terça-feira, 25 de agosto de 2020

Redução vocabular


São poucos os dias que Agosto ainda tem, antes que a sua folha morta caia da árvore do calendário. Por vezes, a retórica que uso dá-me vómitos. Dedilho-os, aos dias, como se não soubera contar e franzo o sobrolho. Por vezes, escrevo de noite recados para que faça alguma coisa quando a próxima manhã chegar, com a luz que for a dela. Raramente, olho para eles. Chega-me um vídeo do meu neto. Há duas palavras que ele domina na perfeição. Não e pára. Parecem-me óptimas e as mais adequadas ao tempo que vivemos. Também, caso pudesse ou tivesse coragem para tanto, resumiria o meu vocabulário ao advérbio não e ao verbo parar. A primeira utilidade seria a que deixaria de escrever estes textos, as outras, e não seriam poucas, revelar-se-iam com o tempo. Há uns anos, um amigo contou-me que uma pessoa da sua família foi encurtando, pouco-a-pouco, o vocabulário que usava, até que chegou o momento em que se recusou a pronunciar qualquer palavra. Ouvia os clientes do seu estabelecimento, mas nunca usava a voz para lhes dizer fosse o que fosse. Gestos de mãos, expressões de rosto, meneios corporais. Os clientes habituaram-se, não o abandonaram, e talvez um ou outro lhe tenha seguido o exemplo. Como dizia esse meu amigo, os bons exemplos devem frutificar. Por agora, seria menos radical, usaria ainda o advérbio não e o verbo parar. Voltar-me-ia para este Agosto prestes a render-se a Setembro e dir-lhe-ia: Não. Pára! Ele responder-me-ia na mesma moeda: Não paro. É o que faz a falta de assunto numa tarde de Agosto.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um sonho cinematográfico

Em 1955, o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson visitou Portugal e fez um conjunto de fotografias que tem tido ao longo dos anos uma enorme fortuna. Hoje deparei-me com uma delas, extraordinária como as demais. Nos Jerónimos, junto a uma coluna, um confessionário minimalista, apenas um tabique de madeira, certamente com uma abertura velada por um gradeado que permitia falar e escutar e, ao mesmo tempo, manter secreta, ou quase, a identidade das confessadas. Sob essa abertura havia de ambos os lados apoios para os braços. Sentado de pernas abertas, o sacerdote, de cabelos brancos e trajado com a respectiva batina, escutava a longa confidência de uma mulher ajoelhada, vestida de preto até aos pés, véu negro sobre a cabeça. Olho a fotografia demoradamente e imagino o que poderia fazer a partir dela caso fosse realizador de cinema. Filmaria a mulher a levantar-se do confessionário, haveria por certo um zoom que permitisse apreender a elegância dela e acabasse por se centrar na beleza do rosto, acompanhá-la-ia no trajecto em direcção a um altar para cumprir a penitência, enquanto mostrava, em fundo, o sacerdote a erguer-se da cadeira e espreitar a mulher, tomado por uma curiosidade invencível. Nesse momento, ela voltava-se sorridente para ele que, ao sentir os olhos dela nos dele, estremecia e deixava aflorar um esgar de terror no rosto. A mulher que confessara, descobria então, era a sua própria morte. Portugal, naqueles tempos, era um país escuro, muito escuro, pensei, enquanto ouvia o correr da água que alguém num andar próximo deixava cair sobre umas plantas exaustas pelo calor. Uma sirene lembrou-me que deveria ir almoçar, pois o cinema não é coisa que me diga respeito.

domingo, 23 de agosto de 2020

Uma aventura ao domingo de manhã

Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio, sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas, que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia. Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar. Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos alunos.

sábado, 22 de agosto de 2020

Inimigos de sábado

Quando acordei, eram oito horas, nem queria crer que hoje é sábado. Uma fúria sonora entrava-me pelo quarto, vinda da praceta em baixo. A empresa responsável pelos espaços públicos acha que o dia adequado para cortar relva é o sábado. Talvez as lâminas deslizem melhor, as folhas estejam mais aptas para o corte ou, uma hipótese, considere imoral as pessoas, no início do fim-de-semana, prolongarem o sono pela manhã. Não é que me levante mais tarde, mas acordar ao som da metralha dos corta-relvas não faz parte do melhor dos mundos possíveis. Levantado, comecei a barricar-me dentro de casa, fechando todas as janelas por onde outro inimigo, o sol, possa entrar. O combate com o astro, pensei enquanto descia as persianas, ainda não saiu da idade média. Há que construir muralhas e evitar que o inimigo possa passar por elas. Entretanto, o afã ruidoso suspendeu o massacre dos inocentes moradores, mas a manhã apresta-se para pôr fim à sua curta existência. Oiço vozes na rua, talvez pessoas na esplanada, enquanto me envolvo no manto sombrio da escuridão. Não tarda terei de ir à rua. Reparo que o word me assinala uma incorrecção gramatical, mas o domínio da gramática é uma competência que o word ainda está longe de ter adquirido com sucesso. Talvez um efeito da pandemia. Necessitará de aulas de recuperação, suponho.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

De volta ao habitat natural

Retornei ao meu habitat natural. A cidade parece estar exactamente como a deixei. O calor, de momento, não será tão avassalador, os carros deslizam na Sá Carneiro como antes da pandemia e, nos passeios, os transeuntes, com ou sem máscara, procuram as sombras que as copas das árvores projectam no chão. Há em tudo isto uma reminiscência mourisca, pensei, uma espécie de pertença climática àquele mundo que se inicia no norte de África. O computador informa-me que o adobe acrobat reader foi actualizado com êxito, eu fico agradecido pela melhoria do programa, mas não consigo evitar um ataque surdo de inveja. Também eu poderia ser actualizado com êxito, mas não. Cada actualização que sofro é para pior e quanto mais êxito elas têm pior fico. O hardware está caduco, um modelo descontinuado há muito, sopra-me alguém que vive dentro de mim e que tem por hábito dar opiniões que ninguém lhe pediu. Hoje não fui à esplanada perto do mar ler o jornal, a mulher que em silêncio olhava o horizonte desapareceu para sempre, resta-me pôr a vida nos carris onde estava antes de ter saído daqui. Leio que se está perante uma aceleração do tempo histórico. Talvez esteja já em excesso de velocidade e seria justo que a História fosse multada, por não respeitar as regras de trânsito. As cevadilhas da escola ao lado continuam a florir, as acácias da praceta estão pujantes, vestidas de verde escuro, e o parque infantil permanece interdito às crianças. Tudo isto enquanto a história acelera e o meu hardware obsoleto é incapaz de receber um programa que o actualize e rejuvenesça. Hoje ainda não avistei nenhum dos anjos que moram nos telhados da rua onde entardeço.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma velha pendência

