Hoje é domingo, pensei ao levantar-me. Havia sol nas ruas,
mas a aplicação do telemóvel tratou logo de me esclarecer que a temperatura não
chegaria aos vinte graus. Noutra altura, seria ocasião para ficar grato ao deus
do clima. Uma vaga apreensão nasceu em mim, mas logo a afastei, esperando que o
tempo se compadeça e dê uma ajuda. Agora, enquanto escrevo, olho para a rua, o
céu cobriu-se de um manto de cinza que os raios solares têm dificuldade em
atravessar. Novos hábitos começam a desenhar-se, constato. Outros porém são difíceis de combater, como a
tentação sem fim de levar as mãos à cara. É um exercício de vigilância difícil
e nós, há muito, perdemos o hábito de nos vigiarmos. A partir de certa altura a
autovigilância começou a ter má reputação, pois contraria um modo de estar
espontâneo e a espontaneidade foi entendida como prova de ser autêntico. A
vida, porém, contínua. No Facebook,
descubro que a missa dominical da TVI é transmitida da Igreja de S. Pedro,
oficiada pelo pároco local e pelo bispo da diocese para um auditório vazio. Num
site noticioso sou informado que um
homem foi assassinado à facada e que a Rainha Isabel II abandona o Palácio de Buckingham.
Percorro uma edição online de um tratado medieval atribuído, primeiramente, a
Hugo de S. Victor e, depois, a um anónimo cisterciense, companheiro de Bernardo
de Clairvaux. Numa pequena introdução dizem-me que está redigido sem ordem
nem método e, a partir de certa altura, cheio de repetições. Percorro-o rapidamente
e encontro isto: e aquilo que fatiga o
lutador coroa o vencedor. Repito para mim a mensagem e talvez ela baste
para fazer esquecer toda a desordem que, segundo o editor, macula o texto ou as
nossas vidas, acrescento. Alguém, ainda na Idade Média, deixou uma palavra para
todos os tempos difíceis. E aquilo que
fatiga o lutador coroa o vencedor.
domingo, 15 de março de 2020
sábado, 14 de março de 2020
Dias de excepção
Cheguei aqui já a noite tinha descido em turbilhão sobre mais
um dia em que a excepção se torna a norma. Nestas situações, à falta de
experiência, recorre-se ao que se tem à mão para lhes dar um sentido. Muitos
lembram A Peste, de Albert Camus.
Outros não deixam de recordar o Decameron, de
Giovanni Boccaccio. Ainda hoje havia quem referisse um conto de Edgar Allan
Poe. A mim ocorre-me A Montanha Mágica, de
Thomas Mann. Em todos eles vemos a excepção tornar-se a vida habitual. Apesar
de difícil, será uma aprendizagem rápida, embora a lógica destas coisas tenha
uma inclinação para nos escapar, mesmo aos que possuem uma armadura racional
mais poderosa. Há pouco parei uns instantes diante do friso das orquídeas.
Estão esplendorosas e indiferentes ao que inquieta os humanos, enchem o espaço
com a subtil emanação da beleza, como se ela fosse a mensageira da esperança.
Nem todas floriram ainda, reparei, depois voltei-lhes as costas e vim
sentar-me, a pensar no que tenho de fazer, no que tenho de cuidar. A verdade é
que nos disseram que o paraíso não era aqui, mas noutro lugar de onde fomos
expulsos, mas não acreditámos. Imaginámos, contra todas as evidências, que poderia
nascer neste mundo e pelas nossas mãos, o que suscitou um não pequeno número de
teologias, de incontáveis homilias e de legiões de mensageiros do admirável
mundo que estaria à nossa espera. Depois um qualquer incidente recorda-nos o
outro lado da história, aquele que nos diz que este é um lugar de exílio.
Encolho os ombros e digo entre dentes a cada um a sua metáfora. No telemóvel
surge uma mensagem. É uma fotografia do meu neto de chapéu na cabeça. Quer vir
para a província, pensei.
sexta-feira, 13 de março de 2020
Um pássaro canta
No correio havia duas cartas. Pego nelas, olho-as de soslaio
e não consigo reprimir um momento de suspeição. Há em nós comportamentos muito
arcaicos vindos daqueles tempos em que ainda não tínhamos estabelecido um
cordão sanitário eficaz em torno das comunidades humanas para as proteger dos
predadores e da própria natureza. Estabelecido este, esses comportamentos foram
recorrentemente avivados ora com a guerra ora com a epidemia. Voltam a
manifestar-se. Está uma tarde soturna e caminha-se para a Páscoa como se
estivéssemos efectivamente na Quaresma. Os lugares estão mais vazios, o bulício
das ruas baixou de intensidade e na face das pessoas há um esgar de
preocupação. São imensas as coisas por fazer, mas a vontade está avara. Nada
corrói mais o querer do que a suspeita e esta tornou-se, também ela, pandémica,
uma reacção psicológica à ameaça. Em ambientes destes surgem todas as teorias
marcadas pelo terror e a própria razoabilidade vai sendo escavada até que
derrui. Nos telhados em volta, não vejo nenhum dos anjos que lá costuma parar.
Talvez tenham partido em serviço, talvez tenham ido a um congresso angélico
discutir o que fazer connosco, talvez tenham sido chamados pelo Criador para escutar
ordens e receber recomendações. Na escola ao lado ainda há bolas a rolar,
rapazes a correr, gritos de golo. Um pássaro poisa no parapeito da janela e
canta.
quinta-feira, 12 de março de 2020
Dias difíceis
Não sem dificuldade juntei os bocados em que me divido para
chegar a esta hora que anuncia o crepúsculo. Os dias não têm sido fáceis e a
prova disso é que as minhas leituras se resumem a O Homem que era Quinta-Feira, de G. K. Chesterton. Não me atenua o cansaço mas faz-me
sorrir. Lera-o há muito e havia muitos pormenores que se tinham apagado. Na
mesma época li O Ente Querido, de
Evelyn Waugh, e A Relíquia, de Eça de
Queirós. Lembro-me de os ter juntado, mas não sei precisar a razão. Porventura,
um acaso. Tenho pena de já não conseguir situar na existência a época em que os
li. Talvez fosse um tempo em que precisasse de me rir um pouco, embora, ao
contrário do que por vezes parece, não tenho propensão depressiva. Gosto de
pintar o mundo com tintas escuras, mas o mundo faz muito por isso e teima com
frequência elevada em não me desmentir. Um pessimismo antropológico não faz mal
a ninguém e talvez ajude a que todos sejamos um pouco menos bárbaros. As
sombras arrastam-se pelo chão, restos de luz batalham com denodo contra a vinda
da noite, qualquer coisa cai num dos andares contíguos, oiço um bater metálico
e depois o silêncio desce em espirais sobre mim. No ar, há uma exaltação
contida, algum medo disfarçado por risos forçados. Não é fácil ser-se despojado
dos hábitos, que são uma segunda natureza no dizer do velho Aristóteles. Nada
melhor que citar uma autoridade para acabar.
quarta-feira, 11 de março de 2020
O deus do vazio
Anúncio do Verão. A temperatura chegará por aqui aos vinte e
nove graus. O inferno insinua-se ainda a estação fria olha para o deve e haver
e faz o balanço final, antes de entregar a contabilidade nas mãos da Primavera.
Os últimos dias deixaram-me a cabeça mais vazia do que o habitual. Uma
descoberta já não recente ensinou-me que quando lidamos com o vazio tornamo-nos
como ele. O nada contamina a realidade e fá-la explodir. Com os anos fui
descobrindo que a nulidade é uma divindade poderosa e tem ao seu serviço um
sacerdócio persistente, auxiliado por janízaros impiedosos. São pagos para
destruir tudo o que faça sentido e instituir a nova ordem onde nada existirá.
Continuo a falar por enigmas e isto não é sinal de sanidade mental. Daqui a
pouco irei para a rua e não sei se hei-de fingir-me no Inverno rigoroso ou se
cedo à tentação estival. A cidade estará ensolarada e no sítio onde me esperam
haverá sacerdotes do deus do vazio, perdidos em liturgias que só o demónio
poderia ter inventado. O hospital ergue-se sombrio, as paredes maculadas por
fungos, um bloco preso à terra para me roubar a vista dos campos. Desvio o
olhar e vejo ao longe a serrania e penso que nunca sabemos para o que estamos
votados.
terça-feira, 10 de março de 2020
O dardo refulgente
Sob o olhar atónito um espectro silencioso desenha a sua sombra de antracite na prosa gasta do mundo. Universidades e escolas fechadas, eventos cancelados, um país em quarentena. A fragilidade de tudo borbulha e ouve-se o ploc-ploc das bolhas ao rebentar. Tivera pendor para moralista e que magníficas máximas poderia agora expelir sobre a vaidade dos homens e as ilusões da vida. Não passo todavia de um mero narrador cujas palavras são o capricho de um autor com o qual nem sempre mantenho as melhores relações. Há que evitar moralizar sobre a desgraça, diz-me e eu obedeço-lhe. Sento-me à secretária e vejo o tempo, como um dardo refulgente, a deslizar à minha frente. Ao lado dele vai um casal de mãos dadas, perdido na verdura dos anos, o vigor dos corpos ainda disfarça aquilo que os espera na curva dos dias. O ranger do baloiço está cada vez mais insuportável, lembra o crocitar de uma ave agoirenta, enquanto uma criança vai e vem, vai e vem, impelida por uma mãe distraída, que por vezes leva as mãos à cabeça para compor os cabelos que o vento teima em desalinhar. Ao longe, no vazio dos campos, erguem-se ciprestes, um aqui outro ali, mais dois ou três à esquerda. Estão silenciosos e a sua sombra cresce oblíqua pelo chão. A reverberação da luz espalha um traço de melancolia na tarde e em tudo descubro a convocação de um romantismo chegado no vapor que deixou a estação do século XIX. Lá em baixo um adolescente grita ó Filipe anda cá já, um imperativo cambado, tinto pela incerteza de se fazer obedecer. Na avenida, os carros passam, param na passadeira para que peões cheguem ao outro lado, como se houvesse outro lado aonde chegar.
