quarta-feira, 20 de maio de 2020

Rememorações em dia de calor

Uma estranha conjugação de luz, vento e arvoredo levou-me para um mundo que desapareceu há muito. Olho-o estupefacto, é apenas um universo fantasmático, povoado de sombras e murmúrios. Não são as árvores, nem a água, nem o vento, nem as casas, nem as pessoas, nem sequer eu, mas os espectros de tudo o que ficou lá atrás, sepultado como ficam todas as coisas que recebem da mão do tempo a pérfida estocada. Quase não me reconheci, mas ao ver uma figura mergulhar num grande tanque de rega, sob a copa das ameixoeiras, recordei-me que seria eu. Em tardes infindáveis de Verão, matei o calor naquela água e sentei-me no largo muro do tanque enquanto ouvia o ramalhar das árvores, o canto dos pássaros e olhava com atenção o jogo de luz e sombra que o ondular dos ramos projectava na superfície do mundo. Quem vivia nessa casa morreu há muito. O telemóvel insiste em cortar-me a rememoração e enviar-me para o território da realidade. Resisto, porém, e penso, para me iludir, que ainda estão longe os pavorosos dias de Verão. Leio que não nos devemos deixar enganar pela retórica dos maus argumentos e concluo que só devemos deixar-nos lograr pela retórica dos bons argumentos. Depois penso que cada um se deixa burlar por aquilo que tem à mão. Iludir-se com bons argumentos pode ter um preço demasiado alto a pagar para alcançar uma coisa que não necessita de qualquer esforço. Imagens do passado batem à porta, atiram pedras à janela, insistem em assombrar-me. Conversas entre adultos, um cão ou um gato com que brinquei, as figuras que desfilam agora na minha memória e que foram apagadas deste mundo. Alguém que tinha um dente de ouro, o maço de notas tirado da algibeira pelo homem do peixe, as tulhas de grão e feijão de alguma mercearia, cuja dona vestia uma bata negra acetinada, as bombas de extracção de azeite e petróleo. Depois chega a procissão com os andores, as raparigas vestidas de branco com tabuleiros à cabeça e a pomba do Espírito Santo. No largo em frente à igreja, do outro lado da estrada, ainda vejo o placard que anunciava um jogo de futebol jogado há quase sessenta anos. Hoje é quarta-feira, dia 20 de Maio. Um pássaro, talvez um deus disfarçado, diz-me que não devo rememorar os mundos que ficaram submersos. Digo-lhe que tem razão, mas que não sou dono da minha memória, nem da minha vontade, nem de mim. Mais uma razão para não fazeres o que não deves fazer, responde-me ele.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Perdido no mundo

Sorrateiro, o Verão instala-se. Chega de garras afiadas, estiletes e punhais de luz sobre a pele, até que o ânimo sangre e uma preguiça se instale, convidando os corpos ao relaxe e as almas ao pecado. Nesta trama romanesca, em que as personagens se dividem em corpo e alma, o corpo é inocente, mas a alma é culposa, duma culpabilidade insinuante, plena de manhas, truques e armadilhas. É ela que obriga o corpo a arrastar-se no lamaçal do erro, ele que por si mesmo não seria mais do que uma abóbora à espera que o tempo passasse. Esta deriva pela teologia talvez se deva a ter estado todo o dia ocupado com dados, gráficos, leituras e relatórios. Ou então será da música que estou a ouvir e que de súbito me raptou da rasura habitual e me pôs em contacto com os excruciantes problemas da relação entre corpos e almas. Raramente sabemos o que causa os nossos pensamentos. Esta frase demonstra que sou uma pessoa cautelosa. Fosse eu intrépido e diria que nunca sabemos o que causa os nossos pensamentos. Hoje todavia não quero ofender aquelas pessoas que sabem sempre quais as causas das coisas, a começar pelos seus pensamentos. Eu nasci para a ignorância, para o erro e para a perda. Ainda ontem decidi andar mundo fora, pés na terra, a respirar os ares do campo e perdi-me. O mundo campestre é sempre igual e trocou-me as voltas. Já estava a ver que não encontrava a estrada que me haveria de levar à casa da partida. O que vale é o telemóvel, que recebeu a indicação do sítio que me esperava e lá fui eu guiado por uma voz que entoava daqui a 200 metros cortar à esquerda. E eu, fiel como um cão, cortava à esquerda e à direita, se recebesse ordem para tal. Aquilo que poderia ter sido uma aventura digna de D. Quixote foi decepcionante. Estava perdido mesmo junto ao sítio onde devia chegar. Nem moinhos havia para desafiar. Hoje é terça-feira, dia 19 de Maio. Oiço uma sirene, talvez também ela ande perdida. Esperam-me longa horas de trabalho, mas o corpo, levada pela obscura potência da alma, apenas lhe apetece dormir. Não há corveia maior do que ter um corpo que se deixa enrodilhar pelas tramóias da alma. Ou será o contrário?

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Por que não te calas?

Oiço o ladrar de um cão. Haveria de ser o ladrar de um gato ou de uma galinha, pergunta-me a minha consciência. Olho-a com desdém e não respondo. O animal insiste em fender o silêncio, em abrir-lhe um buraco por onde a sua inquietação se escoe e ele possa com alívio deitar-se ao sol em prolongado descanso. Um dia haveremos de compreender a língua dos animais, o dialecto de cada espécie, o significado preciso de cada modulação sonora, o sentido que nasce do ritmo com que entoam o que querem comunicar. Mais tarde, talvez muito mais tarde, aprenderemos a interpretar o silêncio das árvores, dos arbustos, de todas as espécies que fazem parte do reino vegetal. Uns comunicam connosco pelo som, outros pelo silêncio, mas ainda somos demasiado infantis para afinar os nossos sentidos pelos das outras espécies. Não sei o que me deu para entoar um louvor à harmonia universal. Também eu tenho necessidade de belas ilusões. Se não me dão a verdade, pelo menos ajudam à boa disposição. Sigo um conselho de Winston Churchill: Seja optimista. Não serve de muito ser outra coisa qualquer. Hoje por hoje entrego-me ao optimismo, não porque haja razões a seu favor, mas porque se é pessimista relativamente às alternativas. Em resumo, o verdadeiro optimista é aquele que é pessimista perante o pessimismo. Continua a ser notória a minha falta de assunto. Poderia seguir a injunção que há uns anos um certo rei dirigiu a um protótipo de tiranete. Por que não te calas? Esta é uma belíssima pergunta, para a qual não encontro resposta. Talvez siga o ensinamento do antigo primeiro-ministro inglês e diga: Falo. Não serve de muito estar calado. Comecei a semana útil com estas inutilidades, mas é com elas que preencho a vida. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Maio. Ao longe avisto um bosque de pinheiros mansos. Sobre ele esvoaçam anjos magníficos, de asas luminosas e espadas de diamante. A minha consciência salta de imediato para diante de mim e diz-me que eu não me chamo João, nem estou na ilha de Patmos, nem me alimento de gafanhotos. Fiquei sem palavras.

domingo, 17 de maio de 2020

Querido diário

Quando me dispus a escrever este texto fui assaltado pela ideia de que todos eles constituem um diário. Daí a imaginação cabriolou e após um salto mortal disse-me, com aquele sorriso cândido que todas as imaginações possuem, que lhe poderia chamar querido diário, como no filme do Moretti. Para dizer a verdade e assim demonstrar a autenticidade com que narro, nestes textos, as mais excruciantes aventuras de um narrador desavindo com o autor, confesso que grafei Nannetti, numa feliz fusão de Nanni e de Moretti. Isto não é um bom sintoma, mas há que ter paciência e aceitar a realidade como ela é. Uma coisa que me encanita – meu Deus, não poderia evitar estas derivas de gosto popular e escrever simplesmente irrita? – nos italianos é a duplicação de certas consoantes. Ainda não descobri o segredo porque umas vezes elas aparecem em pares e outras singulares. Terei de dar mais atenção aos nomes italianos, anoto na agenda onde escrevo todas aquelas coisas que quero fazer mas que, por certo, nunca farei. O vento agita os ramos da acácia, os pássaros cantam e oiço vozes ao longe, um murmúrio, como se escandissem orações, numa devoção em que as imagino de terço na mão. Percebo depois que veneram outra coisa e que se a têm, a piedade está disfarçada e oculta por afeições que me recuso a partilhar. Quando era adolescente, ainda não muito entrado nesse momento tenebroso da vida humana, a esta hora já teria saído da Missa e estaria a caminho de casa. O almoço naqueles dias era um pouco mais tarde, mas não tão tarde como vai ser o deste dia, em que uma mosca entrou pela janela aberta e se prepara para me encanitar. Hoje é domingo, dia 17 de Maio. A Direcção Geral de Saúde continua a emitir o boletim epidemiológico, a política volta lentamente, enquanto abro a boca e bocejo, não por causa da epidemia nem da política, mas porque a preguiça me tenta, ao estender-me as suas garras de algodão para que embalado na maciez lhe entregue corpo e alma. Vade retro.

sábado, 16 de maio de 2020

Da poligamia semântica

A buganvília púrpura exubera, mas a amarela parece moribunda, encostada a um pilar, incapaz de afastar o abraço sesgo com que a morte a está a enrolar, fazendo-lhe cair as flores, colorindo de castanho a folhagem, retirando o ânimo que lhe deu vida. Hoje caminhei pelos campos. Havia piteiras, algumas com figos arroxeados, alcachofras selvagens e pinheiros mansos a bordejar as estradas de terra batida, ainda com poças de água, pequenos lagos onde não há navegante que se aventure. As vinhas e os pomares de citrinos, animados por um espírito geométrico, prestavam culto ao velho Euclides, enquanto eu respirava um ar que já quase não sabia existir. Oiço a voz das minhas netas, combinam uma daquelas coisas que só as raparigas sabem o que é, enquanto o dia declina, com o Sol a esconder-se atrás de nuvens escuras. Há bocado trovejou, mas não choveu e os trovões envergonhados retiraram-se para longe. Na acácia que avisto, pousou um pássaro que não consigo identificar. Leio num livro sobre a arte de argumentar a injunção de que se use para cada termo um único sentido. O autor é adepto da monogamia semântica. Fico encantado com tamanha sabedoria, mas as línguas têm uma terrível inclinação para a poligamia e, por má fé e desobediência aos sábios conselhos dos filósofos, entregam-se à esquiva falácia da equivocidade e dotam os termos com mil sentidos, arquitectam armadilhas chamadas metáforas, metonímias, oximoros, paradoxos, hipálages e todo um poderoso arsenal com que bombardeiam os quartéis onde se acolitam os defensores da boa moral semântica. Desavergonhadas as línguas ainda têm a pretensão de que só assim se pode falar da realidade. O que tem tudo isto a ver com as buganvílias ou a combinações secretas das minhas netas? Nada, mas é o que acontece sempre que os homens abrem a boca e se põem a falar ou mexem os dedos para digitar o que lhes passa pela cabeça, se a têm. Hoje é sábado, dia 16 de Maio. Os dias continuam a crescer. Ao longe vejo uma palmeira que escapou à hecatombe que dizimou a espécie. Uma nuvem negra atravessa o meu campo de visão. Anuncia a noite empurrada por um vento melancólico. Pudera eu ser adepto da monogamia semântica e tudo seria mais fácil. Um banco seria um banco e nada mais que um banco, mas não falemos de coisas equívocas.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Aventuras no novo reino dos bonifácios

Um pastel de feijão. Estou  falar a sério, até um bolo trivial se tornou acontecimento digno de registo, pelo menos do meu. A necessidade de fazer uma escritura levou-me a Santarém, mesmo ao lado da Bijou, uma das célebres pastelarias da cidade. Acabado o acto burocrático, não resisti e, ao fim de mais de dois meses, comi um bolo de pastelaria, não dentro dela mas sentado no velho largo do seminário, como se fora um hippie fora de tempo e de lugar. Fazer uma escritura também não deixa de ser um assunto interessante. Parece uma reunião de um bando já com as máscaras postas pronto para o assalto. Aquilo que é um encontro entre pessoas de bem, mediado pelo representante da autoridade civil, que exercem a sua vontade em comprar e vender tornou-se uma estranha mancomunação para onde se vai disfarçado, temeroso, e de olhar desconfiado. O que um vírus faz às relações sociais. Prevejo já uma avalanche de doutoramentos em Sociologia do COVID-19, a que se hão-de juntar outros na Economia, na Psicologia e até na Antropologia. Outro ritual novo e inusitado, também um óptimo campo de trabalho para sociólogos e antropólogos, é a paragem numa estação de serviço de uma auto-estrada para ir a uma casa de banho. Há agora todo um conjunto de licenças a obter para se alcançar uma chave extraída de um sítio onde estava em desinfecção, que logo se tem de devolver para ser de novo desinfectada. Não só o mundo se tornou um lugar perigoso como um sítio onde haveremos todos de enlouquecer, para gáudio dos psiquiatras e psicanalistas, que também não estarão melhores do que os pacientes, mas têm mais experiência na arte do disfarce. O que valeu fui o pastel de feijão, mesmo comido na rua, mesmo transportando-me para o hippie que nunca fui. Hoje é sexta-feira, dia 15 de Maio. Onde me encontro neste momento há sol e ouvem-se pássaros, mas como tudo na vida também isso é passageiro. A próxima vez hei-de comer uma bola de Berlim, mesmo que isso desencadeie uma guerra com a balança ou me obrigue a uma declaração em favor do flower power. Até trautearei If you're going to San Francisco / Be sure to wear some flowers in your hair.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Bátegas de água e dicionários