Olho para as previsões meteorológicas e calculo perdas e ganhos, projecto cenários de dor e prazer, arquitecto estratégias de defesa, pois as de ataque não estão disponíveis no mercado da meteorologia. O clima tornou-se uma guerra, pensei, uma guerra em que apenas podemos implorar por abrigo. Hoje tem chovido e parece que vai continuar durante todo o dia. Isso contenta-me, sinal de que já me satisfaço com pouco. Recebi há pouco um email de Lodovico Settembrini, o padre Lodo, como todos os amigos o tratam. Disse-me estar preocupado com uma coisa que escrevi aqui sobre o príncipe Saurau. Fê-lo lembrar o Leo Naphta, e Deus me perdoe – escreveu o padre – apesar de ter, como ele, dado em jesuíta, não suporto a personagem e as suas malditas ideias, sopradas pelo demónio. Eu que me cuide, escreve, pois há muito que desconfia existir em mim uma certa inclinação para o cepticismo. É preciso ter fé, continuou, seja no for, nem precisa de ser em Deus. Eu rio-me da velha pendência dos dois padres e penso que talvez não devesse escrever isto, mas nem sempre consigo resistir às tentações. Talvez seja do meu cepticismo ou da minha falta de fé, seja no que for. Oiço os pássaros e o seu canto mistura-se com o rumor do trânsito. A vida é um exercício de paciência, penso.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Triste sorte ser cliente

Sejam públicos ou privados, os serviços neste país conspiram contra a sanidade mental dos clientes, como se ser cliente fosse um acto execrável, uma maldade que apenas merece, como resposta, um tratamento ineficiente e, se for possível, punitivo. Foi isto o que me ocorreu depois de passar parte da manhã a tentar resolver assuntos através daquelas linhas de apoio ao cliente, um eufemismo para esconder uma má vontade acintosa e contumaz. Lembrei-me, então, de uma impressão antiga, quando ainda não havia as grandes superfícies, e era local o comércio que animava as terras. Havia comerciantes que pareciam fazer um favor muito especial em atender os clientes, vender-lhes aquilo que eles precisavam, como se a sua vida estivesse acima daquele acto miserável de trocar mercadoria por dinheiro. As razões que movem as pessoas são sempre secretas e, o mais das vezes, um enigma para os próprios. Agora que consegui resolver tudo, já não tenho como recuperar a manhã perdida, e isto é o que há de mais cruel na vida. Nada nela é recuperável. As boas horas pela sua bondade, as más para sua correcção, tudo isso deveria poder ser recuperado. Eu sei que estou a mentir. A vida seria muito pior, se se pudesse recuperar o tempo que se perdeu. Os homens estariam sempre a retroceder à infância e à adolescência para tentar consertar o que nelas sempre se desarranja, e isso seria o pior que poderia acontecer à espécie. O calor não me faz muito bem e conduz-me sempre por caminhos meditativos que não levam a lado nenhum. Sempre preferi ao jardim dos caminhos que se bifurcam, les chemins qui ne mènent nulle part. Desta preferência, porém, não há qualquer ilação a extrair, note-se. O melhor mesmo teria sido ter-me dedicado ao comércio e transformar-me num daqueles respeitabilíssimos comerciantes de vila de província que faziam o especial favor de atender os seus patéticos clientes. O problema é que nunca descobri o ramo que mais se coadunava com os meus talentos. Não por falta de ramos, claro.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O terrível que há no belo

Os loendros, com as suas flores rosas e brancas, estão exuberantes. Quem se deixar prender apenas pela extrema beleza que estes arbustos exibem não faz ideia de quão mortais podem ser. Talvez seja isso o que há de mais enigmático no que é belo, a sua capacidade homicida. Terá sido por isso que, na primeira elegia de Duíno, Rilke usou o adjectivo terrível para qualificar os anjos. Não todos, por certo, pois aqueles que vivem na minha rua sendo belos não o são em excesso. As pessoas pensam que são pombos, mas aqueles pombos não voam nem poisam nos telhados como pombos, mas como anjos. E se um pombo voa como um anjo, poisa como um anjo, canta como um anjo, só pode ser um anjo. Talvez estes anjos sejam também terrivelmente belos, mas disfarçam-se para esconderem essa beleza e poderem assim ser suportados pelos mortais. Hoje vi de novo a mulher que olha o horizonte. Lá estava ela na esplanada, fechada na sua dor de olhar horizontes, a beber o café, a pôr a máscara, a sair e a caminhar em direcção ao horizonte. Nas mesas ao lado, alguns casais deixavam cair para o chão a tristeza que havia dentro de cada uma daquelas mulheres. Eles liam o jornal, olhavam para o telemóvel, elas desfaziam-se num óleo desconsolado e viscoso, que alastrava como um pântano por um chão manchado de desespero e silêncio. Muitos casamentos são uma radiosa lástima, pensei.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Atravessar o horrível

As férias não deixam de ser um tempo de encontros inusitados. Passeava eu, como um animal perdido, fora do meu habitat natural, quando oiço uma voz a chamar-me e a perguntar-me se não me lembrava dela. Claro que lembro, como poderia esquecer, retorqui. Não nos vemos desde quando, perguntou. Não sei, há mais de trinta e cinco anos, por certo. Perguntei-lhe o que lhe acontecera. Quando acabámos a faculdade, saí para o estrangeiro e instalei-me por lá. Um exílio, disse eu. Não propriamente. Tornei-me pintora e esqueci o que aprendera naqueles anos, disse e riu-se. Confessei que não sabia. Contou-me o acidente, como lhe chama, disse-me as colecções onde estava representada, mostrou-me fotos de quadros seus. Como sabes, disse-me, a beleza e a harmonia pouco interesse têm. Ou talvez não seja assim, disse. A arte, o artista tem de rasgar o véu ilusório que os olhos apreendem como beleza e mergulhar no horrível. O horrível é uma camada da realidade muito densa e funda, diz-me ela enquanto acende um cigarro, mas não posso evitá-la. Não pinto para decorar salas, pinto à procura da verdade, os olhos brilham-lhe. Não digo que os meus quadros sejam a verdade, são apenas ensaios em busca da verdade. É preciso descer mais fundo, atravessar a camada horrível e tentar chegar ao outro lado. E o que esperas encontrar, perguntei. Não sei, sou apenas pintora, a filosofia não me interessa. Talvez encontre a beleza, a verdadeira beleza, mas não sei sequer se existe uma beleza verdadeira e outra falsa, talvez só exista o que está aquém do horrível. Fiquei a pensar no tempo em que nos demos e naquilo que o tempo lhe tinha feito, mas não tocámos nessas memórias. Falámos de famílias, de exposições, comparámos países e oportunidades e combinámos um novo encontro, que ambos sabemos que nunca irá acontecer. Agosto começa a escorregar pela folha do calendário. Vejo nuvens no céu e dois cães ladram quando passo por eles, como se eu fosse o horrível que eles têm de atravessar.