segunda-feira, 9 de março de 2020
Tempo de sacrifício
Daqui a pouco devo participar num exercício de penitência. Penso isto e rio-me. Afinal estamos na Quaresma e este é um tempo penitencial. Depois ocorre-me a possibilidade de já não ser assim. Não vejo ninguém com ar penitente, nem que se exima de carnalidades. Os jejuns passaram de moda e a abstinência contraria as regras do mercado. A ideia é nunca nos abstermos seja do que for. Alguém terá de fazer sacrifícios pelo bem da comunidade e hoje cabe-me a mim, intimo-me com a habitual tendência para o exagero. Lembro-me de imediato de alguns sacrifícios célebres. O de Isaac, que prazer em não escrever Isaque, por Abraão e o de Ifigénia. Naqueles tempos as coisas eram bem mais sérias. A tarde espuma um sol esbranquiçado, preguiçoso, enquanto eu antecipo o altar que me espera, os artifícios dos sacerdotes e sacerdotisas de serviço e o próprio deus, perante o qual sou completamente ateu, a que eles votaram as suas vidas. Há escolhas que são tão eloquentes que nem vale e pena sublinhá-las. O melhor é não fazer juízos apressados, pois houve quem visse no carrasco um ser sagrado, a pedra angular sobre a qual se constrói o edifício social. Hoje estou com uma tendência desmedida para o enigma, mas tudo no mundo é enigma, a começar por esta chávena por onde bebo o café e a acabar no facto cru de haver tardes, noites e manhãs. Respiro fundo e só espero que chegada a hora, em plena liturgia, não me dê o sono. Ando a dormir pouco e mal.
domingo, 8 de março de 2020
Um treino para o futuro
Realizo com método e sem prazer um conjunto de tarefas que tem por finalidade coisa nenhuma. Conheço muita gente que faz coisas úteis, mesmo que isso não lhe dê um especial prazer. Eu especializei-me em inutilidades. A inutilidade tem uma estratégia insidiosa para impor a sua natureza despótica. Durante muito tempo ela traveste-se, mostra-se como um farol que iluminará o bem. Quando o incauto, neste caso eu, dá por isso, está enrolado de pés e mãos e já passou há muito o tempo em que poderia ter-se posto a grande distância. A partir daí terá de sofrer, e isto não é uma hipérbole, os desvarios das coisas inúteis, o poder infinito dos produtores de irracionalidades, das imaginações transbordantes com que conseguem apresentar as maiores idiotices como sinal de razoabilidade. Alturas há em que chego a apreciar este meu destino, o treino que me dá lidar com a insensatez. Tenho esperança que no futuro me seja de grande préstimo, quando a idade, se a ela chegar, me trouxer a demência ou coisa semelhante. Terei paciência para mim, serei condescendente com os esquecimentos, a troca de nomes, as frases truncadas, até com os risos idiotas que haverei de ter sobre coisas que não têm graça nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas, é o que penso quando me deixo invadir pela cultura ao gosto popular. Dá-me uma realidade insensata para que eu aprenda a viver com a insensatez que me espera. O domingo está cinzento e preciso de sair, mas muitas são as coisas idiotas que me retêm.
sábado, 7 de março de 2020
Mistérios da botânica
Acordei muito cedo. Pus-me a ler e tornei a adormecer. Não é que Chesterton me dê sono, mas dormira muito pouco. Quando dei por mim a manhã tinha entrado na idade madura, com uma luz quente e uma temperatura sensata. Lembrei-me que ainda há uns meses o pequeno almoço começava ritualmente, sem qualquer expectativa terapêutica e apenas por puro prazer, com um copo de sumo de toranja. Entre esta e um medicamento que tenho de tomar existe uma incompatibilidade tal que não podem coexistir no meu pobre organismo. Durante muito tempo, pus de lado o medicamento. Agora rendi-me à realidade, que é sempre mais perversa do que deveria ser. Antes de tomar o pequeno almoço dei uma volta pela casa para abrir janelas. De todas as coisas teóricas que me interessaram, a botânica não foi uma delas. E entre as poucas coisas práticas que me solicitaram o desejo, não consta a jardinagem. A verdade, porém, é que nunca deixo de contemplar o friso das orquídeas e o pequeno mistério que lá habita. O friso dar orquídeas é uma hipérbole para designar o parapeito de uma janela onde habitam dez exemplares desta espécie. Estão a florescer. O mistério é o da orquídea branca que chegou aqui nos finais de Março do ano passado com as flores abertas. Enquanto as suas novas vizinhas entregavam a beleza ao criador e hibernavam, ela manteve-se florida até hoje e, conforme pude constatar, promete continuar. Durante os meses de Outono e Inverno foi incansável, oferecendo o imaculado da sua brancura como uma bandeira para apaziguar os espíritos. Quando a olho imagino que será um anjo cansado de voar e que tomou a forma de uma planta. Os anjos são capazes de tudo, embora também angelologia não seja uma das áreas a que tenha dedicado atenção, o que não me permite ter a certeza se entre as hierarquias angélicas existirá alguma cujos membros se possam transformar em orquídea. O sábado já passou pelo portal do meio-dia. A minha consciência olha-me acusadora e pergunta-me por que razão não dei atenção à botânica nem ao estudo dos anjos. Olhei-a nos olhos e fiz-lhe um gesto que por decoro me abstenho de descrever.
sexta-feira, 6 de março de 2020
As memórias inúteis
Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em
contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do
pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo
com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de
sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a
metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos,
como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos,
crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento
de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe
a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe
no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de
referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo
em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que
havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim
muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha
perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde
aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno
de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com
ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.
quinta-feira, 5 de março de 2020
Tendência para a dissipação
Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros
que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser
ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de
os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a
percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado
curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou.
Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma
distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas
portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o
tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando
livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade
para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder
de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma
libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me
avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes
resistir. Haverá alguém que leia O Prato
d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba
quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha
secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente
doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho
de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.
quarta-feira, 4 de março de 2020
O verbo reunir
Olho para a minha agenda, uma agenda imaginária, claro, e
sou assaltado por uma pergunta. Que mistério haverá no verbo reunir para que
ele exerça sobre tantos tão poderosa atracção? Vou a um dicionário, olho o
verbo bem nos olhos, perscruto-lhe a intimidade e começo a vislumbrar aquilo
que nele há de tão poderoso. Exprime uma nostalgia e uma recusa. Imaginemos a
expressão toca a reunir. Nela há uma
urgência na recusa do estado de dispersão. Haverá medo de que dispersos,
perdidos na singularidade, não consigamos resistir a não se sabe bem o quê. E é
aqui que nasce a nostalgia desse tempo mítico em estávamos todos unidos. As
instituições estão cheias de reuniões porque muitos daqueles que as ordenam são
pessoas nostálgicas e medrosas. Não suportam a solidão do estado de dispersão,
desejam ardentemente voltar ao estado arcaico que habita a sua imaginação. Tudo
isto para dizer que tenho duas reuniões para me ocuparem a tarde, sem que lhes
vislumbre a necessidade, a não ser para aqueles que têm medo da solidão. Uma
motorizada ronca pelas ruas aqui à volta. O ruído da maquineta é inversamente
proporcional à inteligência de quem a conduz. Depois imagino que também ele
terá pressa para se reunir. Os pássaros meus vizinhos parecem corroborar a
minha ideia, mas logo abandonam o assunto para se entregar a uma conversa sobre
os planos de voo. Também eles precisam de acertar detalhes, tomar decisões,
fazer escolhas. Calaram-se agora, sinal que tudo está resolvido.
terça-feira, 3 de março de 2020
A insurgência contra a voz
O céu sobre o hospital parece chumbo, tão carregadas estão as nuvens. Tenho alguns assuntos pouco entusiasmantes para resolver, mas
folheio um livro de memórias de Elias Canetti, O Archote no Ouvido – História de Uma Vida. Leio umas frases aqui,
outras ali, saltitando com inconstância, enquanto vou espreitando os meteoros.
Já ninguém emprega esta palavra para designar o que acontece na atmosfera. A terceira parte do livro, que trata da vida do autor em Viena entre
1926 e 1928, tem um título extraordinário, A
Escola do Ouvir. Será, por certo, uma metáfora, mas representa um modo de existência.
Aprender a ouvir e aprender ouvindo são a mais profunda forma de aprender a viver.
Só a voz toca as cordas do coração e abre caminhos insuspeitos, muitos dos
quais se manterão secretos até que, por um qualquer acidente de percurso, eles
se revelem, com o que têm de benfazejo. Hoje ninguém quer aprender a ouvir. Não
se suporta escutar uma voz. As crianças não devem aprender ouvindo, diz-se, mas
devem fazer, experimentar, como se estivessem todas condenadas à fabricação. O
que me impressiona é o medo que se tem de saber escutar. Esse medo nasce da
recusa da voz. Os filhos não escutam a voz dos pais. Os alunos recusam a voz
dos professores. Temem que essas vozes não sejam as do futuro ou não foram
educados a suportar o imenso peso do passado que uma voz traz em si. Não é por
acaso que um certo livro do Novo Testamento começa dizendo que no princípio era
o Verbo. No início está a voz que profere a palavra. A insurgência contra a
voz, a recusa da escola do ouvir, não representa progresso algum, mas a perda
da nossa humanidade, que está toda ela nessa voz que faz ouvir e que se escuta.
Hoje cheguei à tarde envolvido num pathos
metafísico, o mais sensato será ir comer chocolate.
segunda-feira, 2 de março de 2020
Uma tarde na vida de um pobre mortal
A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao
banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas,
entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala,
sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava
já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de
esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e
consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir.
Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de
esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de
ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha
esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório,
sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz
mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve
quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me
atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde
não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera,
como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o
mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me,
imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e
lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida
passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede
desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse,
respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu
escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou
consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a
Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a
descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas
do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa
galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar
medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese
disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se
fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa
do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e
uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.
domingo, 1 de março de 2020
Cultivar um jardim
Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a
realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me
enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois,
com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com
o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que
há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a
razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto
umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que
está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade.
Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo
quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve
poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul
Han com o belo nome de Louvor da Terra.
Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu
cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre
essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada
apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra
revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de
lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo
nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento
natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim
suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de
dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que
não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja
cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado
do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me
responda.
sábado, 29 de fevereiro de 2020
A verdade numa app
Acordei com a chuva a tamborilar nas janelas, mas como me
converti ao pechisbeque tecnológico do mundo pós-moderno em que vivo fui
verificar na aplicação do telemóvel se era verdade. Era-o. De facto, a água
caía mesmo aqui, na freguesia em que vivo. Fiquei descansado, pois nem a
natureza se atreve a desmentir aquilo que a técnica diz estar a ocorrer. Fora
eu dado a meditações filosóficas e haveria motivo para longas argumentações
sobre o estatuto da verdade nos nossos dias. É verdade aquilo que uma aplicação
informática, chamam-lhe app, diz que
o é. Vale-me a mim e aos que têm a infelicidade de me ler que não sou dado a
tais pensamentos. Se me ocorrem, desvio logo os olhos e fico a ver a paisagem,
as nuvens no céu, o sol a brilhar nas superfícies molhadas, a mulher de curvas
recortadas que arrasta com vagar um guarda-chuva sobre a passadeira, enquanto
os carros param com cerimónia e os condutores olham quem, tão exposto ao desejo
dos seus olhos, assim passa sem pressa. Ao escrever isto assaltou-me uma
inquietação. Será que ainda se podem dizer estas coisas? Farei eu parte de uma
conjuração patriarcal? O melhor é também afastar estes pensamentos, pois o
autor destas palavras proibiu-me tudo o que tivesse odor a política. Eu sou
apenas um pobre narrador e sei qual é o meu lugar. Olho pela janela e vejo o
sol a romper as nuvens e lançar os seus dardos – meu Deus, isto não é uma
metáfora moribunda, mas um cadáver ambulante que trouxe para o texto – sobre as
árvores incautas que dele não se sabem proteger. Será verdade, o que vejo?
Pressuroso precipito-me para o telemóvel e sinto-me reconfortado pela app meteorológica confirmar que não é
ilusão aquilo que os meus olhos observam. Fecho-os e neles logo passa a mulher
de curvas recortadas que arrasta um guarda-chuva pela passadeira e maldigo-me
por ainda não ter descarregado a aplicação que me confirme se ela vai mesmo
pela passadeira.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Entre Uqbar e Pasárgada
Um ruído de canivetes afiados chega-me aos ouvidos. Bandos de crianças de um dos Jardins de Infância desembarcaram no parque, anunciando-me a aproximação do fim-de-semana. Admiro a coragem de quem se presta a passar o dia a receber alfinetadas nos tímpanos. Não sei como não enlouquece e não se torna em personagem de um dos quadros de Munch. Conto os minutos para que o ruído se evapore e possa respirar fundo, olhar com demora para um livro que descobri ontem e entrar no reino do silêncio. Tenho um pequeno ensaio para escrever. É tão pequeno que me esqueci dele e só me lembrei quando o fim do prazo de entrega fez soar o gongo anunciando as poucas horas que restam para que tudo fique consumado. As crianças continuam a gritar, chamam-se por nomes inverosímeis, o que abre no meu coração a porta para o que há de pior, a tentação de elaborar um estrito catálogo de nomes possíveis e torná-lo lei incondicional e com efeitos retroactivos. É em momentos destes que me lembro de uma passagem de Borges, em que este atribui a Casares a recordação de que um dos heresiarcas de Uqbar declarara espelhos e cópula como coisas abomináveis, pois ambos multiplicam o número de homens. Nunca deixei de admirar estes heresiarcas apócrifos e alturas houve, movido pelo cansaço que os espelhos provocam, em que pensei também eu tornar-me um grande heresiarca. O meu problema foi a hesitação. Comecei por um inventário de heresias, mas havia tantas e tão extraordinárias que nunca consegui decidir-me por nenhuma e, desse modo, falhei a vocação. Resta sonhar-me em Uqbar carregando no dorso a heresia que não escolhi ou, caso o dia esteja escuro, em Pasárgada, lá serei amigo do rei. Hoje estou demasiado sul-americano.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020
Caminhar dentro da realidade
Não tarda e caminharei por dentro da realidade. Esta combina estranhas características, um misto de rameira e de alcaiota, onde os ademanes de prostíbulo e as estratégias do alcovito se fundem entre urros selvagens e longos desesperos. Ali cultiva-se a ignorância e há que ter punho de ferro para sobreviver. Por vezes, há quem caia em combate. Consta que as enfermarias estão cheias de feridos de guerra, gente mutilada pelos cantos, uma visão preparatória para a entrada no Inferno, onde Dante e o seu mestre ainda nos esperam, contrariamente ao que consta por aí. Como é habitual, a minha propensão para a hipérbole não se conteve e deixei transparecer o cepticismo contumaz com que envolvo tudo que tenha a ver com a realidade, a humana para ser mais específico. Desaconselham-me a descrença nessa realidade, pois, afirmam, vivemos no melhor dos mundos possíveis, ou se ainda não o é para lá caminha a grande velocidade, aquela que nos leva para o futuro. Esquecem-se, porém, que o único futuro certo que temos é a morte, mas sobre esta o melhor é seguir a máxima wittgensteiniana sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar, o que contraria a inclinação natural para a logorreia de que sofro. Com tantas citações eruditas, não fora eu o que sou, há muito teria evitado a corveia da realidade.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
Meditações em Quarta-Feira de Cinzas
Sic transit gloria
mundi. Era assim que deveria começar este texto, mas recuso-me a fazê-lo.
Sei que é Quarta-Feira de Cinzas, que estas são símbolo da transitoriedade
humana e que o latim não iria mal com o dia de hoje. Há nele uma melancolia tal
que sinto o coração a contrair-se. Esta tristeza veste muito bem os dias quaresmais
que batem à porta. Não é que haja quem se entregue, nestes tempos, a jejuns
hercúleos e abstinências rigorosas, mas é a própria Quaresma que empresta
tonalidades entristecidas a um sol cúmplice e a uma luz de pouco ânimo. Salvo
algumas excepções, espanto-me sempre com a falta de personagens nestes textos,
como se o que é humano não devesse ser o motivo de quem narra. É preciso
talento para falar de pessoas, dar-lhes vida, avigorá-las com acções, excitá-las
com desejos e instigá-las com objectivos a perseguir ou apoucá-las com o peso
da decepção. O meu talento, porém, viveu sempre de longos jejuns e árduas
abstinências e por isso escrevo coisas que não interessam a ninguém. Por
exemplo, John Locke pensava que as palavras são sinais sensíveis das nossas
ideias. O que falta explicar é como me ocorrem tantas palavras sem que na minha
mente haja uma ideia. Para mim, palavras são peças de Lego que vou encaixando
umas nas outras. É verdade que nunca consigo fazer uma casa, um carro ou um
helicóptero, mas gosto de as ver arrumadas da esquerda para a direita e de cima
para baixo. Essa ordem tranquiliza-me, como se fosse um escudo contra o
transitório que há em tudo o que existe. Não é, mas não deixa de ser virtuoso
mentir a si mesmo.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
Manteiga de arsénio
Acordei com uma sensação de irritação na garganta, um
pré-aviso de faringite, e o primeiro pensamento foi onde está o Strepfen. Não devia fazer publicidade
gratuita à indústria farmacêutica, mas não há ninguém que, ao acordar envinagrado,
pense onde está a solução para pulverização bucal de flurbiprofeno. O comércio
com as suas marcas é muito mais entusiasmante do que a química, a qual desde a
reforma da nomenclatura feita por Lavoisier, Bertholet, Fourcroy e Morveau – são
legião as coisas inúteis que eu sei – perdeu a natureza poética que animava o
mundo governado pela teoria do flogisto e onde existiam coisas tão espantosas
como fígado de antimónio, sal da sabedoria, flor de bismuto, isto para não
falar no açafrão de Marte e na manteiga de arsénio, a qual deveria ter
excelente utilidade em casos desesperados, e que hoje em dia, se vi bem, é
conhecida pela designação despoética de tricloreto de arsénio. Acordar assim no
dia de Carnaval não é um bom sintoma e não sei a quem culpar se à minha faringe
se ao Lavoisier. Durante a noite, e num momento de insónia, o senhor Chesterton,
do qual estive a ler umas páginas para tentar chamar o sono, recordou-me uma
verdade central da existência. Tudo o que é extraordinário depende de um veto,
de uma proibição, por norma destituída de sentido. Lembrei-me de imediato de
Adão e Eva e da sua extraordinária existência paradisíaca presa pelo veto de
comerem o fruto de uma árvore. Se o leitor, porém, for um nietzschiano
empedernido ou um cultor da supremacia ariana e achar que isso são coisas de
uma cultura judaico-cristã decadente, recordo-lhe que também a felicidade de Orfeu
dependia da estranha proibição de olhar para Eurídice enquanto se afastavam do país
dos mortos. Num mundo em que já não há fígado de antimónio nem flor de bismuto,
o sal da sabedoria é descobrir qual a proibição que vela pela sua felicidade e
o mais sensato é não comer maçãs ou olhar para trás, não vá lá estar a Eurídice
que se perderá para sempre.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Outros carnavais
Nestes dias ainda não avistei por aqui foliões a imaginar
que estão no Carnaval. Anda tudo muito circunspecto. Se deixar a memória fluir,
hei-de lembrar-me de que no tempo de criança, na escola primária, talvez antes,
ter-me-iam comprado uma caraça – havia as de pasta de papel e as de plástico –
uma pistola de água, as inevitáveis serpentinas e os estalinhos, não sei se por
outros lados teriam outro nome. Nada disto entrava na escola e os professores
daquele tempo, com os seus fatos escuros e gravatas sombrias, eram gente séria
e pouco dada à volatilidade do corso, prontos a manejar uma régua com que
imaginavam civilizar uma turba de selvagens. Mascaradas e outros devaneios
conflituavam com a santidade do que havia para aprender. Mesmo em casa, as
bombinhas de mau cheiro não faziam parte do permissível e os sacos de confettis, vá lá saber-se o motivo,
também não. Não seria um Carnaval inebriante, mas na altura tudo aquilo
pertencia a uma ordem inquestionada do mundo, que se aceitava porque era assim,
mesmo os selvagens actos civilizacionais de professores austeros. As pistolas
de água nem sempre davam ocasião a situações amistosas e as serpentinas nunca
deixaram de ser uma decepção. Lançadas, era impossível recolhê-las para as
tornar a lançar. Serviam apenas para juncar o chão de papel colorido e ficar a
olhar para aquilo sem entusiasmo, não percebendo na altura a lição que havia nelas
sobre a irreversibilidade de tudo o que acontece. Na verdade, aprendiam-se
muitas coisas, talvez as mais importantes, sem saber que se aprendiam e nisso
havia uma inteligência profunda que foi vendida ao desbarato nalguma feira da
ladra.
domingo, 23 de fevereiro de 2020
Meditações em Domingo Gordo
Ganha-se má fama e pouco há a fazer. Depois de ter ouvido a
irmã dizer mil vezes que têm de levar as raquetes de badminton para jogarem
comigo, a minha neta mais velha, cansada da iteração, respondeu que não achava
isso grande ideia, pois a última vez que o avô jogou com elas deu cabo das
costas. Entrar na adolescência é abrir a porta da blasfémia, foi o que me
ocorreu quando soube do comentário impiedoso acerca da minha condição atlética.
