terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Calendários

Ao barbear-me, cortei-me no pescoço. Uma pequena mancha de sangue alastrou na pele, mas logo suspendeu a viagem, como se lhe faltasse energia e desistisse sem razão aparente do progresso. Vejo-a no espelho, contemplo-a por instantes, depois limpo os vestígios do crime e entro pelo dia. É uma entrada tardia na última etapa do ano. Este é um rally, um estranho rally com 365 etapas, mas em que todos os que chegam ao fim fazem-no ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que se sentem obrigados a mostrarem-se alegres, numa insuspeitada celebração da mais pura igualdade. Se pudesse introduziria um princípio de diferenciação no calendário. Para uns o ano seria mais rápido, para outros, mais lento. Enquanto uns comemoravam a chegada de 2025, outros arrastavam os pés pelo ano de 2012, para não falar naqueles que ainda dormitavam pelo século passado. A cada um seria permitido escolher o seu ritmo ou, caso duvidemos do livre-arbítrio, cada um teria o ritmo que os seus genes determinariam. Desconfio que o calendário foi uma invenção de alguma seita proto comunista com a inconfessável finalidade de humilhar os mais rápidos e favorecer aqueles que se arrastam ano adentro sem vontade que o tempo passe. Não sei se é porque o ano está prestes a deixar-nos, mas o sol está lacrimoso, enviando-nos uma luz turva, anémica, impotente para alegrar corações. Só espero que logo se esqueçam do ritual das passas, que não suporto a função. Agora vou fazer a pequena lista das pessoas a quem tenho de ligar passada a fronteira do ano. Só para não haver esquecimentos.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Desinteresses

Moribundo, o ano está a dar um ar da sua graça. Magníficos dias de Inverno, onde o sol e o frio se conjugam para alegrarem os pobres mortais. Durante algumas horas, a luz radiosa mostra-se exuberante, tornando manifesto aquilo que os dias sombrios esconderiam. À minha frente tenho o longo ensaio de Elias Canetti, Massa e Poder. Percorro-lhe o índice. Há nele muitas referências à Antropologia. Pergunto-me se valerá a pena, se poderá ajudar a interpretar o nebuloso tempo em que vivemos. Oiço os Gurre-Lieder, de Arnold Schoenberg, dirigidas por Zubin Mehta. É uma das obras a que volto com regularidade. Esqueço-me do ensaio de Canetti. O espírito humano é muito volúvel, pensei. Tão depressa se interessa por uma coisa, como, sem razão aparente, a deixa de lado. Tornei-me especialista em deixar coisas de lado, em retirar delas o meu interesse e deixá-las em paz. Imagino que o livro de Canetti me agradeça o desinteresse. Um dia também a vida me deixará de lado, desinteressada do meu desinteresse, cansada de mim. O sol começa a empalidecer, carros desfilam pela avenida Andrade Corvo, enquanto o tenor dá voz à desdita de Waldemar. “Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido.” É promissor o início da obra de Canetti. Depois dos Gurre-Lieder irei ouvir o Pierrot Lunaire.

domingo, 29 de dezembro de 2019

O rally dos idiotas

Um carro ronca furioso numa das avenidas aqui perto, os travões guincham, suspendem por instantes o gorgolejar do motor, mas logo este retoma o matraquear com que responde ao acelerador, pisado sem piedade. O condutor deve imaginar-se piloto de rallies em plena competição e sentirá toda a realidade da sua existência no ruído com que esfaqueia o silêncio dominical da província. O que não falta por aí são campeões destes, pequenos quixotes deslumbrados pela mecânica, que nunca competiram a não ser no rally da idiotice. A bazófia do condutor foi exibir-se para outro lado, pois caiu um silêncio sepulcral sobre as ruas. Lá em baixo, na Sá Carneiro, peões marcham decididos, enfrentam inimigos terríveis e procuram no caminhar a salvação para as desditas do corpo ou da alma. Um casal passeia-se de mão dada, cada um temeroso de que o outro fuja. Pela janela entra um raio de luz. Traça uma linha oblíqua no chão. Olho-a fascinado, depois volto para este texto. Hoje hei-de almoçar mais tarde. De novo, um carro roncante invade o meu território sonoro, mas será outro, já que o ronco se transforma num ronronar cordato até desaparecer dentro da cisterna do silêncio.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O sábado declina

Estou à espera do meu neto, mas não vou poder pegar-lhe ao colo. Não que ele queira, pois isso impedi-lo-á de mexer onde não deve, não o deixará fazer uma sementeira de CD e livros pelo chão. A culpa deste impedimento é das netas e do malfadado jogo de badminton a que fui sujeito, como se tivesse de cumprir uma pena ou de pagar uma promessa. Com o passar das horas, as dores lombares parecem expandir-se e o voltaren, uma espécie de santo, está renitente em operar um dos seus milagres. Lá em baixo, com o retorno do tempo mais seco, as crianças invadiram o parque infantil e as suas vozes afiadas chegam até mim. Quando se calam, faz-se um grande silêncio. No horizonte, a serra é um vulto imóvel e cinzento, uma fronteira que separa dois mundos. O sábado progride em direcção à noite. Leva com ele a ilusão do fim-de-semana e ostenta orgulhoso no dorso o título de último sábado do ano. Está um sol convidativo e o mais assisado será levantar-me daqui e ir dar uma volta a apanhar sol. Não me posso afastar, pois não faltará muito para que o rapaz chegue.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Aproximação à realidade

Ao acordar senti-me confuso, mais do que o habitual. Que dia é hoje? Sentei-me na cama a rememorar o calendário e lá consegui descobrir que era sexta-feira. Não se pense que este descolamento da realidade temporal se deve a alguma coisa que não à ocupação de parte destes dias com as actividades próprias à quadra. Descobrir a quanto estávamos na semana devolveu-me um sentido cruel de realidade. Como um punhal, esta atravessou-me o coração e não sem azedume lá me levantei. Um sol faceto e pirraceiro olhou para mim quando abri a janela. Observei-o de soslaio, com cara de pouco amigos, enquanto ele deitava de fora uma língua de fogo que lambia a serra, dando-me a ver uma paleta de cores que me recordaram que o Inverno já havia começado. O astro ainda tentou entabular conversa comigo, mas voltei-lhe as costas. Talvez mais logo me reconcilie com ele e lhe conte como vão as coisas aqui na Terra, o que não será da minha parte um gesto de boa vontade. O dia parece cheio de glória. A natureza nunca se poupa a estratagemas para enganar os incautos. Acabo de receber uma mensagem, mas não era para mim. O mundo está cheio destes equívocos. Pessoas a enviarem mensagens para quem não deviam e outras à espera da mensagem que ninguém lhe destina.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Uma tarde de badminton

Por uma estranha e não sei se malévola inspiração as minhas netas e uma prima acharam que eu era o parceiro indicado para completar um quarteto e assim poderem jogar badminton a pares. Ingénuo e desconhecedor do terreno, aceitei pegar na raquete e tentar acertar no volante. Não imaginava que naquele sítio a força da gravidade fosse muito maior do que nos lugares que costumo frequentar. Bem dava impulso ao corpo para saltar, mas os pés teimavam em não se despegar do chão, enquanto o cesto de penas que faz a vez de uma bola se obstinava a passar na estratosfera para logo cair atrás de mim. Argumentei que não estava habituado a enfrentar uma força da gravidade daquela dimensão, mas olharam para mim com condescendência e lá continuei a fazer par com uma delas, sem perder a esperança de conseguir acertar naquela coisa com inveja de ser pássaro. Agora que fui libertado do exercício estou com umas dores na lombar, tantas as vezes que tive de me curvar para apanhar o volante do chão. Há coisas que não deviam passar pela cabeça de pré-adolescentes ou, não sendo possível evitar esses devaneios, o melhor seria não ter ouvidos para este tipo de pedidos, mas ainda não sofro de surdez. Enquanto escrevo, elas teimam em mostrar que possuem uma reserva considerável de energia que nem o badminton da tarde consumiu.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A coisa prossegue

Não tarda e esta parte das festividades estará consumada. Haverá o tardio almoço de Natal e, devido à natureza arborescente das famílias modernas, decorrerá ainda o jantar do dia de Natal. Há que contentar o máximo das partes e a partir de certa altura o jogo de ponderados equilíbrios torna-se num quebra-cabeças de difícil resolução. É nestas alturas que se percebe a importância da diplomacia. Compreendo bem que o Menino Jesus se interrogue se terá valido a pena as dores da encarnação e que suspire não sem desdém se alguém se atreve a responder-lhe tudo vale a pena se a alma não é pequena. Mais tarde ainda tentou reparar a situação ao dizer dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Entrevia já – ou talvez fosse a sua omnisciência a operar – que por causa do seu nascimento muita política e diplomacia deveria correr entre as margens escarpadas das famílias. O sol por aqui está raquítico. Na televisão o presidente da república continua a sua azáfama e as casas de apostas puseram em jogo o tempo que demorará sua excelência a tirar uma selfie com todos os portugueses. Estamos no Natal e há que evitar politiquices, pois as famílias tornaram-se tão plurais que nem em desacordarem conseguem estar de acordo. Aqui por casa alguém diz que tem de tomar um gurosan, oiço também falar em ben-u-ron. A mim não me dói nada nem estou indisposto, mas o melhor é fazer um ataque preventivo e tomar qualquer coisa, nem que seja um placebo, talvez me consiga enganar a mim mesmo. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Em contagem decrescente

Terei ainda de fazer uma ou outra compra, mas as coisas estão já encomendadas e espero que o dia e a noite deslizem com bonomia. Em tudo isto há um cansaço e ninguém consegue disfarçá-lo. Também é verdade que, com aquela mania de fazerem recenseamentos todos os anos, a Virgem e José, o carpinteiro, sofrem continuamente as peripécias de não encontrarem alojamento. É sempre a mesma coisa, diz o pai adoptivo do Menino. O mais sensato, passou-me pela cabeça, seria recorrerem, nos dias de hoje, a uma agência de viagens ou, em último caso, ao Booking. Marcavam hotel perto de uma maternidade e não corriam o risco de o Menino ser contaminado pelo bafo da vaca e do burro. Não pense o leitor que me tornei um jacobino pronto para fazer uma diatribe contra o Natal. Pelo contrário, eu gosto do Natal, do presépio, dos doces, até da Missa do Galo, apesar de nunca ter ido a nenhuma, mas imagino-a de uma grandeza exaltante, onde coros humanos e angélicos entoam um oratório de Bach. Talvez seja com medo de me defraudar que a evito, sabendo que Bach era protestante e que em vez da sua música tenha de ouvir sabe-se lá o quê. Os dias de Natal de antigamente eram de uma grande tristeza, pois não havia sítio onde se pudesse beber café. Hoje em dia, graças à Nespresso e às suas belas cápsulas de alumínio, toda a gente tem café em casa e as senhoras, enquanto bebericam, sempre podem imaginar que é o próprio George Clooney que as serve, mesmo que seja o burro do presépio ou o marido, cujo ressonar já não podem ouvir. A imaginação é a mãe de todas as coisas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Fim de aboboramento

Nunca consegui justificar perante mim o facto de ter uma conta na plataforma LinkedIn. O certo é que um dia qualquer, por um desvario que já não consigo recordar, abri conta e por lá fiquei a aboborar. Esta palavra decepciona-me profundamente. Por impulso semântico, eu diria que significa tornar-se abóbora, mas não. É uma espécie de corruptela de abeberar. Seja como for fiquei por lá a aboborar, imóvel e desinteressado, respondendo com bonomia e a melhor vontade às solicitações de conexão, embora nunca tenha percebido a razão por que há pessoas que hão-de querer estabelecer uma conexão comigo numa plataforma como a LinkedIn. À maneira de Grouxo Marx, também não admitiria estabelecer qualquer conexão profissional comigo. O certo é que sem mexer uma palha, praticando com diligência o aboboramento, fui ficando conectado com conhecidos e desconhecidos, recebendo mensagens para parebenizar (palavra que me deixa logo com revoluções no estômago) este e aquele pelos novos empregos ou cargos a que tinham sido promovidos. Fui estranhando nunca ter recebido convites para dar os pêsames aos despedidos ou aos despromovidos, mas inferi desse silêncio que todas as minhas conexões eram com gente vencedora na vida. Hoje recebi um novo pedido de conexão. Abri a conta e com ela escancarada procurei como acabar com ela. Liquidei-a em três tempos. Recebi de imediato uma mensagem a dizer que sentiam muito pela minha saída. Eu, pelo contrário, sinto muito pela minha entrada. Nunca se deve entrar em sítios aonde não vamos fazer nada.

