ir dar uma volta a apanhar sol. Não me posso afastar, pois não faltará muito para que o rapaz chegue.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Aproximação à realidade

Ao acordar senti-me confuso, mais do que o habitual. Que dia é hoje? Sentei-me na cama a rememorar o calendário e lá consegui descobrir que era sexta-feira. Não se pense que este descolamento da realidade temporal se deve a alguma coisa que não à ocupação de parte destes dias com as actividades próprias à quadra. Descobrir a quanto estávamos na semana devolveu-me um sentido cruel de realidade. Como um punhal, esta atravessou-me o coração e não sem azedume lá me levantei. Um sol faceto e pirraceiro olhou para mim quando abri a janela. Observei-o de soslaio, com cara de pouco amigos, enquanto ele deitava de fora uma língua de fogo que lambia a serra, dando-me a ver uma paleta de cores que me recordaram que o Inverno já havia começado. O astro ainda tentou entabular conversa comigo, mas voltei-lhe as costas. Talvez mais logo me reconcilie com ele e lhe conte como vão as coisas aqui na Terra, o que não será da minha parte um gesto de boa vontade. O dia parece cheio de glória. A natureza nunca se poupa a estratagemas para enganar os incautos. Acabo de receber uma mensagem, mas não era para mim. O mundo está cheio destes equívocos. Pessoas a enviarem mensagens para quem não deviam e outras à espera da mensagem que ninguém lhe destina.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Uma tarde de badminton

Por uma estranha e não sei se malévola inspiração as minhas netas e uma prima acharam que eu era o parceiro indicado para completar um quarteto e assim poderem jogar badminton a pares. Ingénuo e desconhecedor do terreno, aceitei pegar na raquete e tentar acertar no volante. Não imaginava que naquele sítio a força da gravidade fosse muito maior do que nos lugares que costumo frequentar. Bem dava impulso ao corpo para saltar, mas os pés teimavam em não se despegar do chão, enquanto o cesto de penas que faz a vez de uma bola se obstinava a passar na estratosfera para logo cair atrás de mim. Argumentei que não estava habituado a enfrentar uma força da gravidade daquela dimensão, mas olharam para mim com condescendência e lá continuei a fazer par com uma delas, sem perder a esperança de conseguir acertar naquela coisa com inveja de ser pássaro. Agora que fui libertado do exercício estou com umas dores na lombar, tantas as vezes que tive de me curvar para apanhar o volante do chão. Há coisas que não deviam passar pela cabeça de pré-adolescentes ou, não sendo possível evitar esses devaneios, o melhor seria não ter ouvidos para este tipo de pedidos, mas ainda não sofro de surdez. Enquanto escrevo, elas teimam em mostrar que possuem uma reserva considerável de energia que nem o badminton da tarde consumiu.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A coisa prossegue

Não tarda e esta parte das festividades estará consumada. Haverá o tardio almoço de Natal e, devido à natureza arborescente das famílias modernas, decorrerá ainda o jantar do dia de Natal. Há que contentar o máximo das partes e a partir de certa altura o jogo de ponderados equilíbrios torna-se num quebra-cabeças de difícil resolução. É nestas alturas que se percebe a importância da diplomacia. Compreendo bem que o Menino Jesus se interrogue se terá valido a pena as dores da encarnação e que suspire não sem desdém se alguém se atreve a responder-lhe tudo vale a pena se a alma não é pequena. Mais tarde ainda tentou reparar a situação ao dizer dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Entrevia já – ou talvez fosse a sua omnisciência a operar – que por causa do seu nascimento muita política e diplomacia deveria correr entre as margens escarpadas das famílias. O sol por aqui está raquítico. Na televisão o presidente da república continua a sua azáfama e as casas de apostas puseram em jogo o tempo que demorará sua excelência a tirar uma selfie com todos os portugueses. Estamos no Natal e há que evitar politiquices, pois as famílias tornaram-se tão plurais que nem em desacordarem conseguem estar de acordo. Aqui por casa alguém diz que tem de tomar um gurosan, oiço também falar em ben-u-ron. A mim não me dói nada nem estou indisposto, mas o melhor é fazer um ataque preventivo e tomar qualquer coisa, nem que seja um placebo, talvez me consiga enganar a mim mesmo. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Em contagem decrescente