Olho pela janela como se estivesse confinado. Um forte aguaceiro rompe o sossego com que o dia desliza para o fim. Uma bátega de água. Assaltou-me a curiosidade e fui tentar saber de onde vinha a palavra. Ela tem dois sentidos. Quando significa bacia, terá vindo do árabe bâtiya, mas se significa chuvada a origem obscurece-se. O dicionário da Porto Editora alvitra que pode ter vindo de bater. O Houaiss, apesar de sublinhar a origem controversa do vocábulo, adianta que é uma derivação por analogia. Imagino que seja a confissão de um acordo com o que diz o da Porto Editora, mas não afianço. Quando apareceu em Portugal, comprei o dicionário Houaiss. Seis volumes em papel com uma letra tão pequena que só de olhar para ela uma pessoa começa a fantasiar dores de cabeça. Há muito que não lhe toco. Comprei uma versão digital e é essa que utilizo. Evita-me dores de cabeça e o trabalho incerto de encontrar a palavra no seu lugar alfabético. Basta digitá-la e, como num filme de fantasia, ela aparece, com a informação, a idade e até a origem, mesmo se obscura. É um dicionário perfeito para quem se interesse por coisas inúteis. Qual o primeiro registo escrito conhecido de uma palavra? Ele informa. Bátega, 1525. Já bateria terá sido em 1546 e batente em 1456. Como se vê, este conjunto de inutilidades é de uma enorme importância num tempo em que as pessoas estão obrigadas ao jogo do confina e do desconfina, rodeadas de bátegas de água. O pior, e isso ocorre muita vezes, o dicionário recusa dar informação. Guarda-a para ele. É inútil discutir. Parou de chover. Em Portugal, segundo o Houaiss, chove por escrito desde 1262. No meu telemóvel pipocam mensagens. Sim, eu posso dar a informação. Pipoca, primeiro registo em 1781. Hoje é quinta-feira, dia 14 de Maio. O mês aproxima-se do meio, mas não entendo sequer o que quero dizer com isso. Desconfio que existe na sociedade uma ofensiva contra o calendário. Algum grupo radical está apostado em devolver-nos à pura duração, a esse momento paradisíaco em que ainda não tínhamos esquartejado o tempo para o contar. Talvez amanhã consiga escrever um texto menos idiota. Há que não desesperar.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

O mundo das árvores

Há uma passagem do romance do italiano Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, em que Micol se diverte à custa da suposta ignorância do narrador perante o mundo das árvores. Ela parece raptada pela nobreza desses seres mudos, ele diverte-se ostentando um não saber contumaz. Também eu sofro dessa ignorância e isso não é uma suposição. Não é que não goste de árvores. Gosto muito, mas falha-me a denominação, melhor falta-me saber adequar os nomes às espécies, pois a botânica é das coisas mais rasteiras que há em mim, que não sou desprovido de incontáveis saberes rasos. Há nomes magníficos nesse reino misterioso. Cedros, faias, olmos, lódãos, ulmeiros, bétulas, plátanos, salgueiros, todas estas árvores têm nomes que pedem que os escrevamos, tão magníficos eles são. Fantasio a possibilidade de criar toda uma literatura com esses nomes, explorar as características de cada árvore, dando-lhe uma alma racional e desejos humanos, criando-lhe genealogias, dotando-a de tradições e de traições. Isso porém seria fazê-la cair, expulsá-la do Éden onde habita e misturá-la ao mundo sombrio dos homens. Abstenho-me de pensar em tal coisa e dirijo-me à janela. Imagino-me que sou eu que passo na avenida, atravesso a passadeira e empurro a porta do bar. Debalde, ele continua fechado. Então volto para trás, perco-me na curva. Daí a pouco oiço a porta da rua a abrir e alguém a entrar. Sou eu. Reúno-me comigo mesmo, sento-me na secretária e olho o pequeno bosque da escola aqui ao lado. Os pinheiros estão mais copados e os cedros desenham cones secretos por amor à geometria. Hoje é quarta-feira, dia 13 de Maio. O mundo contínua envolto em estatística e até eu me entrego, por desfastio, a exercícios estatísticos. Vi na televisão umas imagens do santuário da Cova de Iria. Estava vazio, mas não oferecia a desolação que outros lugares de encontro das multidões oferecem quando ninguém os habita.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Em estado catatónico

Tenho uma relação difícil com a burocracia. Possuirei alguns genes avariados, ou mais avariados do que a norma, que me colocam em estado catatónico mal tenha que tratar de guias, certificados, certidões e o mais que uma imaginação delirante passa a vida a conceber. Dou de barato o pagar e o repagar, mas a fina trama onde se tece toda a relação com o leviatã ultrapassa-me, excede a pobre inteligência que me foi concedida e activa em mim alguma hormona que me põe à beira de um colapso. É verdade que mesmo aqui se manifesta a minha propensão para hipérbole, e isso é ainda mais idiossincrático do que a desavença com a tirania da administração. Suspeito, mas é apenas uma suspeita, a existência na minha alma de uma herança anarquista. Algum avô longínquo, no segredo da sua juventude, terá sonhado terras sem poderes ordenadores. Por causa de tudo isto fui à rua, uma viagem sem sentido e quando cheguei ao destino o destino só se abriria para mim caso tivesse feito marcação. Sempre achei que não somos nós que marcamos a hora, mas talvez tenha existido alguma metamorfose ontológica e o destino se tenha tornado complacente dando a oportunidade de negociar a hora em que se dispõe a atender-nos. Ainda não me habituei à nova realidade e talvez viva num tempo que já acabou. Bem me esforço por bater à porta da nova era, mas as minhas pancadas são demasiado leves para que sejam escutados no reino nascente, onde as festas são de tal maneira luxuriantes que não há porteiro que escute quem quer entrar. Como se vê, a pendência burocrática não me dá ensejo a dizer seja o que for com nexo. O sol que encontrei na rua era desagradável, quente e doentio, havia nele catarro e um ar amarelado que não me dispôs melhor do que estava. A cidade cheia de carros, os castanheiros da marginal exuberavam na floração e não vi ninguém conhecido. Espero em desespero um email que me há-de salvar, indicar-me-á o caminho onde me esperarão umas guias que me hão-de conduzir à caixa multibanco ou, se tiver juízo, ao conforto do homebanking. E eu que queria falar da palavra cavanhaque e de um certo general francês, enrodilhei-me em mais uma triste história. Hoje é terça-feira, dia 12 de Maio. Ganhei o hábito de fazer de calendário e não há quem me faça perder o vício. Num apartamento vizinho alguém se apaixonou pelo aspirador e arrasta-o dengoso casa fora. Infinitas são as parafilias, mas recuso-me a fundamentar tal afirmação.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Contra o sono, marchar, marchar

Depois de almoço sofri um ataque indescritível de sono. A cabeça pendia, as pálpebras fechavam-se e em todo o corpo um torpor exigia que me acastelhanasse e, sem escrúpulos nem remorsos, dormisse uma boa sesta. Tartamudeei aquele velho slogan que fez a nossa independência, de Espanha nem bom vento nem bom casamento, e acrescentei nem bom vento nem bom aconselhamento. Resisti como se resistisse a um inimigo tenebroso, convoquei as forças benévolas, lembrei o primeiro de Dezembro e os quarenta conjurados e não me deixei arrastar para o mundo sombrio do sono, onde sempre se pode ser surpreendido por sonhos que a sensatez nos deveria interditar. Meu Deus, agora deu-me para a aliteração, ainda por cima em s. Se fosse em r poderia escrever o rato roeu a rolha da garrafa do rei de Roma. Duas vezes somos meninos, sussurra-me uma voz que me habita sem pagar renda. Aberta a janela, o ar reanimou-me, as aliterações passaram. Um vento irrequieto brinca com a folhagem das árvores, o sol joga às escondidas entre as nuvens e os carros, como animais vindos de um universo paralelo, correm ofegantes, circundam rotundas e aceleram entre baforadas de fumo e buzinas enrouquecidas pelo pólen das árvores. Os dias úteis da semana começam levados pela incerteza, constato, enquanto, mais uma vez, o alarme de um carro estacionado ali em baixo dispara, enche o ar com os seus urros ateados pelo medo de ser levado por sabe-se lá quem. Também estes animais metálicos desenvolveram um amor canino pelos seus donos. Hoje é segunda-feira, dia 11 de Maio. Nesta data nasceram o imperador Justiniano I e Salvador Dali. Para contrabalançar morreu Afonso Costa. As acácias estão compostas, embora lhes falte o aprumo dos ciprestes e a altivez dos cedros.

domingo, 10 de maio de 2020

Falta de vitamina D

Os almoços tardios de domingo são ainda o sinal de uma sabedoria vinda de um tempo que parece ter-se acabado e que, como qualquer outro tempo, não voltará mais. Talvez no futuro que está mesmo ao pé da porta todos descubramos uma vocação para a arqueologia e comecemos a escavar o solo em busca de vestígios de uma vida que vivemos há muito. Armados de pá e picareta, como se vê pelos instrumentos não faço a mínima ideia de como os arqueólogos trabalham, escavaremos a rocha dura da memória para descobrir como era a vida nesse passado longínquo em que habitámos outro mundo. Digo isto não porque tenha vocação de Júlio Verne ou me entregue ao vaticínio e artes correlativas, mas porque não me ocorre nada melhor para dizer. Por falar em Júlio Verne, a literatura de antecipação científica, ao contrário da policial, nunca exerceu sobre mim qualquer fascínio. Nunca devo ter achado o futuro um território digno de louvor, ao contrário de todos os que entoam loas ao que há-de vir, não sabendo eles o que está para vir. Prefiro os policiais pois tratam de coisas arcaicas, de todos aqueles Cains que, dissimulados, matam os Abéis. Paro a verborreia, e se Abel não se pluraliza ou não o faz como papel? Encerro a questão dizendo-me que não sou o Ciberdúvidas nem tão pouco conheci algum Abel nesta vida quanto mais dois, para ter necessidade de pluralizar o nome com certeza e segurança. Com ou sem Abéis no plural, prefiro livros policiais. Devia ir apanhar sol. Consta que fornece vitamina D e, embora eu não saiba qual a função desta, estou certo que se ela estivesse dentro dos parâmetros normais eu não escreveria coisas como estas. Hoje é domingo, dia 10 de Maio. O dia hesita entre a tristeza e a alegria, como eu hesito em se faço aquilo que tenho de fazer ou faço outra coisa para a qual não tenho obrigação. De imediato penso naquela oração aprendida na infância e digo não me deixeis cair em tentação, ao que acrescento logo uma tentação é uma tentação. Opto por fazer o que me apetece.

