segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Uma metafísica ociosa

Por vezes, num momento de alheamento, as coisas parecem iguais ao que eram, mas mal se olha para o lado descobre-se que não é assim. Mascarados, vindos de todos os lados, irrompem no campo visual e por ali ficam a apascentar as horas, arrostando na face o escudo que talvez os salve. Consta que é um problema para os vendedores de bâtons e negócios correlativos. Tudo se paga nesta vida, exclamou ontem o meu amigo Rogélio, com aquele seu ar de profeta folgazão, enquanto acendia uma nova cigarrilha Café Creme. A natureza cansou-se do narcisismo humano e, para nos humilhar, obriga toda a gente a tapar o rosto. Não foi rosto que ele disse, mas as fuças. O que não deixa de ter as suas vantagens, acrescentou, com o ar mais sério que se pode pôr neste mundo. Depois de tecer múltiplas considerações sobre a vantagem estética da ocultação da face, rematou o ditirambo em louvor da máscara dizendo que não a usamos porque existe um vírus ameaçador, mas existe um vírus ameaçador para que a usemos. Eis a verdade. Esta inversão da ordem das causas e dos efeitos foi sempre uma característica sua. Isso foi ontem à tarde, hoje, porém, não posso entregar-me a esta metafísica ociosa, pois muitos são os deveres cuja realização aguarda o beneplácito da minha vontade. Alguém perguntou-me por que razão não escrevo sobre coisas importantes. Respondi-lhe que se eu escrevesse sobre elas, deixariam de imediato de o ser. Fui feito para discorrer sobre bagatelas e nulidades. Deixo aos outros a preservação dos bons costumes e a salvação do mundo. A cada um a sua especialidade.

domingo, 27 de setembro de 2020

Um começo inusitado

Ainda não eram onze da manhã e recebo uma chamada da Emilia Bazán, a mulher de Hans Castorp, o antigo discípulo alemão do padre Lodovico. Que estavam outra vez em Portugal. Se nos poderíamos juntar. Pensei que ela ainda se regulava pelas horas de Madrid. Uma hora ao domingo faz muita diferença. Depois, perguntou-me se já tinha acabado de ler as Sonatas, do Valle-Inclán. Respondi-lhe que sim. Muito bem. E comentários? Disse-lhe que o autor era bastante inteligente e que conseguiu produzir verdadeiras obras-primas quase como se escrevesse novelas cor-de-rosa, embora o rosa fosse ao mesmo tempo jocoso e sombrio. Ela riu-se. Ele era louco e genial. Até perdeu um braço numa briga com um amigo, acrescentou. Muitos idiotas – a expressão é dela – ficam decepcionados com estes romances, pois confundem entretenimento com literatura e, ainda por cima, falta-lhes a inteligência para compreender o autor. Ri-me. Desta vez safei-me, foi o que me acudiu ao espírito. Deste modo inusitado, entrei verdadeiramente no domingo. Ainda não sei bem o que fazer com ele, mas julgo que vou pagar pelas compras que não fiz e por outras coisas que deveria ter feito durante a semana e que adiei, não pela sua dificuldade, não por um ataque de preguiça, apenas porque me fazem bocejar. Uma náusea. Os dias têm estado ventosos e hoje não é diferente. Nos loendros da escola ao lado são já poucas as flores que resistem. As acácias da praceta, porém, estão majestosas, toucadas a verde cerrado que o vento, ao levantar-lhe as folhas, faz parecer quase cinzento e prata. Tenho de me fazer à vida. Quando era adolescente, era hora de ir à missa, agora é tempo de ir fazer compras. Troca-se sempre uma religião por outra. Não passamos de uns pobres conversos.

sábado, 26 de setembro de 2020

Comigo me desavim

Comecei o sábado com uma desavença com a balança. Deu-me mais setecentos gramas do que aquilo que lhe tinha pedido. Disse-lhe que não os queria. Ela replicou que não me preocupasse, eram oferta dela, não tinha de pagar mais. Respondi-lhe que não queria ficar a dever favores a ninguém. Ela que desse os setecentos gramas a outro. Não chegámos a entendimento e acabei por trazer os gramas comigo. Depois, passei diante do friso das orquídeas e descobri que a branca ainda tem duas flores, mas caindo estas entrará em hibernação floral, como todas as outras. Que tenha estado florida mais de ano e meio é um enigma, pelo menos para mim que nunca tive qualquer inclinação para a botânica. Descobri ainda outra coisa. O livro que estava a ler foi mal montado e a partir de certa altura começa a repetir as páginas anteriores. Nem posso reclamar com o vendedor, pois nem sei bem quando e a quem o comprei. Vai para a reciclagem. Também eu me poria na reciclagem se viesse de lá transformado noutra coisa, mesmo que fosse ainda pior do que já sou. Nunca deixo de louvar quem não se cansa de si mesmo, pois recebeu uma graça invejável. A mim foi dado o funesto destino de ter de viver comigo cansado de mim. Bem percebo o Sá de Miranda. Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Talvez ele, como eu, fosse dado ao exagero. Lá em baixo, uma criança exerce os seus poderes fácticos gritando até dobrar a cerviz da mãe, orgulhosa dos pulmões do príncipe. O mundo está a tornar-se-me incompreensível.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Onanismo respiratório

No sítio onde pela mais estrita necessidade oficio, para um rebanho de fiéis sem fé, uma liturgia espúria, como se fora um sacerdote cujos rituais tivessem sido determinados por um colégio cardinalício ignoto e malévolo, ao serviço de um deus galhofeiro e abscôndito, é parte obrigatória do paramento a máscara. É um exercício terrível proferir homilia atrás de homilia, sermão após sermão, com aquela coisa diante da boca e do nariz. Quando tenho oportunidade, escapo-me para o ar livre e procuro um sítio onde não esteja ninguém. Aí retiro o adorno e snifo, não encontro outra expressão, em longas inspirações, ar puro, um ar que não esteja contaminado pela minha própria respiração. Usar a máscara é um exercício de onanismo respiratório. Respiro o meu ar, respiro-me. Eu sei que há coisas bem piores e que elas acontecem sem que para elas seja preciso aduzir explicações. Isso não invalida tudo o que há de tenebroso neste entrudo chocarreiro que nos caiu em cima, neste carnaval que mais parece uma quarta-feira de cinzas ou o dia dos fiéis defuntos. Descarregado o fel, aliviada a bílis, olho para a sexta-feira e peço-lhe que suspenda o seu rápido curso para sábado, que retenha este sol outonal que brilha sobre a copa das árvores e aquece o vento que sopra de norte. Ela olha para mim divertida, volta-me as costas e continua impávida a sua viagem em direcção ao crepúsculo. Omito a palavra que me ficou retida na cercadura dos dentes. Também nesta frase há algum plágio.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Da memória

Hoje, ao passar pela avenida marginal, descobri que os castanheiros estão, muitos deles, sem folhas, e os outros apresentam uma roupagem envelhecida, encarquilhada, prestes a despenhar-se no calcário dos passeios, para que o sopro do vento a enovele e a empurre para dentro do nosso esquecimento. Não há maior sabedoria do que ser capaz de impelir as coisas para o lugar onde a memória perdeu os seus parcos poderes. Há pessoas que têm memórias fabulosas, vivem numa casa atafulhada de folhas mortas. Parecem ter nisso um grande prazer, embora o rancor nunca deixe de borbulhar se a recordação é adversa. Poderia escrever uma diatribe contra a memória e, ao mesmo tempo, uma apologia em seu louvor. Esta possibilidade de fazer uma coisa e o seu contrário deveria ser estimada e desenvolvida com afinco. Nunca se sabe de onde sopra o vento e aquilo que a vida exige de nós. Ainda no Natal nos parecia risível andar mascarados como se o ano fosse todo ele um contínuo Carnaval, agora é o que se vê. Também eu uso máscara, mas ponho-a sobre aquela que usava todos os dias, embora ninguém se apercebesse. Vou equipar-me e pôr-me a caminho para ver se chego a horas ao sítio onde estou.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Misantropia

O dia ensarilhou-se logo de manhã por causa de uma encomenda. Por vezes, uma pequena perturbação na agenda imaginada é o suficiente para me turvar o humor. Talvez seja mentira, e o que me indispõe é ter vindo tarde de Lisboa e uma noite mal dormida. Também é possível que não seja nada disso e me tenha transformado num misantropo. Esta palavra que me deve ter chegado aos ouvidos devido à peça de Molière fez-me lembrar aqueles dias em que perorava sobre a misologia, esse ódio visceral à razão. Como a generalidade das coisas que faço, também essas perorações foram inúteis, como se pode ver por tudo quanto é sítio. Uma sirene rasga o tecido cru do silêncio e anuncia a aproximação das treze horas. Não tenho por hábito ler teatro, mas há muitas décadas, ainda mal barbado, li, em transe, Sófocles e o Sartre teatral. Na província, precisa-se de pouco para ficar extasiado. O que isso terá contribuído para a minha inutilidade está por apurar, mas não terá sido pouco. Pego no jarro e verto vagarosamente a água no copo. Oiço com atenção o som do líquido contra o vidro. Há muito tempo tive uma gata siamesa que, como todas dessa espécie, tinha umas manias muito peculiares. Só bebia água em recipientes de vidro. Sobre mim teve a vantagem de nunca ter lido Sófocles, nem Sartre, nem Ésquilo. Talvez tenha lido Shakespeare. Kant, tenho a certeza que o fez, naquelas horas em que eu tinha a Crítica da Razão Pura aberta defronte de mim e ela se empoleirava no meu ombro para ver o que eu estava a ler. Como nunca me censurou, imagino que terá gostado.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Folhas mortas

Alegro-me. Chegou o Outono com o seu cortejo de folhas mortas. Oiço Yves Montand a dizer Les Feuilles Mortes e depois a cantar o poema de Jacques Prevert. De seguida, passo para a Edit Piaf a cantar em inglês e francês Autumn Leaves e concluo com a Ute Lemper, também a cantar o poema de Prevert. Foram as minhas boas-vindas à mais bela estação do ano. Olho para os cantores escolhidos e, com a excepção de Ute Lemper que é mais nova do que eu, pertencem a gerações bem anteriores à minha. Também eu já entrei no Outono. Estão mortas todas as folhas que caem de mim, mas sinto prazer em ouvi-las bater no chão e serem arrastadas pelo vento. Hoje a minha neta mais velha faz anos. Mal sabe ainda o que é a Primavera, mas os traços da adolescência já são motivo de comentários irónicos a que ela responde com um sorriso ou um olhar enviesado e um franzir de sobrancelhas. Está a entrar naquela fase em que as raparigas se riem por tudo e por nada, o que deixa sempre os rapazes desconcertados. Talvez não exista nada de novo sob o sol, mas estas eternas repetições nunca deixam de ser uma grande novidade, seja a vinda do Outono, seja a entrada na adolescência.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Marinheiras