Terei ainda de fazer uma ou outra compra, mas as coisas estão já encomendadas e espero que o dia e a noite deslizem com bonomia. Em tudo isto há um cansaço e ninguém consegue disfarçá-lo. Também é verdade que, com aquela mania de fazerem recenseamentos todos os anos, a Virgem e José, o carpinteiro, sofrem continuamente as peripécias de não encontrarem alojamento. É sempre a mesma coisa, diz o pai adoptivo do Menino. O mais sensato, passou-me pela cabeça, seria recorrerem, nos dias de hoje, a uma agência de viagens ou, em último caso, ao Booking. Marcavam hotel perto de uma maternidade e não corriam o risco de o Menino ser contaminado pelo bafo da vaca e do burro. Não pense o leitor que me tornei um jacobino pronto para fazer uma diatribe contra o Natal. Pelo contrário, eu gosto do Natal, do presépio, dos doces, até da Missa do Galo, apesar de nunca ter ido a nenhuma, mas imagino-a de uma grandeza exaltante, onde coros humanos e angélicos entoam um oratório de Bach. Talvez seja com medo de me defraudar que a evito, sabendo que Bach era protestante e que em vez da sua música tenha de ouvir sabe-se lá o quê. Os dias de Natal de antigamente eram de uma grande tristeza, pois não havia sítio onde se pudesse beber café. Hoje em dia, graças à Nespresso e às suas belas cápsulas de alumínio, toda a gente tem café em casa e as senhoras, enquanto bebericam, sempre podem imaginar que é o próprio George Clooney que as serve, mesmo que seja o burro do presépio ou o marido, cujo ressonar já não podem ouvir. A imaginação é a mãe de todas as coisas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Fim de aboboramento

Nunca consegui justificar perante mim o facto de ter uma conta na plataforma LinkedIn. O certo é que um dia qualquer, por um desvario que já não consigo recordar, abri conta e por lá fiquei a aboborar. Esta palavra decepciona-me profundamente. Por impulso semântico, eu diria que significa tornar-se abóbora, mas não. É uma espécie de corruptela de abeberar. Seja como for fiquei por lá a aboborar, imóvel e desinteressado, respondendo com bonomia e a melhor vontade às solicitações de conexão, embora nunca tenha percebido a razão por que há pessoas que hão-de querer estabelecer uma conexão comigo numa plataforma como a LinkedIn. À maneira de Grouxo Marx, também não admitiria estabelecer qualquer conexão profissional comigo. O certo é que sem mexer uma palha, praticando com diligência o aboboramento, fui ficando conectado com conhecidos e desconhecidos, recebendo mensagens para parebenizar (palavra que me deixa logo com revoluções no estômago) este e aquele pelos novos empregos ou cargos a que tinham sido promovidos. Fui estranhando nunca ter recebido convites para dar os pêsames aos despedidos ou aos despromovidos, mas inferi desse silêncio que todas as minhas conexões eram com gente vencedora na vida. Hoje recebi um novo pedido de conexão. Abri a conta e com ela escancarada procurei como acabar com ela. Liquidei-a em três tempos. Recebi de imediato uma mensagem a dizer que sentiam muito pela minha saída. Eu, pelo contrário, sinto muito pela minha entrada. Nunca se deve entrar em sítios aonde não vamos fazer nada.

Distinções linguísticas

Fui à loja ortopédica que há aqui no prédio para comprar umas pantufas para alguém que já não tem grande disponibilidade física para fazer este tipo de compras. Nunca tinha lá entrado e, por alguma razão inconsciente, evitava olhar através dos vidros. Foi uma revelação. Parece haver lá tudo o que é necessário para a miséria física humana. Eu sei que tudo é uma hipérbole, mas esta está-me na massa do sangue e o melhor é dar algum desconto às coisas que me põem aqui a dizer. Bengalas, cadeiras de rodas, bancos com abertura para o que não vou especificar e uma parafernália de dispositivos e objectos que sou incapaz de denominar ou de descrever. Evitamos pensar nas múltiplas formas que a desgraça tem e só quando nos bate à porta entramos naquele mundo e descobrimos que as estratégia da doença para nos humilhar são incontáveis. Chegado a casa, sentei-me e li um artigo (de Marco Neves) sobre o uso das palavras vermelho e encarnado. Quem diz encarnado – e isto não vem lá – por norma não diz prenda mas presente. Recusa-se, não sem veemência, a dizer funeral. A palavra correcta é enterro, asseveram pimpões. É possível que quem usa vermelho prefira oferecer prendas e, quando tem de ser, vai a um funeral. A língua também é um exercício de diferenciação social e quem quer diferenciar-se não se faz rogado. Por mim, só me apetece usar vermelho, prendas e funeral quando estou num círculo de amigos do encarnado. Se me calhar estar no círculo mais popular, posso cair na tentação de evitar o vermelho. Isto, porém, deve-se a ter nascido com uma inclinação patológica para contrariar o que está dado, contrariando-me muitas vezes a mim mesmo. Se estou sozinho não digo vermelho nem encarnado, não distingo prenda de presente e nem me lembro se se trata de um enterro ou de um funeral. Se estou sozinho, evito dizer seja o que for, embora na minha mente prossiga um diálogo infinito, em que falo comigo mesmo como se já tivesse enlouquecido. Estes textos estão a ficar excessivos. Também a verborreia faz parte do meu amor à hipérbole.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Imaginações