Dei indicação estrita para não se esquecerem das raquetes. Se ficar sem me
mexer, paciência. Está um domingo gordo, cheio de sol, os insectos que o
inverno tinha adormecido despertam e enchem o ar de zumbidos. Tenho dias em que
a verve descamba para o regionalismo, para pintar paisagens bucólicas, por onde
caminho à beira do rio, a vida a florescer à minha volta, os pássaros a cantar.
Ser provinciano é um exercício trabalhoso, onde há que adoçar as vísceras,
conter ideias que possam atravessar a mente como um relâmpago e desabarem no
mundo como um trovão. Duas comparações seguidas não são bom augúrio para o meu
destino de autor. Há tempos comprei duas obras da Sarah Beirão. Falo a sério.
Amores no Campo e Serões da Beira. Numa deles, a autora escreve: Amavam-se
enternecidamente. E fico aqui na minha província, diferente da dela, sentado à
secretária, a olhar para aquele amor terno, à antiga, como de imediato se
esclarece. Um daqueles amores de almas enlaçadas, a vibrar nas mesmas emoções,
uma cornucópia de olhares e desejos que hão-de traduzir-se em muitos filhos, ou
não, pois nunca li o conto. Um dos livros traz, no interior, uma assinatura e o
ano de 1942 e, mais abaixo, uma dedicatória e a data de 16-XI-59. A vida tem
destas coisas. Alguém, uma mãe, compra o livro ainda a segunda guerra mundial
estava a meio, oferece-o à filha e ao genro, ou ao filho e à nora, mesmo antes
de se chegar aos gloriosos anos sessenta e agora jaz à minha frente, depois de
ter sido vendido a um alfarrabista. O que tem isto a ver com o badminton? Nada,
mas a vida é feita de coisas que não têm nada a ver umas com as outras.
sábado, 22 de fevereiro de 2020
Nostalgias incompreensíveis
Hesito sempre entre o antes e o depois, não sei qual das
personagens me desagrada menos, embora pareçam muito distantes e diferentes.
Não estou a falar de literatura. Hoje hipotequei a manhã num corte de cabelo.
Antes de o cortar talvez parecesse um velho intelectual da rive gauche. Agora, já que corto sempre o cabelo curto, talvez pareça
um velho militar na reforma. Não me desagrada o ar marcial. Há uns anos, por motivos
fortuitos que não vêm ao caso, cortei rente o cabelo. Gostei da sensação. Há em
mim nostalgias incompreensíveis, saudades de coisas que nunca experimentei.
Umas vezes, penso que deveria ter sido monge cartuxo ou trapista. Ponho-me a
imaginar a vida disciplinada, a prática do sacrifício, as horas de oração, a
dádiva total à vontade divina. Outras vejo-me como militar, o serviço prestado
à comunidade, a dádiva no campo de batalha. Talvez haja em mim uma inclinação
trágica para o sacrifício. A verdade, contudo, é que sou um filho de Adão e tão
volúvel como este, que logo se deixa levar pelo sorriso de Eva e vende o paraíso
pela primeira quimera que lhe oferecem. Cheguei cedo a este sábado. Já não sou
o mesmo que era quando saí da cama. Não lerei o Le Monde nem o Libération,
sentado numa esplanada. Olho-me ao espelho e vejo nele o militar que não fui.
Há pouco, quando escrevi que não estava a falar de literatura, menti.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
Dias difíceis
Enquanto escrevo, um programa de optimização do computador
exerce laborioso a sua função. Talvez não devesse estar a escrever enquanto ele
luta com denodo contra a corrupção da máquina e faz o que pode para a manter à
tona de água. Invejo os computadores. Como eu desejaria poder correr em mim um software que me optimizasse. Não haveria
erros de registo, nem de atalhos. Acabaria com os problemas de privacidade, as
ameaças de spyware e o desempenho,
esse elevar-se-ia à estratosfera. Infelizmente, não há um programa desses que
me livre de tudo aquilo que me corrompe as vísceras, infecta a alma e apodrece
o espírito. É neste estado que enfrento a entrada numa das épocas mais
melancólicas do ano. Só de me lembrar daqueles carnavais portugueses, com as
raparigas quase despidas, a fingir que são brasileiras e que trazem o samba à
flor da pele, dá-me vontade de chorar. Depois, oiço palavras como foliões e nesse
delicado momento a minha vontade de invadir a Bélgica ou mesmo a Polónia é desmedida.
Vão ser tempos difíceis. Os dias estão cada vez maiores e o sol mais quente.
Olho para a paisagem e só vejo primaveras e qualquer coisa em mim fica apreensiva.
A Primavera é um embuste da natureza para nos enfiar à socapa nos matagais ínferos
do Verão. O baloiço lá em baixo range e eu vou rangendo com ele. Hoje devia
recomeçar as caminhadas. Aliás, devia recomeçar muitas coisas e não tenho tempo
para tanto recomeço, o melhor é procrastinar.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020
O caos avança
A quinta-feira passou a fronteira que separa a manhã da
tarde, vai a trote, sem impaciência. Ao nomear o dia lembrei-me de um romance
de Chesterton lido há muito, O Homem que Era
Quinta-Feira. A história metia anarquistas, polícias e espiões infiltrados,
acabando por tudo se confundir. É o que acontece na vida não romanesca. Tudo se
confunde. Porventura, eu deveria ser mais honesto e dizer tudo se me confunde
ou confundo-me com tudo. Imagino que quando se é recém-nascido a mente seja
povoada por um caos e que, paulatinamente, se vai organizando até se tornar um
cosmos límpido e quase aprazível, como aquele que Descartes exibia quando tinha
por habitantes da sua mente as evidências, tão claras e tão distintas, que
ofuscariam um sol como o de hoje. Eu, confesso, nunca tive muitas evidências, embora
viva num mundo onde não há cão nem gato que não as exija . Seja como
for, eu sei que é quinta-feira porque o calendário assim o diz ou talvez me
tenha lembrado do romance do Chesterton e feito a dedução, aliás brilhante, que
se segue: hoje lembrei-me do romance O
Homem que Era Quinta-Feira, logo hoje só pode ser quinta-feira. Como se vê,
existem já evidências do meu estado de confusão mental, em que confundo a objectividade
do calendário com a subjectividade da memória. Espero que amanhã, por
contiguidade metonímica ou por mera associação, me lembre do Robinson Crusoe e acerte no dia da
semana. Com o avançar da tarde a confusão só pode aumentar. Quando a noite
cair, o caos mental será tão grande que talvez já nem saiba o meu nome, se é
que terei algum nessa altura.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
A quarta-feira escorrega
Enfastiado, deixo a quarta-feira escorregar por mim. Não sei o que fazer com ela, embora saiba o que fazer nela. Tenho muito para ler, mas não é literatura que me desvaneça. Cansar-me-á os olhos. Haverá de me fazer sorrir, outras vezes bocejar. Do parque infantil, chega-me o ranger das roldanas. Não fora o ruído e quase acharia um tom poético na aliteração. Isto aqui, porém, é prosa e manda a correcção do estilo evitar repetições sonoras, mas elas insistem, desabam no texto, caminham por ele e deixam uma pegada que ninguém apagará. Uma mãe chama uma filha, um aspirador sorve a poeira num apartamento vizinho, o ar fresco entra-me pela janela, enquanto os meus olhos saltam para a paisagem em frente. O pequeno bosque ergue-se como uma barreira verde que começa a ocultar-me o mundo. É uma tapada de árvores uniformes, de onde se exceptuam alguns cedros, que deram em esgalgar e querem confundir-se com marcos miliários, pelos quais os anjos hão-de contar as milhas que percorrem nessa estéril tentativa de proteger os homens de si mesmos. O aspirador calou-se. Não tarda e o grupo musical da escola vizinha há-de vir animar a tarde, com as suas canções de baile de província. Ocorre-me que ande a ensaiar para o baile da pinhata ou para alguma verbena. O telemóvel informa-me que o antivírus está a olhar por mim. Inclino a cabeça em sinal de gratidão e penso que sempre existem anjos. A minha operadora de comunicações, purificando-se pela caridade, insiste em oferecer-me coisas, como se tivesse urgência em ganhar o céu. O inferno são os outros, mas isso é conversa de intelectual que não vem ao caso.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Escolher o pior
Devia ter-me dedicado ao comércio, trocar mercadorias por dinheiro. Comerciar é um exercício pacífico em que ambos os lados, os que compram e os que vendem, acabam por se sentir felizes e por isso cooperam, quase sempre com a bonomia e o trato civilizado que o interesse mútuo supõe. Há nessa civilidade fingimento e dissimulação? Claro, mas sem essas duas virtudes – pois virtudes são e virtuosos, os seus efeitos – o mundo seria um lugar nefasto e muito mais insuportável do que é. A minha natureza, porém, impediu-me a escolha sensata. Fui dotado de uma propensão para optar pelo pior. Não falo por falar. Escolhi dar de comer a quem não tem fome. Uma profissão de mérito, embora com pouca utilidade. Durante uns tempos ainda me apareciam famélicos, alguns mesmo subnutridos, a quem eu tinha o privilégio – coisa que não sabia na altura que o era – de alimentar. Depois, os enjoados e os enojados, que vomitam com facilidade, começaram a crescer em número e tornaram-se dominantes, mas foram já ultrapassados por aqueles que se recusam a abrir a boca. A colher vai e vem, enquanto eles indiferentes ostentam uma saciedade desarmante. Como seria empolgante esse mundo de letras e livranças, de cheques e numerário, com os seus almoços e jantares de negócios, uma pessoa rodeada de gente com apetite, sempre disposta a abrir a boca, sempre disponível para mais uma iguaria. Como é belo um balanço e terna a relação entre o deve e o haver. Escolhi, porém, dever tudo e não ter nada a haver. Quando começo a falar por enigmas, o melhor é desconfiar da minha sanidade mental.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
Uma questão de fidelidade
Enterneço-me com pouco, afinal. Ao abrir a caixa do correio, encontrei uma carta da operadora de comunicações. Franzi o sobrolho, mas não a abri de imediato pois não tinha óculos à mão. Chegado a casa, com a visão devidamente aumentada, li a comunicação. Ofereciam-me um cheque de 150 euros para gastar na respectiva loja. Foi aqui que fiquei enternecido. Afinal, ainda há operadoras de comunicações boas e caridosas. Com a emoção a fazer vibrar as cordas do coração, fui ler as condições, pois até os santos mais caridosos têm as suas condições para a prática do bem. Eles são santos, não são, como Kant, adeptos do dever pelo dever. Havia algumas sem importância, mas uma exigia-me mais 24 meses de fidelidade à operadora. Apesar de enternecido, rasguei o cheque. Depois, olhando para os despojos, perguntei-me se o meu coração terá tanta capacidade em enternecer-se quanta em evitar fidelizações. Talvez ele não seja inclinado a pôr-se ao abrigo do pecado da infidelidade ou não esteja disposto a ser fiel por uns miseráveis 150 euros. Não quis aprofundar a questão, peguei nos papéis e fui colocá-los no caixote da reciclagem. Temo o dia em que receba um pequeno embrulho da operadora. Será um anel de noivado e um pedido de casamento pela Igreja.