domingo, 16 de agosto de 2020

Um sapo perturbado

É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril. Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental, personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos, famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos. Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador, com os seus amigos mais próximos.

sábado, 15 de agosto de 2020

Campeões em tudo

Desde que amistosos e laudatórios, escritos sobre o passado têm a fortuna assegurada, dizia-me ontem um amigo que se exilou do mundo num lugar recôndito deste país. Ninguém gosta de ver as pústulas do que passou nem olhar para as horas em que as chagas lhe arderam. Celebram o carrossel onde andaram, mas esquecem as patifarias que aí mesmo foram alvo. O Álvaro de Campos é que os conhecia de ginjeira, acrescentou, enquanto soprava o fumo de mais uma cigarrilha. Depois soletrou não sem ironia: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Somos todos campeões de tudo, acrescentou, mas eu exilei-me derrotado e cansado. Não tenho paciência para toda esta gente e cultivo um afastamento profiláctico da humanidade, muito antes de haver pandemia, pois a nossa sociedade já sofria uma pandemia muito mais generalizada e, na verdade, muito mais grave. A estupidez estrutural, continuou o meu amigo, está enraizado e vamo-nos todos enterrar num lodaçal de idiotice, só porque se acha graça a coisas estúpidas. O que vale, continuou, é que a amanhã é feriado, mas ninguém faz ideia por que razão. Lamentarão que tenha calhado num fim-de-semana e é tudo. Isto foi ontem, quando o visitei. Hoje, porém, é sábado e feriado, e nas ruas não deixo de avistar todos os grandes campeões da vida que nos hão-de precipitar na pior das derrotas, pensei, mas logo me distraí ao avistar a mulher que, na esplanada, olha o horizonte. Há nela uma derrota inscrita na solidão, como se ela, tão dotada para todas as vitórias, tomasse a decisão de se entregar à mais vil das derrotas e, como recurso para se manter viva, usasse a linha do horizonte para repousar os seus olhos e o mistério que se esconde dentro deles. Hoje celebra-se a assunção da Virgem ou, noutras paragens, a sua dormição, mas isso é um assunto que já não dirá respeito a ninguém.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Sobre hibiscos

Também eu terei de me render à ideia de que os sonhos são uma fonte de revelação. Ando há meses para ver se me recordo do nome de um certo tipo de arbustos de jardim. Esta noite, ao contrário do que é hábito, um sonho conseguiu romper o denso véu que me separa o inconsciente do consciente, e fui lembrado de que esse arbusto se chama hibisco, um dos mais comuns. O que me perturba, todavia, é outra coisa. Após a revelação do nome, seguiu-se entre duas partes que presumo serem eu uma discussão ortográfica sobre se hibisco se escreve com um h inicial ou um i. Não sei qual das partes saiu vencedora da contenda, mas que uma delas tenha pensado que hibisco se inicia com um i, isso deixa-me desgostoso com a existência, em mim, de um poço obscuro que me dispõe ao erro. Enquanto contemplo os hibiscos floridos, penso que não é normal alguém sonhar com discussões ortográficas, encenar uma disputa como se escreve uma palavra, cuja grafia, em estado de vigília, nunca ofereceu dúvidas. Fora eu dado à psicanálise e teria, em torno dos hibiscos, do esquecimento do nome e da disputa ortográfica, matéria para muitas sessões. Não o sendo, só espero que o corrector ortográfico, no dia em que escrever ibiscos, me faça o favor de corrigir para hibiscos. O mais estranho de tudo isto é que a jardinagem nunca gerou em mim um grama de curiosidade. As sextas-feiras de Agosto não me parecem propícias para encontrar assunto que interesse a quem quer que seja.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Um calor de ananases

Oiço uma milonga e a tarde abre-se como um enorme poço de nostalgia. Os portugueses, pensei, têm uma grande fixação pela música brasileira, mas há uma profundidade de sentimento naquela que nasce na Argentina que me parece inultrapassável. Talvez o fado se lhe equipare, mas não estou certo disso. Lembrei-me disto porque ontem estiveram cá uns amigos da geração intermédia. Um deles tocava violão, mas apesar de argentino apenas se interessava pela Bossa Nova, a qual estudava com um afinco profissional. Ao longe, uma outra música se intromete na Milonga del Solitario, a célebre Mrs. Robinson, de Simon & Garfunkel. Será outra nostalgia, pensei. Uma notícia informa-me que a bandeira vermelha para indicar praia cheia já foi hasteada quase 2 500 vezes. A minha consciência sorriu plena de orgulho. Em nenhuma dessas vezes a lotação esgotada se deveu à minha presença. Gosto de tal maneira da areia da praia que evito pisá-la. Nunca se deve pôr os pés em cima daquilo que amamos. Estas graçolas secas dão a medida do meu talento. Agosto caminha para a meia idade, não tarda estará velho. Depois, virá o mês em que a realidade reclama a pesada corveia, cheia de projectos, objectivos, cheia de humanidade e um rosário de abjecções e coisas sem sentido. Estará um tempo de escachar, de rachar, de derreter os untos, de ananases. De todas estas expressões ao gosto popular, em uso no tempo do Eça, a que mais me agrada é a de ananases. Um calor de ananases. Um dia ainda vou investigar a origem da expressão, mas é possível que já não exista ninguém que tenha assistido ao seu nascimento. A milonga acabou há muito, agora oiço uma zamba, Luna Tucumana, e uma melancolia suave escorre sobre o dia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Descrições

O sol brilha estrangulado por um cordão de nuvens, deixando cair fiapos de calor sobre o lençol encardido do mundo, depois o cordão adensa-se, o sol sem ar para respirar esconde-se e um vento suave toca a ramagem dos arbustos. Nos vasos, aspidistras, buganvílias e costelas-de-adão reclamam água, enquanto se ouve o troar gorgolejante e contínuo dos corta-relvas. Nas ruas, transeuntes descuidados passam vagarosos e os poucos carros seguem em velocidade moderada, como se toda a azáfama tivesse sido suspensa pela sombra que Agosto projecta no calendário. Podia ficar horas e horas a descrever o mundo, mas depois recordei-me que, durante a noite, acordei e, insone, retomei a leitura de um romance de Thomas Bernhard. Há nele uma enorme capacidade para descrever o mundo humano, um mundo perturbante que se esconde na Estíria, gente de uma humanidade rude, violenta, imoral. O leitor do sul da Europa, habituado ao destrato que o Norte tem por hábito fazer dele, descobre-se, não sem espanto, como superiormente civilizado. Não é impunemente que se é herdeiro dos romanos – pensa-se, então – e que se vive em terras onde as vides crescem para transbordar em vinhos quentes, complexos, vinhos que mobilizam exércitos de metáforas e sinestesias para serem descritos, ou, melhor, para que deles nos possamos aproximar através da linguagem, depois da visão, do odor e do sabor se terem confrontados com sensações para as quais a língua ainda não encontrou o som exacto. Houve uma altura que Bernhard proibiu a publicação dos seus livros na Áustria natal, tão insuportáveis lhe pareciam os austríacos. Os pinheiros que avisto daqui, pinheiros mansos, abobadados, mostram as folhas novas num tom verde tocado ao de leve pelo amarelo, enquanto na ramagem mais velha o verde das agulhas é inundado pela cinza, que as escurece, como se prenunciasse o luto pela sua futura transformação em caruma, hoje em dia inútil. No livro de Bernhard, o príncipe de Sarau enche páginas e páginas com a descrição da primeira entrevista que faz aos candidatos para um cargo relevante na sua imensa propriedade, um homem sem capacidade para o trabalho, um homem enfermiço e que nada sabe dos assuntos que teria de tratar. A escrita é de tal maneira envolvente que me prolongou a insónia por mais tempo que devia. Eolo recolheu, com o seu sopro, o cordão de nuvens e o sol brilha sobre o arvoredo. Um pássaro poisa no ramo de um cedro e deixa-se baloiçar, e tudo é tomado pelo silêncio, como se o mundo tivesse emudecido, ou talvez seja eu que esteja a ficar surdo.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