A segunda-feira resvala entristecida em direcção ao crepúsculo. Os dias estão muito mais pequenos e as noites alongam-se, espreguiçando-se vagarosamente sobre a cama de nuvens, onde um sol pávido também vai adormecendo. Quando começo com frases tão infelizes como as anteriores, sei que estou completamente vazio. Hoje oficiei durante algumas horas. Falei, falei. Muitas vezes as pessoas falam para ocupar os silêncios, pelo facto de os outros não terem nada para dizer ou não quererem fazê-lo. Sei, porém, que nada tenho a dizer. A cada dia que passa, sinto que deveria ter entrado há muito para a Cartuxa. Deixar o silêncio reverberar. Nada dizer e nada escutar, mover-me nesse confronto com o imponderável, nessa sombra que o absoluto projecta sobre os corpos. Diante de mim estão três bolachas marinheiras que deveria ter comido a meio da manhã, para ganhar alguma energia para suportar a outra metade. Envolto na minha álacre e pesarosa verborreia, esqueci-me por completo. Confesso que até há pouco tempo não fazia ideia de que existiam tais bolachas. A minha incultura geral é enorme, mas as minhas netas introduziram-me neste tipo de consumo. Têm uma vantagem. Não são doces. O meu problema não é com o açúcar é mesmo com os sabores adocicados. Um gato cose-se com a parede da escola ao lado. Vai sorrateiro, imerso na sombra da tarde. Depois, pára e coça-se. Por fim, corre e desaparece do meu campo de visão. Vou comer as marinheiras, talvez assim tenha energia para chegar à noite.

domingo, 20 de setembro de 2020

O desconsolo de domingo

Hoje é o primeiro domingo, de há muito para cá, que traz consigo o desconsolo da semana que se avizinha. Nunca soube se essa triste melancolia era parte inteira deste dia de ócio e que se projectava para os dias úteis ou, pelo contrário, ele a recebia vinda do futuro. É possível que muitas das coisas que sentimos no presente sejam apenas reflexos daquilo que existe na casa do futuro e que este envia para o presente como um sinal do que espera os mortais. Sentado numa esplanada na ilha do Baleal fiquei a olhar o mar pejado de surfistas que se entregavam ao difícil equilíbrio sobre a prancha. Estava nesta contemplação distraída quando oiço a voz do padre Lodovico. Se fosse novo, disse, aprenderia a fazer surf, agora é tarde. Quando se sentou à nossa mesa, acrescentou, os Settembrini nunca foram particularmente dados ao desporto. Os seus interesses sempre foram outros, talvez piores. Ainda por aqui, perguntei-lhe. Com a minha idade, respondeu, tenho uma maior liberdade e vim passar o fim-de-semana à casa da Companhia. Seja como for, já disse Missa, embora não tivesse assistência. Eu ri-me. Tem uma vantagem, continuou, não proferi a homilia. Já não tenho paciência para pregar a mim mesmo. Compreendo, respondi. Vamos almoçar à Areia Branca? Conheço lá um bar sobre a praia onde podemos comer e conversar descansadamente. Anuí. Então encontramo-nos lá às duas e meia. Pensei que era um horário pouco católico para um velho jesuíta, mas não disse nada. Ele levantou-se e eu fiquei sem assunto. Temos de nos despachar para o não fazer esperar.

sábado, 19 de setembro de 2020

Equívocos

No seu muito famoso livro Psychologie des Foules, de 1895, Gustave Le Bon cita um estranho caso narrado pelo diário L’Éclair em Abril desse mesmo ano. Tendo aparecido em Paris o cadáver de um rapaz em idade escolar, um outro identificou-o como sendo um seu colega de escola desaparecido há meses. Esta identificação foi corroborada pelos companheiros, pelo professor, pelos vizinhos, pelo tio da criança e pela própria mãe. O problema é que, passadas seis semanas, a polícia estabeleceu a identidade da criança, sem sombra para dúvida, e ela nada tinha a ver com aquela que as sucessivas identificações lhe atribuíram. Tratava-se de um rapaz de Bordéus, aí assassinado e despachado para Paris. A vida é assim feita de equívocos, que se multiplicam sem cessar. Também eu hoje julguei entrever sob uma máscara o rosto de alguém conhecido. Ainda me aproximei, mas valeu-me uma súbita mudança de posição da pessoa, para que vista de outra perspectiva se revelasse não ser quem eu supunha. Fiquei grato ao destino por evitar fazer uma triste figura, mas depois pensei que vivemos uma época interessante. Um terrível equívoco pode ser sempre o início de uma bela amizade. Aviso já que estas últimas palavras são uma citação sem aspas do diálogo final de um certo filme cujo nome omito. São plágio, pois, por falência de imaginação, não encontrei melhor saída do que esta. Agora vou cortar o cabelo. Será que me reconhecerei de seguida?

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Grandes causas

Ontem descobri que a mãe da visceral Natália Correia publicou dois romances, na década de quarenta do século passado, sob o singelo pseudónimo de Ana Maria. Quando percebi a ligação não pude evitar a comparação da visceralidade de uma com a singeleza pseudonímica de outra. Acabo de ser informado que alguém chegou primeiro do que eu a uns livros que há muito pensara em comprar. Terei de fazer novas investigações. O dia está buliçoso. O vento, irritadiço, sopra ao deus-dará, rajada para aqui, lufada para acolá, descarrega a sua ira sobre as copas das árvores que, medrosas, tremem, abanam, entregam-se, em coreografia frívola, a uma dança lamentável. Por vezes, chove. O Outono triunfou sobre o despotismo estival. Tenho ocupado os dias com a preparação de um longo relatório. Estou a tornar-me um especialista em tabelas e gráficos. Nasci com uma propensão para as coisas inúteis e elas não se fazem rogadas, vêm ter comigo para que lhes dê atenção. Muito admiro aquelas pessoas que têm sempre grandes causas e muito se agitam para tornar o mundo melhor, embora o mundo se recuse perpetuamente em fazer-lhe a vontade, quando não, devido à sua agitação, se torna um sítio bem mais infrequentável. Também eu gostaria de ter grandes causas, mas se me dessem uma, por maior que ela fosse, logo eu haveria de a apequenar e torná-la, pela minha mera adesão, em coisa risível. Grandes causas, mesmo ali ao entrar da Modernidade, tinha D. Quixote. A partir daí, e cada vez mais e mais rapidamente, toda a gente passou a ver gigantes onde estavam moinhos. O mais sensato seria evitar estas considerações, pois toda a gente precisa do consolo de uma grande causa. Até eu tenho a grande causa de não ter grandes causas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A palavra que não tenho

Perco-me na procura de uma palavra. A que tenho não me serve. Nisso não me distingo dos outros e quase sinto com eles uma fraternidade nesse nunca servir aquilo que se tem. A uns é o carro que não serve, a outros é a mulher ou o marido, a alguns será o destino, a número incerto de pessoas não lhe servirá a hora de nascimento, talvez pela disposição desfavorável dos astros, a mim são apenas as palavras que me não servem. Há quem tenha palavras dignas de inveja e eu, confesso-o sem contrição, não me faço rogado na cobiça. Talvez existam pessoas capazes de roubar ou matar por uma palavra. Apesar de dado à hipérbole, não vou tão longe. Não por mérito meu, mas porque a natureza não me deu inclinação para o crime. Enquanto escrevo oiço Anouar Brahem, um tunisino tocador de oud, um belíssimo instrumento de cordas parecido com o alaúde. A música combina-se com o tamborilar das persianas e o silvar do vento numa fresta da janela, e eu esqueço-me da palavra que não tenho. O pequeno bosque da escola ao lado resistiu bem à estiagem. Também as acácias da rua estão vigorosas. O Verão curva-se para o Outono e isso é tudo aquilo que agora desejo, mais do que a palavra que não tenho. Recobro o ânimo com o minguar dos dias. Talvez tenha nascido com a lua em quarto-minguante.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Perder o rosto

Quando saí de casa havia um charivari de cuja natureza me tinha esquecido. Junto à escola primária amontoavam-se pais e crianças. Destas saíam sons agudos, verdadeiros estiletes a enterrarem-se pelos tímpanos. Se os pais tinham rosto, foi coisa que não descobri. Estavam de máscara e nunca sabemos o que se esconde por detrás de uma coisa dessas. Quando a uso começo por sentir uma ligeira irritação devido à circulação do ar, mais tarde sou acometido pelo temor de ter perdido o rosto. Alguém me diz que mais vale perder o rosto do que a face. É um caso a considerar, embora os nossos tempos não tenham qualquer interesse por questões de honra. Ainda no século XIX o duelo era recorrente. O último que aconteceu em Portugal foi em 1925 e aquele que o perdeu acabou por morrer de síncope cardíaca, o que não deixa de ser trágico. Ao menos que tivesse sucumbido a uma estocada do adversário. O instituto do duelo servia para as pessoas lavarem a honra, as que a tinham, pois nem toda a gente tinha dinheiro para comprar e usar uma peça de vestuário tão cara. Como não havia máquinas de lavar e a honra não fosse coisa que se desse para a mão de qualquer lavadeira, era preciso lavá-la em sangue. Era um tempo de grandes susceptibilidades. Não se pense, todavia, que era assunto apenas de aristocratas e monárquicos. Os republicanos também tinham uma inclinação especial para as cerimónias no campo de honra. Isto interessa a quem? A ninguém, claro, mas serve para mostrar que escrever é como as cerejas. Começa-se num assunto e acaba-se num outro completamente diferente. Há quem chame a isso volubilidade do narrador, mas pode ficar descansado que não o vou desafiar para um duelo.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O risco

Chegámos a meio de Setembro. Os dias deveriam agora inclinar-se para a melancolia. Um vento fresco, um ou outra folha caída, um sol menos dado à facúndia, a essa eloquência feita de brilho e raios a transbordar calor por todos os poros. Pára, oiço, os raios não têm poros. É pena, podiam ter. Ontem voltei-me para o cardiologista e perguntei-lhe qual o grau de risco caso seja contaminado pelo COVID. Intermédio, respondeu de imediato. E para me tranquilizar acrescentou que pelo coração não haverá problema, está como novo. O risco vem do grupo etário a que pertence. Não corro riscos pelo coração. Ainda bem, pensei. Já começo a não ter idade para os ademanes e volteios do órgão bombeador de sangue. Agora mesmo, ao abrir um livro vi uma afirmação feita há mais de 70 anos em género de previsão. Apesar do tom ser assertivo – uma das palavras odiosas em voga, tal como resiliência e a expressão inteligência emocional – a realidade decidiu contrariá-lo e fazer exactamente o contrário do que fora previsto. Não sei se isto foi um aviso, mas o melhor, ao contrário do que se tornou moda, é não confiar no coração, mesmo que esteja como novo ou por causa disso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Crenças delirantes