domingo, 16 de fevereiro de 2020
Dramas dominicais
Num dos apartamentos contíguos, os habitantes esqueceram-se
de baixar o volume das vozes. Por certo, não sabem onde deixaram o comando e
pertencem a gerações que já não trazem botão para controlar o som. O tema da
dissensão, se é que existe alguma, não o percebo, tão pouco consigo discriminar
qualquer palavra no meio das ondas sonoras. Há apenas uma melodia exasperada,
que me chega como um murmúrio amplificado, com algumas tonalidades rudes,
talvez a memória genética do tempo em que o volume sonoro da voz era tido como
manifestação de poder e exercício de autoridade. Porventura não será nada disto
e eu esteja a pôr-me a adivinhar por manifesta falta de vontade de fazer aquilo
que tenho para fazer. Escrito isto, a minha consciência pôs-se a ruminar
insultos, mas conteve-se e perguntou se eu não sabia que hoje era domingo e aos
domingos não há nada para fazer. Como o leitor pode perceber, tenho uma consciência
velha, daquelas que cresceram no tempo em que não havia grandes superfícies
comerciais e em que o domingo não se confundia com os dias úteis. As ondas
encapeladas do mar sonoro que me atingiu há pouco serenaram. Faltou-lhes
energia para se tornarem um tsunami.
O prédio encerrou-se no seu habitual silêncio e daqui de casa chegam-me, quase
sussurradas, umas frases imperativas sobre trabalhos de casa a fazer, seguidas
de um silêncio comprometido. Uma tragédia, suponho. Os domingos são dias de
imensas tragédias, basta serem a véspera de segunda-feira. Não serão tragédias,
para falar com exactidão e evitar a minha inclinação para a hipérbole, mas
pequenos dramas, onde se exprime uma revolta conformada com o que tem de ser. A
culpa foi de quem congeminou a nossa expulsão do Éden. O grande programador
divino, usando o fruto da sua presciência, poderia ter evitado esse bug no software com que nos dotou, mas preferiu que tivéssemos de
enfrentar um mundo com dias úteis e dias inúteis. Ele lá terá as suas razões.
sábado, 15 de fevereiro de 2020
Deambulações num sabat de província
De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava
da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida.
Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco
povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá
escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de
imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de
quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos
a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele
concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos
com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um
príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde
antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez
no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do
fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados
lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que
afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com
que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares
ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a
refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas
entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares
enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos
geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os
empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações
condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta
palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois
penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande
velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020
S. Valentim
Por vezes sou brindado por certas iluminações. Não se pense
que se trata de ficar exposto à acção de um qualquer holofote. Podia ser, mas
não. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam insight. Não sei como, mas acontece-me, muitas vezes depois de uma
refeição, ter um insight. Há quem
sugira que o álcool pode ajudar. Não o creio e devemos evitar dar ouvidos à
ironia de vozes que não sabem calar-se. Ao sentar-me passei os olhos pela
imprensa, observei o estado do mundo e uma luz acendeu-se em mim. A vida em
sociedade é uma enorme manta de irracionalidades. O fundamental é que alguém
saiba dirigi-las de maneira a que se anulem entre si. Julgo que seria a este
trabalho de maestro e tecelão que se dava o nome arte política. Não é um
brilhante insight, mas como se sabe
também as lâmpadas têm potências diferentes, iluminando umas mais e outras
menos. A minha serve apenas para luz de presença. Respiro fundo, depois faço
uma longa expiração, enquanto tapo os ouvidos. O parque infantil foi invadido
por bandos de crianças com as suas vozes de estilete. Faltam ainda algumas
horas para que chegue o fim-de-semana. A pátria dorme uma sesta desconsolada,
enquanto os seus filhos dilectos comemoram o dia de S. Valentim, essa
antiquíssima tradição que uniu os corações de Pedro e Inês e pela qual D.
Sebastião se perdeu em Alcácer-Quibir. Se não acreditam, não esperem de mim a
luz que vos convença da verdade. O que me aborrece mesmo é não poder ir jantar
fora sossegado, tão ocupados estão os restaurantes com os Pedros e as Ineses,
elas tão puras e castas e eles tão firmes e pétreos.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
Do cantabile ao adagio
Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram
tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite
se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão
de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem
na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as
ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que
gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para
melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma
há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e
sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há
muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto
para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico
funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma
sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile
do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio.
Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite
abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da
madrugada. Também eu caminho do cantabile
para o adagio. Ah, o relatório, digo
e bocejo.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Não haveria paciência
Na praceta, extraviado da escola ou do centro de línguas, um grupo de adolescentes urra. O desarranjo hormonal manifesta-se das formas mais inusitadas. As hormonas compor-se-ão lá mais para diante e os proprietários haverão de se comportar como se fossem normais. É preciso não deixar cair por terra o princípio de esperança. Tenho de limpar as lentes dos óculos, pois a realidade parece-me turva. Lá fora, o dia está cinzento e isto fez-me lembrar os tempos em que era existencialista, lia Sartre e Camus, e cultuava o Vergílio Ferreira como existencialista doméstico. Tudo era então náusea e absurdo. O mundo se não era feito de carvão bem negro, era-o de uma cinza escura, pegajosa e quase nojenta. Descobri mais tarde, sem alvoroço, que o existencialismo não era uma doença crónica e que se podia tratar, apesar de deixar algumas sequelas. Se fosse linguista e dado a reformador ortográfico, introduziria de imediato o trema e ficaria com seqüelas existenciais. Aliás, também ressuscitava todas as consoantes mudas que têm vindo a ser decapitadas desde o infausto ano de 1911. O destino, todavia, foi avisado e não me fadou para andar por aí a endireitar os tortos ortográficos. Talvez por isso tenha caído no caldeirão existencialista. Nunca se sabe muito bem por que razão acontece aquilo que acontece. Consulto a agenda, franzo o sobrolho, arrumo o pano de limpar os óculos no estojo e penso que talvez haja alguma razão em quem diz que há em mim uma certa propensão para o autismo. Mastigo dois comprimidos Aero-Om. Se não me curam da terrível propensão, talvez impeçam um recidiva existencialista. Não haveria paciência.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
Wilhelm Reich fora de horas
Pertenço a uma geração que nos verdes anos leu coisas inverosímeis. Ao escrever esta frase, como narrador obediente que me prezo de ser, não deixei de torcer o nariz, coisa que foi de imediato sentida pelo autor. Qual o problema? Olhei-o e a medo disse-lhe que havia vários problemas. Verdes anos e coisas inverosímeis estão longe de ser noções claramente definidas. Depois, acrescentei, eu não tive verdes anos nem li coisas inverosímeis. Sou apenas um ser virtual, nem sequer sou um ser de papel, como eram os narradores de antigamente. O autor olhou-me e perguntou-me se na juventude não tinha lido Wilhelm Reich. Por Deus, disse-lhe eu. Não, não li, nem Reich nem o que quer que seja. Eu não leio. Um narrador não é um leitor. Pois, disse-me ele já irritado, eu li. E não sei o que é mais inverosímil se ter lido Reich ou ter tido verdes anos. Encolhi os ombros, sem paciência para as revisões existenciais a que o autor se entrega. O dia está quente. Fevereiro parece querer arrancar-se à lânguida ciclicidade do ano e correr em direcção à Primavera. Não sei se há alguma ligação entre as memórias reichianas do autor e a anunciação da Primavera. Se há, o melhor é que ele olhe para idade que tem e perceba que os combates da juventude pouco têm a ver com a calma sensatez da idade madura. Excessivamente madura, diga-se. Na escola do lado, um vulto pisa lentamente a erva, senta-se debaixo de uma oliveira e recosta-se. Aposto que nunca ouviu falar em Wilhelm Reich e que o mais certo é que nunca há-de ouvir. Dele será o reino dos Céus.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
A poética das análises laboratoriais
Recebido por correio electrónico, imprimo o relatório das análises que mais logo terei de mostrar ao médico. Está dividido por secções cujos nomes lembram a designação de disciplinas de um curso superior. Hematologia, Bioquímica I, Bioquímica II. Será que também aqui haverá precedências? Quem chumbar na Bioquímica I poderá fazer a Bioquímica II ou terá de repetir a I? Outra secção, porém, tem um nome menos amigável, Marcadores Tumorais. Esta não se parece com uma cadeira universitária, mas com um quadro onde se vai inscrevendo a evolução de um jogo de bilhar às três tabelas. Olho com condescendência para os resultados, verifico se eles se integram nos valores de referência. Por fim, tento descortinar o valor literário da informação. Vejo por ali vocábulos extraordinários. Eritrócitos, hemoglobina, hematócrito, leucócitos, eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. Isto para não falar da glicémia, da ureia, do colesterol e dos triglicéridos. São verdadeiras famílias, com as suas sagas, os seus amores e ódios, triunfos e desditas. O nosso organismo está cheio de histórias com personagens que nem sonhamos. Não admira a quantidade de escritores médicos. Têm a mente povoada de personagens com nomes destes, cuja acção determina a vida ou a morte do hospedeiro, a glória ou a tragédia do herói. A tarde nasceu enfastiada e o fastio que dela se desprende toma conta da atmosfera, envolve os transeuntes na avenida, repousa-se nos ramos do arvoredo. Aqui perto, caminham dois eritrócitos e três leucócitos. Falam em surdina, fazem planos, traçam mapas onde se inscreve a vida e a morte. Param perto de mim e um deles, o leucócito mais apessoado, pergunta-me se conheço a transaminase glutâmica oxalacética. Embaraçado, respondo que não, embora conheça a transaminase glutâmica piruvica, que deve ser prima. Se quiser falar com ela, não tem nada que enganar. Faz a rotunda, sai na terceira saída, é logo o primeiro prédio. No segundo direito.
domingo, 9 de fevereiro de 2020
O espírito aos domingos
Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela
muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e
só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de
quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de
sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me
chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente
repousa um livro que tem por subtítulo Um
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso
tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de
vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O
espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a
cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento
sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a
necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos
domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos
da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e,
eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a
ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade
que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na
verdade era sujeição ao ethos provinciano,
onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na
menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória,
podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz
tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as
janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou
ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os
homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Poupar os pormenores
Hoje ao abrir as janelas dei-me conta de que no friso das
orquídeas persiste florida uma quase há um ano. Comprei-a em Março passado por
razões que não vêm ao caso e já estava florida. Enquanto as outras foram
perdendo as flores, ela atravessou impante a Primavera, fingiu que o Verão era
coisa de somenos por aqui. Quando o Outono deu lugar ao Inverno, a queda de
umas flores foi compensada pelo rebentamento de outras. E ali está ela pronta
para chegar a Março. Ocorreu-me que tivesse sido enganado na florista e que não
seja uma orquídea. Na realidade, não sou um Nero Wolfe. A minha vida não é
desvendar crimes sentado à secretária e cultivar orquídeas. Também não tenho um
cozinheiro à disposição e, por isso, já fui consultar a ementa de uma dessas
casas que têm por função transformar pessoas como eu em cozinheiros improváveis.