Distinções linguísticas

Fui à loja ortopédica que há aqui no prédio para comprar umas pantufas para alguém que já não tem grande disponibilidade física para fazer este tipo de compras. Nunca tinha lá entrado e, por alguma razão inconsciente, evitava olhar através dos vidros. Foi uma revelação. Parece haver lá tudo o que é necessário para a miséria física humana. Eu sei que tudo é uma hipérbole, mas esta está-me na massa do sangue e o melhor é dar algum desconto às coisas que me põem aqui a dizer. Bengalas, cadeiras de rodas, bancos com abertura para o que não vou especificar e uma parafernália de dispositivos e objectos que sou incapaz de denominar ou de descrever. Evitamos pensar nas múltiplas formas que a desgraça tem e só quando nos bate à porta entramos naquele mundo e descobrimos que as estratégia da doença para nos humilhar são incontáveis. Chegado a casa, sentei-me e li um artigo (de Marco Neves) sobre o uso das palavras vermelho e encarnado. Quem diz encarnado – e isto não vem lá – por norma não diz prenda mas presente. Recusa-se, não sem veemência, a dizer funeral. A palavra correcta é enterro, asseveram pimpões. É possível que quem usa vermelho prefira oferecer prendas e, quando tem de ser, vai a um funeral. A língua também é um exercício de diferenciação social e quem quer diferenciar-se não se faz rogado. Por mim, só me apetece usar vermelho, prendas e funeral quando estou num círculo de amigos do encarnado. Se me calhar estar no círculo mais popular, posso cair na tentação de evitar o vermelho. Isto, porém, deve-se a ter nascido com uma inclinação patológica para contrariar o que está dado, contrariando-me muitas vezes a mim mesmo. Se estou sozinho não digo vermelho nem encarnado, não distingo prenda de presente e nem me lembro se se trata de um enterro ou de um funeral. Se estou sozinho, evito dizer seja o que for, embora na minha mente prossiga um diálogo infinito, em que falo comigo mesmo como se já tivesse enlouquecido. Estes textos estão a ficar excessivos. Também a verborreia faz parte do meu amor à hipérbole.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Imaginações

Um alarme lança aos ares o aviso contra imaginários ladrões e quebra o silêncio onde mergulhara neste entardecer de domingo. Ninguém acode ao estabelecimento e o dispositivo prossegue na sua cegarrega mecânica, avisando o mundo de um perigo que não há. Nunca se sabe que ameaças são as piores, se as visíveis se aqueles que só a imaginação descobre. Não devemos descurar o que esta nos diz, apesar de serem secretos os seus caminhos. Num livro de contos de um escritor japonês, em nota prévia, é explicada a pronúncia que se deve dar aos nomes desta língua. Resolveu a meu favor uma pequena contenda relativa à leitura do w, se deve ser feita ao modo dos ingleses ou dos alemães. O alarme calou-se, havia nele cansaço de tanto esperar por ladrões que não vinham. Levantei-me para ir cumprir uma tarefa doméstica, mas ia tão distraído que a meio da viagem já não sabia o que ia fazer. Tive de parar e actualizar a informação. Lá me ocorreu o que era. Hoje o mundo visto da janela do meu escritório parece sombrio. Será porque o sol se esconde atrás das nuvens ou porque no meu coração nascem sombras que se derramam na paisagem. Uma voz diz é cansativo pertencer à espécie humana. Procuro o autor da mensagem mas não encontro ninguém. Rio-me e levanto-me da cadeira. Daqui a pouco terei de atravessar a cidade e, nem sei porquê, isso entristece-me.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Ocorrências

Nestes dias Portugal tem sido um país cheio de ocorrências. Não fora o mau tempo e nada ocorreria por cá. Somos um povo sábio dado à imutabilidade. Nove séculos de história ensinaram-nos a não correr para lado nenhum. Há várias razões para os povos marcharem a grande velocidade. Os germânicos e escandinavos labutam para combater o frio, dito de outro modo trabalham para aquecer. Os americanos possuem outra motivação. São um povo muito jovem, inocente e ainda em formação. Não sabem muito bem quem são e o querem. Por isso precipitam-se com fragor para o futuro, pois imaginam que lá adiante encontrarão respostas às suas perguntas, ilusão recorrente nos povos em início de vida. Os portugueses, porém, têm um clima temperado, por vezes demasiado quente, e nove séculos de história. Já nos tínhamos aposentado há muito do nosso trabalho histórico quando nasceram os Estados Unidos. Por tudo isto, e eu neste caso sou absolutamente português, não gostamos de ocorrências, evitamos sempre que podemos que alguma coisa ocorra. Contemplar o mundo a partir de uma sabedoria de nove séculos só nos pode aproximar da eternidade e na eternidade tudo é imutável. O pior é o mau tempo, pois com ele chegam ocorrências sobre ocorrências, como agora se chamam os incidentes provocados pela ira dos elementos, o que nos deixa irritados, pois fazem-nos descer do pináculo onde nos encontramos e tratar do que ocorre no mundo. As depressões climáticas deprimem-nos porque fazem ocorrer coisas onde nada deve ocorrer e nos retiram da nossa sábia contemplação da eternidade.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A agonia do Outono

Olho pela janela e digo estamos no Inverno. Depois observo a palavra e gosto de a ver com maiúscula. Uma estação do ano não merece o despropósito com que agora é tratada, tornando-lhe o início rasteiro, sem perceberem que cada uma delas é um acontecimento único na sua repetição e que devem ser consideradas como pessoas ou deuses, com as suas idiossincrasias, humores, o ritmo secreto que as faz oscilar, o vigor ao entrarem em cena e o cansaço ao despedirem-se da vida. A chuva persiste, constante na sua frieza, enquanto os cedros do pequeno bosque ao fundo se erguem rígidos para o céu, indiferentes à água que sobre eles cai. Na avenida, alguns transeuntes seguram guarda-chuvas, mas correm a abrigar-se. Os carros passam, criam pequenos tsunamis que se levantam violentos e logo morrem, sem que nenhuma devastação aconteça. É sexta-feira, embora o corpo não acredite que o fim-de-semana se aproxima. Remexo-me na cadeira e medito no que ainda hoje terei de fazer. Ao longe, o edifício do hospital lembra-me uma ruína, o sinal de um mundo acabado que persiste difuso na memória dos vivos. Não pára de chover e talvez fosse apenas isto o que queria dizer.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O último combate

O Outono despede-se invernoso, irado pela aproximação do dia em que o carrasco fará deslizar pelo seu pescoço o gélido fio da guilhotina. Visto da janela o espectáculo da resistência outonal faz recordar um velho guerreiro que trava o seu último combate. Há sabedoria no modo como maneja a lança da chuva e a espada do vento, há nobreza na face envelhecida que enfrenta a condenação. Indiferentes ou temerosas da refrega, as pessoas fecham-se em casa e, embrulhadas nas suas lareiras, sonham com dias primaveris, enquanto os gatos ronronam ao calor. Um ou outro louco caminha na rua sem guarda-chuva, encharcado, como se fosse um penitente que se lava na água caída dos céus. As iluminações de Natal derramam tristeza pela cidade e trazem à memória, como contraponto, os dias em que tudo era mais frugal e eu mais ingénuo. O vento percute a persiana e lá dentro uma velha canção de Natal deixa cair as notas sobre os presépios. A Virgem demora-se na espera e S. José, longe da carpintaria, parece inquieto e deslocado. O silêncio tomou conta dos seus corações como a água se apoderou da terra.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Sub specie aeternitatis

No facebook alguém, para sustentar uma certa posição sobre determinado assunto, coloca um link para uma entrevista dada ao Expresso por um especialista da matéria, a qual não vem ao caso. Como um cão segue uma pista, também eu sigo a ligação e ponho-me a ler, até que que começo a achar uma certa estranheza no conteúdo. Procuro a data e descubro que é de 2008. Não é a primeira nem a segunda vez que isto me acontece, mas hoje foi uma revelação. O tempo foi abolido. A eternidade desceu dos céus, digitalizou-se e passeia-se na terra. Não posso esconder que isso me perturbou um pouco. Cada um tem um estilo e o meu passa por cultivar um certo anacronismo. Se tudo agora é eterno, até o meu anacronismo se torna em sincronismo, que palavra desagradável esta, apesar do seu pedigree ser autêntico. Lá se vai o estilo perdido no magma da indiferenciação, foi a reacção que se desenhou na minha cabeça. Há pouco entrei num café, sentei-me e olhei à volta. Apenas duas mesas estavam ocupadas, cada uma por um homem a ler o jornal, ambos mais velhos que eu. Estavam empenhados na leitura, voltavam as páginas com uma certa ânsia. Suspeitei, não sem razão, que eles pudessem estar a ler jornais de 2008 ou mesmo de antes. Seja o que for o que estivessem a ler deve agora entender-se sub specie aeternitatis, que é uma forma pretensiosa de um anacrónico sem-abrigo dizer do ponto de vista da eternidade.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Da ordem das coisas

Ao fechar a janela pensei que não tarda e os dias começam a crescer. Senti uma leve nostalgia do tempo em que não me ocorria se os dias eram grandes ou pequenos. Havia nisso uma aceitação do mundo tal como ele é e nessa aceitação residia toda a possibilidade de estar vivo. Depois, começa-se a sentir incómodo pelas temperaturas, mais tarde pelo excesso ou pela falta de luz, a seguir protesta-se, ainda que em segredo, contra o calendário, para se acabar numa recusa sem tino da ordem do mundo. Claro que quando se envelhece a ordem do mundo deixa de ser promissora. Nunca deixo de sorrir quando oiço aquelas pessoas, os cavaleiros do progresso e irmãos gémeos dos do Apocalipse, que proclamam a bondade que o futuro há-de trazer. A única coisa que o futuro traz é a morte e quanto aos que cá ficam terão como presente o seu quinhão de bem e o seu lote de mal, talvez distribuídos ao acaso, talvez fruto dos méritos, talvez vindos na barcaça da injustiça. Não esperava estar tão meditabundo. É o que faz fechar janelas quando o dia se perde no covil da noite. Daqui a uma semana é noite de Natal. A luz triunfará sobre as trevas exteriores até que tudo se inverta, enquanto a mecânica da universo não se cansar.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Uma bela aparência