O peso da verdade

Poderia contar uma história de ninfas a saírem das águas do rio, mas a verdade da narrativa teria tal peso que se tornaria insuportável. Se alguém avistar, como eu avistei, ninfas nas águas de qualquer rio, o melhor é omitir a história, pois não devemos sobrecarregar o mundo dos outros com o peso da verdade. Recolho-me à sombra e protejo-me do sol de Agosto. O ramalhar das árvores e dos arbustos indica a presença do zéfiro e que o dia, aqui neste lugar onde me escondo da realidade, terá um calor moderado.  Ontem nadei, coisa que não fazia há muito. Não se pode dizer que o resultado seja animador. Os corpos sintonizam-se para certas actividades e quando os surpreendemos com outras não programadas, eles nunca deixam de protestar. Há mais de uma semana que oiço, embora sem escutar, as obras para piano de Grieg. É um ouvir despreocupado, uma presença longínqua que me abre para o silêncio, a confissão de que por estes dias cultivo a mais funda despreocupação. Nos arbustos, os nomes escapam-me, fulguram flores a cujas cores também não sei que nome lhes dar. Talvez nada disso exista, pelo menos para mim, pois só existe aquilo que sabemos nomear. No dia em que me esquecer do nome, também eu deixarei de existir.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A tortura como prazer

Ao acordar pensei que os dias de férias são uma ilusão, que passa rapidamente. Depois, pensei que talvez sejam a antevisão do paraíso celeste. As pessoas, mesmo as que foram educadas no mais estrito catolicismo, esquecem que, na tradição judaico-cristã, o trabalho foi dado aos homens como punição e não como uma bênção. Se se quer uma prova de que vivemos num mundo pós-cristão, basta olhar para o culto do trabalho e da produtividade que há por todo o lado, basta ter em conta que a punição é agora vista até como um prazer. Isto disse ontem, ao jantar, o padre Lodo. Estando ele tão perto, não podia deixar de vir jantar cá a casa. As suas palavras, porém, indignaram a geração intermédia da família, toda ela crente na máxima que o trabalho é o destino dos homens. Foi uma indignação silenciosa, pois por deferência remeteram-se ao silêncio, mas eu bem os conheço. O padre, talvez fingindo que não percebia, continuou, com o seu espírito verrumante, e disse que mais valia um santo ócio do que ser-se masoquista e fazer da tortura um prazer. Depois riu-se e pediu para não o levarem a sério, pois não era pessoa de fiar, ele que foi inimigo da Igreja e depois dera em Jesuíta, ainda por cima. O ainda por cima ficou em suspenso. Foi esta conversa que se prolongou noite dentro que me assaltou ao acordar. Agora, porém, preciso de sintonizar o espírito com a realidade, pois não tarda vêm aqui fazer umas pequenas obras e, como se sabe, qualquer pequena obra é um grande incómodo.

domingo, 9 de agosto de 2020

O trabalho do fogo

Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o sítio onde estou.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sem alma comercial

Raramente, ao acordar, tenho consciência de ter sonhado, mas não foi o que aconteceu esta manhã. Era um imbróglio qualquer em torno de um negócio que já não sei precisar. Qualquer coisa que me resultava numa situação muito desconfortável. Eu que não possuo uma alma comercial acordei em sobressalto e lembro-me que fui sossegando dizendo-me, no silêncio do quarto, que era apenas um sonho, nada mais que um sonho e que, se fosse na vida real, jamais me meteria num negócio, quanto mais num imbróglio aflitivo. Depois, abri a janela, a luz entrou, e o sonho começou a apagar-se, restando aquilo que acabei de contar. Entreguei-me à vida de um sábado de Agosto, mas um certo desconcerto não me tem abandonado. Será que a minha alma de narrador é apenas uma alma comercial travestida e frustrada? O mundo está cheio de equívocos e alguns dever-me-iam calhar, pensei. Será que também a mim se aplicam aqueles versos, Esperanças mal tomadas / Agora vos deixarei / Tão mal como vos tomei, com que Sá de Miranda inicia um vilancete? Depois, alvitrei que fora do reboliço académico já ninguém deve ler Sá de Miranda, mas posso estar enganado. Passa por mim um grupo de rapazolas e um diz, entre palavras que me abstenho de reproduzir, que falhou o golo com a baliza aberta. Ele não sabe ainda que a vida não é outra coisa senão uma sucessão de golos falhados com a baliza aberta, mesmo quando a bola entra. Entre ou não entre a bola, o resultado será sempre o mesmo. Talvez seja por sofrer de pensamentos como estes que eu não tenho uma alma comercial.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A geografia do silêncio

O silêncio tem uma geografia imprecisa, o que torna inúteis os mapas que dele se fazem. É um território mutável, umas vezes cresce rapidamente, conquista espaço ao império do ruído. Outras, porém, vê-se drasticamente diminuído pela invasão de gente inoportuna, que faz da emissão de sons pela boca a razão de uma existência. Fora eu dado a pedagogo, haveria de criar uma teoria em que o silêncio seria a primeira coisa a ensinar às crianças. Idiossincrasias de velho, dirão as pessoas sensatas. Eu concordarei com elas. Recordo que, em certa altura da vida, procurava sítios em que não se ouviam ruídos nem havia, durante a noite, qualquer luz artificial. Então, ficava a olhar o céu, as estrelas nos seus arranjos ilusórios, a que chamamos constelações, a via láctea como um grande poço polvilhado de pontos brancos, luminosos. Escutava o silêncio, e conforme ele ia crescendo para dentro de mim, uma música estranha aos ouvidos citadinos compunha-se no rumor da terra, no murmúrio do vento, no mistério do éter onde tudo parecia mergulhado. Se se ensinasse o silêncio, talvez as pessoas aprendessem a escutar e a usar a voz apenas para dizer alguma coisa. Hoje tornei a ver a mulher que olha o horizonte. Toda ela é silêncio e nesse silêncio há um convite. A grande vantagem de se ter passado do politeísmo clássico para o monoteísmo é que se trocou a algazarra dos deuses greco-latinos pelo silêncio do Deus judaico-cristão. A mulher levantou-se, saiu da esplanada e, chegada à rua, acendeu um cigarro. Afasta-se lentamente e eu sigo-a com os olhos perdido no silêncio que há nela.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Um passeio pelo molhe