A dado passo da Teoria da Loucura de Massas, o escritor austríaco Hermann Broch faz a pergunta: Quem era louco, as bruxas ou aqueles que as queimavam? Talvez, responde, ambos, pelo menos o mais das vezes. Umas e outros viviam mergulhados em crenças delirantes. Apesar de hoje em dia já não ser de bom tom andar por aí a queimar bruxas, um progresso civilizacional digno de nota, as crenças delirantes não acabaram. Parecem ter-se expandido e mal se olha para o mundo ou se dá alguma atenção à imprensa e às redes sociais, fica-se com a impressão de que se vive mergulhado num mundo de delírios. Nesses momentos, desconfio que os meus pensamentos e as minhas crenças são todos eles também delirantes e como tal perigosos. O melhor é abster-me de ter pensamentos e crenças. Espreito pela janela e vejo as torres do castelo, depois passo com os olhos pelo friso das orquídeas, por fim respiro fundo. As torres não têm crenças e as orquídeas não pensam, o que quer dizer que nem tudo estará perdido.

domingo, 13 de setembro de 2020

Um outro calendário

Um almoço tardio de domingo. Depois, como em outros tempos, a refeição prolongou-se entre conversas de ocasião. Não tarda e todos terão de voltar para os sítios por onde conduzem as suas existências. Em tudo isto há uma espécie de recapitulação, mas com personagens diferentes e os que se mantêm ocupam outros lugares na pirâmide etária. Lembro-me muito bem desses domingos em que eu actuava no palco dos mais novos. Cabe-me, agora, o lugar oposto. Só se percebe o que isso significa quando se chega aí, quando os carros começam a sair e de lá de dentro há mãos a acenar, se trocam despedidas e em vez de escutar diz-se boa-viagem e se ouve obrigado, obrigada, adeus avô. Estes são os calendários mais autênticos e os mais terríveis. Neles não se rasgam as folhas dos meses até que estes voltem, numa dança que parece sem fim, como se nada tivesse acontecido. Neste outro apenas se muda de lugar até que o nosso seja suprimido e a outros caiba dizer boa-viagem. Será para isto que um dia se terá inventado a palavra tradição, para que alguém diga boa-viagem e outros acenem de dentro de um carro. Não é a nostalgia que invade a consciência em domingos destes, mas a certeza de que o tempo é um cavalo sem freio e que não há nada mais evidente sobre este mundo do que a nossa finitude, do que a nossa transitoriedade. E estas fazem parte da velha justiça que regula o cosmos que nos foi dado para viver.

sábado, 12 de setembro de 2020

Sábado à tarde

A tarde de sábado vai a meio. Oiço o rumorejar dos carros, oiço vozes entretidas com pequenos dramas domésticos, oiço pássaros presos a disputas eternas. De todos os romances publicados por Carlos de Oliveira, há um que nunca tinha lido, Alcateia. Publicado nos anos quarenta do século passado, nunca mais foi reeditado. Consegui um exemplar num alfarrabista. O talento do autor é excessivo para os universos sociais e psicológicos que escolhe para situar as suas narrativas. Uma insónia esta noite permitiu-me ler um quinto da obra. Lá fora as pessoas enfrentam a canícula, avançam destemidas pela avenida, escondem-se nas sombras. Um jacarandá ainda tem algumas flores, pequenas manchas roxas num oceano de folhas verdes. Há dias que oiço a música de uma freira medieval, Hildegard von Bingen. Gosto de pronunciar o seu nome devagar, como se ele contivesse um mistério e uma promessa de salvação. Teria sido uma mulher extremamente dotada. Além da música ela tinha também um talento enorme para a medicina. Fecho os olhos e dentro de mim funde-se o canto medieval com o uivo da alcateia. O meu neto que hoje conseguiu levar-me à praia já acordou da sesta. Tenho de o ajudar a andar de triciclo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O que se merece

Acabei de receber uma mensagem de que a minha encomenda já está disponível na loja. A encomenda é as traduções das Geórgicas e das Bucólicas, de Vergílio, editadas, o ano passado, pela Cotovia, a moribunda editora. Não tinha dado por elas e foi um acaso que me as fez descobrir. Desconheço o motivo, por certo um conflito teórico ou de tradição universitária, que leva o tradutor destas duas obras a grafar o nome do autor como Vergílio, enquanto o tradutor da Eneida o denomina Virgílio. O mundo tem muitos mistérios. Hoje levantei-me cedo, pois tinha uma tele-reunião às 8:30. Lá videoconferenciei o melhor que fui capaz. É nestas alturas que penso coisas terríveis. Quando cheguei às funções que me ajudam a pagar as contas e a suprir a maldita necessidade, ninguém com a minha idade actual se arrastava por aqueles lugares inóspitos. Já tinha saído pelo menos há quatro anos e dedicava-se a passear ou a fazer o que lhe dava na real gana. O melhor é não me deixar tomar por sentimentos negativos, pensei, pois se para mim é desagradável este degradar-me perante os olhos atentos de terceiros, bem pior é para aqueles que têm de suportar as minhas idiossincrasias, o desacerto que tenho da realidade, as minhas ideias abomináveis sobre o que deveria ser a ordem do mundo. Vou comer qualquer coisa e tomar café, pois não tarda terei de revideoconferenciar. Um dos homúnculos que vive na caverna do meu inconsciente tomou o elevador e parou mesmo à entrada da porta da consciência e atirou-me de chofre: cada um tem o que merece, ninguém te mandou ser idiota e não me teres dado ouvidos. Não dei. De facto, o mundo tem muitos mistérios.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Meus pobres enganos

Levantei-me cedo para ir fazer análises. Isto não demora, pensei. É só atravessar a avenida. Assim fiz. Chegado ao local de colheita dos materiais a analisar, descubro que está fechado. Foi transformado em posto dedicado ao COVID-19. Tenho de ir ao centro da cidade. Omito aquilo que me saiu da boca. O que seria uma história de meia dúzia de minutos transformou-se num processo que demorou mais de uma hora. Os planos da manhã foram todos estilhaçados. Isto fez-me lembrar uma canção de Chico Buarque. Uma certa Rita Levou os meus planos / Meus pobres enganos. Aqui não foi nenhuma Rita, mas a verdade é que todos os meus planos não passam de pobres enganos que uma qualquer conspiração logo trata de desfazer. Para ser honesto, tenho de dizer que vivo num mundo cheio de planos, planeamentos, planificações. Nesse estranho país pensa-se que tudo se subordina a objectivos, os quais ao longo do tempo vão mudando de designação, e que estes devem ser perseguidos através do achatamento da realidade. Nesse país, a maior parte do esforço das pessoas é andar com martelo ou maça a bater na realidade para a tornar plana. É uma pátria muito ruidosa. Pego nos livros que as minhas netas me ofereceram. Omito a referência bibliográfica, pois estou impedido pelo autor destes textos de me meter em política, e eu sou um narrador obediente. Só conto aquilo que ele deixa. Seja como for, sempre posso dizer que um trata de pestes e pragas, e o outro faz o retrato de três personagens importantes neste jardim à beira-mar plantado, todas elas endeusados pelos seus e vistas como pestes e pragas pelos outros. Esperam-me uns planos e outros enganos. Já estou de martelo na mão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Um profeta falhado

Esta é a fase do ano em que começo o dia com a consulta das previsões meteorológicas. Cada um ilude-se como quer. Olho para as do dia, as da semana e as dos próximos catorze dias. Estas são um bálsamo, ao prometerem-me temperaturas sensatas, embora com grau de probabilidade quase nulo. Sempre achei as previsões económicas uma coisa ainda mais extraordinária do que as do tempo. Mais tarde descobri que nem depois dos factos ocorridos se consegue acertar no que se prevê a posteriori. Se eu fosse meteorologista ou economista, faria as previsões na linguagem obscura de um Nostradamo. Escreveria quadras decassilábicas, onde em código faria o prognóstico do raio que cairia ali, da nuvem que passaria acolá, ou, caso se tratasse de Economia, não haveria de falhar uma compra no índice do consumo ou um investimento em esferográficas e papel higiénico de uma empresa, pequena que fosse. Tudo estaria cifrado nos meus escritos e quem quisesse conhecer a realidade, bastaria passar a vida a decifrá-los. Não quis, porém, a natureza dotar-me do talento de profeta. Uma pena, pois não há coisa mais emocionante do que uma terrível profecia, cheia de provações, anjos e trombetas. Que eu saiba, não existe nenhuma que seja anunciada pela música de piano, mas nunca se sabe. A previsão indica-me que estão trinta graus. Respiro fundo, bebo água e volto para as coisas sérias que pautam a minha risível existência.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Fé e falta de fé

Uma longa cadeia de comando. Da mãe para a avó, desta para mim. Tive de ir abrir a janela e obrigar as minhas netas a saltarem da cama. Imagino que sejam exercícios de preparação para o ano lectivo, um corte ritual com o tempo de ócio. Houve tempos mais felizes. Na Grécia antiga o ócio e a aprendizagem andavam de mãos dadas. Hoje em dia são inimigos ferozes, combatem-se sem tréguas. Quando eu tinha a idade delas, Setembro era ainda um mês sem preocupações. A escola não passava de uma nuvem difusa, que chegaria quando o tempo estivesse mais temperado. Havia nisso um saber arcaico que tinha em consideração a inutilidade de tentar ensinar seja o que for nos meses de Verão. Agora faz-se da escola um local para aprender a viver quando a península for um imenso e irrevogável deserto. O ruído de máquinas em manobra ameaça o meu equilíbrio mental. Olho para a lista de coisas que tenho para fazer e bocejo. Não é sono, apenas falta de fé. Os crentes, aqueles que o são verdadeiramente, devem ter menos sono do que as outras pessoas, pois a crença mantém-nos em vigília. Os que são tímidos e mornos no crer – ou que descrêem por completo – sentem mais propensão para dormir. E não há, na lista dos meus afazeres, uma única coisa em que tenha fé, embora também eu tenha algumas crenças. Por exemplo, tenho uma fé profunda no Império Austro-Húngaro. Pena a História não ter tido fé nele, mas a quantidade de grandes escritores que produziu só pode ser motivo de adoração. Tudo isto vem a propósito de Leo Perutz, de quem estou a ler O Cavaleiro Sueco. O autor, um judeu sefardita nascido no Império, foi, além de escritor, matemático, trabalhando sobre o cálculo de probabilidades. Trabalhou na mesma companhia de seguros e ao mesmo tempo que Franz Kafka, de quem terá sido amigo. As minhas netas já estão bem acordadas, pelo que oiço, e entre as suas actividades e as minhas crenças parece não existir qualquer ligação. Felizmente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Chegou a realidade