Tenho nas mãos quatro livros e todos eles, com as suas capaz magníficas, são objectos que não apenas pedem para serem comprados como exigem que se lhes toque como quem toca a pele do objecto do seu desejo. Esta frase, com o seu aroma psicanalítico, deveria ser censurada. Haverá uma relação entre o objecto livro e o que nele está escrito? Também no mundo dos vinhos há garrafas e rótulos que pedem para serem comprados. Nesta relação entre o conteúdo e a forma como ele é apresentado não há apenas um truque para enganar o comprador incauto. É plausível que quem se preocupa a fazer excelentes vinhos cuide da sua apresentação. Também as editoras que escolhem certos autores terão um cuidado acrescido na forma como apresentam as suas obras. Uma certa consciência ingénua vocifera dentro de mim. Ainda não sabes que deves distinguir a aparência da realidade? Olho para ela com desdém e pergunto-lhe se não sabe que já não tenho idade para me preocupar com a realidade, que não há coisa melhor no mundo que uma bela aparência? E se o vinho não prestar ou se o livro for ilegível? Paciência, não podemos querer tudo.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Não cair em tentação

Acordei a meio da noite e para combater a insónia abri o romance Os Enamoramentos, de Marías. Agora que passei a fronteira do primeiro terço da obra começo a vislumbrar por que razão Maria Dolz, a narradora, me envinagra levemente o ânimo. Não sei o que me reserva o que falta do texto, mas aquela não é uma mulher plausível. Desconfio que seja um travesti. Que não seja mal entendido. Um travesti mental. Os homens deveriam ter cuidado em colocarem-se dentro da pele das mulheres e inventarem discursos que imaginam serem o delas. Se forem perspicazes, o melhor que conseguem perceber é se estão ou não diante de um pensamento feminino, mas sem a pretensão de ultrapassar uma visão muito genérica e exterior da gestalt desse pensamento, cuja composição interior, pela complexidade, lhes escapa. Talvez seja eu que tenha uma perspicácia diminuta e não interprete como devia a atracção que a narradora sente pela boca de Díaz-Varela, o homem a quem as mulheres sem dificuldade se dobram, mas cujos lábios possuem um recorte feminino que tanto a fascina. É natural que eu não seja levado a sério. Com tantas coisas a fazer neste mundo, com tantos tortos a endireitar, com tanta gente a libertar, e eu de candeias às avessas com o perfil psicológico e a verbosidade de uma mulher que só existe no papel. O dia está tristonho, um pombo poisou agora no parapeito da janela e, mais uma vez, tomo consciência que não nasci para salvar a humanidade. Num caderno apontei: nunca ter a tentação de escrever do ponto de vista de uma mulher. Não apenas por falta  de talento, mas por impossibilidade ontológica e assim acabo com um ar pretensamente filosófico. O pombo cansou-se do poiso e foi contemplar o mundo para outro miradouro.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Não me faltam temas

Por fim uma boa notícia. Depois de semanas a desafiar a minha paciência, a balança cedeu uns hectogramas. Sublinhei alto o sucedido e disse que a meditação transcendental e a recitação do mantra estavam a dar efeito ou, alternativa mais científica, que o facto de ter mudado a pilha à balança refreou o seu ímpeto para me vexar. Ouvi um gélido é verdade, esta semana foi mais agitada e não jantámos um único dia fora de casa. O meu olhar ficou parado no vazio. Este senso comum irrita-me. Ainda pensei retorquir sobre a falta de elevação espiritual do comentário ou a pouca crença na ciência que nele havia, mas calei-me, antes que a conversa derivasse sobre a necessidade de fazer exercício para disfarçar a barriga. Este tema também me está a irritar e parece que não tenho outro. Ora isso não é verdade. Temas não me faltam. Aliás tenho mesmo uma lista de assuntos a tratar. O que acontece é que muitas vezes não sei onde tenho a lista e outras esqueço-me dela. Na lista, para que não se pense que estou a mentir, está como assunto o agastamento que a narradora de Os Enamoramentos, de Javier Marías, me está a causar. Estou farto da opinião da senhora, se é que ela pode entrar na classe das senhoras. Este tema, o da classe das senhoras, é delicado e as minhas opiniões poderiam ofender alguém. Uma sirene anuncia um paciente a caminho do hospital. Eis uma matéria que não consta na minha lista e, por isso, sobre ela não falo. Logo vem o meu neto. Espero que ele queira falar comigo.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Um problema de consciência

Olhei para a rua e pensei que devia enfrentar este tempo incerto e fazer uma caminhada. A necessidade de andar tornou-se um pensamento recorrente nos últimos meses e chego a temer que se transforme numa obsessão. Quando tomo consciência de que estou a pensar nisso, encolho os ombros, sento-me à secretária e espero que outra coisa venha ocupar-me o espírito. Se o malfadado pensamento persiste, sou mais drástico, encho o peito de ar e fecho a janela. A minha consciência diz-me que não devia escrever coisas como estas, pois o fitness, que o estrangeirismo me seja perdoado, não deve ser objecto de ironias de mau gosto, ainda por cima vindas de alguém que anda sempre em conflito com a balança e a leitura que esta se atreve a fazer da realidade. Vale-me olhar com condescendência, se não com desprezo, para a minha consciência. Toda a gente estima muito a consciência que tem, não havendo no mundo melhor que a sua. Por mim, vendia a minha ou, se ninguém a comprasse, deitava-a num daqueles depósitos que recolhem materiais usados para reciclar. Não para que ela possa ser reutilizada, mas para não poluir mais este pobre planeta, que geme e arfa sob as poluções nocturnas de consciências inquinadas, que não param de distribuir sentenças e bons conselhos por tudo o que é sítio. Uma réstia de sol ilumina as paredes da escola ao fundo da rua. Convida-me a sair de casa e ir caminhar cidade fora. A continuar com pensamentos destes ainda tenho de marcar consulta no psiquiatra. Talvez todas as sextas-feiras sejam dias de paixão.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Rebelião

Ataranta-me a proliferação de senhas que os diversos sites com que interajo me obrigam a coleccionar. Não fora perigoso e criaria um herbário onde colocaria cada uma das senhas e a respectiva catalogação. Assim tenho de recorrer ao registo mnésico para poder entrar e sair de portas e portões onde a vida me faz entrar. Poderia ser como aqueles loucos benignos que possuem uma memória prodigiosa e que sabem de cor a lista telefónica de uma zona ou os resultados, jogo a jogo, do campeonato nacional de futebol desde que ele começou até aos dias de hoje. A loucura ainda não é a casa onde habito, mas nada me diz que não venha ser, por muito que me custe. Já a memória vai fenecendo dia após dia, num trabalho de rasura que começa pelas coisas mais recentes e, como uma onda, se vai propagando pelo passado. Enlouquecido e desmemoriado está o aquecimento desta casa. Para o tratar puseram-lhe um termóstato novo. Parecia ter serenado, trabalhava segundo a programação feita, não se esquecia dos parâmetros. Teve porém uma recidiva e trabalha furioso. Tenho de lhe pôr um colete-de-forças e mandá-lo internar, antes que morra de calor. Aborreço-me quando as coisas decidem ter autonomia e agem por conta própria, quando exibem uma contumácia de propósitos que contrariam as ordens que lhes prescrevo. Conheço pessoas que se pudessem ordenavam o mundo segundo os seus critérios e só assim ele, na sua opinião, seria perfeito e não o caos que é. Não me incluo nesse universo de ordenadores do mundo, mas também era evitável que meras maquinetas se rebelassem contra a minha vontade.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Do Inverno que se aproxima

Já faltam poucos dias para que o Inverno triunfe sobre o Outono e alcance o primeiro lugar no grande campeonato das estações do ano. Esta estratégia retórica baseada numa analogia pouco vigorosa não deixa de fazer pensar que a natureza tem uma certa inclinação para a repetição e para a igualdade. A vitória de hoje é a derrota de amanhã e vice-versa. Pena é que o mundo dos homens não seja assim. Não por uma questão de justiça, mas pela perfeição que há em tudo o que é cíclico. Os gregos antigos – alguns, para não fazer uma generalização precipitada – tinham grande veneração por tudo o que tivesse a ver com círculos e esferas. Em Portugal, também se manifesta esse tipo de amor como se pode ver pela sábia proliferação de rotundas. Todas estas derivações quase me faziam esquecer o assunto. O Inverno e o seu triunfo iminente. Imagino-o com mantos de neve, frios glaciais e lareiras acesas. A imaginação é muito mais poderosa que a realidade. Aqui neva tão raramente que é preciso que os deuses estejam muito distraídos. É um Inverno insípido e triste que me dá vontade de fincar os pés no Outono e impedir o calendário de perder as folhas. A realidade nunca tem a mesma medida que os nossos desejos.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Da interpretação dos sonhos

Um acaso levou-me a um texto escrito em português mas com um vocábulo alemão por título. Traumdeutung, interpretação dos sonhos. Invejo as pessoas que têm sonhos para interpretar. Muito raramente me recordo de um e quando isso acontece, vejo-o apagar-se e voltar para o esconso lugar de onde veio, privando-me da arte da interpretação. Quem não tem sonhos para deles fazer hermenêutica é uma espécie de ocioso psicológico ou, no pior dos casos, um indigente da psicologia, que nem um sonho tem para contar. A noite chegou e aquilo que estive a fazer não me deu o melhor dos humores. Talvez aqueles que não têm sonhos para submeter à busca da sua significação devessem tentar interpretar a variação de humor que sofrem. O gargalo da noite partiu-se e os demónios saíram da garrafa, saltitam pelas ruas sempre prontos a tentar as almas que vão por aí transidas de frio. Como todos sabem, o material das almas é muito sensível à temperatura. Muito calor, elas evaporam-se. Muito frio, e elas encolhem tanto que o seu proprietário parece um desalmado. Se eu tivesse um sonho para interpretar escusava de estar a falar daquilo de que não se pode falar. O melhor é seguir o conselho do senhor Wittgenstein e calar-me.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Fim das actualizações

Há uma semana que os presépios tomaram conta da sala. A um canto, está o presépio tradicional embora sem musgo e depois, distribuídos pelos móveis, múltiplos pequenos presépios que com os anos se foram acumulando. Já ninguém se lembra como a coisa começou e, verdade seja dita, não foi assim há tanto tempo. A cada um as suas idiossincrasias. Hoje ainda não saí de casa. A névoa cobre a terra, oculta o hospital que haveria de se ver da minha secretária, abre-se num horizonte de cinza contra o qual se recorta o pequeno bosque da escola ao fundo da rua. O Outono corre para o Inverno, deixando na memória estes dias que pedem recolhimento. Inopinadamente, enquanto escrevo isto, a Microsoft informa-me que o meu Office vai deixar de ser actualizado. Recomenda-me que adquira uma versão mais consentânea com os dias de hoje. Também eu há muito deixei de ser actualizado e, por mais voltas que dê, não consigo comprar uma versão mais moderna de mim. Sempre posso usar um daqueles programas gratuitos alternativos aos da Microsoft, mas no meu caso nem gratuita há uma versão alternativa. Não porque eu seja uma singularidade, mas porque não há qualquer vantagem em haver outra versão de mim. A natureza é sábia e usa a frugalidade para evitar a multiplicação do erro. Tenho muito que fazer. A corveia que me permite enfrentar a dura necessidade não me dá descanso. Oiço uma música chamada Ships Along the Harbor. Vejo o cais, os barcos atracados, o ondulado das águas, sinto o sopro do vento marítimo e os meus pés a caminhar na humidade do porto. Tudo isto sentado com uma pilha de papéis na frente para ler. O Natal aproxima-se e ainda não cuidei da secção dos presentes.