Um alarme lança aos ares o aviso contra imaginários ladrões e quebra o silêncio onde mergulhara neste entardecer de domingo. Ninguém acode ao estabelecimento e o dispositivo prossegue na sua cegarrega mecânica, avisando o mundo de um perigo que não há. Nunca se sabe que ameaças são as piores, se as visíveis se aqueles que só a imaginação descobre. Não devemos descurar o que esta nos diz, apesar de serem secretos os seus caminhos. Num livro de contos de um escritor japonês, em nota prévia, é explicada a pronúncia que se deve dar aos nomes desta língua. Resolveu a meu favor uma pequena contenda relativa à leitura do w, se deve ser feita ao modo dos ingleses ou dos alemães. O alarme calou-se, havia nele cansaço de tanto esperar por ladrões que não vinham. Levantei-me para ir cumprir uma tarefa doméstica, mas ia tão distraído que a meio da viagem já não sabia o que ia fazer. Tive de parar e actualizar a informação. Lá me ocorreu o que era. Hoje o mundo visto da janela do meu escritório parece sombrio. Será porque o sol se esconde atrás das nuvens ou porque no meu coração nascem sombras que se derramam na paisagem. Uma voz diz é cansativo pertencer à espécie humana. Procuro o autor da mensagem mas não encontro ninguém. Rio-me e levanto-me da cadeira. Daqui a pouco terei de atravessar a cidade e, nem sei porquê, isso entristece-me.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Ocorrências

Nestes dias Portugal tem sido um país cheio de ocorrências. Não fora o mau tempo e nada ocorreria por cá. Somos um povo sábio dado à imutabilidade. Nove séculos de história ensinaram-nos a não correr para lado nenhum. Há várias razões para os povos marcharem a grande velocidade. Os germânicos e escandinavos labutam para combater o frio, dito de outro modo trabalham para aquecer. Os americanos possuem outra motivação. São um povo muito jovem, inocente e ainda em formação. Não sabem muito bem quem são e o querem. Por isso precipitam-se com fragor para o futuro, pois imaginam que lá adiante encontrarão respostas às suas perguntas, ilusão recorrente nos povos em início de vida. Os portugueses, porém, têm um clima temperado, por vezes demasiado quente, e nove séculos de história. Já nos tínhamos aposentado há muito do nosso trabalho histórico quando nasceram os Estados Unidos. Por tudo isto, e eu neste caso sou absolutamente português, não gostamos de ocorrências, evitamos sempre que podemos que alguma coisa ocorra. Contemplar o mundo a partir de uma sabedoria de nove séculos só nos pode aproximar da eternidade e na eternidade tudo é imutável. O pior é o mau tempo, pois com ele chegam ocorrências sobre ocorrências, como agora se chamam os incidentes provocados pela ira dos elementos, o que nos deixa irritados, pois fazem-nos descer do pináculo onde nos encontramos e tratar do que ocorre no mundo. As depressões climáticas deprimem-nos porque fazem ocorrer coisas onde nada deve ocorrer e nos retiram da nossa sábia contemplação da eternidade.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A agonia do Outono

Olho pela janela e digo estamos no Inverno. Depois observo a palavra e gosto de a ver com maiúscula. Uma estação do ano não merece o despropósito com que agora é tratada, tornando-lhe o início rasteiro, sem perceberem que cada uma delas é um acontecimento único na sua repetição e que devem ser consideradas como pessoas ou deuses, com as suas idiossincrasias, humores, o ritmo secreto que as faz oscilar, o vigor ao entrarem em cena e o cansaço ao despedirem-se da vida. A chuva persiste, constante na sua frieza, enquanto os cedros do pequeno bosque ao fundo se erguem rígidos para o céu, indiferentes à água que sobre eles cai. Na avenida, alguns transeuntes seguram guarda-chuvas, mas correm a abrigar-se. Os carros passam, criam pequenos tsunamis que se levantam violentos e logo morrem, sem que nenhuma devastação aconteça. É sexta-feira, embora o corpo não acredite que o fim-de-semana se aproxima. Remexo-me na cadeira e medito no que ainda hoje terei de fazer. Ao longe, o edifício do hospital lembra-me uma ruína, o sinal de um mundo acabado que persiste difuso na memória dos vivos. Não pára de chover e talvez fosse apenas isto o que queria dizer.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O último combate