A realidade chegou pela manhã desta segunda-feira. Como todos sabemos ela é uma senhora muito elusiva, embora haja também quem a ache uma marafona, uma daquelas raparigas viciosas dadas ao desfrute, sempre pronta para pôr alguém em apuros. Quando começo a falar por enigmas é porque a coisa não está bem. As sombras já não são suficientes para suster o ataque desferido pelo Sol. Homens e mulheres arrastam-se pelos passeios, param sob a copa das árvores. Os carros passam devagar, revérberos ambulantes, movidos pelo desejo de alguém chegar ao destino. Os loendros da escola ao lado continuam pujantes e eu deixo-me levar pelo desvario da corrente de consciência, saltitando de assunto em assunto. Vejo o correio electrónico e sinto uma inesperada saudade do tempo em que chegavam cartas em papel, onde um envelope selado ocultava segredos e mistérios. Hoje em dia, pensei, já ninguém tem nada a velar e logo não é necessário esse ritual de desenhar as palavras em folhas de papel, aquelas palavras decisivas que mudam uma vida e que são escritas vezes sem conta, enquanto as folhas são rasgadas, e se pega noutra para recomeçar com mais precisão aquilo que se quer escrever. Muitos romances tomaram uma forma epistolográfica, mas é inverosímil que haja arte na redacção de emails e nada de decisivo pode por eles ser anunciado. A realidade chama por mim. Tenho de lhe dar alguma atenção, pois ela é um moscardo zumbidor que não se cala. Sensato seria comprar um insecticida.

domingo, 6 de setembro de 2020

O exsudar oleoso do tempo

Estou cansado, embora ainda não tenha feito nada. Basta o acinte do calor para me exaurir. Já vamos no sexto dia de Setembro, e este ainda não se mostrou uma única vez piedoso. É um mês violento, irascível, raivoso. Até os pássaros meus vizinhos andam calados. Talvez se tenham mudado para um lugar mais fresco. Fecho os olhos e deixo a música deslizar sobre mim. Oiço um CD, comprado há muito, de Reiko Kimura, Music for Koto. Há na música tradicional japonesa um grande poder para nos subtrair à marcha vexatória do tempo e dos acontecimentos e conduzir-nos a territórios nos quais as palavras não conseguem penetrar. Há que ouvir e esquecer-se de si. Ontem esteve cá o meu neto. Vimos a Masha e o Urso e brincámos com CD. Ele tirava-os do lugar e eu arrumava-os. Tenho já um longo treino nesse papel. Vai na terceira edição e ainda não percebi o fascínio que as crianças têm em desarrumar os CD. Sinto os neurónios a curvarem-se sobre si, como se se enroscassem na posição fetal para dormir. Eu bem lhes exijo sinapses, mas eles olham-me com desprezo. Bocejam e voltam-me as costas. Pudesse eu encontrar-me com Eliot e dir-lhe-ia o quanto estava enganado. Não, não é Abril o mais cruel dos meses. Setembro sim, pois nele nem há lugar para a crueldade de confundir memória e desejo, apenas o exsudar oleoso do tempo, apenas o punhal afilado da realidade cravado na garganta, apenas o uivo esfomeado do lobo perdido na floresta.

sábado, 5 de setembro de 2020

Como ser perfeito

Há um poema, How To Be Perfect, de Ron Padgett, um poeta americano, que se prolonga por nove páginas. Cada verso é um imperativo, embora não haja recurso ao ponto de exclamação. O primeiro diz apenas Dorme. Um imperativo categórico, ordena-nos absolutamente que durmamos. O último é um imperativo hipotético, pois aquilo que ele determina depende de uma condição. Transcrevo: Quando há tiros na rua, não vás para ao pé da janela. Quem quiser ser perfeito tem no poema um roteiro. Há vários imperativos interessantes. Por exemplo: Sê gentil com os objectos. Ou: Pergunta ‘Onde é a casa de banho?’ e não ‘Onde posso urinar?’. De todos os mandamentos – e são dezenas – necessários para chegarmos à perfeição aquele de que mais gosto é do segundo: Não dês conselhos. Há outra coisa que me agrada no poeta. Nasceu em Tulsa, no Oklahoma. Eu não faço ideia o que, enquanto lugar para nascer, seja Tulsa, nem nunca pus os pés no Oklahoma, mas a sonoridade de ambas as palavras fazem-me imaginar de imediato uma terrível intriga, que se desenvolve em torno do imperativo com que se encerra a primeira página do poema: Cuida primeiro das coisas que te são próximas. Arruma o quarto antes de salvares o mundo. Depois salva o mundo. Também eu posso oferecer um imperativo. Caso haja tiros na rua, não te ponhas a salvar o mundo, mesmo que já tenhas arrumado o quarto. A perfeição é um caminho difícil, pensei após ler o poema. O mais sensato é deixar-se afogar em imperfeições. Se for sábado e estiver um calor dos diabos, não te ponhas a escrever idiotices. Este foi o melhor imperativo que produzi para mim mesmo, mas nem a ele consigo dar cumprimento.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O desaparecimento dos rituais

Os olhos secam, tal o calor que está por aqui. Bebo água para me hidratar, mas ninguém consegue usar os neurónios seja no que for com estas temperaturas. Já pensei em recorrer ao ar condicionado, mas aí tudo se complica. A garganta protesta, a voz enrouquece e o espírito começa a duvidar sobre se o corpo não se terá contaminado com o novo vírus que anima a realidade pelo mundo fora. Fui levantar umas encomendas a um posto dos CTT incrustado numa loja que vende livros e materiais escolares. Toda a gente de máscara, o que terá vantagens estéticas e sociais assinaláveis. A continuar assim, chegaremos ao dia em que teremos pudor em mostrar o rosto, mesmo os praticantes de nudismo hão-de fazê-lo de máscara. Uma das minhas leituras actuais é a de um filósofo de língua alemã, de origem sul-coreana, com o inusitado nome de Byung-Chul Han. A obra é Do Desaparecimento dos Rituais. Uma leitura suave e que não há-de agradar nem a gregos nem a troianos, os bandos rivais que enxameiam a praça da filosofia. Nem aqueles que vêem nela um cálculo lógico e transparente como o cristal, nem os que a julgam um exercício esotérico de linguagem indecifrável, que quer sempre dizer outra coisa. Isto, todavia, não interessa a ninguém e a verdade é que os rituais, com o seu jogo de repetições, estão mesmo a retirar-se do mundo. As encomendas que fui levantar eram sapatos que comprei online. O ritual de ir a uma sapataria, com o calça e descalça, o experimenta este e o outro, o abre e fecha caixas, foi substituído pelo relação digital e anónima de espreitar num monitor e de tratar tudo sentado numa secretária. A minha comodidade é um punhal cravado na garganta de um mundo decente. Como se sabe, tenho uma certa propensão para a hipérbole, a que convirá dar o devido desconto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Aparência e realidade

Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil, um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen. Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises que esqueci no consultório.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Efeito Föhn

Hoje é o primeiro dia de oito em que as temperaturas estarão entre os 35 e os 38 graus. Há dias vi uma explicação sobre a razão de aqui estar um tempo quente e seco e do outro lado da serra ser mais fresco e húmido. A causa seria o efeito Föhn resultante da existência de uma cortina montanhosa – serras da Sintra, Lousã, Montejunto, Candeeiros e Aire – que se interpõe nos caminhos dos ventos vindos do mar, gerando o tempo típico do Oeste, de um dos lados, e a aproximação ao deserto deste lado. Como é assunto que me escapa e não tendo vocação para ser especialista em tudo, ou mesmo numa única coisa, acho a teoria esteticamente aprazível e tomo-a por verdadeira, mesmo que o não seja. Depois, sempre me permitiria escrever palavras como barlavento e sotavento, embora o não tenha feito para as poupar para um próximo texto. Setembro começa ao ataque. É um mês cruel, com instintos homicidas. Há nele um rancor que seria dispensável. Olha para nós e ri-se, enquanto arquitecta estratégias para nos submeter às suas humilhações. Reparo que tenho uma gaveta da secretária aberta e lembro-me que deveria procurar a minha caderneta militar. É verdade, apesar de não passar de um narrador sem narrativa, também possuo o documento que comprova que servi a pátria. Foi um mau serviço, a avaliar pela fotografia que lá se encontra. Um tipo ridículo, posso assegurar, sem o garbo de cavaleiro andante ou o aspecto feroz e implacável de um soldado de elite. Se eu fosse a pátria, ter-me-ia posto do lado de fora do quartel a pontapé. A pátria, porém, foi condescendente e disse-me vem, aqui também há lugar para gente grotesca, irrisória, caricata. Não te importas de endireitar a boina ou também tu sofres do efeito Föhn? Deveria evitar o recurso à prosopopeia, mas é o que se arranja. O que eu gostaria mesmo de saber era onde meti o raio da caderneta. Deve estar na outra gaveta.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Um Janus bifronte

Se Setembro fosse apenas a anunciação de um Outono benévolo, se não passasse de um declinar lento do Estio mergulhado na fragilidade da velhice, hoje seria um belo dia. Foi com este pensamento que me levantei e me preparei para enfrentar o inevitável, que como um Janus bifronte, se estende inexplicavelmente para o passado e para o futuro, a tudo contaminando com o ranço da necessidade. Na comunicação social, devotos de várias confissões defrontam-se sobre festividades, rituais e liturgias, como se alguma coisa de decisivo se tratasse. Há nos seres humanos uma tendência inultrapassável para a hipérbole, esquecendo que a morte a tudo acaba por tornar igual. Aquilo que inflama os corações hoje, não merecerá mais do que um encolher de ombros amanhã e, daqui a umas semanas, só será lembrado por exaltados que ainda não descobriram toda a caridade que existe num tranquilizante. Hoje espreitei as torres do castelo, depois olhei para o friso das orquídeas, já quase todas sem flor. Exceptua-se a branca que está em floração contínua há mais de ano e meio. Na avenida, passa um casal. Vão presos na indiferença que os consome, fiéis ao destino com que a vida, escrava do imperativo da multiplicação, os enganou. O sol dispara raios de aço sobre as paredes da escola aqui ao lado, elas abrem gretas e sangram lentamente, cobrindo com o véu do silêncio a dor que as dilacera.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Um país lento

Hoje percorri parte da cidade. Havia nela uma estranha combinação de tristeza e calor, como se uma coisa e outra se intensificassem mutuamente. Nas ruas, muita gente cobria essa tristeza com máscaras, muitas delas com cores que escapavam ao padrão cirúrgico. Os corpos incapazes de ocultações passavam devagar, esmagados pela atmosfera, fechados sobre si mesmos, como se o ar envolvente fosse pestilento. Prédios em ruínas, casario que o tempo submeteu ao seu juízo impiedoso. Tudo isto gera uma cultura de nostalgias, cheia de pequenos mitos, tentativas frustes de reencantar aquilo que só foi encantado pela inocência do olhar infantil ou pela ingenuidade dos primeiros amores. Chegado a casa, pensei que deveria evitar estas deambulações. Ir aonde tenho de ir, olhar o menos possível para a realidade e voltar pelo mais curto caminho que houver. Agosto encerra hoje a sua actividade. Está cansado e deixou cair a sua fadiga sobre tudo o que existe. Não é fácil viver num país que tem quase novecentos anos, que já viu coisas demais, que se saturou de Agostos tórridos, que sabe que qualquer inflamação acabará por passar, mesmo que os anti-inflamatórios não sejam grande coisa. É um país lento. Na passada segunda-feira, fiz duas encomendas. Uma em empresa portuguesa e outra numa sediada em Espanha. A enviada pelos nossos vizinhos já a recebi há vários dias, a outra talvez seja hoje que chegue. E tudo isto me maravilha, pois há uma sabedoria que fora daqui não existe e não se percebe. Há muito, muito tempo, numa loja de ferragens de uma outra cidade de província, no início da tarde, talvez porque eu tivesse dado sinais de alguma impaciência, a pessoa que me iria atender esclareceu-me sobre a essência da pátria: não tenha pressa, que eu só saio daqui quando forem sete horas.