sábado, 7 de dezembro de 2019

O deslizar do sábado

O sábado deslizou-me da mão num ápice. Esteve luminoso, mas já se embrulhou num cobertor de cinza e não tarda veste o roupão negro da noite. Se eu fosse o autor destas frases, haveria de pintar a cara de negro. Recordo-me com melancolia do tempo em que as horas subiam e desciam a encosta do dia com um passo tão vagaroso que parecia haver uma suspensão do tempo. Era uma antevisão da eternidade, mas nessa altura a eternidade não me interessava para nada e aquilo que mais queria era que o tempo passasse até àquela hora em que algum prazer, modesto que fosse, esperasse por mim. Pelo acumular de pretéritos imperfeitos do conjuntivo só posso suspeitar que mesmo para um prazer modesto o desejo era grande. Não devia entregar-me a hermenêuticas gramaticais que raramente levam a bom porto. Hoje comprei um bolo-rei, o primeiro da época. Confesso que me tornei desleal ao rei e, por norma, presto vassalagem à rainha, desde que esta saiu do tabuleiro de xadrez para se transformar em bolo de Natal e Ano Novo até aos Reis, mas hoje as rainhas não estavam disponíveis. Muito gente abomina a fruta cristalizada. Eu sei que é uma grande xaropada, mas condescendo com ela e não sinto que, ao comê-la, os parentes sejam arrastados pela lama. Também não devia usar expressões ao gosto popular. Ainda por cima é o segundo não devia que uso. Talvez devesse – mais um pretérito imperfeito do conjuntivo – psicanalisar-me para descobrir o trauma que me leva a repetir o desconsolado não devia.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Passar para a página seguinte

Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Do amor aos adjectivos

A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O esplendor de um dia de Inverno

Não há dias mais gloriosos que os frios banhados pelo sol. Olho para a frase e lembro-me de um poema de Eugénio de Andrade que começa assim Obedecem-me agora muito menos, / as palavras. Penso na sorte que ele teve por ter havido um tempo em que elas lhe acataram as ordens. A mim sempre recusaram submissão, talvez por falta de talento para usar nelas a rédea ou o chicote. Ocorreu-me agora um dito de Nietzsche sobre a necessidade de levar o chicote, mas recuso-me a partilhá-lo não vá ofender a sensibilidade da época. Também é possível que a máxima do filósofo alemão não quisesse dizer nada, nem aquilo que nela está dito nem aquilo que nela se subentende. Seria apenas o esplendor de um dia de Inverno em que a neve cintila sob a luz impiedosa do sol, um exercício de pirotecnia para semear o céu com fogos-fátuos e a terra com invólucros destroçados pelo rebentar da pólvora. Passa-me pela cabeça que não se deve confiar em filósofos, principalmente se são alemães, mas também devo abjurar este pensamento, tão pouco ao gosto dos dias que correm. Como eu quereria dizer se frequentas as palavras, não esqueças o chicote. Não o digo, pois não foi a vocação de domador aquela que os deuses depositaram nas volutas do meu código genético.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Cair em tentação

Não sei como nem porquê, a toranja tornou-se aqui em casa um bem de primeira necessidade. Há pessoas para tudo e até para uma coisa dessas. Tendo-se acabado as que havia, fui ao hipermercado aqui ao lado em busca do santo graal, não propriamente o cálice sagrado onde José de Arimateia recolheu o sangue de Cristo, mas dos frutos amargos que dão um excelente sumo para começar o dia. Ainda dentro da superfície comercial, não resisti a passar pela zona dos vinhos. Trazia o cálice e o sangue. O pior foi ao sair. Um cheiro a farturas atropelou-me. De saco de compras na mão, como um sonâmbulo, lá me encaminhei para a roulotte. No caminho, murmurava não me deixes cair em tentação, não me deixes cair em tentação, olha a balança. Ninguém me ouviu, ninguém quis saber da balança, nem do colesterol, nem da saúde, nem me quis aliviar da tentação. Eu também não. Uma fartura. É assim que o mundo se perde. Vem a serpente, tenta uma pessoa, o cãozinho pavloviano que há em nós saliva e o mal está consumado. Talvez o sumo de toranja compense. Há que não perder a fé.

Há que desconfiar

Todos os dias alteio mais um pouco o muro que me rodeia. Fecho-me lentamente ao mundo, cubro com cimento as fendas na muralha, certifico-me da qualidade do isolamento sonoro. Ainda não é perfeito, mas a perfeição não é coisa que se consiga de um dia para o outro. Ponho-me a imaginar que o que sou é apenas o resultado de um programa genético. Uma bela desculpa para a minha falência, embora tenha o inconveniente de rasurar algum pequeno mérito que possa, aqui ou ali, ter tido. A última coisa que quero neste momento é uma meditação sobre o livre-arbítrio. Estava a falar do software que me faz ser o que sou e este parece que me conduz a um inexorável isolamento. Nos dias em que estou de humor benigno digo que deveria ter entrado para um convento, daqueles mais rigorosos, para a trapa ou para a cartuxa. Riem-se do dislate e ninguém acredita. Eu também não, mas lentamente vou construindo a minha cartuxa, limpando-a do incómodo que a presença do mundo traz e entregando-me a um silêncio cada vez mais espesso. Falta-me o talento para a oração e há no mundo algumas coisas que ainda fazem cintilar os meus olhos, mas até isso pode ser um exagero. Há que desconfiar de tudo, principalmente de mim mesmo.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Da possibilidade da perfeição

Vinha aqui dissertar sobre a imperfeição e a identidade entre o ontem e o amanhã, mas a quem podem interessar coisas como essas? Há pessoas, cruzo-me com elas todos os dias, que aderem de tal modo à realidade que chegam a parecer reais. Há muito que desisti da minha realidade e até da minha aparência. Como se vê é muito fácil dizer coisas sem sentido. Difícil é encontrar alguma com sentido para dizer. Fará sentido afirmar que lá em baixo um bando de adolescentes se alarga na efusão dos sentimentos contaminado pela efervescência das hormonas? Sobre a espécie humana, as árvores apresentam uma vantagem desmedida. São silenciosas e nos dias de sol projectam uma sombra benfazeja. Li um romance em que a personagem central se transformava numa árvore. Parece bizarro, mas nessa transformação há mais sabedoria do que nas vãs pretensões que alimentam a mente dos homens. Enraizar-se na terra, estender-se para o céu e fazer um voto de silêncio para a vida. Talvez a perfeição não seja impossível.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Dia da defenestração

Faz hoje anos que os Braganças substituíram os Filipes no trono de Portugal. Por muito que goste de Espanha, e gosto muito, dá-me sempre uma boa disposição particular o facto de não ser espanhol. Depois há aquele pormenor insidioso da defenestração do Miguel de Vasconcelos. A política tem destas coisas, uma certa tendência para o exagero e para actos irreversíveis. Ia contar que a execução do colaborador dos espanhóis – supremo símbolo do traidor em Portugal – tinha sido o primeiro assassinato político de que tinha consciência. Seria uma mentira e embora seja obrigado a mentir muitas vezes nestes textos não o faço de propósito. O primeiro foi o de John Kennedy e ainda recordo o meu pai a comentar o assunto com a minha mãe. O caso do Vasconcelos, narrado numa aula da escola primária por um professor ou professora patriota, ficou preso à imaginação pela palavra e pelo modus operandi. Não era todos os dias que se ouvia uma palavra como defenestrar, ainda por cima aplicada a alguém que não só não merecia ir para o céu como todo o castigo aplicado era pouco. Não se pense que falar do céu é coisa despropositada. Lembro-me muito bem, na sequência das aulas de história recebidas naqueles tempos em que a razão não tinha sido contaminada pelo vírus da crítica, de ter pensado como era bom pertencer a um povo cujos governantes e personagens históricas eram não apenas grandes heróis como pessoas particularmente santas. Deviam estar todas na glória de Deus. Talvez o feriado de 1 de Dezembro sirva para assinalar o caso do único português que pela sua aleivosia foi atirado pela janela e só parou de cair quando Satanás o apanhou e o levou para o reino dos infernos. Ainda hoje dou comigo a pensar que as nossas elites se já não são heróicas, os tempos não estão propícios para a coragem, continuam firmes no caminho da santidade. Pelo menos, não tem havido defenestrações.

sábado, 30 de novembro de 2019

Disposição para a culpa

No lugar onde me encontro neste momento chove de mansinho, uma água hesitante, como se as nuvens se sentissem culpadas de molharem quem passa, mas a culpa não fosse suficientemente forte para se conterem. É isto que também se passa com as acções dos homens. Se eu fosse uma pessoa decente e moderna diria acções dos homens e das mulheres, mas sou anacrónico, certo tipo de decências passam-me ao lado e se cultivo a anáfora tento evitar a redundância. Como as nuvens, também eu não consegui conter-me e deixei que o fel impregnasse a malfadada prosa e me desviasse daquilo que queria dizer. As más acções humanas nascem muitas vezes duma hesitação trazida por um sentimento de culpa não suficientemente treinado e vigoroso. Uma boa educação deveria começar por incrustar bem fundo na alma a disposição para a culpa. O autor destas palavras, ao pô-las na minha boca, não tem qualquer consideração por mim. Que Deus lhe perdoe. A chuva não pára, as pessoas passam alheadas, chapéu aberto, e não tarda tenho de pôr-me a caminho. O que vale é que não me esqueci do guarda-chuva.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Os lírios do campo

A sexta-feira progride entre o cinzento dos céus e a tristeza da cidade. Há sempre neste dia da semana um pathos que, contra o que seria de esperar, faz descer nos corações um véu de melancolia, como se o desejado fim-de-semana fosse mais uma ameaça pela sua transitoriedade que um motivo de júbilo pela sua existência. Somos difíceis de contentar. Talvez exista uma memória histórica que se tenha entranhado no nosso código genético e que dispara, sem que se saiba porquê, estes estados de alma. Li que hoje em dia os seres humanos livres trabalham muito mais que os servos da Idade Média. Eu sei que todo o fulgor que nos rodeia, essa possibilidade de fazer compras sem fim, de não perder qualquer promoção, de nos atafulharmos de tudo o que não precisamos, eu sei, dizia, que isso exige muito trabalho, que devemos estar sempre mobilizados para a grande batalha produtiva. E depois lembro-me que os lírios do campo não trabalham nem fiam, mas que Salomão em toda a sua glória nunca se vestiu como qualquer um deles. Temo que a educação religiosa que recebi me tornou completamente desadequado ao mundo onde sobrevivo. Ou talvez eu fosse já desadequado e que a educação recebida, a que não dei a sequência que era desejada, me sirva de desculpa. São ínvios os caminhos do Senhor.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O caso do santo que não faz milagres

À tarde um acaso profissional levou-me a pensar em Perry Mason e Paul Drake. Não me esqueci, claro, de Della Street. Há muitos anos que não convivo com estas pessoas, mas houve uma altura em que a sua companhia foi para mim fonte de grande prazer. Pensei em Mason e Drake porque necessitava dos seus serviços para uma das tarefas que a existência me impõe. Foi um pensamento instrumental, confesso. Talvez eles possam ajudar-me a resolver o caso do santo que não faz milagres. Sei que estou a tornar-me obscuro, mas a vida também é feita de obscuridades. Quem seja o santo e que milagres queria eu dele, não vem agora à colação. De Della Street lembro-me da imutabilidade da sua aparência, de nunca se aventurar na casa dos trinta anos e da eficiência e fidelidade profissionais. Talvez numa parte recôndita da minha alma habitasse, naquele tempo, um fraquinho por ela. Tudo é possível, pois são mais as coisas que não sabemos que aquelas que sabemos. Estas são as cogitações que me obrigam a pensar, muitas vezes contra a minha vontade, mas quando se é o produto da imaginação doentia de um déspota não é de esperar outra coisa. Se soubesse onde é que guardei o número do escritório do Mason, ainda lhe ligava hoje.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Um belo livro