O Outono despede-se invernoso, irado pela aproximação do dia em que o carrasco fará deslizar pelo seu pescoço o gélido fio da guilhotina. Visto da janela o espectáculo da resistência outonal faz recordar um velho guerreiro que trava o seu último combate. Há sabedoria no modo como maneja a lança da chuva e a espada do vento, há nobreza na face envelhecida que enfrenta a condenação. Indiferentes ou temerosas da refrega, as pessoas fecham-se em casa e, embrulhadas nas suas lareiras, sonham com dias primaveris, enquanto os gatos ronronam ao calor. Um ou outro louco caminha na rua sem guarda-chuva, encharcado, como se fosse um penitente que se lava na água caída dos céus. As iluminações de Natal derramam tristeza pela cidade e trazem à memória, como contraponto, os dias em que tudo era mais frugal e eu mais ingénuo. O vento percute a persiana e lá dentro uma velha canção de Natal deixa cair as notas sobre os presépios. A Virgem demora-se na espera e S. José, longe da carpintaria, parece inquieto e deslocado. O silêncio tomou conta dos seus corações como a água se apoderou da terra.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Sub specie aeternitatis

No facebook alguém, para sustentar uma certa posição sobre determinado assunto, coloca um link para uma entrevista dada ao Expresso por um especialista da matéria, a qual não vem ao caso. Como um cão segue uma pista, também eu sigo a ligação e ponho-me a ler, até que que começo a achar uma certa estranheza no conteúdo. Procuro a data e descubro que é de 2008. Não é a primeira nem a segunda vez que isto me acontece, mas hoje foi uma revelação. O tempo foi abolido. A eternidade desceu dos céus, digitalizou-se e passeia-se na terra. Não posso esconder que isso me perturbou um pouco. Cada um tem um estilo e o meu passa por cultivar um certo anacronismo. Se tudo agora é eterno, até o meu anacronismo se torna em sincronismo, que palavra desagradável esta, apesar do seu pedigree ser autêntico. Lá se vai o estilo perdido no magma da indiferenciação, foi a reacção que se desenhou na minha cabeça. Há pouco entrei num café, sentei-me e olhei à volta. Apenas duas mesas estavam ocupadas, cada uma por um homem a ler o jornal, ambos mais velhos que eu. Estavam empenhados na leitura, voltavam as páginas com uma certa ânsia. Suspeitei, não sem razão, que eles pudessem estar a ler jornais de 2008 ou mesmo de antes. Seja o que for o que estivessem a ler deve agora entender-se sub specie aeternitatis, que é uma forma pretensiosa de um anacrónico sem-abrigo dizer do ponto de vista da eternidade.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Da ordem das coisas

Ao fechar a janela pensei que não tarda e os dias começam a crescer. Senti uma leve nostalgia do tempo em que não me ocorria se os dias eram grandes ou pequenos. Havia nisso uma aceitação do mundo tal como ele é e nessa aceitação residia toda a possibilidade de estar vivo. Depois, começa-se a sentir incómodo pelas temperaturas, mais tarde pelo excesso ou pela falta de luz, a seguir protesta-se, ainda que em segredo, contra o calendário, para se acabar numa recusa sem tino da ordem do mundo. Claro que quando se envelhece a ordem do mundo deixa de ser promissora. Nunca deixo de sorrir quando oiço aquelas pessoas, os cavaleiros do progresso e irmãos gémeos dos do Apocalipse, que proclamam a bondade que o futuro há-de trazer. A única coisa que o futuro traz é a morte e quanto aos que cá ficam terão como presente o seu quinhão de bem e o seu lote de mal, talvez distribuídos ao acaso, talvez fruto dos méritos, talvez vindos na barcaça da injustiça. Não esperava estar tão meditabundo. É o que faz fechar janelas quando o dia se perde no covil da noite. Daqui a uma semana é noite de Natal. A luz triunfará sobre as trevas exteriores até que tudo se inverta, enquanto a mecânica da universo não se cansar.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Uma bela aparência

Tenho nas mãos quatro livros e todos eles, com as suas capaz magníficas, são objectos que não apenas pedem para serem comprados como exigem que se lhes toque como quem toca a pele do objecto do seu desejo. Esta frase, com o seu aroma psicanalítico, deveria ser censurada. Haverá uma relação entre o objecto livro e o que nele está escrito? Também no mundo dos vinhos há garrafas e rótulos que pedem para serem comprados. Nesta relação entre o conteúdo e a forma como ele é apresentado não há apenas um truque para enganar o comprador incauto. É plausível que quem se preocupa a fazer excelentes vinhos cuide da sua apresentação. Também as editoras que escolhem certos autores terão um cuidado acrescido na forma como apresentam as suas obras. Uma certa consciência ingénua vocifera dentro de mim. Ainda não sabes que deves distinguir a aparência da realidade? Olho para ela com desdém e pergunto-lhe se não sabe que já não tenho idade para me preocupar com a realidade, que não há coisa melhor no mundo que uma bela aparência? E se o vinho não prestar ou se o livro for ilegível? Paciência, não podemos querer tudo.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Não cair em tentação