domingo, 30 de agosto de 2020

Uma gota no oceano

É tão breve o tempo de suspensão entre o prazer e a realidade que acabo por não saber o que fazer com este domingo. Talvez por antecipar que estão a chegar os dias do ruído, descobri um álbum do Coro da Rádio da Letónia com o magnífico título O Fruto do Silêncio. É composto por sete peças de outros tantos compositores letões. De todos apenas conhecia Pēteris Vasks, cuja peça dá título ao álbum. É uma experiência desconcertante escutar música produzida por compositores dos países bálticos. Há neles uma profundidade espiritual, de coloração religiosa, que praticamente desapareceu da música erudita ocidental. A composição de Martins Vilums denomina-se O Tempo Cintila, a de Ēriks Ešenvalds, Uma Gota no Oceano. E isto diz tudo o que, neste momento de suspensão, posso dizer de mim, miserável narrador sem narrativa. Enquanto o tempo cintila, fruto do silêncio, não passo de uma gota no oceano, ou nem isso.

sábado, 29 de agosto de 2020

Vida de provinciano

O meu idílio com a balança não apenas se mantém, como se intensifica. Hoje, primeiro dia pós-férias, confidenciou-me que eu tinha menos dois quilos do que antes de as começar. Olhei-a embevecido, jurei-lhe amor eterno, que teria sempre muito cuidado quando a pisasse. Enquanto me desfazia nesta conversa pateta, como o são todas as conversas de amor, pensava com alívio que iria evitar o olhar reprovador do médico, o qual, como todos os médicos, fazem da saúde do paciente um exercício de virtude moral, à qual, muitos deles, se julgam no dever de se furtar. Hoje a empresa de jardinagem que tem por hábito, aos sábados de manhã, vir cortar a relva nas pracetas circundantes esqueceu-se da sua cruzada contra a preguiça e a eventual lascívia matinal dos moradores. Foi, porém, substituída por um cão da vizinhança que, talvez espantado por não ouvir os corta-relvas, decidiu ladrar até me acordar. A isto se resume a vida de um provinciano, pensei. Pendências com médicos, férias acabadas, preocupações com barulhos vindos do exterior. O que me está a valer é o romance do Tomás de Noronha, passado na capital, que ainda era do Império, em ambientes sublimes, onde há condessas e marquesas. Fiquei rendido quando, ao referir-se à técnica de selecção social de uma certa marquesa, escreveu: Quem lhe orientava o protocolo era a sua filha, uma trintona nevrotica, destrambelhada, que sabia como ninguém disfarçar o estonteante desejo de se franquear sob a apparencia artificial de ser dificil. Basta o estonteante desejo de se franquear para que a leitura não seja pura perda. Se o tempo fosse feminino, pensei então e sem ligação com o que pensara antes, seria uma górgona, que avançaria com o seu olhar petrificante e a cabeça envolta em serpentes. Sendo masculino, dá-se aparências menos teatrais, e em vez de nos transformar em pedra, desfaz-nos e às nossas vis pretensões em pó. A manhã vai alta, calo-me, para que o alarme de um carro possa ecoar no fundo do meu ser.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A gestão do dia

O dia nasceu sombrio, e eu hesito em avaliar o fenómeno. Vestiu-se de luto pelo meu último dia de férias? Decidiu poupar-me aos transtornos físicos – e metafísicos, já agora – da canícula? Sinto no centro do peito uma estranha opressão vinda do futuro, mas entretenho-me com a gestão do dia. Um amigo enviou-me um conto publicado pela mulher, vou lê-lo. Outra pergunta-me se quero ir jantar com eles, o clã familiar. O padre Lodovico quer saber quando vou a Lisboa. Uma transportadora deixa-me à porta uma encomenda com o triciclo que comprei para o meu neto. Anoto que, quando for à capital, não posso esquecer-me de levar os hoverboards das netas. Continuo com a minha investigação sobre quem terá sido o T. Noronha que escreveu Volupia que Salva. Graças ao cruzamento dos catálogos de duas bibliotecas municipais cheguei a uma tese verosímil. Trata-se de D. Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias com o título De capa e Batina sobre a estúrdia coimbrã do seu tempo. O fidalgo cursou letras e, depois, teologia, tendo-se formado em ambas. Para teólogo não estava mal. Consta que, juntamente com um tal Pad-Zé e um Vicente Arnoso, foi um dos grandes animadores, em Coimbra, da boémia estudantil. Também escreveu, entre outras coisas sem relevo, um livro de versos com o título Tempos Perdidos. Talvez um sinal de arrependimento. Acabados os cursos foi para o Oriente, para exercer como professor de inglês e alemão no Liceu Nova Goa. A fidalguia já andava, naqueles tempos, pelas ruas da amargura. Na biografia que descobri – um texto hagiográfico da personagem – não consta a referência ao romance que narra os amores de Octavia e Valeria, mas verifiquei que é publicado pela mesma editora – a J. Rodrigues & Cª, sediada no 186 da Rua do Ouro, em Lisboa – que dá à estampa, como se dizia, as tais memórias de estudante. Posso ainda informar que em 1906, ao voltar das Índias, foi recebido e louvado pelo rei D. Carlos e pela rainha D. Amélia, devido a uma iniciativa sobre a Assistência Escolar aos indígenas (a palavra não é minha). Uma coisa é certa, contínuo a ser um repositório de informações inúteis, mas a verdade é que, com a idade, a fronteira entre o útil e o inútil se diluiu. Vou fechar as persianas que o sol voltou a ameaçar.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A volúpia das coincidências

Um aviso ao eventual leitor: estou sem assunto. Como não sofro da angústia da página em branco, talvez escreva sobre o magno problema das coincidências. Entre uma pilha de livros comprados, há uns anos, em segunda mão, ou terceira, sabe-se lá, encontro um romance com o título Volupia que Salva, obra de um tal T. Noronha. Quem é o autor ou por que razão possuo o romance não faço qualquer ideia. O livro chegou-me encadernado, em bom estado para a idade avançada. Folheio-o e deparo-me logo à entrada com duas citações de Safo e uma de Anacreonte. Leio as primeiras páginas e fico a saber que a Octavia Rodrigues Saavedra e a Valeria Prado têm um caso. Vejo que o livro tem quase cem anos e tento descobrir quem é o autor. Com esforço sou informado que o T. significa Tomás, portanto Tomás Noronha. Faço uma pesquisa por este nome e descubro que um conhecido locutor de televisão e escritor afamado tem como herói das aventuras com que ilumina o universo um Tomás Noronha. Bem, não será esse. Uma outra pesquisa diz-me que no século XVII houve um escritor, fiel escudeiro de D. Sebastião, com esse nome. Tanta fidelidade a D. Sebastião não lhe permitiria por certo tratar do affaire – estou mesmo velho – da Octavia e da Valeria, ainda por cima mulheres modernas. Coincidências, penso, mas quem no início do segundo quartel do século XX teria a ousadia de escrever um romance sobre os delíquios amorosos da Octavia e da Valeria? O que é espantoso, por falar em coincidências, é a seguinte informação, inscrita na última página impressa, que nos diz: Este livro acabou de se imprimir no dia 28 de Maio de 1926. No dia em que Portugal entrava naquele período em que qualquer volúpia, fosse de que cor fosse, deveria ser banida, e caso tivesse mesmo que ser, então que passasse à clandestinidade ou se desse no recôndito do leito matrimonial, com as excepções que todos sabemos, publicava-se um romance que proclamava a volúpia como salvação, talvez da alma, mas não posso assegurar. Independentemente de todas estas dramáticas coincidências, há uma coisa que me agrada em Tomás Noronha. Escreve crystal, condessa de Nellas, d’uma, etc. Portanto, um autêntico insurgente contra a pouco voluptuosa simplificação ortográfica de 1911. Um monárquico libertino.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A bailarina alemã

Depois da minha tarefa matinal de abrir e fechar persianas para conter os raios enviados pelos cacarejos do Sol, um exercício militar que executo com afinco, a primeira coisa com que me deparei, ao sentar-me à secretária e dar um giro pelos sites abertos no browser, foi com uma fotografia de uma bailarina alemã. Segundo a investigação que fiz, ela teria, no momento em que foi fotografada, no ano de 1910, dezoito anos. Tinha uma daquelas belezas que deixam o espírito perplexo e tomado por uma profunda dúvida. É um ser enviado do céu ou uma agente dos poderes infernais? Só uma mente ingénua – e ser ingénuo depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como não se cansava de repetir há muitos anos uma amiga – poderia conceber a tortuosa ideia de que o belo e o bem são a mesma coisa. Independentemente daquela bailarina ter descido do céu para nossa salvação ou subido do inferno para a nossa perdição, a verdade é que uma beleza como a dela não merece o castigo que o passar dos anos impõe. Quando uma mulher é bela, a sua beleza, no momento em que atinge o zénite, deveria ser preservada dos efeitos do tempo, mesmo que vivesse cem anos. Chegada a hora da morte, seria arrebatada da vida ainda esplendorosa. Entre os vários homúnculos que habitam na caverna da minha consciência, há um com propensões igualitárias que, mal formulei o meu pensamento sobre o destino das mulheres belas, começa uma cantilena onde me acusa de injustiça, de ser um agente da discriminação, um racista estético. E por que razão os homens ou as outras mulheres, as que não receberam a graça da tua bailarinazinha, não deveriam ter a mesma sorte, interrogou-me. Não são todos iguais perante a lei ou, se quiseres, não são todos filhos de Deus, continuou ele. Respondi-lhe que não me interessava discutir as consequências da revolução francesa nem enredar-me em estéreis discussões teológicas. Que fosse para o fundo da caverna e se mantivesse invisível e inaudível. E, para o calar de vez, acrescentei que a verdadeira justiça é tratar como excepção aquilo que é excepcional. Ele lá se recolheu a murmurar slogans igualitários, enquanto eu dava uma última vista de olhos pela bailarina alemã e passava para o site da meteorologia.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Redução vocabular