Quando se põe o pé no cimento que cobre o chão do molhe, são mais seiscentos metros até alcançar o farol. Se está uma névoa ligeira, como tantas vezes acontece, esse pequeno passeio proporciona algumas sensações que não são de desprezar. A cidade à direita esbate-se, como se fosse um desenho a carvão, desmaiado pelo tempo, adquirindo uma beleza que uma luz límpida lhe recusa. O mar troca a tonalidade esmeralda e azul por um cinzento cheio de enigmas, ameaças e promessas, enquanto se ouve o seu restolhar nas rochas. Os outros molhes fazem lembrar ruínas deixadas por civilizações desconhecidas. Os barcos ancorados são fantasmas que baloiçam embalados pelo vento, enquanto os veleiros e os barcos de recreio se aproximam ou afastam do porto, conforme o destino de cada um. É preciso caminhar de olhos bem abertos para não tropeçar. Quando se chega ao farol pode-se ficar a contemplar o oceano, a meditar no seu enigma, ou então virar costas ao sonho e apressar-se, empurrado pelo vento norte, em direcção a terra. Chegados aqui o sortilégio desfaz-se. Há um porto, com barcos em reparação, o areal das praias que se vão sucedendo, até se perderem de vista, o voo das gaivotas que negoceiam com o vento a poupança da energia, planando sobre a terra. Enquanto caminhava, ainda antes de chegar ao molhe, o sol matinal foi cedendo lugar à névoa, e eu pensei que o verdadeiro romantismo só pode existir em paisagens assim, paisagens das terras frias do Norte. Se importado pelo povos meridionais nunca deixa de ser insípido e, na verdade, vazio. A luz nunca foi a melhor companhia para os enigmas do sentimento.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Pão e vinho

À minha frente, havia um caminho estreito de terra batida, ladeado por arbustos espontâneos, raquíticos, carcomidos pelo vento norte. Algumas rochas erguiam-se como marcos miliários. Por ali, circulavam aqueles que, afastando-se um pouco da cidade, imaginavam estar no campo, para lhe sorver o ar, encher os pulmões de ruralidade. Um homem ia apressado, arrastando ligeiramente uma perna, um casal caminhava com demora, ele fazia comentários sobre a paisagem, ela ouvia com atenção e sorria, evitava as palavras, não se queria comprometer. Dois corvos desenharam um semicírculo no céu e desapareceram atrás de uns cedros altos. Isto foi antes de ir ao supermercado, ter de esperar a vez para entrar e, depois, ver-me rodeado de gente inóspita apenas porque precisava de pão e vinho, para com eles compor um poema, ou esboçar uma pequena narrativa onde as duas espécies litúrgicas entrariam para produzir o ambiente e dar-lhe profundidade. Quando acabei as compras e saí, havia sol. Procurei uma esplanada onde pudesse beber café rodeado de silêncio e esquecer-me do poema ou do conto que me levaram às compras. Agosto nunca deixa de ser um mês estranho, cheio de rituais fundados numa mitologia precária, movida pelo desejo, por sonhos eróticos, histórias onde se cruza a inverosimilhança e a necessidade de mostrar aos outros que se existe e se tem uma vida plena, como se a plenitude fosse prerrogativa de mortais. Não é.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A linha do horizonte

Uma mulher pousou o cotovelo na mesa da esplanada, depois apoiou o queixo na palma da mão. Fiquei à espera que, num súbito movimento de contorcionista, um pé, levantando-se, acabasse por aterrar-lhe na cabeça. Tenho demasiadas expectativas sobre a humanidade, não admira que me sinta continuamente defraudado. Ela podia ser uma contorcionista, afinal era só uma mulher solitária que apoiava a cabeça para olhar o horizonte e beber café. Quando não se sabe o que se há-de fazer com as pessoas, o melhor é pô-las a olhar o horizonte. Não foi este o caso. Eu faria dela uma contorcionista, dar-lhe-ia o melhor dos futuros num circo já sem animais amestrados, a não ser os humanos, mas ela preferiu olhar em frente, para aquele sítio onde uma linha ténue une o céu e o mar. Com vagar, um veleiro foi crescendo, rompendo a linha, e eu temi, confesso-o sem vergonha, que o oceano se entornasse para dentro do céu, ou que este lançasse sobre o mar alguma coisa que não quisesse nele. A mulher que podia ter sido contorcionista mexia, com os seus belos dedos, longos e afilados, o meio pacote de açúcar que depositou dentro da chávena. Eu vi o pequeno monte de cristais brancos sobre a espuma castanha. Eu vi-os desaparecer tragados por aquele buraco líquido. Eu vi-a a fazer rodopiar, com a mão direita, a colher dentro da chávena, enquanto a esquerda lhe segurava a cabeça para olhar o horizonte. Se eu tivesse um circo, contratava-a para contorcionista de horizontes. Não tenho, as minhas palhaçadas – de palhaço pobre, note-se – não chegam para animar o negócio. Também eu fiquei a olhar a linha do horizonte.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Destinos

A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova, ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de 1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si, enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.

domingo, 2 de agosto de 2020

Pessoas de papel

Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis. As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e, portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo, senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica, embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à minha neta e tomar café.

sábado, 1 de agosto de 2020

Eu e o Marquês

Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu, só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas. Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio, sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal. Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Julho fina-se

Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas, pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras. Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira. Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia da matrícula

Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão. Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho. Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me, passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno, que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais, pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória, pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas de papel almaço. Seriam?

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Familiaridades irritantes.