Acordei a meio da noite e para combater a insónia abri o romance Os Enamoramentos, de Marías. Agora que passei a fronteira do primeiro terço da obra começo a vislumbrar por que razão Maria Dolz, a narradora, me envinagra levemente o ânimo. Não sei o que me reserva o que falta do texto, mas aquela não é uma mulher plausível. Desconfio que seja um travesti. Que não seja mal entendido. Um travesti mental. Os homens deveriam ter cuidado em colocarem-se dentro da pele das mulheres e inventarem discursos que imaginam serem o delas. Se forem perspicazes, o melhor que conseguem perceber é se estão ou não diante de um pensamento feminino, mas sem a pretensão de ultrapassar uma visão muito genérica e exterior da gestalt desse pensamento, cuja composição interior, pela complexidade, lhes escapa. Talvez seja eu que tenha uma perspicácia diminuta e não interprete como devia a atracção que a narradora sente pela boca de Díaz-Varela, o homem a quem as mulheres sem dificuldade se dobram, mas cujos lábios possuem um recorte feminino que tanto a fascina. É natural que eu não seja levado a sério. Com tantas coisas a fazer neste mundo, com tantos tortos a endireitar, com tanta gente a libertar, e eu de candeias às avessas com o perfil psicológico e a verbosidade de uma mulher que só existe no papel. O dia está tristonho, um pombo poisou agora no parapeito da janela e, mais uma vez, tomo consciência que não nasci para salvar a humanidade. Num caderno apontei: nunca ter a tentação de escrever do ponto de vista de uma mulher. Não apenas por falta  de talento, mas por impossibilidade ontológica e assim acabo com um ar pretensamente filosófico. O pombo cansou-se do poiso e foi contemplar o mundo para outro miradouro.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Não me faltam temas

Por fim uma boa notícia. Depois de semanas a desafiar a minha paciência, a balança cedeu uns hectogramas. Sublinhei alto o sucedido e disse que a meditação transcendental e a recitação do mantra estavam a dar efeito ou, alternativa mais científica, que o facto de ter mudado a pilha à balança refreou o seu ímpeto para me vexar. Ouvi um gélido é verdade, esta semana foi mais agitada e não jantámos um único dia fora de casa. O meu olhar ficou parado no vazio. Este senso comum irrita-me. Ainda pensei retorquir sobre a falta de elevação espiritual do comentário ou a pouca crença na ciência que nele havia, mas calei-me, antes que a conversa derivasse sobre a necessidade de fazer exercício para disfarçar a barriga. Este tema também me está a irritar e parece que não tenho outro. Ora isso não é verdade. Temas não me faltam. Aliás tenho mesmo uma lista de assuntos a tratar. O que acontece é que muitas vezes não sei onde tenho a lista e outras esqueço-me dela. Na lista, para que não se pense que estou a mentir, está como assunto o agastamento que a narradora de Os Enamoramentos, de Javier Marías, me está a causar. Estou farto da opinião da senhora, se é que ela pode entrar na classe das senhoras. Este tema, o da classe das senhoras, é delicado e as minhas opiniões poderiam ofender alguém. Uma sirene anuncia um paciente a caminho do hospital. Eis uma matéria que não consta na minha lista e, por isso, sobre ela não falo. Logo vem o meu neto. Espero que ele queira falar comigo.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Um problema de consciência

Olhei para a rua e pensei que devia enfrentar este tempo incerto e fazer uma caminhada. A necessidade de andar tornou-se um pensamento recorrente nos últimos meses e chego a temer que se transforme numa obsessão. Quando tomo consciência de que estou a pensar nisso, encolho os ombros, sento-me à secretária e espero que outra coisa venha ocupar-me o espírito. Se o malfadado pensamento persiste, sou mais drástico, encho o peito de ar e fecho a janela. A minha consciência diz-me que não devia escrever coisas como estas, pois o fitness, que o estrangeirismo me seja perdoado, não deve ser objecto de ironias de mau gosto, ainda por cima vindas de alguém que anda sempre em conflito com a balança e a leitura que esta se atreve a fazer da realidade. Vale-me olhar com condescendência, se não com desprezo, para a minha consciência. Toda a gente estima muito a consciência que tem, não havendo no mundo melhor que a sua. Por mim, vendia a minha ou, se ninguém a comprasse, deitava-a num daqueles depósitos que recolhem materiais usados para reciclar. Não para que ela possa ser reutilizada, mas para não poluir mais este pobre planeta, que geme e arfa sob as poluções nocturnas de consciências inquinadas, que não param de distribuir sentenças e bons conselhos por tudo o que é sítio. Uma réstia de sol ilumina as paredes da escola ao fundo da rua. Convida-me a sair de casa e ir caminhar cidade fora. A continuar com pensamentos destes ainda tenho de marcar consulta no psiquiatra. Talvez todas as sextas-feiras sejam dias de paixão.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Rebelião