Tenho entre mãos o belíssimo livro de poesia de Ana Luísa Amaral, Ágora. Comprei-o há pouco e ainda não tive tempo para ler qualquer poema, mas a beleza do objecto, antes que a do espírito se manifeste, vem-lhe do corpo. Uma edição de capa dura, onde se reproduz a pintura Jacob lutando com o anjo, de Bartholomeus  Breenbergh, nascido em Utreque no ano de 1598. Cada poema é acompanhado pela reprodução de um quadro. Num deles, de Georges de La Tour, vê-se uma Madalena penitente, e todo o livro é um jogo de diluição de fronteiras ou de contaminação. A tarde parecia propícia para a leitura. Hoje não houve até agora ensaio do grupo de baile da escola aqui ao lado, mas um aspirador ruidoso teima em assegurar o asseio de um dos apartamentos do prédio. Também nas instalações da antiga agência bancária, prossegue uma batucada sem ritmo, que se repercute nas paredes e desagua em mim. Folheio o livro com cuidado e vejo as pinturas. Há duas Salomés, mas o que me prende os olhos é uma reprodução de Ecce Ancilla Domini, de Dante Gabriel Rossetti. Ali vejo tudo o que há de feminino numa mulher, mas esta minha frase precisa de ser censurada, pois os dias não correm de feição a considerações metafísicas. Enquanto a tarde desliza brandamente sob um céu mesclado de azul e cinza, eu fico a olhar com demora a escrava do Senhor. Afinal, o grupo de baile sempre tem direito ao seu ensaio.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Submetidos à irmandade

Gostaria muito de crer que a proposição “os pinguins são seres humanos” é verdadeira, como me afiançaram talvez por desfaçatez ou distracção. Nunca se sabe o que move os indivíduos pertencentes à nossa espécie. Apesar do meu esforço em torcer a consciência, tive de me declarar incrédulo. Não ser crente num mundo como aquele que frequento para obstar à maldita necessidade é errado e começa a ser perigoso. A minha realidade existencial é superintendida por uma espécie particular de teólogos. Estes têm por divisa o quanto mais absurdas forem as nossas crenças com mais empenho as devemos impor. Fazem-no com denodo e sem cansaço. Com o passar dos anos a produção teológica tornou-se exorbitante e não se observa nenhum sinal de abrandamento. A matéria de fé é tão extensa e a dogmática tão hiperbólica que é impossível que qualquer um dos superentendidos pela irmandade não seja numa qualquer altura um verdadeiro heresiarca. Como todos sabemos, os heresiarcas não costumam ter um bom destino, e talvez seja por isso que aqueles que como eu se submetem à irmandade tenham sempre a consciência pesada. Não por um qualquer pecado capital, mas por sustentarem por palavras e acções uma qualquer heresia da qual não têm consciência. Já pensei estabelecer uma correlação entre o tipo de textos que escrevo e os dias da semana. Talvez se mostrasse que as terças-feiras não são especialmente propícias para escrever coisas com nexo. Fico por aqui, pois espera-me uma tarefa sem a qual o mundo ficaria bem pior.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Versão free

Avariou-se o termóstato da caldeira. Pressuroso, fui à etiqueta colada ao dispositivo para ver o número de telemóvel de quem cuida destas coisas, uma empresa familiar. Queria falar para o filho, mas digitei o número do pai que estava na linha de cima. Apareceu uma senhora que não era a mãe, nada sabia de termóstatos e muito menos de caldeiras. Depois de me desculpar, pensei que não estava mal. Dois erros numa única tarefa, das mais simples que se pode atribuir a alguém. Se pudesse despedia-me a mim mesmo e substituía-me por uma versão melhorada, que se enganasse menos ou visse melhor. Temo, porém, que nem numa versão premium, daquelas pagas e renováveis ano a ano, o serviço estaria ao nível desejado. Pensando bem fico-me pela versão gratuita ou para parecer cosmopolita, coisa que não sou, pela free. Não é grande coisa mas tem a vantagem de contribuir para a poupança nacional.

domingo, 24 de novembro de 2019

Neblinas e inacabamentos

O domingo nasceu coberto de neblina. O hospital é apenas um esboço suave perdido numa planície de cinza e o arvoredo da escola ao fundo parece uma cortina de pano escuro suspensa de um tecto indeciso. Os pombos rasgam o céu de penumbra, abrindo pequenas fendas por onde brota mais e mais neblina. Um corvo perdido na paisagem urbana funde-se na névoa e tudo é quietude e silêncio. O café da praceta aqui ao lado está fechado e as crianças que costumam ocupar o parque infantil desertaram, levadas pelos pais para lugares menos húmidos. Estou aqui sentado a enrolar palavras como quem enrola tabaco para se entregar ao prazer de o queimar. Também todas as minhas palavras têm como destino arder, dissolver-se em fumo e mostrar que nelas nada há. Daqui a pouco o meu neto será baptizado e talvez isso mude a sua vida. A minha teria sido muito diferente caso não tivesse sido levado à pia baptismal? O hospital acabou de desaparecer. Agora só vejo um prédio erguido num descampado que uma qualquer crise não deixou acabar. Aquele prédio não é mais que a imagem da vida, um exercício inacabado que dura até que a última crise consagra o inacabamento definitivo. Talvez um dia fale aqui de uma carta que Max Weber dirigiu à viúva de um amigo acabado de morrer. Talvez.

sábado, 23 de novembro de 2019

Encontro com o mordomo

Hoje tive, logo pela manhã, um novo desentendimento com a balança. Mais trezentos gramas que no sábado passado. Depois de uma semana inteira de intensa meditação transcendental e de recitações do mantra sagrado e as coisas estão piores. Só pode ser da pilha, pensei. O mais assisado é mudar-lhe a fonte de energia. E foi com estes pensamentos que saí de casa. No café que, uma vez por outra, me acolhe, alguém, voltando-se para mim, diz bom dia. Havia por certo no meu rosto um sinal de perplexidade, pois ouço-o dizer então não me conhece? E sem deixar-me responder, acrescentou sou o mordomo. Ainda há dias falou de mim. Claro, era o mordomo. Deixei a cozinheira de lado e perguntei-lhe pela duquesa. É espanhola, respondeu-me. Não sabia. Sim, continuou, muito próxima do Rei. Ao ver o ricto que se me desenhou na face, riu-se com duas gargalhadas sonoras. Você é um patriota, mas não se preocupe, o Filipe está muito ocupado com a Catalunha que não tem tempo para pensar em invadir Portugal. Essa coisa dos Filipes foi há muito e a traição dos Braganças já foi vingada. Além disso esses eram Habsburgos e este é Bourbon, disse ele com entoação castelhana. Pensei perguntar-lhe o que fazia ali, mas evitei dar-lhe oportunidade à confissão. Declarei que um dia gostaria de conhecer a duquesa, embora estivesse mais interessado na cozinheira, o que omiti. Como despedida perguntei-lhe se ele se lembrava da frase de Talleyrand sobre os Bourbons, ao que respondeu que era um simples mordomo. Eu sorri da vitória e saí. O sábado começou mal, mas compôs-se.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A aceleração do tempo

As minhas sextas-feiras estão longe da perfeição. Começam com uma lentidão exasperante, com os segundos a arrastarem-se trôpegos e indecisos pelo caminho, quase incapazes de se transformarem em minutos, evitando o mais que podem que estes se combinem em horas, ronceiros a fazer gala na indolência, madraços subjugados ao pecado mortal da preguiça. Imagino que por virtude de um almoço revigorante, chegada a tarde, esses mesmos segundos são tomados por uma louca azáfama e dão em acelerar pela pista fora, como se tivessem por missão conquistar a pole position e saírem na frente da corrida. Nada lhes tolhe as pernas e quanto maior é a presteza com que passam, mais rápido se movem. Chegada a noite, cada minuto passa à velocidade de um segundo e não há sinalização de trânsito nem radar que os leve a amolecer o ímpeto. Se eu fosse um homem de engenho, apunhalava uns tantos, deixando-os a sangrar para que os outros segundos os vissem com olhos de ver e tomassem tento, aprendendo com Zenão e tornando-se em verdadeiros Aquiles que nunca hão-de alcançar a vagarosa tartaruga. Falta-me veia para executor e, dir-me-ão, arte para encontrar motivo para escrever coisas decentes, que animem o mundo ou edifiquem as gentes para que estas não entrem no caminho da perdição. Muitas são as vias que nos levam à loucura, umas mais lentas outras mais rápidas. Haverei de lá chegar.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Moral da história

Estava a ler uma pequena história que metia um mordomo e uma cozinheira. Histórias destas são sempre edificantes, mas não a vou contar, pois falta-me talento para pregador. O mais que posso desejar é que um e outro possam prosseguir tranquilos a vida dentro da história, que esta cresça e se torne primeiro numa novela e, depois, num grande romance. Aqui, porém, a realidade torna-se complexa e pode acontecer que o mordomo de passagem pela cozinha e ao ver a faca da cozinheira se sinta inclinado ou a matá-la, ao sentir-se traído pelo motorista, ou a suicidar-se, cansado de esperar o amor da proprietária da faca. Nessa altura o leitor fica confuso, pois não sabe se a faca pertence à cozinheira ou se é propriedade da duquesa para quem a cozinheira dá o melhor dos seus talentos. E uma nova perturbação é introduzida com esta última frase, pois não fica claro que talentos oferece à duquesa a sua cozinheira, pois esta pode ser pessoa de engenho e que sirva na cozinha e noutros lugares do palácio, que por pudor, não me atrevo a especificar. O mais certo, porém, é que o mordomo evite a cozinha, não veja a faca e à falta do objecto não se desencadeie nele a pulsão de morte, o que seria de lamentar. Sempre gostava de saber, por mórbida curiosidade, quem é que anda a dormir com quem e que relações há entre a duquesa e o pessoal que dela cuida, para poder extrair uma moral para história e vir aqui fazer grande pregação.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Inclinação para o plágio

Hoje enrolei o dia com o manto das coisas inúteis. A frase é pretensiosa, mas não me ocorreu melhor início para este diário. Quanto mais inúteis são elas, mais merecem aplauso e consideração. Não estou a protestar contra a ordem da natureza, mas a sublinhar que é assim. Já não tenho idade para me revoltar contra a realidade, até porque ela não deixaria de ser o que é, por mais que eu reclamasse. Este é o melhor dos mundos possíveis e as coisas estão sabiamente ordenadas. Contrariam os meus desejos, desmentem as minhas crenças, riem-se das minhas convicções. Não fosse assim, o mundo não seria mais que a projecção do caos que me habita. Não sei se estas filosofices que me saem dos dedos – e não da razão, pois a minha já teve melhores dias – se devem ao culto do inútil a que me ative todo o dia ou se à sanha esburacadora com que o homem do berbequim eléctrico enfrenta a dureza das paredes naquele sítio que já foi uma agência bancária. Tenho a secretária cheia de livros, mas não se pense que é por avidez de leitura. Estão desarrumados, esperam que tenha piedade deles e os ponha nos seus devidos lugares. Sobre o homem do berbequim têm a infinita vantagem de não fazerem barulho e, se os interrogo sobre o que está neles, mantêm-se mudos. Esta é a segunda citação filosófica não identificada que faço. Ainda sou acusado de plágio. Na escola aqui do lado, o grupo de baile continua perdido no seu Brideshead. Acho que tenho de ir mostrar a garganta à médica. Aposto que um dos dois não vai cumprir o horário.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Da imperfeição do mundo