Há familiaridades que me irritam. Quem terá dito aos programadores do novo Word que sempre que se abre um ficheiro temos de levar com uma mensagem de boas vindas? Ainda por cima vem acompanhada por uma injunção disfarçada de conselho: comece onde ficou ontem. A cortesia deve poder desactivar-se, mas estou suficientemente desactivado para o conseguir fazer. Talvez não tenha acordado com boa disposição e não saiba apreciar esta urbanidade informática. Num outro tempo, esta terra era um mar a fervilhar de oliveiras e figueiras. O azeite e o álcool alimentavam as lamparinas com que a vida por aqui se iluminava. Havia um calendário de cheiros que desapareceram, substituído por um mundo inodoro e insípido. A memória apazigua-me com as tontices do marketing. Aqui perto alguém canta. Não é um pássaro, nem um anjo. É uma voz de mulher perdida numa lide doméstica. Do prédio em frente, alguém chega à janela, apanha a roupa e refugia-se. O ritmo dos dias enrola-se no perfume que alguém deixou no elevador. Sentado, olho para a rua e procuro descobrir no silêncio a transparência com que o passado me assedia a memória. Numa outra casa, havia um poço com uma roldana de ferro. A corda descia e subia com um balde cheio de água pura. Não sei o que hei-de fazer com essa água, agora que a casa já não existe.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Manobras militares

Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios, súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico, imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre Marília, também os calores a importunam.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O desejo infinito

Uma das coisas que se aprende com a observação do mundo é que a maioria das pessoas confunde o desejo com aquilo que é possível. A realidade surge então sempre de forma sombria e toda a gente parece mancomunada para evitar o que seria possível, não fora a aleivosia dos outros, porque nisto, os aleivosos são sempre os outros. Não lhes passa pela cabeça que aquilo que é possível pode nada ter a ver com aquilo que desejamos. As possibilidades são finitas e o nosso desejo é infinito. Este tipo de estultícia, muitas vezes mascarado de erudição, abunda por todo o lado. Falei sobre isto com o padre Lodo e o casal seu amigo, no jantar de há dias. O mecanismo é interessante, disse o padre e passou a uma longa explicação didáctica. O nosso desejo, referiu com uma entoação sempre italianizada, diz-nos que algo é muito desejável. Depois, a nossa razão contaminada pela sensualidade proclama bem alto que o nosso desejo é possível de realizar. A partir daí tentamos impor aos outros a realização daquilo que desejamos, mas como raramente o desejo se atém ao que é possível, saímos para a rua com o dedo em riste a acusar esses malandros que não realizam as nossas fantasias. A perspicácia de Lodovico nem sempre lhe granjeou amizades. Pelo contrário. Lembrei-me disto, depois de ler certas coisas há pouco, coisas que caem neste erro, mas que merecem longos aplausos e muitos likes nas redes sociais. Toda a gente sofre de infinidade do desejo, pensei. Por mim, desejo um café.

domingo, 26 de julho de 2020

Insónias e sonatas

Hoje saí de manhã para fazer os meus seis quilómetros contra a inércia e a preguiça. Consta que faz bem e evita que a balança se entregue ao destempero, ao ser pisada por mim, e me devolva algum impropério em forma de quilogramas. A passeata foi um pouco mais lenta do que a de ontem. Dormi mal, uma insónia bateu-me à porta e eu, incauto, abri-lha. Dei por mim apreciar a companhia. Permitiu-me acabar de ler um romance de Ramón del Valle-Inclán, a Sonata de Otoño. Alguém dirá que também Ingmar Bergman realizou uma Sonata de Outono, o que é verdade, mas não têm nada a ver uma com a outra. Cada uma tem o seu assunto e o seu ritmo. Quem me recomendou o Valle-Inclán foi a Emilia Bazan, a mulher do antigo aluno alemão do padre Lodovico Settembrini, no jantar do outro dia. Como não conhece nada dele, comece pelas Sonatas, sentenciou. A primeira é a de Outono, acrescentou, numa tentativa de trocar o seu magnífico castelhano pelo português. Nesse momento, o padre Lodovico franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebo-o, agora. O Marquês de Bradomín não é propriamente um exemplo de bom cristão, mas o padre também teve os seus dias avessos ao altar. Eu obedeci, muni-me de um exemplar e li. Isso fez-me andar mais devagar, o que foi logo notado pela aplicação do telemóvel que me segue os treinos. Na verdade, eu não ando a treinar, mas é assim que ela interpreta o facto de eu me pôr a caminhar rua fora sem destino, a não ser o da casa da partida. Caminhar é como jogar ao Monopólio. Vá para a casa de partida, mas não tem nada para receber. Nos domingos de Julho íamos, por vezes, almoçar à casa onde nasci. Era um almoço sob uma latada, o que criava uma sensação de frescura. Naquela altura, ainda ninguém tinha morrido e o mundo parecia uma clareira aberta. Há muito que não é possível juntar todos aqueles comensais, mas eles fazem parte de mim. Hoje talvez comece a ler a Sonata de Estío ou pergunte às minhas netas se querem jogar Monopólio. Presumo que me olharão de lado.

sábado, 25 de julho de 2020

Não-assuntos

Sábado, dia de ócio. As palavras da família do ócio têm todas péssima imprensa. És um ocioso. Soa como uma acusação fundada num juízo moral negativo. No entanto, a palavra ócio quer dizer repouso, descanso, coisas que me parecem benévolas. Depois, um mundo que ficou fascinado pela agitação, pela febre das realizações e pela velocidade associou o ócio à preguiça e à inacção. Os acusadores do ócio tecem loas ao trabalho, mas nunca dizem que a palavra vem do vocábulo latino tripalĭu. Um tripalĭu é um instrumento de tortura constituído por três estacas ou paus. O exercício não seria conhecido pelo prazer que provocava a quem a ele era submetido. Na verdade, o trabalho, talvez até à Revolução Industrial, nunca mereceu louvor. Trabalhava quem não tinha estatuto social para fazer outra coisa. No entanto, podemos encontrar inesperados aduladores do trabalho. No Diário Íntimo, Baudelaire afirma que o prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Os nazis não eram destituídos de humor negro e, por certo, percebiam a natureza torturante do trabalho. Inscreviam na entrada de alguns campos de concentração, como Auschwitz, o trabalho liberta. Curiosamente, em Baudelaire o trabalho também é visto como uma libertação, mas da omnipresença na consciência da sensação do tempo. Tanto o prazer como o trabalho são vistos por ele como distractores da nossa condição de seres finitos. Tudo isto porque chegámos a sábado. Nos dias de ócio, pode-se ociar de diversas maneiras. Por vezes, pratico o ócio procurando autores que ninguém lê. Leio-lhes umas páginas e esqueço-os. Quem terá ouvido falar em Karl Krause, um filósofo kantiano que viveu no final do XVIII e no início do XIX? Não o confundir com o famoso dramaturgo austríaco Karl Kraus. E do pensador holandês François Hemsterhuis, que viveu no século XVIII? Ninguém. Eu também não. Encontrei-os porque levado pelo ócio me pus a procurar as obras, numa língua acessível, do romancista romântico alemão Jean Paul. Deste, eu tinha duas referências. A de Sebald que é elogiosa e a de Schopenhauer que o acusa de não ter nada para dizer e de só escrever por dinheiro, isto é, acusa-o de trabalhar. Olho para a minha agenda imaginária e vejo que tenho de dar parabéns a alguém. Depois, escrevo nela a seguinte nota: evitar assuntos idiotas ao sábado, aproveitar o ócio para uma coisa mais decente do que encher o monitor com palavras sobre não-assuntos. O pior, porém, é que com a passagem do tempo só os não-assuntos me interessam.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