sábado, 9 de maio de 2020

Ah mais um sábado

Como se fosse um fim-de-semana normal, levantei-me mais tarde que o habitual. O tempo pareceu-me incerto quando o espreitei da varanda. Na rua havia gente, pouca, que andava devagar, máscara afivelada ao rosto, certa de ter um destino que a espera no deambular pelas ruas. A balança mostrou-se amistosa, o que prenuncia que o tratado de não beligerância acabará por ser assinado. Tenho pela frente, a primeira vez desde que tudo isto começou, uma ida em força às compras. Até aqui, havia alguém que valendo-se da idade o fazia, mas o mundo é incerto e tudo tem um fim. Quem tinha idade para ir às compras teve de voltar para a realidade. A realidade é um país distante onde as coisas acontecem segundo leis que ninguém conhece. Não é porto de abrigo, nem seguro, nem sequer é um porto, mas um oceano proceloso onde os mortais, por vezes, mergulham. Recordo-me que há que procurar a máscara, pôr a jeito luvas e gel, caso seja necessário. O dia entristece-se e já começou a descer a colina que o levará a outro. Não sendo mais, também não é menos estúpida a vida dos dias do que a dos homens. Mal nascem começam a subir a escarpa inclinada que os levará ao meio-dia, então não lhes resta alternativa senão descer até se afogarem no mar, enquanto outro nasce com o mesmo destino. E é a isto que se resume todo o seu ser. Pressinto que tal sorte daria motivo a grandes meditações metafísicas, mas por agora prefiro chocolates. Para dizer a verdade, continuo sem assunto. Hoje é sábado, dia 9 de Maio. O vento bate contra a vidraça, as persianas tamborilam e penso que deveria cortar o cabelo e ver um filme. É pena que não existam filmes em que se saia de cabelo cortado. Poupava tempo. Tenho de ir mudar de roupa.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Nada de nostalgias

Hoje não tenho nada para dizer, mas isso não é diferente do que acontece nos outros dias. Posso falar do tempo cinzento, das premonições que indicam chuva, mas um post de uma amiga no Facebook trouxe-me uma longínqua recordação. A postagem tinha um vídeo. Luís Miguel Cintra a dizer um poema de Ruy Belo. E lembrei-me do ano em que o poeta morreu e como esse ano além dele levou também Jorge de Sena e ainda, no quadro do meu mundo de preferências, Jacques Brel, que era também um poeta. Isso aconteceu há mais de quarenta anos, mas julgo que nunca me habituei à ausência deles, à impossibilidade de escreverem novos poemas ou de cantar novas canções. Uma voz em mim, talvez a minha consciência, diz-me que devemos evitar a melancolia, fundamentalmente se somos velhos. Acato com bons modos o conselho, procuro o último LP de Brel, Les Marquises, olho demoradamente a capa onde um céu azul e nublado deixa escapar BREL. Ponho-o a girar e deixo-me levar para o tempo em que tinha pouco mais de vinte anos e tudo parecia possível, embora não o fosse. Nada de melancolias, digo-me em forma imperativa e depois rio-me, não da melancolia mas de mim. Brel canta Mourir cela n'est rien / Mourir la belle affaire / Mais vieillir... ô vieillir. Hoje já ninguém aprende francês. Cuidado com a nostalgia, rosna a voz em mim. Eu cuido-me, prometo. A culpa de tudo é do dia ou de não ter nada para dizer, ou do vírus ou de ser tão patético que chego a sentir dó de mim, senão desprezo. Hoje é sexta-feira, dia 8 de Maio. Um punhal perpassa pelo ares e crava-se na parede. Ela sangra, a brancura da cal toma colorações de carne e um fio escorre pelo chão, faz um pequeno lago, hão-de chamar-lhe Mar Vermelho. Tenho saudades de ir a um restaurante, o que é mais sensato do que pensar que já tive vinte anos, o que provavelmente é mentira. Os narradores são intemporais.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre as zaragatoas

O actual estado do mundo, causado pela inopinada chegada de um vírus inamistoso, uma daquelas visitas não convidadas nem anunciadas, tem trazido para a ribalta, para além de uma legião de especialistas em epidemias, pandemias, estatísticas, curvas, picos e planaltos, saúde pública e sabe-se lá mais o quê, palavras que estavam escondidas em casa e que, ao contrário dos seres humanos, foram obrigadas a desconfinar-se. Por mim, elejo zaragatoa, não pela utilidade, mas pela feiura. Há palavras que nascem feias e por mais que se componham nada há a fazer. Esta pobre que começa a andar pelas bocas do mundo, coisa pouco recomendável, terá nascido no árabe vulgar como zarqatúnā, os espanhóis, com o gosto estético que se lhes reconhece, baptizaram-na como zaragatona e nós portugueses, ao importá-la, tentámos limar sonoridades que nos fazem lembram os sabonetes e desodorizantes rexona, passe a publicidade. Um leitor menos disposto a consultar um dicionário perguntará se as zarqatúnās árabes teriam a mesma função que as nossas infelizes zaragatoas. Não. A palavra árabe designa apenas o caroço de algodão, o qual pode ser utilizado na alimentação de animais ruminantes. As coisas inúteis que eu sei não me deixam nunca de maravilhar. Como se vê, na viagem que vai da zarqatúnā árabe à zaragatoa nacional, muita coisa mudou, embora alguma tenha ficado. Espantoso, mesmo para mim, o número de palavras e frases que consegui escrever sobre um assunto que não interessa a ninguém, nem a mim narrador destas aventuras, nem, tão pouco, ao autor. Hoje é quinta-feira, dia 7 de Maio. A rua está calorenta, mas a casa primaveril. Passo os olhos pela imprensa e certifico-me que o mundo continua a ser mundo, os homens não deixaram de ser o que eram e quimeras, fantasias, devaneios e ilusões não perderam o lar que as acolhia, o desejo sem limites que arde no coração humano, ou noutro sítio que me recuso a nomear.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

A preguiça do vento

É preciso andar de olho no tempo. Não me refiro à duração, pois essa ninguém sabe quem ela é, mas ao clima, à sua natureza volúvel, às suas idiossincrasias disparatadas. Ontem refrigerou, hoje aqueceu. A minha app meteorológica informa-me que a temperatura é de 23 graus mas chegará aos 26. O vento está de norte, mas sem pressa, desloca-se a 1 Km/h. Não há chuva. Consta que estão com falta de água lá em cima. Fiquei também a saber que a humidade é de 47%. O problema, e a vida não é outra coisa senão um amontoado de problemas, irresolúveis as mais das vezes, é que os meus olhos mostram-me um céu pouco nublado, com um sol radioso a escapar-se do azul e a aplicação jura-me que há um manto de nuvens, sem abertas para o astro espreitar. Eu acredito nela piamente e vou já marcar consultas para o oftalmologista e para o psiquiatra. Terei de investigar a razão por que, estando um céu nublado, eu vejo um céu azul, ensolarado. Estarei a ver mal? Cheguei à fase da alucinação? Alucinação ou deficiência visual, o arvoredo resplandece sob a inclemência dos raios solares, as paredes e os vidros dos carros reverberam, e tudo parece estar em plena Primavera, com pássaros a voar, gente a cantar, plantas a florirem ao sol e, se eu vivesse no campo, haveria de ver rebanhos e pastores e pastoras. O maior enigma, porém, é a preguiça do vento. Um quilómetro por hora? Se ele trabalhasse para mim, se fosse o portador das mensagens que envio ao mundo, despedia-o e contratava um serviço alternativo. Não sei bem a razão, mas na minha secretária poisou um livro de Orígenes, o Tratado sobre os Princípios. O autor levava certas coisas demasiado a sério e, talvez guiado por um impulso cego, castrou-se. É plausível que a partir dessa altura tenha tido menos insónias, não sei. É uma conjectura que está à procura da sua refutação. Hoje é quarta-feira, dia 6 de Maio. Muitas são as coisas que gostaria de fazer, mas continuam interditas. Sempre posso ir dormir uma sesta ou ver um filme, mas o dever chama-me e como um soldado em estado de prontidão entrego-me ao que a fortuna, essa deusa avara, me destinou.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Um dia difícil

Um dia anémico foi o que o sorteio meteorológico nos deu. Vítima de uma voraz sangria, arrasta-se amarelento, cansado, como se fora filho de um mês que, ainda imberbe, tivesse já dificuldade de respirar e de suportar o peso do corpo, a trama que une as horas em dias e estes em semanas. Uma funcionária da escola aqui ao lado empurra um corta-relvas, para a frente e para trás, tenta domá-lo como se fosse um cavalo selvagem, segura-lhe as rédeas para que não espinoteie. Falta-me vocabulário para prosseguir a analogia, talvez devesse ler o livro da ensinança  de bem cavalgar toda a cela, embora o hipismo nunca me tenha interessado e é tarde para me dedicar a torneios e justas equestres. O mais assisado seria dedicar umas horas ao leal conselheiro, nunca se sabe o valor que pode ter uma exortação à sensatez. O trânsito parece aumentar a cada dia que passa. Depois de semanas a engordar ao sol e à chuva ou numa cave húmida, os automóveis reclamam exercício que lhes adelgace as ancas e disfarce a barriga. Esta noite uma insónia cravou em mim um punhal traiçoeiro para me roubar o sono e deixar-me irritado com o passar das horas, perdido entre leituras para adormecer e tentativas frustradas de dormir que desaguavam em novas leituras para adormecer. Salvou-me a aurora que me ofereceu grátis duas horas de sono. Hoje videoconferenciei por duas vezes, falei de coisas extraordinárias como jus ad bellum e jus in bello, para o que havia de me dar num dia como este. Ontem fui vítima, ainda que indirecta, de uma das versões paroquiais da falácia ad hitlerum. Alguma vez tinha de me calhar, pois a idiotice não é coisa que escasseie e, queiramos ou não, por vezes somos abalroados por ela. Hoje é terça-feira, dia 5 de Maio. Deixo-me hipnotizar pela passagem dos ponteiros do relógio e fico, como sempre, indeciso se um segundo é pouco ou muito tempo, dilema que me arrasta para as mais obscuras meditações, às quais pouparei o leitor.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ocasião perdida

As folhas das oliveiras vão mudando de tonalidade de acordo com o estado de espírito do vento. Como se sabe, se há coisa que possui estados de espírito é o vento. Sopra onde quer. Sopra como quer. Sopra se quer. As folham vão e vêm, rodopiam, ora se tornam sombrias, ora são arrastadas para a luz e logo o verde-cinza se ilumina e toma a cor da prata ou da platina ou do tungsténio. O mundo é feito destas pequenas coisas e mesmo as nossa grandes tragédias não são mais que irrisão no concerto universal. Nestes dias em que me remeti ao resguardo da casa, perdi a oportunidade de escrever uma grande aventura, na qual, como um herói de antanho – que bem que esta palavra rima com estanho –, enfrentava dragões, górgonas e harpias, se calhasse o próprio minotauro, saltava obstáculos e saía vitorioso de mil armadilhas e de outros tantos combates, enquanto me arrastava de recanto em recanto pela casa fora. É sempre dramático constatar que não se nasceu nem para Ulisses nem para Homero e que os dias me tornaram doméstico, sem vontade de convocar uma poderosa armada e ir pôr cerco à primeira Tróia que apanhasse à disposição, para depois ficar prisioneiro da ninfa Calipso e, quem sabe, deixar-me cair na tentação da imortalidade. Sem Tróia para conquistar nem Calipso para me salvar, escrevo sobre a luz nas folhas das oliveiras, o ondular das ramadas sob o capricho do vento e outras aventuras, como a dos pássaros que falam à minha janela, a de um carro que buzina ou a da mulher da máscara verde água que atravessa a passadeira e chega exausta ao outro lado da rua, como se tivesse chegado ao outro lado do mundo. Hoje é segunda-feira, dia 4 de Maio. O país desconfina-se, desenrola-se mascarado, as pessoas entoam loas à normalidade, como se a anormalidade não fizesse parte da norma. Eu não sei o que fazer com tudo isto, sem uma Tróia para saquear, uma Roma para fundar ou um caminho marítimo para Índia a descobrir. Apenas conheço os caminhos dentro de casa e não me esqueci da porta da rua. E isso talvez fosse motivo para toda uma literatura, para a qual me falece o talento e a vontade.