Se me perguntarem de quem é a responsabilidade do almoço, posso responder é minha.
Evito os pormenores. A sabedoria da vida reside toda aí, no evitar os
pormenores. Quanto mais pormenores se sabem, maior é a descrença na humanidade.
Uma pessoa sensata tem por norma o imperativo categórico poupem-me os
pormenores! Um pormenor delicioso é narrado em Walden Two, o romance de B. F. Skinner, o behaviorista. Frazier,
enquanto aluno de licenciatura pegou num artigo do reitor da universidade, para
usar um título à nossa medida, publicado numa revista, assinalou-lhe a vermelho
os erros de ortografia, compôs-lhe a sintaxe e com recurso à simbolização
lógica formalizou os argumentos, mostrando a sua não validade. Feito isto, enviou
o artigo ao seu autor com a classificação de C. E qual foi a resposta do magnífico
reitor, pergunta quem tenha a desventura de estar ler este texto. Não sei. B.
F. Skinner, no romance, poupou-me o pormenor.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Acasos
O acaso tem um papel nas nossas vidas muito maior do que
supomos. Mal escrevi a frase vi a que enredos ela poderia conduzir-me e hoje
não estou para ardis nem para ciladas. Foi o acaso que me fez escutar uma canção
que ouvia muito há mais de quarenta e cinco anos. Um poema de Rosalía de Castro
musicado e cantado por um dos trovadores em voga na época. É uma bela canção,
de uma tristeza comovente. Depois, pensei que nessa altura, com a idade que
tinha, não deveria ouvir música daquela. A canção acabou, Rosalía voltou para a
sua Galiza, onde nasceu sem que do registo de baptismo constasse o nome dos
pais. Lembrei-me então que hoje, ao atravessar a cidade e enquanto me preparava
para enfrentar as Erínias, ouvi na Antena 2 que era dia de aniversário de
Juliette Greco. De imediato procurei uma das canções dela de que mais gosto, Déshabillez Moi (honni soit qui mal y pense) e achei que a tarde poderia ter acabado
pior. Vou passar as próximas horas a ouvir cançonetas que não lembra ao diabo,
enquanto a noite vai tricotando a sua agonia, à espera de um relâmpago que a
salve de se precipitar na maresia da madrugada. Rosalía não chegou aos
cinquenta anos, mas a Greco fez hoje noventa e três. Não sei se nisto haverá
alguma mensagem cifrada ou se tudo não passa de um acaso.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Pensamentos alados
Leio um poema e nele vejo os preconceitos da autora, das mais importantes, o seu universo de anuências e recusas em forma de verso e sinto-me infeliz, pois, na minha cegueira poética, a procura da linguagem primordial exige que o poeta comece a despir-se dos conceitos e, de seguida, dos preconceitos. Esta frase já vai demasiado longa, reparo agora. Um anjo, mas não o que me guarda das tentações, interpela-me e, em modo de sarcasmo, pergunta-me se a poesia não tem direito a dizer coisas, se ela é apenas como o chilrear dos pássaros, uma ondulação sonora com requebros rítmicos. Vi logo que era um anjo comprometido socialmente e desejoso de transmitir uma mensagem. Depois, concedi que é assim mesmo que deve ser. Os anjos são mensageiros. Foi esse o papel que lhes foi destinado e, por isso, foram colocados abaixo dos homens e, acrescento eu, dos pássaros. Ando a ficar preocupado comigo. Parece que os meus cuidados existenciais se dividem entre a angelologia e a ornitologia. Seres alados, digamos assim, ocupam-me a mente e isso pode significar que também a habita o orgulhoso desejo de voar. Depois, estremeci só de pensar que poderia ser um Ícaro e que acabaria por ter o mar Egeu à minha espera. O mais sensato é ficar sentado e deixar a quem tem asas a tarefa de voltear pelos céus. O anjo com a sua conversa distraiu-me da crítica literária e isso não foi mau. De uma das janelas, sobrepondo-se a um bosque de cedros, ergue-se o hospital. As paredes brancas estão cinzentas. Batalhões de fungos invadiram-nas e o que era alvo e brilhava ao sol é agora uma cortina de cinza alquebrada pela tristeza. Devia parar com estas tiradas de um romantismo mais que serôdio. Não tarda e terei de almoçar. Espera-me uma tarde tão longa que entra pela noite fora.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
Bach e Deus
Estava a ouvir a suite francesa nº 2 de Bach e, ainda a peça
fluía pela Allemande, já o espírito
se distraía perdido na pátria das coisas inúteis. Os pensamentos talvez sejam
obra do acaso, tão inopinadamente irrompem para, como um exército inimigo, invadirem
o território da atenção. Sem saber porquê, o argumento modal da existência de
Deus requereu a minha atenção. Estranhei. Fiz um esforço para deixar de lado
necessidades e possibilidades e acompanhar a música. O argumento não se calava.
Seria a sua natureza estética, a beleza que há na simplicidade, que disputava a
atenção, ocorreu-me. Fechei os olhos e deixei a música deslizar por mim e
disse-me se é para aceitar uma prova da existência de Deus, o melhor é crer que
a música de Bach é mais convincente que um qualquer argumento a priori. Depois ri-me. Pensamentos
destes depois de almoço não se recomendam a ninguém. Levantei-me e olhei pela
janela. Bach continuava a sair pelas velhas colunas e na rua o esbranquiçado
das nuvens mesclava-se com o azul do céu. Uma nuvem mais densa escondia Deus
que dormia embalado pela música que eu ouvia. Talvez os homens existam para que
Deus possa através deles ouvir Bach. Mais que uma possibilidade, os homens
seriam uma necessidade divina. Retorno à minha agenda onde colecciono, como se fosse num herbário, os recados que dou a mim mesmo, e escrevo: nunca ouvir Bach
na digestão e evitar argumentos ontológicos quando se ouve música.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
O canto dos pássaros
Os pássaros meus vizinhos poisam no parapeito de uma das janelas e conversam longamente. Não os vejo, mas oiço-os. Não há neles irritação e o diálogo flui ligeiro, com pausas e troca ordenada de locutores. Será o mundo das aves mais ordenado que o dos homens, foi a pergunta que se formou em mim. Soubesse eu música, tivesse talento para compositor e faria como Olivier Messiaen. Comporia um catálogo dos pássaros, para que na voz do piano se escutasse o canto de uma ave. O desejo maior, porém, seria de entender a sua fala, o vocabulário, a sintaxe os artifícios semânticos. Haverá por ali belas metáforas, metonímias inesperadas e chego a desconfiar que não são parcos no eufemismo. Na prosódia, não se furtam à anáfora e são cultores assíduos da assonância e da aliteração. Estes devaneios distraem-me e estou constantemente a trocar letras no teclado. Fico a olhar para os erros. Umas vezes, a palavra assim inventada quase merece vir à existência. Outras, observo o teclado para tentar perceber que conexão neuronal se desviou da regularidade e me tentou arrastar para o caos. Raramente fico elucidado e desisto. Da rua, vêm os gritos doridos de uma adolescência que não aprendeu a domar-se. Também um aspirador regurgita das entranhas um zunido infernal. Temos sempre um pequeno inferno à nossa mão. Agora silenciou-se. Talvez o canto dos pássaros volte e eu compreenda pela primeira vez uma frase.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
Meditações de uma alma pura
Ocupam-me os dias coisas inúteis cuja finalidade é melhorar
o mundo e as pessoas, mas que, por um capricho da natureza que escapa aos
homens, têm o poder desmedido de tornar o mundo pior e as pessoas mais
incapazes de lidar com ele. Abstenho-me de entrar pelos ínvios caminhos da
política, os quais me estão proibidos, mas agradeço aos deuses a sua sabedoria,
pois sempre que querem melhorar os homens, estes pioram, sempre que querem curar
as coisas, estas adoecem. Se os deuses não fossem tão inteligentes talvez se deixassem
dos seus infinitos planos de melhoria. Corriam, porém, o grave risco de o mundo
e as gentes se tornarem um pouco melhores. O que seria desagradável. Com esta
conversa toda, deve-me ter acontecido alguma coisa. Não é verdade. Há dias que
qualquer um, mesmo um mero narrador incorpóreo, alma pura, tem de desabafar
sobre o ínvio curso das coisas. É um costume antigo e venerando e, por isso
mesmo, digno de apreço e reconhecimento como verdade. Lá fora, o sol ainda deve
estar quente. Tinha pensado fazer uma caminhada após o almoço para digerir as
maleitas da existência, mas temi que, como alma pura, não suportasse o calor.