São poucos os dias que Agosto ainda tem, antes que a sua folha morta caia da árvore do calendário. Por vezes, a retórica que uso dá-me vómitos. Dedilho-os, aos dias, como se não soubera contar e franzo o sobrolho. Por vezes, escrevo de noite recados para que faça alguma coisa quando a próxima manhã chegar, com a luz que for a dela. Raramente, olho para eles. Chega-me um vídeo do meu neto. Há duas palavras que ele domina na perfeição. Não e pára. Parecem-me óptimas e as mais adequadas ao tempo que vivemos. Também, caso pudesse ou tivesse coragem para tanto, resumiria o meu vocabulário ao advérbio não e ao verbo parar. A primeira utilidade seria a que deixaria de escrever estes textos, as outras, e não seriam poucas, revelar-se-iam com o tempo. Há uns anos, um amigo contou-me que uma pessoa da sua família foi encurtando, pouco-a-pouco, o vocabulário que usava, até que chegou o momento em que se recusou a pronunciar qualquer palavra. Ouvia os clientes do seu estabelecimento, mas nunca usava a voz para lhes dizer fosse o que fosse. Gestos de mãos, expressões de rosto, meneios corporais. Os clientes habituaram-se, não o abandonaram, e talvez um ou outro lhe tenha seguido o exemplo. Como dizia esse meu amigo, os bons exemplos devem frutificar. Por agora, seria menos radical, usaria ainda o advérbio não e o verbo parar. Voltar-me-ia para este Agosto prestes a render-se a Setembro e dir-lhe-ia: Não. Pára! Ele responder-me-ia na mesma moeda: Não paro. É o que faz a falta de assunto numa tarde de Agosto.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um sonho cinematográfico

Em 1955, o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson visitou Portugal e fez um conjunto de fotografias que tem tido ao longo dos anos uma enorme fortuna. Hoje deparei-me com uma delas, extraordinária como as demais. Nos Jerónimos, junto a uma coluna, um confessionário minimalista, apenas um tabique de madeira, certamente com uma abertura velada por um gradeado que permitia falar e escutar e, ao mesmo tempo, manter secreta, ou quase, a identidade das confessadas. Sob essa abertura havia de ambos os lados apoios para os braços. Sentado de pernas abertas, o sacerdote, de cabelos brancos e trajado com a respectiva batina, escutava a longa confidência de uma mulher ajoelhada, vestida de preto até aos pés, véu negro sobre a cabeça. Olho a fotografia demoradamente e imagino o que poderia fazer a partir dela caso fosse realizador de cinema. Filmaria a mulher a levantar-se do confessionário, haveria por certo um zoom que permitisse apreender a elegância dela e acabasse por se centrar na beleza do rosto, acompanhá-la-ia no trajecto em direcção a um altar para cumprir a penitência, enquanto mostrava, em fundo, o sacerdote a erguer-se da cadeira e espreitar a mulher, tomado por uma curiosidade invencível. Nesse momento, ela voltava-se sorridente para ele que, ao sentir os olhos dela nos dele, estremecia e deixava aflorar um esgar de terror no rosto. A mulher que confessara, descobria então, era a sua própria morte. Portugal, naqueles tempos, era um país escuro, muito escuro, pensei, enquanto ouvia o correr da água que alguém num andar próximo deixava cair sobre umas plantas exaustas pelo calor. Uma sirene lembrou-me que deveria ir almoçar, pois o cinema não é coisa que me diga respeito.

domingo, 23 de agosto de 2020

Uma aventura ao domingo de manhã

Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio, sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas, que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia. Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar. Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos alunos.

sábado, 22 de agosto de 2020

Inimigos de sábado

Quando acordei, eram oito horas, nem queria crer que hoje é sábado. Uma fúria sonora entrava-me pelo quarto, vinda da praceta em baixo. A empresa responsável pelos espaços públicos acha que o dia adequado para cortar relva é o sábado. Talvez as lâminas deslizem melhor, as folhas estejam mais aptas para o corte ou, uma hipótese, considere imoral as pessoas, no início do fim-de-semana, prolongarem o sono pela manhã. Não é que me levante mais tarde, mas acordar ao som da metralha dos corta-relvas não faz parte do melhor dos mundos possíveis. Levantado, comecei a barricar-me dentro de casa, fechando todas as janelas por onde outro inimigo, o sol, possa entrar. O combate com o astro, pensei enquanto descia as persianas, ainda não saiu da idade média. Há que construir muralhas e evitar que o inimigo possa passar por elas. Entretanto, o afã ruidoso suspendeu o massacre dos inocentes moradores, mas a manhã apresta-se para pôr fim à sua curta existência. Oiço vozes na rua, talvez pessoas na esplanada, enquanto me envolvo no manto sombrio da escuridão. Não tarda terei de ir à rua. Reparo que o word me assinala uma incorrecção gramatical, mas o domínio da gramática é uma competência que o word ainda está longe de ter adquirido com sucesso. Talvez um efeito da pandemia. Necessitará de aulas de recuperação, suponho.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

De volta ao habitat natural

Retornei ao meu habitat natural. A cidade parece estar exactamente como a deixei. O calor, de momento, não será tão avassalador, os carros deslizam na Sá Carneiro como antes da pandemia e, nos passeios, os transeuntes, com ou sem máscara, procuram as sombras que as copas das árvores projectam no chão. Há em tudo isto uma reminiscência mourisca, pensei, uma espécie de pertença climática àquele mundo que se inicia no norte de África. O computador informa-me que o adobe acrobat reader foi actualizado com êxito, eu fico agradecido pela melhoria do programa, mas não consigo evitar um ataque surdo de inveja. Também eu poderia ser actualizado com êxito, mas não. Cada actualização que sofro é para pior e quanto mais êxito elas têm pior fico. O hardware está caduco, um modelo descontinuado há muito, sopra-me alguém que vive dentro de mim e que tem por hábito dar opiniões que ninguém lhe pediu. Hoje não fui à esplanada perto do mar ler o jornal, a mulher que em silêncio olhava o horizonte desapareceu para sempre, resta-me pôr a vida nos carris onde estava antes de ter saído daqui. Leio que se está perante uma aceleração do tempo histórico. Talvez esteja já em excesso de velocidade e seria justo que a História fosse multada, por não respeitar as regras de trânsito. As cevadilhas da escola ao lado continuam a florir, as acácias da praceta estão pujantes, vestidas de verde escuro, e o parque infantil permanece interdito às crianças. Tudo isto enquanto a história acelera e o meu hardware obsoleto é incapaz de receber um programa que o actualize e rejuvenesça. Hoje ainda não avistei nenhum dos anjos que moram nos telhados da rua onde entardeço.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma velha pendência

Olho para as previsões meteorológicas e calculo perdas e ganhos, projecto cenários de dor e prazer, arquitecto estratégias de defesa, pois as de ataque não estão disponíveis no mercado da meteorologia. O clima tornou-se uma guerra, pensei, uma guerra em que apenas podemos implorar por abrigo. Hoje tem chovido e parece que vai continuar durante todo o dia. Isso contenta-me, sinal de que já me satisfaço com pouco. Recebi há pouco um email de Lodovico Settembrini, o padre Lodo, como todos os amigos o tratam. Disse-me estar preocupado com uma coisa que escrevi aqui sobre o príncipe Saurau. Fê-lo lembrar o Leo Naphta, e Deus me perdoe – escreveu o padre – apesar de ter, como ele, dado em jesuíta, não suporto a personagem e as suas malditas ideias, sopradas pelo demónio. Eu que me cuide, escreve, pois há muito que desconfia existir em mim uma certa inclinação para o cepticismo. É preciso ter fé, continuou, seja no for, nem precisa de ser em Deus. Eu rio-me da velha pendência dos dois padres e penso que talvez não devesse escrever isto, mas nem sempre consigo resistir às tentações. Talvez seja do meu cepticismo ou da minha falta de fé, seja no que for. Oiço os pássaros e o seu canto mistura-se com o rumor do trânsito. A vida é um exercício de paciência, penso.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Triste sorte ser cliente

Sejam públicos ou privados, os serviços neste país conspiram contra a sanidade mental dos clientes, como se ser cliente fosse um acto execrável, uma maldade que apenas merece, como resposta, um tratamento ineficiente e, se for possível, punitivo. Foi isto o que me ocorreu depois de passar parte da manhã a tentar resolver assuntos através daquelas linhas de apoio ao cliente, um eufemismo para esconder uma má vontade acintosa e contumaz. Lembrei-me, então, de uma impressão antiga, quando ainda não havia as grandes superfícies, e era local o comércio que animava as terras. Havia comerciantes que pareciam fazer um favor muito especial em atender os clientes, vender-lhes aquilo que eles precisavam, como se a sua vida estivesse acima daquele acto miserável de trocar mercadoria por dinheiro. As razões que movem as pessoas são sempre secretas e, o mais das vezes, um enigma para os próprios. Agora que consegui resolver tudo, já não tenho como recuperar a manhã perdida, e isto é o que há de mais cruel na vida. Nada nela é recuperável. As boas horas pela sua bondade, as más para sua correcção, tudo isso deveria poder ser recuperado. Eu sei que estou a mentir. A vida seria muito pior, se se pudesse recuperar o tempo que se perdeu. Os homens estariam sempre a retroceder à infância e à adolescência para tentar consertar o que nelas sempre se desarranja, e isso seria o pior que poderia acontecer à espécie. O calor não me faz muito bem e conduz-me sempre por caminhos meditativos que não levam a lado nenhum. Sempre preferi ao jardim dos caminhos que se bifurcam, les chemins qui ne mènent nulle part. Desta preferência, porém, não há qualquer ilação a extrair, note-se. O melhor mesmo teria sido ter-me dedicado ao comércio e transformar-me num daqueles respeitabilíssimos comerciantes de vila de província que faziam o especial favor de atender os seus patéticos clientes. O problema é que nunca descobri o ramo que mais se coadunava com os meus talentos. Não por falta de ramos, claro.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O terrível que há no belo

Os loendros, com as suas flores rosas e brancas, estão exuberantes. Quem se deixar prender apenas pela extrema beleza que estes arbustos exibem não faz ideia de quão mortais podem ser. Talvez seja isso o que há de mais enigmático no que é belo, a sua capacidade homicida. Terá sido por isso que, na primeira elegia de Duíno, Rilke usou o adjectivo terrível para qualificar os anjos. Não todos, por certo, pois aqueles que vivem na minha rua sendo belos não o são em excesso. As pessoas pensam que são pombos, mas aqueles pombos não voam nem poisam nos telhados como pombos, mas como anjos. E se um pombo voa como um anjo, poisa como um anjo, canta como um anjo, só pode ser um anjo. Talvez estes anjos sejam também terrivelmente belos, mas disfarçam-se para esconderem essa beleza e poderem assim ser suportados pelos mortais. Hoje vi de novo a mulher que olha o horizonte. Lá estava ela na esplanada, fechada na sua dor de olhar horizontes, a beber o café, a pôr a máscara, a sair e a caminhar em direcção ao horizonte. Nas mesas ao lado, alguns casais deixavam cair para o chão a tristeza que havia dentro de cada uma daquelas mulheres. Eles liam o jornal, olhavam para o telemóvel, elas desfaziam-se num óleo desconsolado e viscoso, que alastrava como um pântano por um chão manchado de desespero e silêncio. Muitos casamentos são uma radiosa lástima, pensei.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Atravessar o horrível