Um brruuum contínuo está apostado em estragar-me os poucos momentos que tenho para aqui estar. Decorrem obras no lugar onde existia uma agência bancária que, tomada de inquietação, se cansou de estar onde estava, no rés-do-chão deste prédio. O cansaço dos bancos nunca é coisa que tenha bons resultados. Em vez de haver lá por baixo pessoas com ar grave a tratar de negócios em surdina, temos gente armada de berbequim que fez uma promessa de propagar dores de cabeça pelo prédio inteiro. O mundo nunca se cansa de nos fazer reparar na sua imperfeição. O brruuum persiste e mistura-se com o som de um alarme, os latidos de um cão e os gritos de adolescentes que correm à chuva. Não tarda e há-de passar uma ambulância com a sirene a multiplicar aflição. A realidade não passa de um concerto, embora os nossos ouvidos nem sempre estejam preparados para a musicalidade que dela nasce. Olho para a rua e as árvores estão imóveis, estátuas vivas de deuses cujos nomes esquecemos. Terei de sair e talvez quando voltar o silêncio tenha regressado. A esperança não deixa de ser uma virtude, apesar de alguém ter confundido as paredes com um bombo, em que bate numa cadência descuidada e irritadiça. Uma ópera.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Vou espirrar

Uma das acácias que ainda há poucos dias mostrava a folhagem de um verde exuberante deixa agora ver os primeiros assaltos do amarelo. Só a terceira resiste. Que não amareleçam as três ao mesmo tempo, elas que estão tão próximas, é um enigma ou, para ser mais exacto, a prova da minha ignorância acerca do mundo vegetal. Parece que me constipei. Entrego-me ao ritual dos espirros como quem está numa cerimónia religiosa. Devoto e compungido. Os dias continuam a encolher devorados pelas trevas da noite. É pena que já não temamos a possibilidade do Sol desaparecer e sintamos pleno júbilo no momento em que a luz vence as trevas e os dias vão-se tornando maiores. Havia grandeza no temor e no júbilo, como se o futuro nunca estivesse garantido e fosse preciso propiciar as forças ocultas para que elas não nos arrastassem sabe-se lá para onde. Isto, porém, sou eu a falar comigo, levado pela minha tentação de anacronismo, uma doença grave no dizer dos profetas do progresso e do futuro, os quais não sabem que o único futuro que nos espera é a morte. Não estou tétrico, mas acordei com pouca paciência para os anunciadores de futuros risonhos, frades pregadores da felicidade e comerciantes da auto-ajuda. Vou espirrar, o que vale é que tenho um lenço à mão.

domingo, 17 de novembro de 2019

A minha bipolaridade

Segundo opiniões escutadas aqui e ali, consta que sofro de bipolaridade. Umas vezes pareço leve e irónico e outras que transporto em mim toda a escuridão disponível no mercado dos lutos. Aquilo que sou, eu que não passo de um ser virtual, pois nem sequer de papel é a minha natureza, devo-o ao autor destas palavras, que manipula o meu ser, fazendo-me à sua vontade, mas talvez não à sua imagem e semelhança. Ele não é Deus, por muito que isso lhe possa doer. Se vejo o mundo como um dia escuro e tempestuoso, uma sexta-feira santa, ou se me entrego ao júbilo de um domingo de Páscoa, isso está para além da minha vontade. Todos os meus exageros, todas os meus esgares, todo o riso sardónico que ostento, nada disso sendo meu me pertence. Sofro-o sem possibilidade de lhe fugir. Um raio de luz fende as nuvens e abre-se com um sorriso triste sobre o casario, logo em mim se esboça uma alegria, não porque eu seja alegre, mas porque aquele que escreve quer que o seja por instantes. Lá fora passa um cão e eu sinto-me irmanado com ele, pois a realidade do animal não é maior nem menor que a minha. O pior é a tosse, se tivesse uns rebuçados peitorais Dr. Bayard seria mais fácil.

sábado, 16 de novembro de 2019

Balanças incrédulas

Guardo para os sábados, ao levantar-me, um ritual que não aconselho a ninguém. Ponho-me em cima da balança e vejo o veredicto. Hoje não foi diferente. A julgadora, amante de hipérboles, concedeu-me uns números excessivos, que não lhe asseguram a meus olhos qualquer credibilidade. Saí de cima dela, respirei fundo e dei-lhe uns segundos para repensar a mensagem que me queria transmitir. Voltei ao rito, ela, contudo, também cultiva a anáfora e devolveu-me o mesmo peso. Tudo isto é inexplicável. Há três semanas que sigo um programa rigoroso de emagrecimento e nada. Todos os dias sento-me tranquilo e apaziguado e dedico vinte minutos a uma profunda meditação transcendental, seguida de cinquenta recitações do mantra Om Mani Padme Hum e, no fim de cada uma, projecto no universo a minha imagem sem barriga e outras adiposidades que não vêm ao caso. A balança, na sua essência digital, não se comove. Estou arrependido de a ter comprado, mancomunada que está com a interpretação científica do mundo, pouco dada à espiritualidade. Se ela não se arrepende e converte substituo-a por uma analógica, que não há-de ter aqueles inconvenientes que Heidegger aponta à técnica moderna. Oiço uma voz insidiosa a exclamar e que tal fazer exercício. Atónito, nem consigo perceber se foi alguém que falou ou se a minha consciência adquiriu alforria e pensa que deve ser o meu personal trainer. Digo silêncio, sento-me e a partir de agora serão trinta minutos de meditação transcendental e cem recitações do mantra sagrado. Hei-de chegar ao peso dos vinte anos.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Ser apócrifo

Entre o original que foi concebido e o que sou vai uma grande distância. Não passo de uma falsificação de mim mesmo, um exercício de apocrifia, como aqueles evangelhos onde Cristo se excede em actos e revelações mas que a Igreja nega-se a reconhecer. Estão lá coisas interessantes, a verdade, porém, está noutro lado. Como todas as pessoas, também gostava de ser o eu autêntico, mas chegado a sexta-feira à noite descubro que não passo de um apócrifo. Vieram os dias frios e isso consola-me. Imagino estar sentado à lareira, com um gato ao pé, a fumar cachimbo, enquanto o lume crepita e o tempo passa a caminho da Primavera. É o meu lado de contrafacção, aliás o único que tenho. A casa não tem lareira, eu não tenho gato nem fumo e o crepitar da lenha no lume não me comove. Quando era adolescente imaginava-me piloto de fórmula 1 e talvez essa tenha sido a única coisa em que me imaginei, embora por escasso tempo. Hoje conduzo resignado e não tenho paciência para saber de carros. Só espero não me enganar na via quando entro para uma auto-estrada. A vida não passa de um conjunto de foras-de-jogo e penaltis falhados.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Da bastardia das acácias

Há pouco desesperei do meu talento de taxinomista (quando escrevo esta palavra penso sempre em taxidermista). Tinha classificado duas árvores que vejo daqui como acácias bastardas. Ter chegado a essa categorização não foi para mim, possuidor de uma ignorância generalizada sobre tudo o que é flora, um exercício fácil. Hoje ao olhar para as árvores lembrei-me que essas acácias são de folha caduca e elas, com Novembro já meio vazio, estão de um verde contumaz. Se são de folha persistente, então não são acácias vítimas de bastardia. Logo veio a ironia fácil e pensei que terão nascido dentro do casamento e são legítimas. Levantei-me, fui à janela para as olhar com mais atenção e tentar perceber mais uma vez o formato da folha. Nesse momento fui salvo. Ao lado das duas está uma irmã, que não via da secretária, já com a folhagem amarela, prenunciando a caducidade das folhas. São-me ocultas as razões que terão levado uma a amarelecer mais depressa que as outras. O meu mundo reduz-se a cada dia que passa. Chove, venta, os astros e os humores andam indispostos e eu penso em coisas tão importantes como a bastardia das acácias, a caducidade das folhas, a caducidade de tudo o que penso, a minha caducidade inexorável. Teria sido mais sensato ter-me dedicado à taxidermia, mas agora é tarde.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Ida à lavandaria

Saí para ir buscar uns livros à lavandaria. Os tempos modernos são assim. Encomendam-se livros online, escolhe-se um sítio onde se podem ir buscar e vai-se lá levantá-los. Antes de termos atingido este grau de modernidade, íamos aos correios e cumpríamos um denso e complicado ritual até termos na mão aquilo que era nosso. Agora, neste tempo em que tudo foi dessacralizado, pode-se fazê-lo na lavandaria ao lado de casa, o que é uma vantagem muito grande. Ficamos certos de que os livros vêm lavados e engomados, prontos a vestir. Também é verdade que já ninguém põe goma na roupa, mas tenho uma certa inclinação para o anacronismo. Quando saí com a encomenda debaixo do braço, a noite tinha caído e na rua havia já vestígios do frio que a partir de amanhã há-de vir da serra para cair sobre os incautos transeuntes. Pego nos livros, cheiro-os, sinto o aroma a asseado. Para ser sincero, dois deles têm um papel reles e é possível que não aguentem muitas idas à máquina de lavar. Quando o mundo começa a trocar as categorias, quando tudo parece fora dos eixos, não sou eu que tenho a sorte maldita de ter de o endireitar. Não há nada como acabar com uma citação de Shakespeare e assim encobrir a funda ignorância que me acomete.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Shift+F7

Chega-se a terça-feira e tudo está perdido. Nessas alturas, tomado por um desvario, quase acredito que seria óptimo crer no bom selvagem, mas logo penso que me falta tempo para conviver com a prolixidade do senhor Rousseau e passo à frente. Da janela avisto um bando de adolescentes. Não disfarçam o selvagem, mas esquivam-se a mostrar a bondade. Já estão corrompidos pelo processo civilizacional, admito. Agora deixo mesmo o genebrino em paz. Tenho uns documentos para concluir, mas sempre convivi não sem beatitude com a procrastinação. Alguém me segreda não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Ah essas memórias vindas do passado são insolências que se intrometem para impedir uma vida feliz. Também o thesaurus do word deu em protelar. Com a palavra a substituir seleccionada, bem carrego no Shif+F7, mas nada se move, deixando-me desolado na minha ânsia de trocar o vocábulo amaldiçoado. Se pudesse também me seleccionava, carregava em Shift+F7 e ficaria à espera de um sinónimo que me servisse melhor do que o original, mas nem para isso estou apto. O céu está cinzento, respiro devagar e vejo o tempo a escorrer. Pressinto a glória do futuro, esse momento em que estaremos todos mortos, e rio como se riem os loucos.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Zé ninguém

Acordei com uma ideia que não me abandonou até agora. Não há grandeza maior do que ser nada, não ter nome, ser ninguém. Terá sido um mau sonho ou terei acordado com os pés de fora. Ao ouvir a algaravia vinda da rua, rio-me da ideia ou de mim, que não serei mais que uma ideia. Toda a gente quer ser alguma coisa, até o maior dos colectivistas ama a colectividade para lhe impor o seu nome. Se a vida fosse uma cartuxa ou uma trapa, haveria menos ruído e qualquer zé ninguém não seria mais nem menos que um zé ninguém. De súbito, descubro que num mundo onde toda a gente é alguém o melhor é ser um zé ninguém. Por vezes, sou levado a dizer coisas com que não concordo, mas não está nas minhas mãos ser dono das palavras que escrevo. Poderia acabar com uma injunção bíblica do tipo quem tiver ouvidos, oiça!, mas não acabo, pois ainda não é chegado o tempo.