Se tivesse um boné para a cobrir, ainda me arriscava. Não posso esquecer-me de
apontar na lista de compras um boné. Estão de volta os pássaros que o ano
passado me acompanharam os dias. Cantam à minha janela como se estivessem num
serão para trabalhadores promovido pela Fundação Nacional para Alegria no
Trabalho. Mais dia menos dias, só quem tiver mais de setenta anos percebe alusões
como esta. A minha alma sem corpo não está a funcionar lá muito bem. Talvez a
devesse descontinuar e criar um modelo novo.
domingo, 2 de fevereiro de 2020
Contra o coração
Depois de tomar o pequeno-almoço fui acometido por um súbito estado meditativo. Isto não traz nada de bom, pensei. Um sol esplêndido cai sobre as ruas, as pessoas aspiram os primeiros aromas da Primavera, a natureza não desdenha de começar a despir os andrajos invernosos e de procurar nas lojas da moda alguma roupa para a estação que há-de vir. Deveria ir celebrar a vitória da luz, mas lembrei-me de imediato que não tardará muito e o Estio entrará de rompante pelos corpos, inundando-os de suor, roubando-lhes energia, fazendo-os sonhar com as ondas do oceano. Sentei-me e fui arrastado para o livro do deve e haver da vida. Diante de mim está um telemóvel novo, comprado há três semanas, mas que continua intocado como uma virgem. Ainda não tive coragem para ler as instruções. Sempre desconfiei de instruções e ainda mais de aparelhos que precisam de instruções. Estou a afastar-me do assunto. O balanço é pior do estava à espera. Uma vida erguida entre duas falácias. Quando se é novo, o coração anseia a novidade porque é novidade. Quando se é velho, o coração inconstante cultiva a tradição porque é tradição. Ocorre-me, então, que o coração deveria ocupar-se apenas em bombear com presteza o sangue e deixar-se de considerações para as quais não lhe foi concedida competência. O mal do coração é querer meter-se onde não é chamado, emitir opiniões, dar conselhos que não passam de palpites enviesados sobre o que deve ser. Se a humanidade não tivesse coração, melhor andaria o mundo. O sol com o seu fato domingueiro de provinciano chama-me. Vou? Não vou?
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Um problema de família
Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo
chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã
deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos
artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém,
está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com
o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é
que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei
qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor
deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da
liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou
de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de
teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste
criado ex nihilo. Contente com o
latinório não se conteve e rematou ex
nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me
abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a
conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do
que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de
tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada
vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes
por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu
espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas
histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a
escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me
vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para
acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
Falar por enigmas
Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a
meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus
único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga
renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão
saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia
também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em
Creta e os Inuit no Alasca e entro no
fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não
como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém
ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que
tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na
Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse
dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos
homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha
designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar
cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era
melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e
envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É
possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com
isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade,
um Inuit perdido no horror de um
pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
O pobre destino da caligrafia
Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa
descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As
escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo,
desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável,
enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o
acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler
um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar
no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe
de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a
arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa
democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a
caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico,
expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada.
Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois,
sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir
prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos
contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda
esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez
a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica,
libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras
belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes
do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a
chinela.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Amor máquina
Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de
gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um
cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma
literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o
ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da
rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia
mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e
contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me
bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao
lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos,
mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o
isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não
escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc
pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial
de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar
durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico
grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto
tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de
qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê?
Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez
um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa
acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador
estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer
perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa.
Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios
colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do
mundo.
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Um estóico falhado
Cheguei à tarde desta terça-feira irritado e irritado com a
minha irritação. Deveria ter entrado no clube dos estóicos e entregar-me à apatheia. Olhar com indiferença olímpica
os acontecimentos que, por vezes, me acontecem e deixar o mundo correr para a
foz, sem julgar ter o dever de lançar bóias aos náufragos que encontro. As Parcas, porém, não me quiseram ver
perdido entre gente que se entregava a tal filosofar, arrancaram-me da sombra
do pórtico pintado e, no seu sábio julgamento, determinaram que no meu lote também
cabe a irritação. Quis enganá-las e a conselho médico comecei a tomar um
betabloqueante. Pensei, na minha ingenuidade, ou estupidez, conforme as
opiniões, que tinha, ainda em vida, entrado no paraíso pela porta da química.
Não havia irritação que me chegasse. Nestas coisas, a história tem sempre
desenvolvimentos que estão ocultos aos protagonistas. Os betabloqueantes
deixaram de betabloquear as irritações e o paraíso foi dando lugar ao
purgatório e, agora, ao inferno. Eu sei o que o leitor está a pensar. O inferno
são os outros. É verdade, se crermos nas homilias de Sartre. Eu não tomo
partido sobre elas. Oiço o ruído irritante de um aspirador e penso comigo que
deveria falar com essas Parcas ou Moiras, caso esteja mais inclinado para
o grego do que para o latim. Depois, achei melhor não as irritar e deixá-las
longe de mim. Esperam-me horas de grandes inutilidades e isso realiza-me
profundamente. Fosse eu um estóico e tudo me seria indiferente. Bastava
adequar-me à natureza. Estaria irritado, mas feliz.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
Ficções e fingimentos
Se tivesse engenho para a poesia épica, hoje escreveria sobre a epopeia da caldeira aqui de casa. Assaltou-me, porém, uma dúvida. Tendo em conta que ela decidiu fazer de morta, talvez o talento requerido fosse o do poeta trágico. Uma tragédia o não haver aquecimento nem água quente. A expectativa é que cheguem os técnicos e façam manobras de reanimação e ela ressuscite, sem que tenha de ir para o hospital ou para a morgue. A tarde ergueu sobre si um véu de chuva. Cobre-se com ele e caminha como uma noiva para o altar. Como ela, também a tarde desconhece que é ali, no altar, que se cumpre o seu destino de vítima sacrificial. Ainda me acusarão de querer destruir o instituto do casamento. Longe de mim tal ideia, chego mesmo a ter grande admiração por quem se casa quatro e cinco vezes. A persistência é uma virtude louvável e digna dos maiores encómios. Os técnicos já deveriam ter chegado. Daqui a pouco espera-me uma função daquelas que pela sua profunda inutilidade se tornam absolutamente imprescindíveis. E são coisas destas que me fazem amar esta pátria. Somos especialistas em ficções. Fingimos que gostamos, fingimos que pensamos, fingimos que sabemos, fingimos que fazemos. É um dom que nasce da combinação genética com a educação que o meio promove. Se os poetas são uns fingidores, são-no porque são portugueses. O que arrasta a extraordinária conclusão de que só existem poetas portugueses. Os outros ou não são poetas ou se o são, são portugueses mas não o sabem. O que faz a falta de água quente.
domingo, 26 de janeiro de 2020
Dia de nevoeiro
Cheguei à janela e disse é hoje. É tal o nevoeiro que D.
Sebastião não pode perder a oportunidade para regressar do seu infausto exílio.
Para tornar a hipótese verosímil, não sei bem onde, ouve-se a voz de Tony de
Matos cantar Tempo Volta para Trás.
Todos sabemos que a preocupação do artista não era propriamente o nosso pobre
rei maltratado nas terras da moirama, mas a Severa. Pensei de seguida que se D.
Sebastião chegasse agora ao aeroporto da Portela, logo a seguir viria a Severa
e os problemas que nos afligem ficariam todos resolvidos. Estou proibido pelo
autor destas palavras de ter opiniões políticas. Um narrador, diz-me ele dia
sim dia não, não se mete em política. Isso é coisa de autores. Eu anuo com
servilismo, mas sempre posso dizer que já conheci uns tantos D. Sebastiões, vi-os
chegar e partir e todos continuam à espera que ele chegue. Um domingo de
nevoeiro é sempre propício às minhas meditações sem nexo. Para tornar as coisas
mais densas, contrariamente ao que canta o artista, as horas para mim não são
dias, nem estes são anos. Aos fins-de-semana passa-se o contrário. Os anos para
mim são dias e os dias são horas. O que me atormenta não é que a Severa se tenha
ido, mas a possibilidade que ao virar a esquina dê com ela. Há encontros que
devemos evitar. O nevoeiro não faz intenção de se dissipar. Tenho de me
apressar, antes que D. Sebastião aterre, eu não possa acenar-lhe e gritar viva
o Rei. Ah, esquecia-me, de política não posso falar.
sábado, 25 de janeiro de 2020
Exercícios melancólicos
Ser avô não é um dado, mas um exercício difícil e
persistente. Depois de um mês de afastamento, o meu neto esteve comigo.
Olhou-me com olímpica distância. Nos seus catorze meses mal condescendeu em estar
ao meu colo, embora lhe agradassem certas cabriolices que fazem parte do
repertório que qualquer avô tem para lidar com netos renitentes. Preferiu fazer
explorações solitárias. A certa altura descobriu umas pequenas pinhas que eu
nem sequer sabia existirem. Achou que as poderia partilhar comigo. Dava-me uma,
esperava que eu a devolvesse e colocava-a onde estava. Recomeçava de imediato o
jogo. Foi-se embora há pouco e deixou um buraco no meio do sábado. Deveria
remendá-lo, mas uma preguiça ancestral insinua-se em mim e prende-me a coisas
triviais. Depois de uma manhã ocupada, deveria ir à rua e comprar o jornal de
fim-de-semana. Há uns anos tinha uma verdadeira obsessão pela imprensa hebdomadária,
comprava uns quatro semanários. Depois, alguns foram morrendo, outros mudaram
de sexo e mesmo o que resistiu perdeu a aura sagrada que tinha naqueles anos.
Hoje olho com condescendência para a prosa que se produz. Se a leio é por
desfastio, muito longe do entusiasmo com que no final da adolescência ou início
da juventude comecei a comprar os meus jornais. Ó miséria, lembrei-me que
o primeiro jornal que comprei com devoção foi o Motor, naqueles anos em que as corridas de automóvel faziam parte
do imaginário de uma adolescência à procura de rumo, como todas as
adolescências. Agora sou avô e há muito que morreram em mim os ecos da luta
entre Jackie Stewart e Emerson Fittipaldi, entre os Tyrrell e os Lotus.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
Romantismo tardio
Rápida, a noite aproxima-se no veleiro do entardecer. Como asas gigantescas, as velas da tarde enfunadas pelo vento arrastam a luz e murmuram uma litania dolente para a semana que agoniza. Dois corvos levantam voo do pequeno bosque e desaparecem do meu campo de visão. Anjos negros à procura de almas perdidas nos interstícios da serra, esse conjunto de morros cinzentos, curvados sob o peso dos anos. Não é preciso muito para o romantismo voltar e exibir o seu coração descarnado diante dos olhos atónitos do espectador. A primeira vez que entrei na sede da CGD, na João XXI, em Lisboa, para ver uma exposição, pensei que tinha aterrado numa catedral transposta da Idade Média para os nossos dias. Uma visão romântica das novas divindades. Também hoje visitei uma capela do novo deus e não sei bem por que razão achei que estava num confessionário. Na avenida, os carros lançam já os seus holofotes sobre o horizonte. Circulam devagar, presos à escuridão que avança. Também eu tenho de sair. Esperam-me num café ou, talvez seja mais certo, não tenho nada para dizer. É sexta-feira.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Os quatro caracteres
A humidade destes dias abriu caminho por dentro da secura do
clima. Não é uma terra fácil. Exige um carácter compassivo mesmo aos mais
coléricos. Sem a virtude da paciência será difícil enfrentar e suportar os
humores climáticos. Tenho pena, ou não fora um exemplo de melancólico, embora haja
que descontar a tendência para a hipérbole, tenho pena, dizia, que a psicologia
se tenha vindo a esquecer daquela velha divisão dos caracteres em quatro, todos
eles belos como metáforas à deriva num campo em flor. Esta última frase
mereceria ser riscada e não sem violência. O apelo ao pathos através destas estratégias para caçar ingénuos deve ser proscrita.