As férias não deixam de ser um tempo de encontros inusitados. Passeava eu, como um animal perdido, fora do meu habitat natural, quando oiço uma voz a chamar-me e a perguntar-me se não me lembrava dela. Claro que lembro, como poderia esquecer, retorqui. Não nos vemos desde quando, perguntou. Não sei, há mais de trinta e cinco anos, por certo. Perguntei-lhe o que lhe acontecera. Quando acabámos a faculdade, saí para o estrangeiro e instalei-me por lá. Um exílio, disse eu. Não propriamente. Tornei-me pintora e esqueci o que aprendera naqueles anos, disse e riu-se. Confessei que não sabia. Contou-me o acidente, como lhe chama, disse-me as colecções onde estava representada, mostrou-me fotos de quadros seus. Como sabes, disse-me, a beleza e a harmonia pouco interesse têm. Ou talvez não seja assim, disse. A arte, o artista tem de rasgar o véu ilusório que os olhos apreendem como beleza e mergulhar no horrível. O horrível é uma camada da realidade muito densa e funda, diz-me ela enquanto acende um cigarro, mas não posso evitá-la. Não pinto para decorar salas, pinto à procura da verdade, os olhos brilham-lhe. Não digo que os meus quadros sejam a verdade, são apenas ensaios em busca da verdade. É preciso descer mais fundo, atravessar a camada horrível e tentar chegar ao outro lado. E o que esperas encontrar, perguntei. Não sei, sou apenas pintora, a filosofia não me interessa. Talvez encontre a beleza, a verdadeira beleza, mas não sei sequer se existe uma beleza verdadeira e outra falsa, talvez só exista o que está aquém do horrível. Fiquei a pensar no tempo em que nos demos e naquilo que o tempo lhe tinha feito, mas não tocámos nessas memórias. Falámos de famílias, de exposições, comparámos países e oportunidades e combinámos um novo encontro, que ambos sabemos que nunca irá acontecer. Agosto começa a escorregar pela folha do calendário. Vejo nuvens no céu e dois cães ladram quando passo por eles, como se eu fosse o horrível que eles têm de atravessar.

domingo, 16 de agosto de 2020

Um sapo perturbado

É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril. Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental, personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos, famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos. Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador, com os seus amigos mais próximos.

sábado, 15 de agosto de 2020

Campeões em tudo

Desde que amistosos e laudatórios, escritos sobre o passado têm a fortuna assegurada, dizia-me ontem um amigo que se exilou do mundo num lugar recôndito deste país. Ninguém gosta de ver as pústulas do que passou nem olhar para as horas em que as chagas lhe arderam. Celebram o carrossel onde andaram, mas esquecem as patifarias que aí mesmo foram alvo. O Álvaro de Campos é que os conhecia de ginjeira, acrescentou, enquanto soprava o fumo de mais uma cigarrilha. Depois soletrou não sem ironia: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Somos todos campeões de tudo, acrescentou, mas eu exilei-me derrotado e cansado. Não tenho paciência para toda esta gente e cultivo um afastamento profiláctico da humanidade, muito antes de haver pandemia, pois a nossa sociedade já sofria uma pandemia muito mais generalizada e, na verdade, muito mais grave. A estupidez estrutural, continuou o meu amigo, está enraizado e vamo-nos todos enterrar num lodaçal de idiotice, só porque se acha graça a coisas estúpidas. O que vale, continuou, é que a amanhã é feriado, mas ninguém faz ideia por que razão. Lamentarão que tenha calhado num fim-de-semana e é tudo. Isto foi ontem, quando o visitei. Hoje, porém, é sábado e feriado, e nas ruas não deixo de avistar todos os grandes campeões da vida que nos hão-de precipitar na pior das derrotas, pensei, mas logo me distraí ao avistar a mulher que, na esplanada, olha o horizonte. Há nela uma derrota inscrita na solidão, como se ela, tão dotada para todas as vitórias, tomasse a decisão de se entregar à mais vil das derrotas e, como recurso para se manter viva, usasse a linha do horizonte para repousar os seus olhos e o mistério que se esconde dentro deles. Hoje celebra-se a assunção da Virgem ou, noutras paragens, a sua dormição, mas isso é um assunto que já não dirá respeito a ninguém.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Sobre hibiscos

Também eu terei de me render à ideia de que os sonhos são uma fonte de revelação. Ando há meses para ver se me recordo do nome de um certo tipo de arbustos de jardim. Esta noite, ao contrário do que é hábito, um sonho conseguiu romper o denso véu que me separa o inconsciente do consciente, e fui lembrado de que esse arbusto se chama hibisco, um dos mais comuns. O que me perturba, todavia, é outra coisa. Após a revelação do nome, seguiu-se entre duas partes que presumo serem eu uma discussão ortográfica sobre se hibisco se escreve com um h inicial ou um i. Não sei qual das partes saiu vencedora da contenda, mas que uma delas tenha pensado que hibisco se inicia com um i, isso deixa-me desgostoso com a existência, em mim, de um poço obscuro que me dispõe ao erro. Enquanto contemplo os hibiscos floridos, penso que não é normal alguém sonhar com discussões ortográficas, encenar uma disputa como se escreve uma palavra, cuja grafia, em estado de vigília, nunca ofereceu dúvidas. Fora eu dado à psicanálise e teria, em torno dos hibiscos, do esquecimento do nome e da disputa ortográfica, matéria para muitas sessões. Não o sendo, só espero que o corrector ortográfico, no dia em que escrever ibiscos, me faça o favor de corrigir para hibiscos. O mais estranho de tudo isto é que a jardinagem nunca gerou em mim um grama de curiosidade. As sextas-feiras de Agosto não me parecem propícias para encontrar assunto que interesse a quem quer que seja.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Um calor de ananases

Oiço uma milonga e a tarde abre-se como um enorme poço de nostalgia. Os portugueses, pensei, têm uma grande fixação pela música brasileira, mas há uma profundidade de sentimento naquela que nasce na Argentina que me parece inultrapassável. Talvez o fado se lhe equipare, mas não estou certo disso. Lembrei-me disto porque ontem estiveram cá uns amigos da geração intermédia. Um deles tocava violão, mas apesar de argentino apenas se interessava pela Bossa Nova, a qual estudava com um afinco profissional. Ao longe, uma outra música se intromete na Milonga del Solitario, a célebre Mrs. Robinson, de Simon & Garfunkel. Será outra nostalgia, pensei. Uma notícia informa-me que a bandeira vermelha para indicar praia cheia já foi hasteada quase 2 500 vezes. A minha consciência sorriu plena de orgulho. Em nenhuma dessas vezes a lotação esgotada se deveu à minha presença. Gosto de tal maneira da areia da praia que evito pisá-la. Nunca se deve pôr os pés em cima daquilo que amamos. Estas graçolas secas dão a medida do meu talento. Agosto caminha para a meia idade, não tarda estará velho. Depois, virá o mês em que a realidade reclama a pesada corveia, cheia de projectos, objectivos, cheia de humanidade e um rosário de abjecções e coisas sem sentido. Estará um tempo de escachar, de rachar, de derreter os untos, de ananases. De todas estas expressões ao gosto popular, em uso no tempo do Eça, a que mais me agrada é a de ananases. Um calor de ananases. Um dia ainda vou investigar a origem da expressão, mas é possível que já não exista ninguém que tenha assistido ao seu nascimento. A milonga acabou há muito, agora oiço uma zamba, Luna Tucumana, e uma melancolia suave escorre sobre o dia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Descrições

O sol brilha estrangulado por um cordão de nuvens, deixando cair fiapos de calor sobre o lençol encardido do mundo, depois o cordão adensa-se, o sol sem ar para respirar esconde-se e um vento suave toca a ramagem dos arbustos. Nos vasos, aspidistras, buganvílias e costelas-de-adão reclamam água, enquanto se ouve o troar gorgolejante e contínuo dos corta-relvas. Nas ruas, transeuntes descuidados passam vagarosos e os poucos carros seguem em velocidade moderada, como se toda a azáfama tivesse sido suspensa pela sombra que Agosto projecta no calendário. Podia ficar horas e horas a descrever o mundo, mas depois recordei-me que, durante a noite, acordei e, insone, retomei a leitura de um romance de Thomas Bernhard. Há nele uma enorme capacidade para descrever o mundo humano, um mundo perturbante que se esconde na Estíria, gente de uma humanidade rude, violenta, imoral. O leitor do sul da Europa, habituado ao destrato que o Norte tem por hábito fazer dele, descobre-se, não sem espanto, como superiormente civilizado. Não é impunemente que se é herdeiro dos romanos – pensa-se, então – e que se vive em terras onde as vides crescem para transbordar em vinhos quentes, complexos, vinhos que mobilizam exércitos de metáforas e sinestesias para serem descritos, ou, melhor, para que deles nos possamos aproximar através da linguagem, depois da visão, do odor e do sabor se terem confrontados com sensações para as quais a língua ainda não encontrou o som exacto. Houve uma altura que Bernhard proibiu a publicação dos seus livros na Áustria natal, tão insuportáveis lhe pareciam os austríacos. Os pinheiros que avisto daqui, pinheiros mansos, abobadados, mostram as folhas novas num tom verde tocado ao de leve pelo amarelo, enquanto na ramagem mais velha o verde das agulhas é inundado pela cinza, que as escurece, como se prenunciasse o luto pela sua futura transformação em caruma, hoje em dia inútil. No livro de Bernhard, o príncipe de Sarau enche páginas e páginas com a descrição da primeira entrevista que faz aos candidatos para um cargo relevante na sua imensa propriedade, um homem sem capacidade para o trabalho, um homem enfermiço e que nada sabe dos assuntos que teria de tratar. A escrita é de tal maneira envolvente que me prolongou a insónia por mais tempo que devia. Eolo recolheu, com o seu sopro, o cordão de nuvens e o sol brilha sobre o arvoredo. Um pássaro poisa no ramo de um cedro e deixa-se baloiçar, e tudo é tomado pelo silêncio, como se o mundo tivesse emudecido, ou talvez seja eu que esteja a ficar surdo.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