domingo, 3 de maio de 2020

Desejos e factos

O café da praceta aqui em baixo ostenta, num dos vidros, a palavra aberto e, num biombo exterior que serve de anteparo ao vento norte, a palavra open. Tentei descobrir se utiliza outras línguas, mas do meu posto de observação foi impossível fazê-lo. O certo é que não montou esplanada como teria feito se este fosse um dia quente de Maio de um outro ano. Não descortino pessoas a rondá-lo e, na verdade, não posso jurar que esteja aberto, pois não consigo ver-lhe a porta. Talvez seja a expressão de um desejo e não um facto. Entre ontem e hoje vi três filmes de Werner Shroeter. Em dois deles a trama narrativa é tão ténue que nos obriga a ver os elementos que compõem a mistificação que é o cinema. Imagens, cores, vozes, a babel das línguas, música, luz, sombra. No entanto, o fascínio é enorme, tal como o é o provocado por certa pintura que deixou de lado a figuração e com ela a trama narrativa que aquieta os espíritos. Com este sol não devia entregar-me a considerações estéticas, antes descrever a reverberação do mundo, a incidência dos raios solares em paredes e telhados, o brilho da folhagem das árvores sob a luz, os fungos das paredes ainda não iluminadas. Nos filmes de Shroeter, nos que vi, o sofrimento humano tem por contraponto o sofrimento de Cristo, como se o autor quisesse encontrar uma acomodação para a dor humana ou estivesse a apontar um dedo para a impotência do sacrifício do filho de Deus para pôr fim aos sacrifícios humanos. Nenhuma destas interpretações é explícita, mas são ambas possíveis e talvez nem se excluam, mas o que sabemos nós daquilo que vemos se os nossos olhos nos enganam e os nossos desejos toldam a razão? Hoje é domingo, dia 3 de Maio. O estado de emergência acabou, mas isso será mais um desejo colectivo do que um facto. Se for à rua, entretanto, hei-de confirmar se o café está aberto ou mesmo open. Isto também é um desejo, mas tão pouco intenso que o mais provável é esquecê-lo. Estamos já bem dentro da casa de Maio. Quem diria?

sábado, 2 de maio de 2020

Flores e temperaturas altas

Ontem ao passar de carro pela avenida marginal deparei-me com os castanheiros em flor, uns florescem em branco e outros, em rosa velho, embora não esteja certo da designação da cor dos últimos. Os jacarandás do adro do que foi a Igreja de Santa Maria só florirão para o fim do mês ou no início de Junho. Há muitos anos que cultivo estes dois eventos. Também me dá bastante prazer ver as buganvílias a florirem paredes acima. Juntamente com o friso das orquídeas são toda cultura que tenho acerca do mundo em flor. Por vezes, lembro-me de haver nas casas em que vivi plantas com nomes como aspidistras, árvores da borracha e costelas-de-adão. Haveria outras, mas já não consigo encontrar-lhes a denominação. Pertenciam a um mundo maternal e nunca achei que me dissessem respeito. Leio que no Ribatejo a temperatura pode chegar aos 37 graus. Fico em transe. Entre mim e as temperaturas elevadas há um conflito insanável. Nem o corpo nem o espírito as suportam. Não sei de onde vieram parte dos meus genes para que isto seja assim. Há gente que canta aleluias quando chega o calor, eu uso a blasfémia e linguagem visceralmente baixa. Logo irei ver o meu neto, à distância, pois agora tudo o que era próximo se deve dar no distanciamento. Não tarda e é hora de almoço. Não fiz nada do que tinha programado para a manhã de hoje. Guardei para amanhã, ao contrário do que me ensinaram na escola primária, num célebre conselho dado por um astuto advogado a um pobre camponês, se não me falha memória. Hoje é sábado, dia 2 de Maio. As pessoas continuam a beber, pois acabei de escutar o barulho de garrafas a cair num vidrão. Para passar o tempo, vou descobrindo quem era Micol, uma bela rapariga que habitava numa casa que possuía um jardim. E vejo cinema.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

De perdigoto a gotícula

Se fora apenas um problema onomástico, estávamos mais descansados. Não é. Aquilo que era designado com condescendência por perdigoto tornou-se nestes dias em gotícula. Perdigotos eram coisas desagradáveis, claro. Não conheço quem queira receber perdigotos ou mesmo quem os queira lançar. Podemos dizer que eram seres acidentais, resultantes de um impulso, de uma emoção incontida, de um excesso de entusiasmo do orador na sua eloquência. Um acaso fruto da distracção ou do esquecimento das regras da etiqueta. Ou de qualquer outro motivo fútil. Nisto não se distinguem os perdigotos dos seres humanos. Agora que o pobre e inofensivo perdigoto passou a gotícula, deu-se nele uma terrível metamorfose, uma alteração ontológica. Mudou de natureza e a natureza de uma gotícula pode ser letal. O perdigoto, ao renomear-se, transformou-se num homicida em potência, senão mesmo em acto. Começar Maio com pensamentos destes não é um bom augúrio sobre a sanidade mental de ninguém. Se eu fosse dado à filosofia, poderia dedicar longas meditações à ontologia do perdigoto, agora gotícula, se ele é um ser em si ou mesmo um ser para si, mas evito estas ruas esconsas, cheias de becos, alguns sem saída, onde se pode ser apunhalado pelas costas ou levar com uma chusma de perdigotos. Entrego-me às grandes avenidas, cheias de claridade e distinção, por onde se passeia sem que se pense seja no que for. Uma contrariedade, não das menores, é viver, como me acontece, num sítio onde não existem avenidas grandes e amplas, apenas avenidas pequenas, quase acanhadas, tão tímidas que ruborescem sempre que se lhes chama avenida. Nelas, o pensamento é obrigado a trabalhar e depois cai na vexata quaestio do perdigoto, da gotícula, da nuvem de gotículas que faz lembrar a nuvem electrónica, o que é uma deriva que conduz ao alçapão da mecânica quântica, que, apesar da incerteza de tudo, não é chamada para aqui. Hoje é sexta-feira, dia 1 de Maio. É feriado como acontece sempre que é 1 de Maio. Desde 18 de Março que registo aqui a data, temo que se tenha tornado um hábito e, como se sabe, o hábito é uma segunda natureza. Também esta última frase é plágio, mas continuo a omitir os autores que plagio.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Um aumento da gravidade

O mês fina-se hoje. Que descanse em paz. A sensação mais estranha que tive desde que tudo isto começou aconteceu ontem. Na centena de metros que separam o sítio onde vivo e a farmácia, nunca me abandonou o sentimento de se estar na ressaca de um apocalipse. A combinação da luz coada pelas nuvens com os estabelecimentos fechados, a ausência de gente nos sítios onde abundava, o vento que parecia prometer, caso fosse necessário, trazer os mais terríveis miasmas, tudo se conjugava na minha imaginação e desenhava uma paisagem urbana de uma cidade que fora repudiada pela maioria dos habitantes. As pessoas com que me ia cruzando, ontem menos que em outros dias, traziam máscara e havia em todas elas uma precaução no andar, na forma como o corpo poisava no chão, como se vivessem há muito habituadas a estar alerta contra os raides aéreos das forças inimigas. Exagero? Duvido, pois esta é a época, de todas as que vivi, mais dada à hipérbole. Tudo nela é excesso, mesmo a ausência, mesmo a penúria, mesmo o vazio. Hoje acordei com a impressão de ter sonhado, coisa que raramente acontece. Não sei o que me ocupou enquanto dormia, mas ao acordar não senti alívio nem frustração pelo fim do sonho, experimentei uma sensação de indiferença e a percepção de que os valores da gravidade se tinham alterado, que era mais difícil andar, que a força de atracção da terra aumentara. Ao abrir a janela, a realidade voltou ao que era, se é que a realidade era ou é alguma coisa. Hoje é quinta-feira, dia 30 de Abril. Ocupo os dias em trivialidades, aquelas que contribuem para que pague as contas e estou grato por poder pagá-las. Duvido que isso dependa do meu mérito. Trata-se de sorte, embora aqueles que são afortunados, e por vezes é preciso muito pouco para o ser, raramente aceitam que a sorte desempenha um papel não pequeno na trama que é a sua vida. Há sempre a tentação de exagerar os méritos.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Uma aventura

Um acontecimento. Logo, terei de ir à farmácia. O que era trivial ganhou agora o colorido de uma pequena aventura, à qual irei de máscara como se fosse um assaltante, até que tudo, mesmo o estar mascarado, se torne num novo trivial, pois a banalidade é a casa onde os homens podem dormir em paz. De manhã choveu e as temperaturas andam baixas para a época. Pior seria se o Verão se tivesse antecipado e construísse uma toca nestes dias. Por aqui, o abrigo da serra torna o Estio em animal feroz, pronto a devorar o ânimo dos mortais e, para os perder, a enlanguescer-lhes os corpos. Não posso esconder que entre mim e o calor há um longo contencioso, que tribunal algum arbitrará. Se imagino o paraíso de onde Adão e Eva se fizeram expulsar, pressinto-o como um lugar de eterno Outono, quando o calor se ameniza e ainda não chegaram chuvas e frios e as vinhas ostentam cores esplêndidas que os olhos nunca se cansam de ver. Este bucolismo serôdio enoja-me, quase vomito, mas já desisti de parecer um narrador moderno, daqueles que omitem a acção e esquecem as personagens. Ontem vi um filme inspirado por um romance de Proust, mas não me apetece falar dele. Um sol flébil rompe o cerco das nuvens e brilha lacrimoso e turvo sobre a cidade. Tenho coisas para fazer antes de ir em demanda do santo graal. Da farmácia, quando lhes liguei para fazer a encomenda a levantar mais tarde, disseram-me que o champô medicinal que usava, já nem sei bem porquê, tinha sido descontinuado, mas que procurariam outro com o princípio activo semelhante. Fico sempre maravilhado com a linguagem. As coisas não acabam, descontinuam-se. Todos nós nos descontinuaremos, embora duvide que haja outro produto com o mesmo princípio activo. Hoje é quarta-feira, dia 29 de Abril. Amanhã será o último dia do mês, logo hoje é o penúltimo e ontem foi o antepenúltimo. Há que exercitar a memória para não esquecer estas pequenas relações que ainda nos permitem compreender o que é o tempo, desde que não nos perguntem o que ele é. A última frase é plágio, mas omito o autor,

terça-feira, 28 de abril de 2020

A sombra ataca

Pego num livro que não li. Abro-o e vejo-o sublinhado e anotado por alguém com uma letra exactamente igual à minha, com NB à margem completamente idênticos aos que costumo fazer, até o que os NB salientam é aquilo para que chamaria a atenção. Não apenas alguém leu o meu livro sem me pedir autorização, como se apropriou da minha letra e das minhas idiossincrasias para me fazer crer que fui eu que o li e o destratei com sublinhados e anotações. É evidente que há outras explicações mais prosaicas para o sucedido, como por exemplo a de ter sido eu o leitor e ter-me esquecido do livro. São coisas que acontecem. No entanto, quem quer explicações tão prosaicas, tão incapazes de criar um mistério, talvez mesmo um milagre? Por exemplo, é possível imaginar que, quando me vejo ao espelho, do outro lado está alguém que me imita e que, aproveitando os meus sonos, salta desse mundo aliciano e se põe a ler os meus livros e a imitar a minha letra. É uma explicação menos prosaica que a do esquecimento e, por isso, muito mais verídica. Um leitor pouco dado à imparcialidade dirá que o estado de emergência não me tem feito bem, não o desmentirei, mas chamo-lhe a atenção que o mesmo pode acontecer com ele. O vento tamborila nas persianas, oiço ruídos que não consigo identificar e pergunto-me se irei caminhar pelas ruas da cidade, mas perdi o poder do vaticínio e não sei que resposta dar-me. Hoje é terça-feira, dia 28 de Abril. O mês foi parco em calores e nada augura que se modifique nos dias que lhe restam. Para dizer a verdade, sinto-me cansado, mas já não me lembro de quê.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Meditabundos e cismadores

Abri a janela para que os barulhos do mundo chegassem até mim. A circulação automóvel começa a aproximar-se da de outros tempos. As pessoas têm pressa para voltar ao sítio onde se encontravam há dois meses, ao conforto da ignorância, pois não há coisa mais confortável do que não saber. Os que têm uma inclinação para moralizar os acontecimentos naturais hão-de ficar desiludidos com a ânsia deste retorno. Uma oportunidade tão boa para melhorar o mundo e as pessoas apenas pensam em voltar à dissipação habitual. Durante a história da humanidade, não por acaso, o desejo foi fortemente regulado, vigiado e perseguido se extravasava as duras fronteiras onde era contido. Depois, quando Diónisos derrotou Apolo, o desejo emancipou-se e, como todos os limites lhe têm sido retirados, é inimaginável que a eclosão de um vírus invisível seja motivo suficiente para que lhe ponham de novo o cabresto. Não sei o que me deu para me entregar a tão fútil reflexão. A falta de assunto torna as pessoas meditabundas e elas põem-se a cismar com coisas cuja compreensão está muito para além das suas possibilidades. Retrato-me disso como se confessas, contrito, um pecado mortal. Oiço pombos a arrulhar, imagino que estejam numa fase em que o desejo fale. Sempre estamos na Primavera e a vida precisa de se multiplicar. Se fechar a janela, o mundo cala-se e é possível que deixe de existir. Hoje é segunda-feira, dia 27 de Abril. A meteorologia promete aguaceiros fracos para mais logo, para aquela hora em que eu prometera ir à rua para caminhar pelo mundo, como se me tivesse tornado um homem livre. Não tornei.