domingo, 10 de novembro de 2019

Nostalgia de domingo à tarde

Há pouco tive de passar por um dos supermercados de origem alemã que existem por aqui. Fiquei espantado com a quantidade de pessoas que falavam uma língua que não sei se era russo ou ucraniano. É possível que uns falassem uma e outros, a outra, mas aos meus ouvidos a musicalidade era a mesma. Imaginei que combinassem encontrar-se num sítio daqueles para sentirem estar perto do lugar onde nasceram, criando por instantes uma ilusão que lhes suavizasse a nostalgia das terras do norte. Talvez fosse apenas um mero acaso, irrepetível, fruto do dia triste e chuvoso que desabou sobre a cidade. Os domingos são sempre tristes nas pequenas cidades de província. E ao dizer isto também eu fui tocado pela nostalgia do tempo em que esta cidade era uma vila. Essa designação era justa e nela havia uma nobreza reforçada pela história. Se eu vivesse agora nas terras frias da Ucrânia e da Rússia, também iria a um supermercado para ver se alguém falava a minha língua, para poder recordar-me do pequeno rio que, sob o olhar apaziguado das torres do castelo, atravessa a avenida, numa caminhada solta até se afogar no Tejo. A noite bate-me à janela e eu recebo-a como se recebesse a dádiva de um deus.

sábado, 9 de novembro de 2019

Quantos-queres

Armada com o origami preso aos polegares e indicadores, a minha neta mais velha, apanhando-me distraído, perguntou-me quantos quer? Sete, respondi-lhe inconsciente das consequências, e ela lá manipulou o dispositivo de papel para trás e para frente de modo a que o número cabalístico se cumprisse. Que cor quer? Verde, repliquei incauto. Ela desdobra a maquineta e diz: feio, o avô é feio. É grave, pergunto-lhe. Não, mas o avô é lindo. Esta minha neta tem uma propensão indisfarçável para a correcção social. Eu agradeço-lhe, mais vale uma bela mentira do que sentir o estilete da verdade a sair-lhe da boca. Está uma tarde lacrimosa, batida pelo vento, propícia a um stabat mater. Levá-las a andar de bicicleta ou de hoverboard na rua está fora de causa, mas elas não se importam. Quem paga são as folhas A4, vítimas de uma súbita inclinação para o desenho. Daqui a pouco chega o outro neto, mas esse ainda não quer papel para dar vazão à veia artística, ocupado que está em consolidar os passos para poder explorar a casa e semear o chão com livros e CD. O sábado escorre em direcção à noite, para desaguar num domingo de inverno, imagino.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O terceiro-excluído

Pensava que o terceiro estava excluído, mas não é verdade. Afinal o velho princípio do terceiro-excluído é contingente. A revelação aconteceu inopinadamente, como todas as verdadeiras revelações, ao abrir a conta da água e, por curiosidade mórbida, ter olhado para as parcelas que a compõem. Contas de água, constas de saneamento e contas de terceiros. Quando menos se espera descobrimos que o que pagamos são formas de solidariedade muito activas e capazes de sacrificar os velhos princípios lógicos em nome duma luta contra a exclusão. Alguém menos caridoso dir-me-á que já devia ter há muito lido a factura para ver o que dela consta. É verdade, mas nem tenho propensão para esse tipo de literatura nem sou excessivamente cioso das coisas que o mundo me impinge. Sofro-as sem grande protesto ou particular curiosidade. Um caso perdido. O que vale é que hoje é sexta-feira, a noite caiu e eu espero que o silêncio se propague pelo mundo que me envolve. Depois hei-de sentar-me e, sabendo que não passo do terceiro que é excluído, bendirei quem tal exclusão ditou.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Desengano

Por vezes, vejo num jornal ou numa revista a fotografia de uma mulher e penso que poderia apaixonar-me por ela até que o coração se desengonçasse e o peito rasgado oferecesse ao mundo o espectáculo do amor, pois o mundo nunca o viu, a esse castelo derrubado pelo tempo, a essas ruínas onde crescem ervas daninhas, as entranhas reviradas e o sangue seco e malcheiroso de tudo o que é sentimento. Quando acordo, a fotografia lá está, espera o meu olhar sem a súplica do meu amor. Olho-a e na legenda descubro que a beleza daquela mulher feneceu há muito e o seu corpo foi devolvido à poeira de onde veio. Depois procuro outro retrato da mesma mulher e ao descobri-lo vejo o amor a desvanecer-se ali mesmo, na falta de coerência com que os fotógrafos manejam a câmara, semeando ilusões e desenganos, apenas porque o tempo passou e lhes falta o talento para apagar os vestígios do crime. É assim que o amor está pendente do acaso e da pérfida desatenção do retratista. Não faço ideia por que razão o autor me faz dizer estas coisas, pois o nosso contrato tinha uma cláusula, escorada num direito a rescisão, que o impedia de me dar uma vida privada ou fazer-me falar de coisas para as quais o meu ser não foi criado.

Desinscrição

Em cima da secretária está uma ficha de inscrição. Por certo irei inscrever-me em qualquer coisa, pois assim determina o fado. As pessoas gostam muito de pertencer e não haverá caminho mais fácil para ser parte do que inscreverem-se. Inscritas, logo serão chamadas e o desejo diz-lhes que hão-de ser escolhidas. Olho para a rua e vejo um sol tímido com vergonha de refulgir nas paredes, avisto as folhas agitadas pelo vento nas árvores que por aqui há. Em tudo o que observo há uma tristeza, uma hesitação, como se a realidade não soubesse que caminho tomar na encruzilhada que um deus colocou diante dela. Não tarda terei de abandonar o lugar onde estou para ir para outro onde me esperam. No caminho não há encruzilhadas, apenas rotundas e cruzamentos. A encruzilhada encontrei-a há muito e escolhi o caminho errado, mas nunca sabemos se, mesmo numa encruzilhada, há um caminho certo. O melhor é preencher a ficha e inscrever-me antes que seja tarde, embora eu pratique a despertença e de tudo me desinscreva. Parece que hoje não chove. Uma pena, as barragens precisam de água como eu de me calar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Errata

Sentei-me para fazer alguma coisa que me alivie do facto de estar vivo. É preciso não levar este tipo de declarações a sério. Quando se escreve um texto, e quando ele é em si mesmo irrisório, temos de começar de alguma maneira. O pathos do começo pode ser uma coisa deplorável, mas se eliminássemos do mundo tudo o que é deplorável, ficaríamos com quê? Comigo não. Sentei-me, dizia, mas esquecera-me que hoje é quarta-feira, o dia em que o grupo de baile da escola vizinha aproveita para a sua sessão de reviver o passado em Brideshead. Cada um tem o Brideshead que pode. Essa é a justiça do mundo e não há outra, foi o que me ocorreu. Estou perturbado. Andei dois dias para me lembrar de uma palavra para título de um singelo documento e, por mais que porfiasse, a memória nunca me deu o que lhe implorava. É uma senhora caprichosa e recusa-se a conceder os seus favores ao primeiro idiota que apareça a cortejá-la. Quando já não necessitava da palavra, ela caiu-me do céu. Errata. Era por esta a palavra que suspirava há dois dias. Que faço agora com ela? O melhor é fazer uma errata, escrever onde se vê (a minha fotografia) deve-se ver (uma outra fotografia corrigida e melhorada), e depois distribuí-la por aí. O grupo de baile silenciou-se, já tem que chegue da sua Brideshead, ou talvez não. O problema dos seres humanos é que eles só aparecem no lado a substituir da errata. Se não os outros, pelo menos eu.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A verdade pela mentira

Acabei de comprar um presente para uma das minhas netas. Já lhe tinha dito várias vezes que não lho daria e ela sempre fingiu acreditar. O avô finge, a neta finge e é nessa ficção que se aprende a lidar com a realidade. Talvez um dia estes jogos em que se diz a verdade através da mentira sejam proibidos e um avô terá de dizer brutalmente a um neto que já lhe comprou o que ele deseja, impedindo o divertimento que ensina a ver para lá das aparências, a lidar com a frustração e, acima de tudo, a ser civilizado ao aprender que o prazer está na incerteza e no diferimento do gozo. Enquanto pensava nisto ia olhando pela janela e via a luz diminuir lentamente como se estivesse ainda na sua mão evitar a chegada da noite, adiá-la para que ela venha festiva e seja o mais desejado dos convidados. Também a natureza ama a verdade dita sob a forma da mentira e, por isso, ela é tão enigmática para aqueles que escondem a estultícia na proclamação que são muito directos e manejam a verdade como se fosse um punhal a cravar nas costas distraídas do próximo. Quando vir a minha neta e ela me falar do presente, dir-lhe-ei “nem pensar” e ela há-de pensar que tudo se encaminha para o seu destino, enquanto diz com ar resignado “está bem”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Incongruência

As persianas tamborilam nas calhas por onde correm, tocadas pelo trote do vento, inquietas e temerosas de alguma tempestade que venha tirá-las do sossego bonançoso em que vivem. Uma réstia de sol perfura o negro das nuvens para desabar na humidade das paredes e reverberar, enchendo de luz o campo de jogos e de esperança os jogadores que se batem com o ardor da sua inocência culposa. O que escrevo é de tal modo exaltante que adormeci depois de escrever a última frase, para acordar agora com uma dor no pescoço. Nem a mim o meu verbo anima. Apesar das bolas continuarem a saltitar, a luz de há pouco recolheu-se para que as paredes perdessem a reverberação que lhes dava alma e embaciadas permanecessem na quietude que é a delas. Com um tema destes não admira que adormeça de novo antes de dar por terminado este texto. Pessoas há que têm muito para contar, as suas vidas são aventurosas e elas heroínas que hão-de permanecer na memória dos vindouros, mas eu quanto mais vivo menos tenho para dizer, apesar do palavrório que me ataca aqui ou ali. O mundo é feito destas incongruências e se não é o mundo, sou eu. A palavra incongruência brilhou dentro de mim e, por instantes, entrevejo a verdade do que sou. Tocaram à campainha. Levanto-me e vou espreitar. Não era ninguém ou talvez fosse eu.

domingo, 3 de novembro de 2019

Um rio brando e sem água

A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e eu pensei que o pathos que nela se manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade. Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da alma. É domingo.

sábado, 2 de novembro de 2019

Memórias no Dia de Finados

Nos últimos anos não há Dia de Fiéis Defuntos que não me recorde de um poema que se cantava na adolescência para fingir que se era rebelde. Não me lembro do texto completo, mas apenas de alguns versos que ficaram na memória como um refrão: Era dia de finados, / E os mortos muitos animados / Lá andavam a dançar. / Tudo estava forrado a preto, / No centro havia um coreto / Feito dos ossos da testa. E o cântico continuava neste tom até que nos cansássemos e, desconfio, nos reconciliássemos com a nossa natureza mortal. Estas recordações não são um desrespeito aos que se foram, mas uma mensagem que recebo de mim mesmo para que não me esqueça que mais do que rir da minha morte devo rir-me de mim e das coisas que me atravancam a memória. Hoje já fui às compras e, devido às inutilidades que me povoam o cérebro, esqueci-me de algumas coisas que tinha de comprar. Valia mais ter feito uma lista do que andar por aí a alvitrar sobre o que se passa num coreto forrado a preto.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Os Santos e os mortos

É com desconsolo que olho para as broas dos Santos. Em tempos eram para mim motivo de perdição eterna. O pecado da gula atirava-me sem freio sobre elas, arrastando-me para o mar das múltiplas espécies que por aqui se cultivam. Depois a vesícula começou a queixar-se e a satisfação do desejo foi sendo diminuída até proporções frugais. Liberto do órgão malfazejo, não me livrei da frugalidade. Os Santos deixaram de ser o que eram. Hoje passei duas vezes perto do cemitério e não faltavam pessoas com pequenos ramos de flores na mão, nem sempre crisântemos, para homenagear os seus mortos. Também eu tenho os meus mortos, mas não vou ao cemitério, nem lhes compro flores. Trago-os nos meus genes e nos meus pensamentos. Com alguns, converso. Falo por eles e falo por mim. Eu sei o que eles me diriam e eles, estou certo, sabem o que lhes estou a dizer. Talvez devesse também ir amanhã ao cemitério, não por eles, mas para que as tradições não morram por falta de comparência. Sei que não vou, até porque espero o meu neto. Um dia, se me for possível, falar-lhe-ei dos meus mortos, que hão-de também ser os dele.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Fine tuning