O peso da verdade

Poderia contar uma história de ninfas a saírem das águas do rio, mas a verdade da narrativa teria tal peso que se tornaria insuportável. Se alguém avistar, como eu avistei, ninfas nas águas de qualquer rio, o melhor é omitir a história, pois não devemos sobrecarregar o mundo dos outros com o peso da verdade. Recolho-me à sombra e protejo-me do sol de Agosto. O ramalhar das árvores e dos arbustos indica a presença do zéfiro e que o dia, aqui neste lugar onde me escondo da realidade, terá um calor moderado.  Ontem nadei, coisa que não fazia há muito. Não se pode dizer que o resultado seja animador. Os corpos sintonizam-se para certas actividades e quando os surpreendemos com outras não programadas, eles nunca deixam de protestar. Há mais de uma semana que oiço, embora sem escutar, as obras para piano de Grieg. É um ouvir despreocupado, uma presença longínqua que me abre para o silêncio, a confissão de que por estes dias cultivo a mais funda despreocupação. Nos arbustos, os nomes escapam-me, fulguram flores a cujas cores também não sei que nome lhes dar. Talvez nada disso exista, pelo menos para mim, pois só existe aquilo que sabemos nomear. No dia em que me esquecer do nome, também eu deixarei de existir.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A tortura como prazer

Ao acordar pensei que os dias de férias são uma ilusão, que passa rapidamente. Depois, pensei que talvez sejam a antevisão do paraíso celeste. As pessoas, mesmo as que foram educadas no mais estrito catolicismo, esquecem que, na tradição judaico-cristã, o trabalho foi dado aos homens como punição e não como uma bênção. Se se quer uma prova de que vivemos num mundo pós-cristão, basta olhar para o culto do trabalho e da produtividade que há por todo o lado, basta ter em conta que a punição é agora vista até como um prazer. Isto disse ontem, ao jantar, o padre Lodo. Estando ele tão perto, não podia deixar de vir jantar cá a casa. As suas palavras, porém, indignaram a geração intermédia da família, toda ela crente na máxima que o trabalho é o destino dos homens. Foi uma indignação silenciosa, pois por deferência remeteram-se ao silêncio, mas eu bem os conheço. O padre, talvez fingindo que não percebia, continuou, com o seu espírito verrumante, e disse que mais valia um santo ócio do que ser-se masoquista e fazer da tortura um prazer. Depois riu-se e pediu para não o levarem a sério, pois não era pessoa de fiar, ele que foi inimigo da Igreja e depois dera em Jesuíta, ainda por cima. O ainda por cima ficou em suspenso. Foi esta conversa que se prolongou noite dentro que me assaltou ao acordar. Agora, porém, preciso de sintonizar o espírito com a realidade, pois não tarda vêm aqui fazer umas pequenas obras e, como se sabe, qualquer pequena obra é um grande incómodo.

domingo, 9 de agosto de 2020

O trabalho do fogo

Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o sítio onde estou.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sem alma comercial

Raramente, ao acordar, tenho consciência de ter sonhado, mas não foi o que aconteceu esta manhã. Era um imbróglio qualquer em torno de um negócio que já não sei precisar. Qualquer coisa que me resultava numa situação muito desconfortável. Eu que não possuo uma alma comercial acordei em sobressalto e lembro-me que fui sossegando dizendo-me, no silêncio do quarto, que era apenas um sonho, nada mais que um sonho e que, se fosse na vida real, jamais me meteria num negócio, quanto mais num imbróglio aflitivo. Depois, abri a janela, a luz entrou, e o sonho começou a apagar-se, restando aquilo que acabei de contar. Entreguei-me à vida de um sábado de Agosto, mas um certo desconcerto não me tem abandonado. Será que a minha alma de narrador é apenas uma alma comercial travestida e frustrada? O mundo está cheio de equívocos e alguns dever-me-iam calhar, pensei. Será que também a mim se aplicam aqueles versos, Esperanças mal tomadas / Agora vos deixarei / Tão mal como vos tomei, com que Sá de Miranda inicia um vilancete? Depois, alvitrei que fora do reboliço académico já ninguém deve ler Sá de Miranda, mas posso estar enganado. Passa por mim um grupo de rapazolas e um diz, entre palavras que me abstenho de reproduzir, que falhou o golo com a baliza aberta. Ele não sabe ainda que a vida não é outra coisa senão uma sucessão de golos falhados com a baliza aberta, mesmo quando a bola entra. Entre ou não entre a bola, o resultado será sempre o mesmo. Talvez seja por sofrer de pensamentos como estes que eu não tenho uma alma comercial.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A geografia do silêncio

O silêncio tem uma geografia imprecisa, o que torna inúteis os mapas que dele se fazem. É um território mutável, umas vezes cresce rapidamente, conquista espaço ao império do ruído. Outras, porém, vê-se drasticamente diminuído pela invasão de gente inoportuna, que faz da emissão de sons pela boca a razão de uma existência. Fora eu dado a pedagogo, haveria de criar uma teoria em que o silêncio seria a primeira coisa a ensinar às crianças. Idiossincrasias de velho, dirão as pessoas sensatas. Eu concordarei com elas. Recordo que, em certa altura da vida, procurava sítios em que não se ouviam ruídos nem havia, durante a noite, qualquer luz artificial. Então, ficava a olhar o céu, as estrelas nos seus arranjos ilusórios, a que chamamos constelações, a via láctea como um grande poço polvilhado de pontos brancos, luminosos. Escutava o silêncio, e conforme ele ia crescendo para dentro de mim, uma música estranha aos ouvidos citadinos compunha-se no rumor da terra, no murmúrio do vento, no mistério do éter onde tudo parecia mergulhado. Se se ensinasse o silêncio, talvez as pessoas aprendessem a escutar e a usar a voz apenas para dizer alguma coisa. Hoje tornei a ver a mulher que olha o horizonte. Toda ela é silêncio e nesse silêncio há um convite. A grande vantagem de se ter passado do politeísmo clássico para o monoteísmo é que se trocou a algazarra dos deuses greco-latinos pelo silêncio do Deus judaico-cristão. A mulher levantou-se, saiu da esplanada e, chegada à rua, acendeu um cigarro. Afasta-se lentamente e eu sigo-a com os olhos perdido no silêncio que há nela.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Um passeio pelo molhe

Quando se põe o pé no cimento que cobre o chão do molhe, são mais seiscentos metros até alcançar o farol. Se está uma névoa ligeira, como tantas vezes acontece, esse pequeno passeio proporciona algumas sensações que não são de desprezar. A cidade à direita esbate-se, como se fosse um desenho a carvão, desmaiado pelo tempo, adquirindo uma beleza que uma luz límpida lhe recusa. O mar troca a tonalidade esmeralda e azul por um cinzento cheio de enigmas, ameaças e promessas, enquanto se ouve o seu restolhar nas rochas. Os outros molhes fazem lembrar ruínas deixadas por civilizações desconhecidas. Os barcos ancorados são fantasmas que baloiçam embalados pelo vento, enquanto os veleiros e os barcos de recreio se aproximam ou afastam do porto, conforme o destino de cada um. É preciso caminhar de olhos bem abertos para não tropeçar. Quando se chega ao farol pode-se ficar a contemplar o oceano, a meditar no seu enigma, ou então virar costas ao sonho e apressar-se, empurrado pelo vento norte, em direcção a terra. Chegados aqui o sortilégio desfaz-se. Há um porto, com barcos em reparação, o areal das praias que se vão sucedendo, até se perderem de vista, o voo das gaivotas que negoceiam com o vento a poupança da energia, planando sobre a terra. Enquanto caminhava, ainda antes de chegar ao molhe, o sol matinal foi cedendo lugar à névoa, e eu pensei que o verdadeiro romantismo só pode existir em paisagens assim, paisagens das terras frias do Norte. Se importado pelo povos meridionais nunca deixa de ser insípido e, na verdade, vazio. A luz nunca foi a melhor companhia para os enigmas do sentimento.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Pão e vinho

À minha frente, havia um caminho estreito de terra batida, ladeado por arbustos espontâneos, raquíticos, carcomidos pelo vento norte. Algumas rochas erguiam-se como marcos miliários. Por ali, circulavam aqueles que, afastando-se um pouco da cidade, imaginavam estar no campo, para lhe sorver o ar, encher os pulmões de ruralidade. Um homem ia apressado, arrastando ligeiramente uma perna, um casal caminhava com demora, ele fazia comentários sobre a paisagem, ela ouvia com atenção e sorria, evitava as palavras, não se queria comprometer. Dois corvos desenharam um semicírculo no céu e desapareceram atrás de uns cedros altos. Isto foi antes de ir ao supermercado, ter de esperar a vez para entrar e, depois, ver-me rodeado de gente inóspita apenas porque precisava de pão e vinho, para com eles compor um poema, ou esboçar uma pequena narrativa onde as duas espécies litúrgicas entrariam para produzir o ambiente e dar-lhe profundidade. Quando acabei as compras e saí, havia sol. Procurei uma esplanada onde pudesse beber café rodeado de silêncio e esquecer-me do poema ou do conto que me levaram às compras. Agosto nunca deixa de ser um mês estranho, cheio de rituais fundados numa mitologia precária, movida pelo desejo, por sonhos eróticos, histórias onde se cruza a inverosimilhança e a necessidade de mostrar aos outros que se existe e se tem uma vida plena, como se a plenitude fosse prerrogativa de mortais. Não é.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A linha do horizonte

Uma mulher pousou o cotovelo na mesa da esplanada, depois apoiou o queixo na palma da mão. Fiquei à espera que, num súbito movimento de contorcionista, um pé, levantando-se, acabasse por aterrar-lhe na cabeça. Tenho demasiadas expectativas sobre a humanidade, não admira que me sinta continuamente defraudado. Ela podia ser uma contorcionista, afinal era só uma mulher solitária que apoiava a cabeça para olhar o horizonte e beber café. Quando não se sabe o que se há-de fazer com as pessoas, o melhor é pô-las a olhar o horizonte. Não foi este o caso. Eu faria dela uma contorcionista, dar-lhe-ia o melhor dos futuros num circo já sem animais amestrados, a não ser os humanos, mas ela preferiu olhar em frente, para aquele sítio onde uma linha ténue une o céu e o mar. Com vagar, um veleiro foi crescendo, rompendo a linha, e eu temi, confesso-o sem vergonha, que o oceano se entornasse para dentro do céu, ou que este lançasse sobre o mar alguma coisa que não quisesse nele. A mulher que podia ter sido contorcionista mexia, com os seus belos dedos, longos e afilados, o meio pacote de açúcar que depositou dentro da chávena. Eu vi o pequeno monte de cristais brancos sobre a espuma castanha. Eu vi-os desaparecer tragados por aquele buraco líquido. Eu vi-a a fazer rodopiar, com a mão direita, a colher dentro da chávena, enquanto a esquerda lhe segurava a cabeça para olhar o horizonte. Se eu tivesse um circo, contratava-a para contorcionista de horizontes. Não tenho, as minhas palhaçadas – de palhaço pobre, note-se – não chegam para animar o negócio. Também eu fiquei a olhar a linha do horizonte.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Destinos

A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova, ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de 1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si, enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.

domingo, 2 de agosto de 2020

Pessoas de papel

Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis. As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e, portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo, senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica, embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à minha neta e tomar café.

sábado, 1 de agosto de 2020

Eu e o Marquês

Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu, só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas. Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio, sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal. Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.