domingo, 26 de abril de 2020

A vida inabitual

Depois de todo este tempo, vi o meu neto ao vivo. Estava com medo que fosse apenas uma presença virtual. Afinal, existe mesmo. Corre, cai, fala uma estranha linguagem, cujas palavras já não consigo entender, pois não pratico o idioma há muito. Não nos aproximámos, não peguei nele ao colo, não lhe dei a mão. Não o levei a fazer experiências no mundo. Aproximámo-nos mas ficámos afastados. O dia está cinzento e ninguém diria que é domingo, nem qualquer outro dia da semana. O calendário indiferencia-se e as pessoas vão perdendo fronteiras e esquecendo taxinomias. Ontem caminhei na serra. Havia pedras, árvores, arbustos, trilhos para explorar aquele mundo meio selvagem. Havia também sol e ar e outros caminhantes. A luz vacilava, um pássaro levantava voo, o coração dos montes exultava. A mesma natureza que ainda ontem envelhecia, hoje rejuvenesce redimida pelo triunfo sobre a morte. Substituo a frugalidade pela perífrase e alongo-me em frases desabitadas pelo sentido. Numa rede social, vejo um padre a oficiar, rodeado por um grupo reduzido e disperso de fiéis, como se tivesse um poder secreto que lhe abrisse as portas do futuro. Não tem, mas imagino-o à noite sentado na varanda e, enquanto contempla a serrania, esforça-se para que os olhos penetrem no que ainda não aconteceu. Como eu, também ele está cego. Hoje é domingo, dia 26 de Abril. O ano corre sobressaltado sobre um leito estranho. Em algum lugar, um poeta escreverá um poema e um místico verá Deus ou um poeta verá Deus e um místico escreverá um poema. Quem quer saber disso? O melhor é ir dormir uma sesta.

sábado, 25 de abril de 2020

O último é batata podre

O último é batata podre. As coisas afinal não mudam tanto quanto se supõe. Duas crianças, um rapaz e uma rapariga, irmãos por certo, correm na praceta aqui em baixo, sob o olhar atento da mãe. Parceria uma cena trivial de um tempo sem sobressaltos, caso a mãe não falasse com amigas a uma distância cheia de desconfianças. Agora oiço o barulho de garrafas a cair no vidrão. Depois, silêncio. Penso nos meus netos, tornaram-se presenças virtuais, chegam em vídeos ou em conversas através daquelas plataformas cujo nome prefiro silenciar. Como qualquer avô, faço caretas e figuras idiotas, pergunto coisas que enviesam os olhares das adolescentes. O rapaz, do alto dos seus dezoito meses, condescende por vezes em dar-me cinco segundos de atenção. O último é batata podre, recordo-me, e nesta sentença há toda a sabedoria do mundo. Existe outra sabedoria, mas essa não é deste mundo. Os últimos serão os primeiros. O choque destas duas avaliações nunca foi tão claro como na vexata quaestio da batata podre. Se o último afinal é o primeiro, quem será o batata podre? Será que na catequese colocam às crianças dilemas destes? O dia já se soltou da manhã e, envolto na capa da tarde, ruma pelos campos. O último será mesmo batata podre? Hoje é sábado, dia 25 de Abril. A cidade contínua sitiada, mas os habitantes habituaram-se ao assédio do inimigo. Caminham pelas ruas, evitam passar perto uns dos outros. Na passadeira, uma mulher arrasta um cão minúsculo. Chega ao outro passeio como se tivesse aterrado noutro continente.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Se um deus ex-machina

Tenho visto uns filmes situados na Belle Époque. Ainda hoje a designação faz revirar os olhos a quem tenha inclinação para os revirar, pois isto de os fazer andar à volta não é coisa de toda a gente. Começo a afastar-me do tema. Voltando aos filmes. Giram em torno de gangsters e prostitutas ou de outro tipo de gente que não seria recomendável frequentar. Não é uma avaliação moral, apenas uma constatação dada pelo estado de confinamento que até um simples narrador está sujeito. É também prova de escassez de assuntos e isto é um drama. A oferta de temas contraiu-se fortemente e uma pessoa fica a olhar para o monitor à espera que um tema lhe caia em cima, que um deus ex-machina a salve. Nada. Sempre posso falar do friso das orquídeas, descrever-lhes a cor, o número de flores por planta, mas a tudo isso falta acção. Nenhuma delas se predispôs a ser heroína, a encetar uma peripécia que me incendeie a imaginação. Limitam-se a ficar ali, exibem-se, esperam que cuidem delas, mas a acção está fora não dos seus poderes mas dos seus interesses. Chegaram-me a sugerir que tinham vocação de monjas contemplativas, daquelas que almejam sentar-se num penhasco e ficar ali a olhar o infinito. Também as torres do castelo podiam cooperar comigo, mas asseveram-me que não têm paciência. Já viram demasiadas coisas e que nada disso lhes interessa. Estiveram quase a contar-me umas histórias pícaras que se passavam, e talvez se passem, no interior das muralhas, mas depois deram uma gargalhada e remeteram-se ao silêncio. Como se vê, sou um narrador esforçado, mas os elementos não cooperam comigo. Hoje é sexta-feira, dia 24 de Abril. Informam-me que mais logo choverá e trovejará, mas também haverá abertas. Se houvesse um deus ex-machina que solucionasse esta história em que fomos envolvidos, juro que haveria de encontrar assunto. Sendo assim, restam-me os filmes sobre a Belle Époque.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Noutro mundo

Ao fim de não sei quantas semanas comprei livros. Heróides, de Ovídio, Poemas,  de Tibulo e Epístolas, de Horácio. O confinamento predispôs-me para os clássicos, dir-me-ão. Falso, os motivos são vulgares. A editora está a vendê-los com um belo desconto e ao fim de tão grande período de abstinência decidi que estava na hora de fingir que as coisas são como sempre foram, que a natureza é imutável e a realidade voltou aos carris de onde nunca deveria ter saído. Uma ilusão, mas agora tenho um novo horizonte, o da chegada dos livros, o ritual de os desembrulhar, de passar as mãos pelas capas e os olhos pelas páginas impressas. Há que ter cuidado na tarefa de lidar com o correio, não seja uma carta armadilhada, não venha na encomenda uma bomba invisível. Sem darmos conta, movemo-nos já noutro mundo, novas regras emergem, outros gestos são obrigatórios. Talvez aprendamos a justa distância, diz-me a consciência, sempre agastada com as homilias dos afectos, com as pessoas a beijocarem-se por tudo e por nada. Neste caso, um dos poucos, partilho o ponto de vista da minha consciência. O ideal seria introduzir a vénia como forma de cumprimento habitual. Uma leve inclinação da cabeça e o mundo pareceria mais sensato e, por certo, o deus Eros agradeceria, pois nada o torna mais alegre do que essa distância que mantém o desejo em tensão. Bem, o autor assim como me proibiu tiradas políticas, também não me permita derivas eróticas ou sequer considerações sobre o assunto. Sou um narrador obediente. É mais recomendável falar do céu cinzento, do verde das árvores, do silêncio do mundo ou da algazarra que se deixou de ouvir. Tenho pena da minha caixa de email. Parece uma Penélope a atrair pretendentes, mas não há Ulisses que lhe valha. Hoje é quinta-feira, dia 23 de Abril. Não chove, mas imagino a água pelos córregos, os campos a verdejar e, de súbito, descubro-me um amante da natureza. No hospital, os vidros dos carros reverberam, enquanto a tarde lépida se afasta da manhã. Espera-a a noite.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Dias intérminos

As águas de Abril recolheram-se à cisterna, onde um deus imprevisível e de má catadura as armazena para as usar ora como bênção, ora como castigo dos mortais, segundo uma disposição cujo segredo está oculto aos poderes humanos. Louvo-me nestas banalidades e evito pensar seja no que for. O ideal seria pensar em nada e o mais belo de todos os ideais seria que certas pessoas evitassem o uso sempre deficiente do cérebro e se entregassem a um estado vegetativo contumaz. O mundo tornar-se-ia um lugar menos triste se esses animadores nos poupassem os rasgos. De manhã, ao levantar-me, havia sol na rua. A Primavera endireitava-se sobre as pernas ainda cambas e ensaiava um passeio pelas ruas. Ninguém diria que cambo tem a sua origem num radical céltico. Asseveram-me, porém, que assim é. Eu acredito, pois o que mais resta a um confinado do que crer? Continuo a praticar os pequenos gestos quotidianos de sempre, faço-o como se tratassem de rituais que me ligam a esse tempo sagrado antes da queda nesta situação. Estes dias fazem-me lembrar, por vezes, aquelas tarde intérminas do Verão, em que as horas de calor terrível se recusavam a passar e eu lia, lia. Não, não era Tolstoi, nem Kafka, nem Thomas Mann. Nesses dias ainda não tinha adoecido o suficiente. Lia o Texas Jack, o Condor, o Ciclone, o Falcão e as célebres aventuras do major luso-britânico Jaime Eduardo de Cook e Alvega. O que eu não sabia na altura é que, no original inglês, o major era tenente-coronel e de português tinha nada. Também não sabia que o tradutor era Anthímio de Azevedo, o mais célebre meteorologista português. Agora que sei isso tudo, não faço ideia para que me serve essa sabedoria. Hoje é quarta-feira, dia 22 de Abril. O vento estremece a folhagem do arvoredo, contínuo a ouvir a voz de Montserrat Figueras. O Major Alvega deixou de combater, já não me recordo das histórias do Condor nem do Ciclone e talvez Texas Jack tenha sido abatido num duelo. Um dias destes, caso não me cuide, ainda acabo a falar na Ponderosa, o rancho dos Cartwright.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Alexandrinos e redondilhas

Escando os dias como se fossem versos, espero encontrar neles a métrica que dê ritmo ao desconcerto, que transforme a cacofonia numa peça musical digna de ser escutada num futuro em que a memória destes dias seja apenas uma sombra rente ao entardecer. Oiço o barulho de uma rebarbadora, mas não consigo perceber de onde vem. Não é a primeira vez que me atinge, nestes dias, a rugosidade daquele ruído, vindo da rua. Malditas aliterações e assonâncias. Devia evitá-las para não me estragarem a prosa. Vou à janela, olho para aqui e para ali, mas não descubro a fonte do incómodo. Talvez seja apenas parte de um pesadelo, embora eu jure que estou bem desperto, e não me venham com a história de Descartes que não se é capaz de distinguir o sono da vigília. Na avenida é notório já o corrupio dos automóveis. Deslizam como se tivessem conquistado a cidade a um inimigo implacável. Reparo que dei um erro ortográfico, emendo-o, mas fico infeliz, a palavra era mais bela com o erro do que sem ele. Daqui se prova que entre ortografia e estética não tem de haver compatibilidade. Correcção e beleza raramente andam de mãos dadas, mas não quero lançar falsos testemunhos. As oliveiras que ontem tinham desaparecido voltaram para o seu lugar e isso tranquiliza-me, como se me dissessem que todas as coisas têm um lugar a que podem voltar. Hoje é terça-feira, dia 21 de Abril. Continuo a enunciar o dia da semana e o do mês. Faço-o como se isso me protegesse de qualquer inimigo inominável, mas o mais certo é que ainda me transformo em calendário. Antes em calendário do que em herbário, digo-me, mas não estou certo se deveria ter feito tal comentário. Se cada dia fosse um alexandrino, Abril teria trezentas e sessenta sílabas métricas. Não haveria quem suportasse tanta poesia. Talvez bastasse a redondilha maior e ainda dava letra para um fado.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Simulacros