Ataranta-me a proliferação de senhas que os diversos sites com que interajo me obrigam a coleccionar. Não fora perigoso e criaria um herbário onde colocaria cada uma das senhas e a respectiva catalogação. Assim tenho de recorrer ao registo mnésico para poder entrar e sair de portas e portões onde a vida me faz entrar. Poderia ser como aqueles loucos benignos que possuem uma memória prodigiosa e que sabem de cor a lista telefónica de uma zona ou os resultados, jogo a jogo, do campeonato nacional de futebol desde que ele começou até aos dias de hoje. A loucura ainda não é a casa onde habito, mas nada me diz que não venha ser, por muito que me custe. Já a memória vai fenecendo dia após dia, num trabalho de rasura que começa pelas coisas mais recentes e, como uma onda, se vai propagando pelo passado. Enlouquecido e desmemoriado está o aquecimento desta casa. Para o tratar puseram-lhe um termóstato novo. Parecia ter serenado, trabalhava segundo a programação feita, não se esquecia dos parâmetros. Teve porém uma recidiva e trabalha furioso. Tenho de lhe pôr um colete-de-forças e mandá-lo internar, antes que morra de calor. Aborreço-me quando as coisas decidem ter autonomia e agem por conta própria, quando exibem uma contumácia de propósitos que contrariam as ordens que lhes prescrevo. Conheço pessoas que se pudessem ordenavam o mundo segundo os seus critérios e só assim ele, na sua opinião, seria perfeito e não o caos que é. Não me incluo nesse universo de ordenadores do mundo, mas também era evitável que meras maquinetas se rebelassem contra a minha vontade.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Do Inverno que se aproxima

Já faltam poucos dias para que o Inverno triunfe sobre o Outono e alcance o primeiro lugar no grande campeonato das estações do ano. Esta estratégia retórica baseada numa analogia pouco vigorosa não deixa de fazer pensar que a natureza tem uma certa inclinação para a repetição e para a igualdade. A vitória de hoje é a derrota de amanhã e vice-versa. Pena é que o mundo dos homens não seja assim. Não por uma questão de justiça, mas pela perfeição que há em tudo o que é cíclico. Os gregos antigos – alguns, para não fazer uma generalização precipitada – tinham grande veneração por tudo o que tivesse a ver com círculos e esferas. Em Portugal, também se manifesta esse tipo de amor como se pode ver pela sábia proliferação de rotundas. Todas estas derivações quase me faziam esquecer o assunto. O Inverno e o seu triunfo iminente. Imagino-o com mantos de neve, frios glaciais e lareiras acesas. A imaginação é muito mais poderosa que a realidade. Aqui neva tão raramente que é preciso que os deuses estejam muito distraídos. É um Inverno insípido e triste que me dá vontade de fincar os pés no Outono e impedir o calendário de perder as folhas. A realidade nunca tem a mesma medida que os nossos desejos.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Da interpretação dos sonhos

Um acaso levou-me a um texto escrito em português mas com um vocábulo alemão por título. Traumdeutung, interpretação dos sonhos. Invejo as pessoas que têm sonhos para interpretar. Muito raramente me recordo de um e quando isso acontece, vejo-o apagar-se e voltar para o esconso lugar de onde veio, privando-me da arte da interpretação. Quem não tem sonhos para deles fazer hermenêutica é uma espécie de ocioso psicológico ou, no pior dos casos, um indigente da psicologia, que nem um sonho tem para contar. A noite chegou e aquilo que estive a fazer não me deu o melhor dos humores. Talvez aqueles que não têm sonhos para submeter à busca da sua significação devessem tentar interpretar a variação de humor que sofrem. O gargalo da noite partiu-se e os demónios saíram da garrafa, saltitam pelas ruas sempre prontos a tentar as almas que vão por aí transidas de frio. Como todos sabem, o material das almas é muito sensível à temperatura. Muito calor, elas evaporam-se. Muito frio, e elas encolhem tanto que o seu proprietário parece um desalmado. Se eu tivesse um sonho para interpretar escusava de estar a falar daquilo de que não se pode falar. O melhor é seguir o conselho do senhor Wittgenstein e calar-me.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Fim das actualizações