Fica lá, só para eu não me esquecer que há coisas que nunca se devem escrever.
Voltando aos caracteres, eles faziam uma bela divisão com os seus nomes.
Fleumáticos, melancólicos, sanguíneos e coléricos. O facto de serem quatro
ainda os torna mais dignos de admiração. A perfeição do número par, que se opõe
à imperfeição de qualquer ímpar, contrasta com o caos classificativo com que
hoje em dia designamos as pessoas. Como se pode negar a eficácia de dizer ali
vai uma melancólica? É pena que tenha casado com um colérico. Assim nunca
poderá ter filhos fleumáticos. Tornou-se moda, uma triste moda, ser contra as
classificações. Por tudo e por nada, se grita não me classifiques que eu estou
para lá de todas gavetas com que organizas a realidade. Presunção e água benta,
penso eu, cada um toma a quer. Um ditado ao gosto popular nunca fica mal para
pôr fim a um texto.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Contemplação e pontos Cardio
Com tantos tortos por endireitar e o mundo tão fora dos
eixos, e eu sentado à secretária a pensar coisas que não hão-de salvar ninguém.
Foi o que me ocorreu quando dei comigo a olhar com demora a Adoração do Cordeiro Místico, do
retábulo de Ghent, uma obra dos irmãos van Eyck, agora restaurada. Se pensarem
como motivo da minha contemplação os olhos humanos do Cordeiro ou o jorro do
sangue do seu corpo para o cálice, estão enganados. O que me retém é a ordem
perfeita com que os adoradores são dispostos na adoração, não tanto porque essa
ordem seja uma convenção cristalizada dos poderes sociais, mas antes o
resultado da própria natureza mística da figuração simbólica do Cristo. Meu
Deus, um dia destes ainda me torno um erudito. Não devia dizer estas coisas,
pois contrariam a vulgata social que hoje faz de cartilha maternal pela qual
todos aprendem a ler o que se passa por aí. Recebo uma mensagem. A aplicação
que me controla o exercício diz-me que está tudo OK!, com exclamação para
enfatizar a situação. Depois percebo que é um estratagema reles para motivar-me
a estar ainda dezassete minutos activo e obter mais um ponto Cardio. Desconfio que se obtiver todos
os pontos Cardio em jogo ganho uma
viagem a Ghent, mas talvez o mundo não funcione segundo as minhas conjecturas
e, mal faça uma, ela receba imediata refutação. Uma outra mensagem põe-me
perante um dilema, plausivelmente falso. Será a amizade um sentimento ou uma virtude? Para
piorar as coisas, alguém que desconheço, de um país do leste europeu, pede-me
amizade. Não lhe consigo pronunciar o nome. Ainda bem que não é um pedido de
casamento, pois os meus pontos Cardio
não seriam suficientes para tamanha comoção.
terça-feira, 21 de janeiro de 2020
Pobre Katharina
Passo os olhos pelos jornais e descubro que cinco pinturas
roubadas há quarenta anos na cidade alemã de Gotha tinham sido recuperadas.
Entre elas encontra-se uma de Hans Holbein, o Velho, que o jornal indicava ser Santa
Catarina, um quadro de 1509. Havia naquela mulher uma tal tristeza que duvidei
que se tratasse de alguém tocado pela graça da santidade. É o retrato de Katharina
Schwarz, onde no lugar da beatitude se encontra uma infelicidade resignada com
o mundo e consigo mesmo. Procurei outros retratos de mulheres do mesmo Holbein.
Neles há sempre um elemento desconcertante, como se a beleza tivesse sido
proibida àquelas mulheres e lhes restasse apenas o ar austero para assegurarem
um lugar no mundo. Exceptua-se uma representação de Maria, onde o amor pelo
Menino a resgata dessa rispidez fria e lhe dá uma beleza contida e secreta.
Olho pela janela e descubro que sob a copa das árvores do pequeno bosque
consigo avistar uma rotunda cuja estatuária, tão do agrado popular, me faz
lembrar as soturnas representações do realismo socialista. Sorrio e volto os
olhos para a infeliz Katharina. Apesar da beleza das mãos, a imperfeição do
rosto rapta-a e cerra-a num mundo de onde nenhum príncipe, mesmo de gosto
plebeu, a há-de resgatar. Na rotunda, os carros circulam devagar, talvez em
contemplação, enquanto a minha memória me traz, sem que eu saiba a razão, um
filme alemão visto há uns anos com o estranho nome Adeus, Lenine! Pobre Katharina, pensei.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
Erros meus
Cometem-se erros por ignorância.
Não se sabe como se escreve um vocábulo, mas incitados pela preguiça natural
que faz parte do ser humano escreve-se aquilo que parece ser a palavra e não o
que ela é. Outros erros há que são mais interessantes. Sou atingido por eles
com regularidade. Ainda ontem escrevi usou no lugar de ousou. A quase homofonia
explica aquilo que os dedos, comandados por um cérebro confuso, digitaram.
Colocamos esses erros sob o manto do descuido e com este tapamos não o erro,
mas o que se passa na nossa mente, a ameaça de caos que a atinge. Semelhanças
diversas, com o passar do tempo, fazem com que as fronteiras que distinguiam
certas palavras sejam cruzadas e um caos ortográfico atinja as regiões
policiadas do léxico. Não deverias começar a semana – de trabalho, claro – com
meditações dessas, diz-me a consciência, sempre pronta para moralizar e dar
conselhos a quem não lhos pediu. Levantam suspeitas, continuou, e roubam-te o
ânimo para enfrentares os dragões, os quadrilheiros e as amazonas mórbidas que
te hão-de saltar ao caminho. Tapei os ouvidos interiores e pedi-lhe com
delicadeza que se calasse. Tenho uns emails para ler, decisões para tomar e,
acrescentei não sem acinte, sei tomar conta da vida sem que precise dos teus conselhos de rameira convertida em puritana. Vindo da praceta ao lado,
oiço um barulho. Parece um martelo a percutir pedra. Imagino que estão a cuidar
da calçada, mas retenho a curiosidade. Talvez seja uma ilusão e o melhor é não
a desfazer, antes que tenha de me interrogar por que razão ando a imaginar
coisas.
domingo, 19 de janeiro de 2020
Críticas impertinentes
Não sem um sorriso compassivo leio que Baudelaire e Verlaine seriam dois versejadores muito inábeis na forma e baixos e banais no conteúdo. Depois a diatribe continua por mais um parágrafo, dezassete linhas em que a espada crítica enche os alvos com vários golpes. Ambos sangram com abundância e, nos espectadores, há lágrimas a rolar pelas faces. Na continuação, conclui-se que tão má poesia é vista como genial porque na sociedade onde ambos versejam a arte não é levada a sério. Quem o disse, perguntará o leitor, dado à poesia, condoído do pobre crítico, que deveria saber tanto de literatura como eu de chinês. A vida é feita destas coisas. Comecei o domingo assim, com uma má leitura, dir-me-ão, mas não tarda ponho o livro de lado para ir ver a rua e deixar-me embalar pelas ondas luminosas que se desprendem do Sol. A natureza tem sempre o condão de lavar a alma, quando não é ela que a suja, pois esconde no mais fundo de si um verdadeiro talento para desencadear a concupiscência. Esta palavra recordou-me as quatros virtudes cardeais, mas só me lembro de três. A força, a temperança e a justiça. Dou voltas à memória e, como ela se ri das minhas pretensões, recorro à informação em linha. Ah, exclamei ao ver estampado num texto a sabedoria. É o que me falta para ser virtuoso, pensei, embora nem toda gente esteja de acordo sobre se essa é a única virtude que me falta. O leitor não desespere, porém. O autor impertinente que ousou afrontar Baudelaire e Verlaine também escreveu coisas como Guerra e Paz ou Anna Karenina. Vou almoçar.
sábado, 18 de janeiro de 2020
Heróis e peregrinações
Está um entardecer soturno o deste sábado. Passei a manhã a
trabalhar, depois acabei por ir almoçar ao bar da esquina. Contrariamente ao
que acontece à noite, tinha pouca gente, o que me permitiu ler umas páginas de
um artigo sobre ficção. Quando saí, voltei a aventurar-me pela cidade. A
continuar assim torno-me um verdadeiro peregrino. Isso recorda-me a peregrinatio ad loca infecta, de Jorge
de Sena. É isso o que eu sou, um peregrino em lugar infectado, e, posso-o
assegurar, também estou contaminado ou, o que será mais justo afirmar, sou um
dos contaminadores. Seria interessante contar aqui as peripécias da minha
caminhada, mas ela foi pouco aventurosa. Não tive de enfrentar gigantes, nenhum
bando de maltrapilhos me saiu ao caminho. Foi uma andança compassada e
pequeno-burguesa, de quem digere o almoço e aproveita os raios de sol para se
iluminar um pouco. O autor destes textos bem podia fazer de mim um herói dos
antigos, mas suponho que ele deve ter sido infectado por alguma literatice moderna
e acreditará em anti-heróis. Hoje surpreendi-o numa discussão com alguém
que não conheço sobre a natureza da narrativa, defendendo, contra a opinião do interlocutor,
que uma narrativa não precisa que todos os elementos se acordem e conjuguem,
pelo contrário. Convém que o texto seja atravessado por presenças e
acontecimentos inúteis e que nada contribuam para o desenlace da intriga.
Escondi-me, antes que ele desse por mim. Nessas coisas, não me meto. Faço o que
me mandam, pois este é o papel do narrador e o seu principal dever, que nem
sempre cumpro, é o da obediência. A luz, como um funâmbulo, equilibra-se no
arame esticado entre o dia e a noite. Não tarda e há-de despenhar-se. Talvez
ressuscite na madrugada.
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