O melhor é não crer naquilo que os olhos vêem. O que até ontem sempre me pareceu ser oliveiras apresenta-se hoje sob uma outra capa que, fora eu dado a crer em metamorfoses súbitas, diria que alguém trocou as árvores. Eu sei que a luz é senhora do mundo e basta que ela mude para que as coisas pareçam outras, e a luz de hoje não parece confiável a ninguém. Um dia destes, tenho a esperança, as oliveiras voltarão para o lugar que era o delas e aqueles simulacros que lhes ocupam os espaços serão levados para longe dos meus olhos. O principal problema de tudo isto é a dúvida para a qual sou de imediato arrastado. Não serei eu também um simulacro de mim mesmo? Não estou certo, mas inclinar-me-ia para a possibilidade disso acontecer rondar os oitenta por cento. Uma estimativa conservadora, dirá um especialista nestas coisas. Não sou eu, portanto, que escrevo, mas o simulacro de mim. A manhã não me terá feito muito bem. Hoje já videoconferenciei duas vezes, pensei em coisas práticas, logo eu tão pouco dado ao prático, e li coisas que não deveria ler. No mundo proliferem coisas ilegíveis, embora sejam as que mais leitores têm. Na consciência deixo correr as coisas que tenho para fazer esta tarde, mas logo o pensamento muda de agulha e se centra não no que devo mas no que desejo fazer. Uma tragédia esse eterno conflito entre dever e desejar. Observo com demora a rua e vejo o dia a cambalear tristonho e choroso pelas áleas escuras do tempo, como se o crepúsculo se devesse demorar hora sobre hora, incapaz de dar à luz a noite escura. Não me ocorre nada de assinalável para assinalar e o melhor é calar-me. Hoje é segunda-feira, dia 20 de Abril. Chove e o mês entrou no seu último terço. Um pássaro abusa do efeito de redundância na emissão da mensagem e do gira-discos, como sou velho, chega-me a voz da Montserrat Figueras e a música de Jordi Savall, no prodígio de misturar vivos e mortos que só a técnica consegue.

domingo, 19 de abril de 2020

A vila sitiada

Sem motivo, deitei-me tarde e tarde me ergui. Quando a janela se abriu havia sol, olhei-o, mas logo descobri que não saberia o que fazer com ele, como começo a não saber o que fazer com muitas coisas. O mês anda resfriado e as tarefas com que os dias são ocupados nunca deixam de exibir a marca de pechisbeque que é a delas. Ainda não fui espreitar o movimento na Sá Carneiro. Talvez a própria avenida se tenha movido para outro lado e eu agora viva num sítio inóspito, cheio de felinos ameaçadores e répteis que nem nos piores pesadelos existem. Ou então terei sido transportado para a Idade Média. A vila está sitiada talvez por castelhanos, talvez por mouros. Estamos em casa, passam dragões fumegantes, as muralhas contêm o inimigo e a peste grassa por entre os dois exércitos. Rio-me com a propensão para a hipérbole e lembro-me que a velha vila foi despromovida a cidade, para que todos se ufanassem da urbanidade decretada, apesar dos dedos rústicos e das mãos calosas. Quem é que quer ser um vilão? Não deveria fazer considerações destas. Avisto, sob a copa das árvores, uma rotunda coberta de repuxos e edulcorada com uma estatuária inominável, talvez comprada em algum leilão aquando da falência de um país socialista, mas estou interdito pelo autor de me meter em assuntos políticos. Sou um narrador obediente e na rotunda apenas vejo os carros que passam. Oiço o grasnar de uma motorizada, a buzina de um carro, o latir de um cão, vozes que vêm da praceta. Abro a janela e oiço o vento, um vento triste, comprometido, com a impotência estampada no rosto. Hoje é domingo, dia 19 de Abril. Anoto na minha agenda que terei de limpar a secretária e arrumar os papéis, ponho o telemóvel a carregar e sinto uma súbita saudade de ir ver o Tejo. As oliveiras da escola aqui ao lado dançam, embaladas pelo vento e nas suas folhas há um brilho de cinza e prata. Cada vez gosto mais delas.

sábado, 18 de abril de 2020

Um armistício com a balança

Até que enfim. Depois de meses de disputa, a balança convenceu-se, não sei se por piedade, a devolver-me, quando pisada, um peso próximo daquele que me é recomendado naquelas equações entre peso e altura, talvez com idade a entrar também no problema. Não se pense que isso se deve ao facto de há mais de um mês não pôr um pé num restaurante, ou à dieta seguida em confinamento, ou sequer à prática diária de quase uma hora de exercício. Há que evitar interpretações maldosamente materialistas. Tudo aconteceu devido à meditação transcendental e à recitação quase ininterrupta do mantra om mani padme hum. Não se trata da ideia pouco espiritual de que se uma pessoa recita um mantra não come. Pode ser verdade. A questão, porém, é outra. A balança pensou, ao dar conta dos meus exercícios espirituais para combate ao excesso de peso, que eu ia enlouquecer e, por um acto de misericórdia, começou a devolver-me números mais afáveis, embora na semana passada tenha hesitado. Assinámos hoje, eu e a balança, um armistício e, continuando ela assim, haveremos de celebrar um tratado de não beligerância. O dia está semi-radioso, o céu é uma manta multicolorida de retalhos, suficientemente esburacada para deixar passar um sol temeroso e pouco convicto dos seus poderes. Na avenida, passam mais carros do que tem sido habitual e um transeunte, que ainda não chegou a acordo com a sua balança, arrasta um peso excessivo sobre a calçada, movendo devagar as pernas, descansando sob a sombra das árvores, olhando estupefacto para um lado e para outro. Oiço o barulho de garrafas a cair num vidrão e recordo-me de que fui acordado pelo ronco de um corta-relvas de uma empresa de jardinagem que cuida dos espaços públicos. É uma empresa muito preocupada com aquilo que as pessoas podem fazer na cama ao sábado de manhã e, por isso, elegeu-o para enviar os seus batalhões de cortadores de relva, com os tanques de combate. Hoje é sábado, dia 18 de Abril. Os dias passam sorrateiros, a minha caixa de email continua a ser bombardeada e o telemóvel mostra-me duas fotografias da minha neta mais velha com um ano de diferença. Abro a boca de espanto, mas logo a fecho. O tempo passa. Não há nada como um truísmo para acabar.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Ser a quarentena

O enfolhamento das árvores caducifólias vai a bom ritmo, não faltará muito para que a exuberância tome conta delas e as pessoas comentem o quanto estão frondosas. Logo se recolherão na sua sombra, protegendo-se dos raios desferidos por um Sol que se há-de tornar desabrido, senão mesmo inclemente. A espécie humana tem o curioso destino de criar continuamente palavras. Depois envolve-se nelas e pensa que fica ao abrigo das intempéries e da volubilidade da natureza. Não fica, pois esta nunca se cansa de congeminar armadilhas para capturar os seres humanos, humilhá-los na sua vaidade e submetê-los a leis que eles não deram a si próprios. Não são pensamentos para se ter a uma sexta-feira. Lembrei-me dos tempos em que ia a um restaurante ou ao cinema, mas tudo isso foi há muito. Se a quarentena fosse apenas um espaço de quarenta dias, tudo seria mais fácil, mas não. Quarentena é agora uma forma de existir e não tarda uma maneira de ser. Deixamos de estar em quarentena e passamos a ser a própria quarentena. Não estamos isolados, passamos a ser o isolamento. Enquanto escrevo, vou bebendo água. Talvez tenha esperança de que a água me lave e desinfecte por dentro. Oiço Hildegard von Bingen. Se fosse um filósofo teria dito oiço a música de Hildegard von Bingen, não o sendo deixo-me levar pela preguiça e caio no alçapão das metonímias. Penso, de imediato, que a metonímia é mais verídica do que a expressão corrente, mas nada disso me salva de estar na circunstância em que estou. Hoje é sexta-feira, dia 17 de Abril. O estado de emergência vai continuar a emergir. Recebo um vídeo onde o meu neto aprende a trepar para uma cadeira de adulto e logo tenta subir para uma mesa, mas a autoridade diz-lhe que não se sobe para cima das mesas. O mundo está cheio de interditos. Felizmente, diz-me a minha consciência.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Voltar à normalidade

Um tempo como o que vivemos é pródigo em linguagem esotérica. Por todo o lado vejo a expressão voltar à normalidade. É uma frase difícil de compreender. Nunca se volta, pois não podemos retroceder no tempo. Mais intrigante ainda é a palavra normalidade. Isso quer dizer o quê? Talvez seja eu que não saiba compreender a língua portuguesa e tenha sido dotado de um baixo poder interpretativo. A inteligência neste mundo não será coisa lá muito bem distribuída, e ter-me-á calhado um quinhão menor. Esta é uma hipótese que não ponho de lado e afinal pode ser que se viaje no tempo e exista mesmo uma normalidade. Não sei bem a razão, mas estou um pouco irritado com o S. Pedro. Insiste num tempo triste, como se lhe faltasse ânimo para entremear umas fatias de sol entre as côdeas desengraçadas da chuva e do vento. Também estas metáforas me deixam sem ânimo, sempre podia ter achado coisa melhor. Na rua, dois cães ladram. Um deles está exaltado e, não fora intervenção humana, reduziria o outro a farinha. A minha caixa de email não pára de receber mensagens. De tanto trabalhar, ainda me há-de cair para o lado, exausta. Numa notícia sou informado de que foi avistada uma estrela a dançar em torno de um buraco negro. E esse facto será mais um prova de que Einstein tinha razão. Não sou informado a que tipo de dança se entrega a estrela, mas espero que não seja o cancã ou o tango, não estamos em tempo dessas coisas. E depois nada garante que o buraco negro possua inclinações eróticas. Só me ocorrem coisas idiotas, mas tenho de ser compassivo com a minha imaginação, ou a falta dela. Hoje é quinta-feira, dia 16 de Abril. Daqui a pouco terei uma reunião online, depois hei-de ir espreitar o friso das orquídeas, as torres do castelo e o trânsito na Sá Carneiro. São exaltantes estes dias, talvez tenhamos de voltar à normalidade.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Arrumações e astrologia

Abril chegou a meio do caminho envolto em água fria, caída das incertezas do céu. Ontem trovejou, mas hoje os deuses estão menos irados e guardaram na algibeira relâmpagos e raios que não usaram para fulminar a terra. Acumulam-se papéis na secretária. Tenho resistido à tentação de os arrumar. Preciso de esclarecer o que entendo por arrumação de papéis, não vá dar-se o caso de se imaginar que tenho um sítio onde, depois de devidamente analisados e classificados, os guardo, para memória futura. Na minha linguagem, arrumar papéis significa enviá-los para reciclagem, devolvê-los ao ciclo da produção e consumo. Escrevo esta frase e quase me sinto um economista, o que está longe de ser um elogio. Economistas são aquelas pessoas que estão sempre a fazer previsões, mas que nunca acertam, nem mesmo depois dos factos consumados. Não deveria serrazinar profissão tão distinta, de cujos humores depende a nossa mercearia, não vão os seus cultores começar a ornear na praça pública contra aqueles que os confundem com astrólogos. É o meu caso, mas não o digo a ninguém. Uma antiga canção brasileira dizia que a dor da gente não sai no jornal, mas agora os jornais começam a estar cheios de dor, estampam-na para que se torne viva, não vá ela, a dor, ser apenas um ponto na curva de um gráfico, um número na contabilidade da vida e da morte. Não sei o que pensar de tudo isto, mas isso também não é novidade. Oiço o vento a murmurar, incomodado com as persianas que o tolhem. Vejo da janela algumas pessoas, vão de máscara, o vento levanta-lhes o cabelo e empurra a máscara contra o rosto, enquanto elas caminham, caminham, à procura de um destino. Hoje é quarta-feira, dia 15 de Abril. Das colunas da minha cansada aparelhagem sai uma música coeva de Bruegel, o Velho. Há dias em que me sinto como se tivesse nascido nesses tempos, mas como se sabe sou dado ao exagero e cultivo a hipérbole.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Tudo é vaidade

A Primavera prossegue o seu caminho, um pouco desgrenhada. O vento sopra, sopra, os ramos das árvores inclinam-se, mas logo voltam ao lugar, pouco dóceis aos desígnios de Eolo. Passei a manhã a teletrabalhar e tenho a tarde para resolver alguns problemas, mas são resoluções à distância, pois o nosso próximo é aquele que se mantém ao longe. Começo a evitar as notícias, não por elas, mas porque estão eivadas de profecias, vaticínios e augúrios. Nos homens, o desejo nunca se cala, nunca se conforma com aquilo que há, nunca se senta pacientemente à espere que chegue o que lhe pertence. Daí, abre a boca e desata a fabricar futuros. Ora o futuro é uma coisa que me cansa tanto como o presente, e este é o que se sabe. Vejo um vídeo do meu neto. Observo tudo o que estou a perder, embora ele não dê por nada. Nos últimos dias não tenho visto cinema e essa é uma alteração sensível. Outra é que também não tenho feito palavras cruzadas. O que tudo isto quer dizer não faço a mínima ideia. Talvez a maior parte das coisas que acontecem não queira dizer nada, limita-se a acontecer e encontrar-lhe razões é um desporto que serve para mostrar a argúcia do ego, uma vaidade. E aqui deveria dizer com o Eclesiastes vi tudo o que se faz debaixo do sol, e eis: tudo vaidade, e vento que passa, mas não digo, guardo-o para outro dia, em que não oiço o zumbir monótono de um aspirador. As acácias bastardas estão mais compostas de folhas e na rua não passa ninguém. Daqui a pouco hei-de espreitar as torres do castelo. Uma delas começa a ficar tapada pela ramagem de um pinheiro manso. Hoje é terça-feira, dia 14 de Abril. O aspirador calou-se, os pombos desenham círculos no ar e as horas desfazem-se em minutos, os minutos em segundos e estes fiam o nada que a tudo envolve.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Um dia cinzento