Apesar de tudo, os dias passam rapidamente. Amanhã já é dia de Todos-os-Santos e daqui ao Natal o tempo correrá à desfilada e eu, como um cavalo enlouquecido, há quem me ache um burro demente, correrei com ele ou arrastado por ele num turbilhão de coisas insensatas. De o pensar, estou já cansado. Correr não é a minha especialidade e cheguei àquela época em que preferia avançar para trás, mas não muito, já que não teria paciência para mim se tornasse ao que fui. Seria penoso. Escureceu há muito. Para surpresa minha, ao final da tarde uns adolescentes quiseram falar comigo sobre os argumentos do fine tuning e do mal, com derivações sobre o determinismo da conduta humana. Poderia pensar que as coisas não estão tão críticas quanto se anuncia. Provavelmente, não estarão.  Recebo uma mensagem no telemóvel. É um convite para uma masterclass de Tequila & Mezcal e começo a pensar que o argumento do fine tuning não será assim tão disparatado. Salva-me amanhã ser dia santo de guarda, um dia onde a santidade se multiplica, como se o regulador destes festejos, cansado, tivesse cedido à paixão da hipérbole. Vou roubar uma broa à cozinha.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Retorno do mesmo

Na escola aqui ao lado, o seu grupo de baile persiste em ensaiar canções que fizeram furor há mais de vinte, trinta ou quarenta anos. Esta obstinação pelo passado não deixa de ser comovente e faz-me lembrar as pessoas que, quando era adolescente, tinham a idade que eu agora tenho. Também elas estavam presas a músicas incompreensíveis, sons que pareciam vir de um planeta distante, e nas quais tinham um prazer que era para mim um enigma. A ideia do eterno retorno do mesmo acabou de me tentar. Resisto à tentação, enquanto, vindo de fora, oiço menina que estás à janela com o teu cabelo à lua. Hoje já não há meninas à janela e os cabelos à lua, também andam ao sol e à maresia do crepúsculo. Dói-me a garganta, recorro a um spray. Logo tenho uma cerimónia à minha espera, embora eu não a esperasse, nem a ela nem a qualquer outra coisa. O carro avariou-se de manhã e tenho de ir ver se já o posso ir buscar. Uma chuva fina diante da janela faz-me lembrar o fumo que se evola dos carros dos assadores de castanhas, mas é só água a descer dos céus. Uma bênção, oiço dizer.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Desvios e mistérios

Hoje li um poema que começa assim Já o gargalo das pedras adormece e fiquei mais tempo do que devia sem saber o que fazer com aquele verso. O poeta, dir-me-ão, pratica o desvio porque esse será o seu ofício. O meu, se é que se pode chamar ofício, fica-se pelo perscrutar da noite, olhá-la no fundo dos olhos para que surpresa revele os seus segredos. Ela porém sorri e olha-me com benevolência e segue o seu caminho, respeitando as estritas regras da gramática que governam o dia e a noite, a passagem das semanas, o devir compassado das estações. O mistério da noite é como o das palavras. Compramo-las presas a um significado, mas se as olharmos longamente, começam a emancipar-se e tornam-se mariposas descuidadas que o vento, à falta de peso, arrasta para onde quer. Hoje escrevi centenas ou milhares de palavras, todas elas pesadas de sentido, todas elas inúteis como uma bóia de salvação nas areias do deserto.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Serei maniqueísta?

Um comentário insinua que estou a caminho do ultra-romantismo. Talvez esteja mais perto do solipsismo mas a carapuça do ultra-romantismo também não me há-de ficar mal. A culpa, assevero-o, não é minha, mas do autor destes textos que teima em fabricar-me deste modo. Eu bem me inclino para os factos e acontecimentos, mas ele, com uma rigidez inesperada, tende a cerrar-me dentro de mim mesmo, fazendo-me crer que a realidade é uma coisa pesada e pouco benévola. Desconfio que pretende fazer de mim um discípulo de Manes e ele mesmo será um cátaro, mas os seus desígnios e pensamentos são-me insondáveis. Se ele quer que eu seja um solipsista ou um romântico ou um maniqueísta, o que posso fazer contra a prepotência da sua vontade? Um dia fosco o de hoje. Olho pela janela e vejo sombras a caminhar na avenida e os ciprestes que abundam por estes lugares. Um silêncio nega a realidade, que logo acorda na figura de uma mensagem a informar-me que alguém partilhou documentos comigo. Um dia ainda acredito que sou maniqueísta e que toda a realidade é fruto de um demiurgo pouco frequentável. Que me salvem da heresia, é aquilo que peço, mesmo que essa seja a vontade daquele que me cria.

domingo, 27 de outubro de 2019

Distâncias

Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela. Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto, cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu, como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai da ode à elegia.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Da circularidade semanal

Está a chegar o fim-de-semana e já o vejo a escoar-se, perdido nem se sabe como. As semanas são círculos viciosos, em que se parte de uma sexta-feira para chegar a outra, sem que um sentido para tudo isto se desenhe. Quando oiço falar no território encantado da infância, apesar da expressão me provocar uma certa náusea, lembro-me sempre daqueles anos longínquos em que não havia semanas, com os seus dias fastos e nefastos. Lá em baixo, no parque infantil, um bando de crianças grita. Parecem felizes e, por certo, ainda não descobriram que existem semanas, com a sua corveia e a ilusão de algumas horas de liberdade, para que o jugo férreo pareça mais leve. Eu sei que a civilização tem um preço, as comodidades outro e que nada cai do céu. Isso, porém, não nos deve impedir de increpar a ordem das coisas ou de maldizer aquele descuido de Eva e Adão que nos atirou para a deplorável situação de à sexta-feira já sentir o odor mascavado da segunda. O sol ainda brilha, mais intenso que nos últimos dias e o arvoredo perfila-se imóvel com os seus dedos de azougue voltados para o céu. Bem podia ter evitado o pathos da última frase, mas fui obrigado a dizê-la.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Penúria de realidade

Dentro de mim há uma enorme sombra. Faço dela a casa de onde raras vezes saio. Vejo o mundo por uma janela e aquilo que nele se passa cada vez me interessa menos. Demorei muitos anos a ligar a comédia humana ao que Aristóteles disse da comédia clássica, mas isso são contas de outro rosário, pelo qual já ninguém ora. O dia passou e é o que tenho a dizer dele. Não se trata de escassez de imaginação, mas penúria de realidade. Vivo cercado de pessoas cheias de realidade. Habituei-me à condição de ilhota nebulosa perdida num oceano vigoroso, a transparecer certezas e particular inclinação para a exuberância da felicidade. Mares destes, sempre navegados, cansam-me. A noite chegou, uma ambulância cavalga pela estrada em direcção ao hospital e tanta realidade é insuficiente para me sequestrar à ruminação que crepúsculo abriu em mim. Já é tarde, digo e volto os olhos para o lugar onde a escuridão nasce.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Mudar de vida

Cheguei a casa quando o crepúsculo já se anunciava no descolorido do sol. Sentei-me e os meus olhos embateram numa tradução inglesa de um livro de um pensador alemão contemporâneo. Os alemães são particularmente competentes para encontrar títulos dramáticos que soam ora como uma sombra arremessada pelo infinito, ora como um imperativo a que se deve obedecer, embora não se saiba porquê. Este pretende resumir a religião através do imperativo You must change your life. Peguei no livro, folheei-o lentamente e pensei que mais que mudar a minha vida, o acertado era ter mudado de vida há muito. Há equívocos que se tornam numa condenação perpétua. Os pássaros meus vizinhos sublinharam o meu pensamento com um trilo equívoco e eu sorri agradecido. As vozes lá em baixo calaram-se de súbito, como se um anjo tivesse poisado e a sua beleza fosse sentida como a presença do terrível, tal como nos ensina certa ode. Destemido, o vento empurra os ramos do arvoredo, desenhando murmúrios coloridos na praça vazia. Mudar a sua vida, que penosa injunção para aquele que se prendeu na teia dos seus hábitos.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Sobre as oliveiras

Na escola aqui ao lado há umas quantas oliveiras. Vejo-as envoltas em folhas verde cinza, indiferentes ao vento, esquecidas dos anos. Lembraram-me do tempo em que por aqui ainda era fácil, ao caminhar sem destino, ser invadido pelo cheiro que se desprendia dos lagares. Estes foram morrendo uns atrás dos outros, como pessoas velhas e sem família a que já ninguém conhece. Levaram com eles os aromas quentes que anunciavam o azeite novo, abriam o caminho que ia dos santos ao natal, e deixaram órfãs as oliveiras que escaparam à voragem sem medida dos homens. Conheci oliveiras que tinham, supunha-se, mais de mil anos. Imagino-as indiferentes ao espectáculo da história, ao cortejo de esperanças e desgraças que tocaram esta terra. É possível que já tenham sido arrancadas, levadas pelo despeito daqueles que não têm mais que uma vida breve, risível, impotente para enfrentar o tempo e enganá-lo numa faena de arte consumada. Talvez o touro que os homens lidam nas arenas não seja outra coisa senão o tempo, mas hoje tornou-se perigoso falar de touros e de lides, pois todos têm medo do tempo, dos cornos que ele alça para nos varar, pobres peões de brega.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Um desajustado

Não deixo de ser um enigma para mim mesmo. Gostei da frase mal surgiu não porque ela refira a minha natureza especial mas por ser um exercício inócuo de banalidade. Não há quem não se ache enigmático aos seus próprios olhos, embora os outros vejam com acintosa transparência, e não menor perfídia, aquilo que o próprio julga ser a obscuridade das obscuridades. A nossa verdade reside nos olhos dos outros. Em vez de enigmático pressinto que sou anacrónico. Lancei a mão a três CD para me acompanharem a tarde. Não escolhi, deixei que o acaso revelasse aquilo que eu quero ouvir. Um CD de música Sufi, outro de música tradicional japonesa e para completar um outro de canções de amor trovadorescas do norte de França. Só um desajustado poderia ser contemplado com tal combinação. Estou fora do tempo e do lugar. Poderia ter sido um trovador ou então um monge em busca da realização espiritual. Só não posso ser o que sou, que é a única coisa que posso ser. São difíceis certas segundas-feiras depois do almoço.

domingo, 20 de outubro de 2019

Ser personagem

Por vezes finjo que me interessam os graves problemas da humanidade, tomo posição como se acreditasse nas minhas opiniões, mas deixo antever que não tenho nenhuma solução para qualquer problema quanto mais para os graves, se é que os há. Isto não é propício à minha credibilidade como profeta. Um anunciador de futuros deve ter sempre uma inabalável certeza, uma voz tonitruante e um olhar furibundo. O criador esqueceu-se de mim na hora de distribuir esses talentos. Não se pense que o criador é Deus. Isso seria um engano deplorável, uma heresia das mais terríveis. O meu criador é aquele que escreve estas palavras e que me conforma em consonância com a sua volubilidade. Admito que não o suporto. Obriga-me ora à melancolia, ora à irrisão. É uma vida difícil nas catacumbas da humanidade. O que me vale é que ele desdenha em dar-me paixões temíveis e desejos inconfessáveis. Molda-me nas águas tépidas da existência, sem que me permita mergulhar nos insondáveis mistérios da alma humana. Estou mesmo desconfiado que nem uma alma ele me atribui. Ser personagem nunca foi fácil. Ser uma péssima é um desconsolo de que nunca hei-de recuperar.