As rosas da Piéria

Safo, no poema As rosas da Piéria, lança, talvez sobre alguma amante que a rejeitara, o pior dos anátemas que os ouvidos gregos podiam, naquele tempo, escutar: Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória / nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas / da Piéria. Ser perdido pela memória dos outros. Não haver quem no futuro de si se lembre. Os séculos edulcoraram a maldição, até a transformar em pura aceitação, como se o esquecimento dos outros fosse o próprio da condição humana. Em muitos, todavia, persiste a revolta. Persegue-os aquilo a que popularmente se chama a mania das grandezas ou o desejo da fama, mas isso não é mais do que o temor de ser esquecido pelo futuro. O colírio para esse mal não era, segundo Safo, um qualquer, mas a participação na vida das musas, as rosas da Piéria. A arte seria assim o resultado de um combate pela memória e a saudade que o futuro teria do artista. A sua ausência e a sua falta seriam sentidas. Dignos de imortalidade, de persistirem na memória dos vindouros, não eram apenas os grandes feitos, mas também as grandes palavras. O melhor seria que aquele que realizasse um grande feito dissesse também grandes palavras, que participasse no convívio com as rosas da Piéria. Gostaria de saber a razão por que me pus com estas elucubrações, enquanto a vida lá fora fervilha e as pessoas caminham para o seu próprio esquecimento. Vão esquecidas de que serão esquecidas. Recordei-me agora de um poema de David Mourão-Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais. Relei-o e soletro baixo para que ninguém me escute: Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que terei de novo o Nada a sós comigo. Nem as rosas da Piéria nos salvarão. O fim-de-semana abre-se diante de mim e isso é o mais que posso desejar.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Um fado, uma sina

A semana entrou na recta final. É uma frase estranha, mas não notamos a estranheza, de tanto a usar. Nem sempre o tempo foi visto como uma recta, melhor como uma flecha que segue sempre em frente, sem que nada a detenha ou desvie. Tempos houve em que o homem o compreendia como se fosse um círculo, em que tudo voltava, num verdadeiro eterno retorno do mesmo. Tudo isto para dizer que a semana se aproxima do fim. Ainda há dia e meio para as utilidades, mas logo chegará o ócio do fim-de-semana. A imprensa substituiu o retrato imaginário de um vírus COVID-19 pelo de Amália Rodrigues, no centenário do nascimento da fadista.  Ficámos todos a ganhar. O vírus é horrível, enquanto Amália era uma bela mulher. Fica muito bem nas capas dos jornais. Os olhos agradecem. Durante muitos anos, não liguei nada ao fado. Depois, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo dobraram-me. Hoje em dia, quero dizer no tempo em que ainda não havia retratos de vírus na primeira página dos jornais, vou a concertos de fadistas. Nunca me arrependo. Talvez seja a isto que se chama envelhecer. Na rua, os cães ladram, um casal passa devagar, cada um ajoujado ao peso da própria sombra. Separa-os meia dúzia de metros, como se já não pudessem suportar a companhia um do outro. Foi por vontade de Deus. Também eles têm a sua sina. Um pássaro canta, enquanto um par de anjos poisa no prédio em frente.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A fortuna do saco

Os dias seguem enrolados em inexpugnável manto de calor. S. Pedro, descontente com a vida que se leva por aqui, lança anátemas e raios de sol para abrir consciências e rasgar peles. Talvez não devesse levantar estas suspeitas sobre aquele que detém as chaves do céu. Deve-se sempre ter as melhores relações com quem gere as portas e administra permissões e proibições de entradas. Segundo consta, nem vale apena argumentar contra decisões desfavoráveis, pois o porteiro celeste tem mais que fazer do que ouvir mentiras, ele que sabe toda a verdade. Deveria evitar estes esboços de mitologia, pois vivemos num tempo desencantado em que ninguém tem saco para este tipo de conversa. É uma pena. Quem diria que a palavra saco teria tão grande fortuna. Encher o saco, despejar o saco, meter a viola no saco, não cair em saco roto, meter tudo no mesmo saco. Ter ou não ter saco, eis a questão. É possível que toda a metafísica se resuma a ter ou não saco ou seja uma questão de ensacar e desensacar. Os dias de Verão são sempre difíceis, principalmente para um narrador que nada tem para narrar. Podia falar da Marília que tornei a ver com o Zé Tó, ambos com ademanes abrasileirados, um samba excessivo para a idade deles. Digo eu. Poupo-vos, porém, aos pormenores. Tenho de ir encher o pneu da bicicleta da neta mais nova. Andar de bicicleta dá muito trabalho.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Dos sonhos e da distância

Foi Bioy Casares que, num conto intitulado de Nóumeno, fez dizer a Arturo os sonhos são convincentes, mas não vou permitir que a superstição prevaleça sobre a sensatez. Talvez tenha razão e a superstição nasça do sonho, daí o seu poder de convencer e gerar fundas convicções. Tenho uma vantagem sobre a maioria dos humanos. A mim os sonhos não me convencem e, por isso, talvez possa resistir melhor à superstição. Esta vantagem não nasce de uma qualidade que possua, mas de um defeito. Raramente, mas muito raramente, me recordo de um sonho. Se durante o sono se deram em mim aventuras oníricas, mesmo as mais extraordinárias, quando acordo é como se nada se tivesse passado. Há quem discuta se se sonha a cores ou a preto e branco, eu não faço ideia do que estão a falar. Se alguma vez fosse tentado pela psicanálise, não teria sonhos para interpretar. Restariam a associação livre e os actos falhados. Aqui haveria material em abundância para ser conduzido ao momento traumático que na infância me fez apagar o poder de recordar os sonhos. Não se pense, porém, que eu tenha fé na psicanálise. Como disse, resisto à superstição. Ontem encontrei um amigo que já não via há uns meses. À distância, atirou ele. É a nova ordem mundial. Eu percebo-o bem. Médico de profissão, não pode fazer outra coisa senão cultivar a distância. E ficámos a conversar com um espaço de segurança de uns três metros, a combinar um encontro de famílias, mas não faço ideia como vamos resolver a distância nesse encontro, onde haverá crianças e adolescentes. A proximidade entre as pessoas tornou-se uma superstição nascida de um sonho. Resta-nos a distância. Cristo se viesse agora ao mundo já não ordenaria amar o próximo como a si mesmo, mas o distante. Quanto mais distante mais digno de amor.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Fábrica de desejos