O dia parece o fruto de uma imensa tristeza. Cobre-se com um véu de cinza e esconde-se em cada beco por onde ninguém passa. Acompanho-lhe o sentimento, mas será mais assisado quebrar esta lealdade e arvorar um sorriso como se houvesse razão para uma imensa alegria. Desdobro diante de mim as tarefas que tenho de realizar ainda hoje e pergunto-me se isso serve para alguma coisa. A consciência, porém, diz-me que a ocupação é o melhor remédio para estados de alma escuros. Olho-a com desprezo, mas ela não se faz rogada e vinca a sua opinião, exorbitando funções. Volto às minha tarefas. Com elas componho um puzzle, encaixo, com paciência, as peças, rio-me se me engano. Ontem descobri um conjunto de textos que noutra época me interessariam, agora não sei o que fazer com eles. Leio-os, mas é tanto o enfado, que o melhor é esquecê-los. Oiço Andreas Scholl num Stabat Mater de Marco Rosano, um compositor italiano actual. Deixo-me surpreender pela música, fujo do fascínio que o mesmo tema tem na composição de Giovanni Battista Pergolesi. Há obras que têm uma luz tão intensa que lançam uma enorme sombra sobre todas as outras. Rosano também não é capaz de fugir por completo ao sortilégio do seu compatriota. Esqueço tudo isso e deixo a música vir sobre mim. A tristeza daquela mãe, porém, redime-me da melancolia da tarde que agora começa. Vou almoçar como se fosse um dia normal. Hoje é segunda-feira, dia 13 de Abril. Os campos da escola ao lado estão vazios, os cedros continuam a crescer e os pássaros cantam iludidos pelo calendário.

domingo, 12 de abril de 2020

Estranha forma de vida

Ao acordar, naquele momento em que a consciência abandona o estado penumbroso onde se entrega às habituais deambulações, numa negociação difícil entre as pulsões do inconsciente e os imperativos do superego, veio-me à memória um fado cantado por Amália Rodrigues. Estranha Forma de Vida. Pensei, então, que tudo se resumiria a transitar da vida habitual para esta estranha forma de vida, até que se tornasse um hábito e perdesse a estranheza, a inquietante estranheza que é a dela. Depois, tudo isto se apagou. Há pouco sentei-me no chão de uma das varandas e, enquanto lia, apanhava sol. Se a vida decorresse conforme o habitual, a casa transbordaria e aqui encontrar-se-iam quatro gerações, em que a pessoa mais velha tem mais 85 anos do que a mais nova. Nestes momentos, a precisão aritmética torna-se central. No jornal, vejo que morreu Stirling Moss. Não me lembro dele correr, mas quando me deu a febre da Fórmula 1, lá num dos recantos da adolescência, ele era uma lenda ao lado de Juan Manuel Fangio. Num dos capítulos da sua longa diatribe contra os deuses dos romanos, em A Cidade de Deus, Agostinho de Hipona lembra que em Roma se tinha Fórculo como deus das portas, Cardea por deusa dos gonzos e Limentino como deus protector dos umbrais. Contrariamente ao que os historiadores contam, não foi o engenheiro Taylor que descobriu a especialização do trabalho, mas as religiões politeístas que chegaram a um grau tal de precisão que o deus que se ocupa das portas nada sabe da protecção dos gonzos, das fechaduras nem dos umbrais. E tudo isto interessa para quê? Para nada, claro. Hoje é domingo, dia 12 de Abril. Os católicos revivem a ressurreição de Cristo fechados em catacumbas. O sol foi coberto por nuvens e eu, dentro de minutos, tenho uma missão a cumprir.

sábado, 11 de abril de 2020

Realidade metafísica

Hoje, mais uma vez, ao olhar a rua, tive a sensação de que os quadros de Giorgio de Chirico tinham abandonado o mundo imaginário da arte e se tinham tornado realidade. A praceta que se vê de um dos lados da casa estava vazia, o café fechado, o sítio da esplanada sem os chapéus de sol, sem as mesas e as cadeiras que, noutros tempos, abrigavam pessoas, que ali tomavam café, faziam confissões, diziam trivialidades, animavam as manhãs antes que chegasse a hora de almoço. Do outro lado da casa, também a visão tem a mesma natureza da pintura metafísica. O bar da esquina fechado, a esplanada desfeita, os passeios com uma ou outra sombra fugaz, de alguém que é passeado à trela pelo seu cão. As árvores estão exuberantes, resplandecem se o sol toca a folhagem, sombreiam o chão indiferentes à ausência de pessoas. Os espaços públicos são agora puras projecções imaginárias, atravessados, uma vez por outra, por fantasmas arrastados pela sua própria sombra. Que novas geografias se hão-de fabricar. Oiço ao longe o roncar contínuo de uma máquina, mas não a vejo nem consigo perceber que tipo de engenho é. Um ruído contínuo, a música de fundo de um filme distópico. Ao longe, avisto o hospital, com as paredes maculadas pelos fungos e as janelas como seteiras por onde entra o sol e saem, como flechas, os olhares de quem por lá combate. Hoje é sábado, dia 11 de Abril. Oiço os pássaros meus vizinhos e penso que lhes deveria gravar as conversas. Depois, lembro-me que talvez elas estejam abrangidas pela protecção de dados e desisto da ideia. Com tanta proibição, nunca mais hei-de conseguir desvendar a sua linguagem. Rio-me e pergunto-me se já terei dados os primeiros passos em direcção à pátria da loucura. Não consigo ouvir a resposta.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Sexta-Feira de Paixão

Passa do meio-dia e nada me faz lembrar ser hoje feriado. Os dias tornaram-se indistintos. Acumulam-se uns em cima dos outros e ficam por aí a esmo, perdidos, sem cor que os anime, sem nome que os distinga, pois já ninguém acredita que tenham nome. Se lhe chamam sexta-feira é apenas por hábito, não por crença que assim seja. O calendário ainda se há-de tornar uma relíquia. Ganhei novos hábitos. Faço palavras cruzadas, com muita moderação, e vejo, menos moderadamente, cinema. Em cima da secretária tenho o cartão de um restaurante de Santiago de Compostela. É um documento arqueológico, daquele tempo em que as pessoas viajavam, mesmo eu que não sou um especial apreciador da viagem turística. Tenho um número razoável de cartões de restaurantes. Guardo-os, não para os coleccionar, mas porque os uso para marcar livros. Muitas vezes, o livro acabado de ler, os cartões ficam lá. São mensagens para o futuro. Quando morrer – ou talvez antes, quem sabe? – e venderem a minha biblioteca, um comprador de um livro que fora meu há-de descobrir que havia tal restaurante em tal sítio e sinta vontade de perceber quem era o dono do livro, se esse restaurante ainda existe, se valerá a pena. Emociona-me quando descubro, num livro comprado em segunda mão, uma dedicatória ou algum texto perdido. Não sei o que fazer com tudo isto. Olho para as estantes e percebo de imediato que ainda não é a altura em que começarei a pôr ordem nelas. Hoje é sexta-feira, dia 10 de Abril. Não há cerimónias religiosas públicas, pois os templos estão fechados e os dias correm com algum azedume. Consulto as tabelas da epidemia e os augúrios não me parecem favoráveis, mas não percebo nada da arte do vaticínio.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Quinta-Feira de Endoenças

Confirmo na aplicação meteorológica do telemóvel aquilo que os meus olhos vêem. Está a chover. Em caso de conflito entre ambos, a qual deverei dar crédito? Aos meus olhos que com tanta facilidade se iludem ou à fria informação digital? Com pensamentos destes ocupo uma parte do tempo, a outra nem faço ideia o que se passa nela. O melhor é nem pensar nisso. Em tempos chamou-se a este dia Quinta-Feira de Endoenças. Dia dedicado à indulgência que assinalava também a última ceia de Cristo. Tudo isso se esfumou, pois vivemos num mundo – ou vivíamos – em que a indulgência foi substituída pela complacência. Desde que não nos aborreçam somos complacentes com os outros. Eu sempre pratiquei a autocomplacência, suporto-me assim e evito ter de aborrecer-me comigo. Olho para a rua e penso que este não será um ano de seca, mas não é seguro que assim seja. A água evapora-se com muita rapidez e não tardará os campos estarão à mingua dela, ressequidos por um Sol destituído de moderação e boas maneiras. Queria ter pensamentos elevados, mas a lei da gravidade impede-me. Tenho diversas tarefas entre mãos, mas elas deslizam pelos dedos que não consigo manter unidos. Tudo se tornou líquido nestes tempos. Hoje é quinta-feira, dia 9 de Abril. Apesar da chuva, os pássaros cantam e a Primavera desenrola o seu manto de enganos. A paisagem que me servia de horizonte desapareceu engolida pelo indisposição do clima. Não há sombras, mas a sombra cresce sobre o mundo.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Não é uma oportunidade

Enovelo-me em casa, sou um narrador que trocou a leviandade com que o autor o dotou pelo sentimento trágico daquilo que se vive. A tragédia é um artifício de purificação e vive da desventura daqueles que não a merecem, mas vou deixar Aristóteles a dormir o sono eterno e não o convocar para os nossos infortúnios actuais. Uma sirene anuncia que é quase meio-dia e fico na expectativa se ela assinalará esse instante em que o dia se divide exactamente em duas partes iguais, uma vivida e outra por viver. O mundo está cheio de marcas, sinais, indicações para que regulemos o nosso caminho e não nos despenhemos no primeiro precipício que nos apareça. Muitas vezes toda essa parafernália de símbolos é inútil, pois olhamos para eles, mas não os vemos. Como Édipo somos cegos para o que está sob os nossos olhos. Uma amiga minha escreveu que o que se está a passar não é uma oportunidade para nada, é uma tragédia. Há gente que não vê o que está sob os olhos e outra que vê o que não existe. Não haverá sentido mais difícil de afinar do que a visão. Talvez por isso tenho visto, nestes dias, muito cinema. Ontem quase que me comovi, não com a sorte das personagens, mas com a beleza depurada da obra. Não há coisa mais perturbante do que a beleza. De tal maneira que a arte expulsou-a do seu domínio, ou quase. Talvez a verdadeira tragédia resida na beleza, na sua transitoriedade, nesse desejo que sentimos perante ela e que nos leva a querer que seja eterna e ao mesmo tempo saibamos que o tempo a degradará até a dissolver, a transformar em nada. Hoje é quarta-feira, dia 8 de Abril. A sirene não tocou ao meio-dia, mas os pássaros cantaram dolentes e entregaram-se incautos à acrobacia do voo. Pertencem ao mundo do ar e eu ao da terra. Leio que mais de metade da população mundial está fechada em casa. Por uma vez, faço parte da maioria.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Cenários mínimos

Um súbito raio de sol e logo me sentei na varanda para o apanhar, mas as nuvens não estiveram pelos ajustes e cobriram-no, passados instantes, de cinza e chumbo. No meio de tudo isto, não é propriamente a vida que encolhe mas as possibilidades onde a haveríamos de dissipar. Os cenários minguaram de tal modo que se tornaram minimalistas, breves alusões, traços simbólicos a representar qualquer coisa, que começamos já a não saber muito bem o que é. O refluxo doméstico a que se está sujeito é a negação do homem público, mas o que significa isto ainda ninguém sabe e não sou eu que o vou descobrir. Limito-me à minha domesticidade e domestico alguma tentação reflexiva. Bebo água. É um imperativo biológico e uma mudança que se está a dar em mim. A Semana Santa progride, mas também ela ficou presa ao confinamento e já li que até a peregrinação de Maio se realizará em casa, talvez entre o quarto e sala. Um exercício que, nos últimos dias, vou desenvolvendo é uma espécie de história contrafactual, onde imagino o que faria se não estivesse confinado aonde estou. O resultado não é exaltante, as alternativas que se abrem aos homens não são infinitas nem sequer muitas. Depois, lembro-me do dito ao gosto popular contra factos não há argumentos e abandono o meu projecto contrafactual. Hoje é terça-feira, dia 7 de Abril. Não chove nem faz sol, nem as bruxas fazem pão mole. Inspiro longamente e temo pela minha sanidade mental, ou talvez nem isso. Ainda não foi hoje que usei a palavra plumitivo.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Sinestesias e vaticínios