Há uma semana que os presépios tomaram conta da sala. A um canto, está o presépio tradicional embora sem musgo e depois, distribuídos pelos móveis, múltiplos pequenos presépios que com os anos se foram acumulando. Já ninguém se lembra como a coisa começou e, verdade seja dita, não foi assim há tanto tempo. A cada um as suas idiossincrasias. Hoje ainda não saí de casa. A névoa cobre a terra, oculta o hospital que haveria de se ver da minha secretária, abre-se num horizonte de cinza contra o qual se recorta o pequeno bosque da escola ao fundo da rua. O Outono corre para o Inverno, deixando na memória estes dias que pedem recolhimento. Inopinadamente, enquanto escrevo isto, a Microsoft informa-me que o meu Office vai deixar de ser actualizado. Recomenda-me que adquira uma versão mais consentânea com os dias de hoje. Também eu há muito deixei de ser actualizado e, por mais voltas que dê, não consigo comprar uma versão mais moderna de mim. Sempre posso usar um daqueles programas gratuitos alternativos aos da Microsoft, mas no meu caso nem gratuita há uma versão alternativa. Não porque eu seja uma singularidade, mas porque não há qualquer vantagem em haver outra versão de mim. A natureza é sábia e usa a frugalidade para evitar a multiplicação do erro. Tenho muito que fazer. A corveia que me permite enfrentar a dura necessidade não me dá descanso. Oiço uma música chamada Ships Along the Harbor. Vejo o cais, os barcos atracados, o ondulado das águas, sinto o sopro do vento marítimo e os meus pés a caminhar na humidade do porto. Tudo isto sentado com uma pilha de papéis na frente para ler. O Natal aproxima-se e ainda não cuidei da secção dos presentes.

sábado, 7 de dezembro de 2019

O deslizar do sábado

O sábado deslizou-me da mão num ápice. Esteve luminoso, mas já se embrulhou num cobertor de cinza e não tarda veste o roupão negro da noite. Se eu fosse o autor destas frases, haveria de pintar a cara de negro. Recordo-me com melancolia do tempo em que as horas subiam e desciam a encosta do dia com um passo tão vagaroso que parecia haver uma suspensão do tempo. Era uma antevisão da eternidade, mas nessa altura a eternidade não me interessava para nada e aquilo que mais queria era que o tempo passasse até àquela hora em que algum prazer, modesto que fosse, esperasse por mim. Pelo acumular de pretéritos imperfeitos do conjuntivo só posso suspeitar que mesmo para um prazer modesto o desejo era grande. Não devia entregar-me a hermenêuticas gramaticais que raramente levam a bom porto. Hoje comprei um bolo-rei, o primeiro da época. Confesso que me tornei desleal ao rei e, por norma, presto vassalagem à rainha, desde que esta saiu do tabuleiro de xadrez para se transformar em bolo de Natal e Ano Novo até aos Reis, mas hoje as rainhas não estavam disponíveis. Muito gente abomina a fruta cristalizada. Eu sei que é uma grande xaropada, mas condescendo com ela e não sinto que, ao comê-la, os parentes sejam arrastados pela lama. Também não devia usar expressões ao gosto popular. Ainda por cima é o segundo não devia que uso. Talvez devesse – mais um pretérito imperfeito do conjuntivo – psicanalisar-me para descobrir o trauma que me leva a repetir o desconsolado não devia.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Passar para a página seguinte

Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Do amor aos adjectivos

A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O esplendor de um dia de Inverno

Não há dias mais gloriosos que os frios banhados pelo sol. Olho para a frase e lembro-me de um poema de Eugénio de Andrade que começa assim Obedecem-me agora muito menos, / as palavras. Penso na sorte que ele teve por ter havido um tempo em que elas lhe acataram as ordens. A mim sempre recusaram submissão, talvez por falta de talento para usar nelas a rédea ou o chicote. Ocorreu-me agora um dito de Nietzsche sobre a necessidade de levar o chicote, mas recuso-me a partilhá-lo não vá ofender a sensibilidade da época. Também é possível que a máxima do filósofo alemão não quisesse dizer nada, nem aquilo que nela está dito nem aquilo que nela se subentende. Seria apenas o esplendor de um dia de Inverno em que a neve cintila sob a luz impiedosa do sol, um exercício de pirotecnia para semear o céu com fogos-fátuos e a terra com invólucros destroçados pelo rebentar da pólvora. Passa-me pela cabeça que não se deve confiar em filósofos, principalmente se são alemães, mas também devo abjurar este pensamento, tão pouco ao gosto dos dias que correm. Como eu quereria dizer se frequentas as palavras, não esqueças o chicote. Não o digo, pois não foi a vocação de domador aquela que os deuses depositaram nas volutas do meu código genético.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Cair em tentação

Não sei como nem porquê, a toranja tornou-se aqui em casa um bem de primeira necessidade. Há pessoas para tudo e até para uma coisa dessas. Tendo-se acabado as que havia, fui ao hipermercado aqui ao lado em busca do santo graal, não propriamente o cálice sagrado onde José de Arimateia recolheu o sangue de Cristo, mas dos frutos amargos que dão um excelente sumo para começar o dia. Ainda dentro da superfície comercial, não resisti a passar pela zona dos vinhos. Trazia o cálice e o sangue. O pior foi ao sair. Um cheiro a farturas atropelou-me. De saco de compras na mão, como um sonâmbulo, lá me encaminhei para a roulotte. No caminho, murmurava não me deixes cair em tentação, não me deixes cair em tentação, olha a balança. Ninguém me ouviu, ninguém quis saber da balança, nem do colesterol, nem da saúde, nem me quis aliviar da tentação. Eu também não. Uma fartura. É assim que o mundo se perde. Vem a serpente, tenta uma pessoa, o cãozinho pavloviano que há em nós saliva e o mal está consumado. Talvez o sumo de toranja compense. Há que não perder a fé.