Hoje acordei com uma inexplicada inclinação para assuntos metafísicos. Fui salvo pelo dever terapêutico de ir caminhar. Seis quilómetros de périplo fizeram-me esquecer a tentação matinal. Não é que não se pense quando se caminha, mas os pensamentos são físicos, sobre coisas a que chamam realidade. Um carro que passa, um buraco num passeio que quase nos faz cair, uma pessoa conhecida que nos cumprimenta, três desconhecidos que correm como se fossem atletas de alta competição, outro que se arrasta pela calçada e que se tivesse um módico de consideração por si evitaria aquela figura. Caminhar é abrir uma janela por onde perpassam as mais inesperadas personagens de milhares de romances que nunca se hão-de escrever. Outras vezes enrolamo-nos em pensamentos que nos chegam do passado ou então em imaginações vindas daquela fábrica de desejos que todos transportamos connosco. Possuir uma fábrica de desejos dentro de nós é um perigo, talvez o maior dos perigos. Quem quiser uma vida descansada fecha a sua fábrica de desejos, despede o pessoal e mergulha na realidade, sem deixar que um desejo sequer lhe bata à porta. Chegado aqui, se me perguntarem a razão por que estou a escrever isto, só tenho uma resposta: não faço a menor ideia. No entanto, isso não tem qualquer gravidade. As pessoas não fazem a mínima ideia das razões que movem a maioria dos seus actos e fazem-nos, achando neles, por vezes, felicidade. Isto foi o que disse o padre Lodo no jantar de sexta-feira, quando a Emilia Bazán lhe perguntou a razão de ter vindo viver para Portugal. Oiço uma voz a chamar-me. Eu sei, eu sei, ainda não fui arranjar o furo da bicicleta. Deveria ter pensado nisso quando caminhava, mas talvez estivesse ocupado com a minha fábrica de desejos.

domingo, 19 de julho de 2020

As dádivas de Zeus

Troquei de versão do Word. A que tinha vai deixar de receber actualizações e comprei uma recente. Esta irrita-me. Muito, diga-se. Mancomunada com os defensores do Acordo Ortográfico de 1990, sublinha-me como erro todas as palavras portuguesas que foram banidas por arbitrária decisão política. Exceptuando os governos de Portugal, penso que mais ninguém liga ao patético Acordo. Este é uma conjuração contra as consoantes mudas, algumas das quais não são assim tão mudas. Se vivemos num mundo em combate contínuo contra discriminações e perseguições, como é que continuamos a pactuar com a perseguição às consoantes mudas? Os domingos são dias propícios à falta de assunto. Entretanto, uma das minhas netas entrou-me pelo escritório dentro, avô, avô, tenho um furo na bicicleta. Um furo? Um furo. Hoje é domingo, respondi. A oficina está fechada? Está. Noutros tempos, haveria de haver uns remendos tip-top e lá se desmontava a roda e, após uma complexa liturgia, o furo estaria remendado. Hoje a especialização leva a estas situações e a minha alma nunca teve qualquer inclinação para a mecânica. Ela encolheu os ombros. Vou andar de hoverboard. É uma boa ideia, ao menos não há risco de se furar uma roda, respondi. Olhou-me com complacência e foi-se embora. Para amanhã já tenho uma tarefa inadiável. Na nova edição de Poesia Grega, com traduções de Frederico Lourenço, há três fragmentos de poemas de Mimnermo. Em todos se encontra uma lamentação pela velhice e num deles há uma inesperada consideração sobre a igualdade dos homens: Não há ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas. Enquanto forem acordos ortográficos ou um furo na roda dianteira da bicicleta, as coisas não estão más, pensei num momento de optimismo. O Word, impiedoso, assinalou-me como erro optimismo. Talvez o optimismo seja um erro trágico, considerei.

sábado, 18 de julho de 2020

A morte de Rafael e a parusia de Jesus

Acabo de ler que Rafael, o pintor renascentista, morreu vítima de uma doença semelhante à provocada pelo coronavírus. Não contentes com isto, os informadores ainda foram desenterrar as coscuvilhices do Vasari. Este não precisou de redes sociais para registar e divulgar que o pintor de Urbino não apenas saía de casa à noite, quando estava um frio de acender lareiras, como o fazia para visitar as amantes. No plural, note-se. O amor à concorrência e a valorização do mercado não são coisas de agora. Ainda por cima omitia estes factos venturosos aos médicos e, quem sabe, aos confessores, o que seria mais grave. Resultado? Morreu aos 37 anos, apesar dos cuidados que lhe foram dispensados. Somos levados a imaginar que se ele não se tivesse dado a tanta consolação nas noites frias, não teria tido uma morte tão desconsolada. Continuando com a imprensa. O leitor talvez já não se recorde o que é a parusia. Os tempos não andam bons para se manter uma sólida cultura religiosa, mesmo que seja aquela em se foi educado. Apesar do termo ser um pouco esdrúxulo (na verdade, é uma palavra grave de origem grega), refere-se a uma antiquíssima crença dos cristãos. A segunda vinda – em glória – de Jesus. Expectativa iminente e sempre adiada. Vejo agora na imprensa que a segunda vinda de Jesus está consumada. Não há jornal ou site de informação que não proclame que Jesus voltou. Há quem espere que seja em glória, mas sobre isso não me pronuncio. Confesso que com o calor de hoje não me ocorreu mais nada. Podia ter contado o meu jantar de ontem em Lisboa com o padre Lodovico Settembrini, o seu antigo aluno Hans Castorp e a mulher deste, a espanhola Emilia Bazán, mas isso ficará para um dia destes. Vou enviar um email ao padre para lhe perguntar o que acha ele da parusia de Jesus.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Do exercício da estultícia

A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes. Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não, respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que, caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Falta de concorrência

Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor, inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre. De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Da perfeição

Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância, acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.

terça-feira, 14 de julho de 2020

La Dernière Valse

Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar. Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau,  La Dernière Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas, vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa, envolve-se na performance, sente vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa, como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Viver sitiado

Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou, terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia. Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de David, La Mort de Marat, um exercício de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César, reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.

domingo, 12 de julho de 2020

Do uso da máscara

As coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos, curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros ofensivos do decoro da sociedade.

sábado, 11 de julho de 2020

Uma ida ao café

Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo, todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas, também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu não vá.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

O oblívio dos pontos cardio

Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada. Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que sejam pontos cardio, mas gosto do nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim, mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu. A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Um buraco negro

Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série. Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta, calo-me para não a estragar.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Carnaval eterno

Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua tinha descido bastante, apressei-me a abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial, equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador. Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá, olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Perdido na floresta de calor

Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo. Uma voz soletra age de tal maneira que possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Arrasto-me

Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim. Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo diz que Deus dá o frio conforme o cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o texto aqui.

domingo, 5 de julho de 2020

Expelir opiniões que ninguém pediu

Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal, não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as  sucessivas reedições. Eram de tal maneira verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo, juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos, mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos, e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos, mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.

sábado, 4 de julho de 2020

Faltar à verdade

Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram, também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder. Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo. Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar, fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Caminhadas e caminhantes

Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo. Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes, uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários, rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto, falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa, uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido dos anjos meus vizinhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Desaguisados e protozoários

Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida. Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime. Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos. No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade, que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Bocejo

Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche, pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria, o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.