Oiço o deslizar do aço nas roldanas de um estendal de roupa. Ao mesmo tempo, a porta de um carro bate ao fechar-se. Logo de seguida, é a pressa de um outro na avenida que o faz roncar. Agora, há um silêncio tenso, prolonga-se, expande-se, mas um pássaro chama por outro e a tensão dissolve-se, voltam os ruídos do mundo, embora este se tenha tornado uma mera ideia, talvez uma ideia da razão ou o produto do foco imaginário que há em nós. Há que treinar a audição, desligá-la dos outros sentidos, fundamentalmente da visão, o mais despótico dos membros do nosso aparelho sensorial.  Não tenho nada para contar, mas isto nem será uma grande novidade. Volto para a audição e entrego-me a jogos inúteis. Qual o som do vermelho, qual o timbre do azul ao misturar-se com o verde, como soaria o amarelo sob a luz inclemente do sol? Será, pergunto-me, a tentação da sinestesia um sintoma de que estarei a enlouquecer? Chove. Nos sites dados à meteorologia vaticina-se que assim será durante a semana. Esta é uma época favorável aos que se entregam à antecipação do futuro. Consultam gráficos, modelam dados, discorrem sobre linhas e curvas. Cada época tem a sua numerologia e cultiva o seu tarot. Também a estes prognosticadores não poupo a admiração, pois eu nem consigo antecipar o passado ou vaticinar sobre o que aconteceu. Fiquei preso dentro do presente e o presente é, ao mesmo tempo, aquilo que não existe e a única coisa que existe. Deveria evitar o paradoxo, pois não tarda começo a cultivar o oxímoro e a dizer coisas como o ruído silente desta brancura negra que cai sobre a tarde. Hoje é segunda-feira, dia 6 de Abril. As netas deveriam, em tempos normais, estar aqui. Este ano estava programado que iniciariam o neto na caça aos ovos de Páscoa. É o que dá os humanos fazerem programações.

domingo, 5 de abril de 2020

Imitar a realidade

Nunca fui grande adepto de amêndoas da Páscoa, nas suas mais variadas encarnações, mas hoje comi três, daquelas que são envoltas em chocolate e canela. Talvez isso me parecesse um sinal de normalidade, talvez não tivesse mais nada para fazer, talvez não tivesse qualquer razão. Nunca me canso de louvar aqueles que têm sempre claras as suas motivações e distintos os objectivos. Algures, num qualquer apeadeiro da minha existência, entrei em conflito com a clareza e a distinção. Desconfio sempre dos meus motivos e há muito que perdi o norte aos meus objectivos. Talvez os tenha vendido para serem traficados numa qualquer feira da ladra. Tenho pena de quem os tenha comprado. Na televisão vejo que é Domingo de Ramos e que o Papa celebra a missa numa catedral vazia. Não tenho nenhuma interpretação para o acontecimento, apenas uma descrição factual. Hoje o almoçou imitou os almoços dos domingos pré-pandémicos, e nessa imitação vejo já um símbolo e não um mero facto. O que se nos pede é talento para a mimese, o aportuguesamento da palavra causa-me um leve arrepio, um exercício contínuo de ficcionalização. O dia segue o dress code do Inverno. Farda cinzenta e aguaceiros persistentes, para afastar incautos, essa gente que deambula por aí como sonâmbulos em busca de um sonho. Na minha secretária estão duas obras cinematográficas de grande fôlego, O Decálogo, de Krysztof Kieslowski, e Berlin Alexanderplataz, de Rainer Werner Fassbinder. Não consigo decidir-me por qual hei-de começar. Protelo a decisão. Talvez mais logo chegue a um acordo comigo mesmo ou então faço exactamente o contrário do que decidir. Antes de almoço contemplei o friso das orquídeas. Trinta por cento estão renitentes em florir. Nem mesmo no reino vegetal há unanimidade, constato. Hoje é domingo, dia 5 de Abril. O vento estremece as persianas e na rua uma chuva fina e acidulada fustiga a cidade. A palavra plumitivo atravessou-me a consciência, mas não sei o que fazer agora com ela. Talvez amanhã lhe dê algum uso ou não.

sábado, 4 de abril de 2020

Da incerteza

A expectativa de me sentar um pouco ao sol saiu gorada. O céu cobriu-se de cinzento e as nuvens coam a luz, deixando passar uns raios difusos que descem sem ânimo sobre o mundo. O vento faz ramalhar as árvores e a voz de um pai chama continuamente pelo nome do filho. Ocupam toda a praceta aqui em baixo, aproveitando o espaço que, por falta de transeuntes, se tornou excessivo. Em tempos de grande incerteza manifesta-se à luz do dia, amplificada pelo ócio e a tecnologia, uma plebe opinativa cheia de certezas, das mais estapafúrdias e inverosímeis certezas, génios a quem tínhamos recusado a reconhecer-lhe a vesga genialidade que os atormenta. A propensão para a vaidade e o dogma é sempre grande. A colheita de indignados e irados também começa a inchar. A vida foi sempre incerta. Um acidente, uma doença súbita, e a pessoa desaparecia. Agora que todos os dias a contabilidade é actualizada, somos confrontados com a pergunta se acabaremos por entrar no número dos infectados e, estando neste, a que percentagem pertenceremos, à dos que se salvam ou à dos que se perdem. Esta consciência sobrecarregada de que a vida é incerta tem o condão de atormentar aqueles que se esqueceram da realidade e tinham no hábito uma defesa para o medo de uma existência acidental. Um pássaro canta. Não o vejo, mas oiço-lhe o conselho. Não é altura para meditações dessas, trina ele com tonalidade sarcástica. Respondo-lhe que sim, que tem imensa razão, mas nem sempre fazemos aquilo que queremos. Ele olha-me condescendente e cala-se. Ao longe, corvos passeiam-se entre árvores, exibem com orgulho o brilho da plumagem negra. Chamo-os, mas não me ouvem. Observo os telhados e vejo alguns anjos. Conversam, riem-se. Uns fumam, outros bebem. Talvez contem histórias indecentes sobre os homens. Talvez tracem planos para o resto da tarde ou para a noite. Hoje é sábado, dia 4 de Abril. Os dias encadeiam-se uns nos outros com morosidade, como se nos dissessem há que beber o cálice até ao fim. Bebamos, então.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A pequenez da realidade

De todos os dias da semana o que mais sofre da presente indiferenciação será a sexta-feira. Funcionava, antes da instalação da era viral, como um marco que anunciava uma transmutação no tempo, o fim dos dias profanos, onde os homens se entregavam aos negócios que os imperativos da necessidade e do desejo impunham, e a chegada do tempo sagrado do ócio ou de qualquer festividade, nem que seja a festa de estar só, que havia de lhes dar ânimo para que, chegada a segunda-feira, aceitassem que a míngua lhes reimpusesse a canga e eles se entregassem ao ajoujamento que lhes mataria a fome. Olho para a frase e descubro-a enorme, mas também eu estou indiferente à elegância da escrita, à extensão das frases, ao acerto na escolha dos vocábulos, ao alinhamento das sílabas. De manhã, sentei-me no chão de uma das varandas e fiquei ali a apanhar sol. Consta que faz falta ao organismo. Nunca me imaginei numa varanda em tal função. Arrependo-me de não ter comigo nenhum dos meus panamás, haveria agora de me dar jeito. Um dia destes assim sou visto sentado à varanda com um chapéu feito de folha de jornal, se por acaso ainda houver por casa algum. Oiço ao longe o barulho de uma rebarbadora. Imagino-lhe o disco a girar a alta velocidade, a entrar no ferro, ferindo-o, primeiro, ao de leve, para depois o decepar, ouvindo-se o tilintar metálico da parte cortada a saltitar no chão, antes de se aquietar e imóvel entrar no meu esquecimento. Os dias continuam a crescer, indiferentes à sorte dos homens. Alguém manda-me uma mensagem com uma fotografia e pergunta se sou eu. Não sou, o que me deixa mais tranquilo. Bebo água, espreito um vídeo em que o meu neto faz umas experiências sobre o funcionamento do mundo e espero. Hoje é sexta-feira, dia 3 de Abril. Uma nuvem tapou o sol e lembro-me de que este ano a família não se reunirá no almoço de Domingo de Páscoa. As coisas são o que são. Nada melhor que uma tautologia para engrandecer a pequenez da realidade.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Um mundo possível

Os dias correm lassos, tomados pela acédia, esse pecado capital que abatia o ânimo dos ascetas e os desviava dos cuidados que a alma e o corpo exigiam. Depois, foram-lhe dando outros nomes como preguiça ou indolência, mas em nenhuma dessas variantes se compreende a angústia e o estado de torpor que sentiam aqueles que sofriam de acédia. Era uma doença, apesar de considerada pecado, que atingia os que se sujeitavam, por motivos do espírito, à vida solitária. Se se continuar assim, muitos serão contaminados por esse estupor. O dia acordou alegre, com um sol primaveril a animar a manhã, mas o céu vai-se enchendo de nuvens e talvez a alegria seja curta. Consulto um site que vive do estado dos meteoros e sou informado que a partir de sábado volta a chuva. Ficará, diz a profecia, quase uma semana. Domingo de Páscoa fará sol. Ou não. Podia aproveitar para arrumar livros, CD, DVD ou mesmo a mim. A desordem ainda não é um caos e, quanto a mim, já é tarde para arrumações e encontrar uma ordem que vença o caos. Se tivesse estudado Física, agora poderia construir umas belas metáforas com a entropia e haveria de parecer pessoa sapiente. Um carro passa numa das ruas laterais. É um acontecimento, como aqueles que se davam quando, num passado tão remoto que nem eu me lembro, um automóvel surgia numa aldeia, para lhe quebrar o silêncio e abrir as bocas de espanto, enquanto as mãos faziam o sinal da cruz e os mais rápidos se persignavam, não fora aquilo uma emanação dos poderes ínferos. Intuo que os assunto começam a faltar-me à força de tanta contenção, uma bela desculpa para quem tem imaginação fraca. Hoje é quinta-feira, dia 2 de Abril. O pequeno bosque da escola aqui ao lado lança sobre o chão sombras breves e na praceta não se vê vivalma. Talvez de todos os mundos possíveis, o da humanidade recolhida não seja dos piores, ocorre-me.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Um dia sem tino

Abril nasceu com ar de desterrado, alguém a quem tenham imposto a pena de um longo exílio, dez anos de ostracismo. Envolto em chuva fria, começa a viagem desapegado das dores dos homens. Não sei se para compensar o olímpico desdém do recém-nascido, oiço as Canções do Pôr-do-Sol, de Frederick Delius. Hoje não há sol para se pôr e o anacronismo da música deu-me um súbito contentamento. Talvez tudo se resuma a um desarranjo cronológico, a uma crise gerada pela mudança da hora ou pela inconstância do calendário. Passo a mão pelos cabelos, olho para a rua, respiro lentamente e deixo que a voz do barítono ecoe, até que a contralto a interrompe. Também para mim deveriam contar os óstracos para me banirem desta república. Não que seja cidadão influente, mas porque há que limpar a cidade de indigentes e eu já não consigo disfarçar a minha aptidão para a inópia. Usei este termo que ninguém usa apenas para não usar indigência, que ficava mal naquele lugar e há que ter cuidado com o que fica mal, nesta hora em que ninguém nos vê. Consolou-me hoje a palavra de um filósofo ao dizer que as pessoas habituadas a seguir as reformas linguísticas são mais fáceis de manipular. Sinto-me assim protegido contra todas as manipulações, pois sou um fervoroso defensor da contra-reforma linguística, ortográfica, gramatical e o mais que quiserem. Sou um velho reaccionário linguístico e por mim poderiam restaurar a ortografia do tempo da monarquia. Como se vê, o isolamento social não é o mais indicado para cultivar a sensatez dos indivíduos, ainda por cima num dia sem tino como este. Hoje é quarta-feira, dia 1 de Abril. Parece confirmar-se o adágio popular de que teremos águas mil. A sabedoria comum fascina-me e tomo-a sempre por verdadeira, mesmo que o mês seja de seca extrema. Há que preservar as tradições.