Há que desconfiar

Todos os dias alteio mais um pouco o muro que me rodeia. Fecho-me lentamente ao mundo, cubro com cimento as fendas na muralha, certifico-me da qualidade do isolamento sonoro. Ainda não é perfeito, mas a perfeição não é coisa que se consiga de um dia para o outro. Ponho-me a imaginar que o que sou é apenas o resultado de um programa genético. Uma bela desculpa para a minha falência, embora tenha o inconveniente de rasurar algum pequeno mérito que possa, aqui ou ali, ter tido. A última coisa que quero neste momento é uma meditação sobre o livre-arbítrio. Estava a falar do software que me faz ser o que sou e este parece que me conduz a um inexorável isolamento. Nos dias em que estou de humor benigno digo que deveria ter entrado para um convento, daqueles mais rigorosos, para a trapa ou para a cartuxa. Riem-se do dislate e ninguém acredita. Eu também não, mas lentamente vou construindo a minha cartuxa, limpando-a do incómodo que a presença do mundo traz e entregando-me a um silêncio cada vez mais espesso. Falta-me o talento para a oração e há no mundo algumas coisas que ainda fazem cintilar os meus olhos, mas até isso pode ser um exagero. Há que desconfiar de tudo, principalmente de mim mesmo.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Da possibilidade da perfeição

Vinha aqui dissertar sobre a imperfeição e a identidade entre o ontem e o amanhã, mas a quem podem interessar coisas como essas? Há pessoas, cruzo-me com elas todos os dias, que aderem de tal modo à realidade que chegam a parecer reais. Há muito que desisti da minha realidade e até da minha aparência. Como se vê é muito fácil dizer coisas sem sentido. Difícil é encontrar alguma com sentido para dizer. Fará sentido afirmar que lá em baixo um bando de adolescentes se alarga na efusão dos sentimentos contaminado pela efervescência das hormonas? Sobre a espécie humana, as árvores apresentam uma vantagem desmedida. São silenciosas e nos dias de sol projectam uma sombra benfazeja. Li um romance em que a personagem central se transformava numa árvore. Parece bizarro, mas nessa transformação há mais sabedoria do que nas vãs pretensões que alimentam a mente dos homens. Enraizar-se na terra, estender-se para o céu e fazer um voto de silêncio para a vida. Talvez a perfeição não seja impossível.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Dia da defenestração

Faz hoje anos que os Braganças substituíram os Filipes no trono de Portugal. Por muito que goste de Espanha, e gosto muito, dá-me sempre uma boa disposição particular o facto de não ser espanhol. Depois há aquele pormenor insidioso da defenestração do Miguel de Vasconcelos. A política tem destas coisas, uma certa tendência para o exagero e para actos irreversíveis. Ia contar que a execução do colaborador dos espanhóis – supremo símbolo do traidor em Portugal – tinha sido o primeiro assassinato político de que tinha consciência. Seria uma mentira e embora seja obrigado a mentir muitas vezes nestes textos não o faço de propósito. O primeiro foi o de John Kennedy e ainda recordo o meu pai a comentar o assunto com a minha mãe. O caso do Vasconcelos, narrado numa aula da escola primária por um professor ou professora patriota, ficou preso à imaginação pela palavra e pelo modus operandi. Não era todos os dias que se ouvia uma palavra como defenestrar, ainda por cima aplicada a alguém que não só não merecia ir para o céu como todo o castigo aplicado era pouco. Não se pense que falar do céu é coisa despropositada. Lembro-me muito bem, na sequência das aulas de história recebidas naqueles tempos em que a razão não tinha sido contaminada pelo vírus da crítica, de ter pensado como era bom pertencer a um povo cujos governantes e personagens históricas eram não apenas grandes heróis como pessoas particularmente santas. Deviam estar todas na glória de Deus. Talvez o feriado de 1 de Dezembro sirva para assinalar o caso do único português que pela sua aleivosia foi atirado pela janela e só parou de cair quando Satanás o apanhou e o levou para o reino dos infernos. Ainda hoje dou comigo a pensar que as nossas elites se já não são heróicas, os tempos não estão propícios para a coragem, continuam firmes no caminho da santidade. Pelo menos, não tem havido defenestrações.