sexta-feira, 27 de março de 2020

Desenhar espirais

Desenho espirais no tampo da secretária. Fixo um dedo num ponto do vidro, julgo que os geómetras lhe chamam pólo, e depois traçando curvas cada vez mais amplas vejo-o afastar-se desse centro onde tudo começou. Parece uma alegoria aos dias de hoje, mas não era essa a intenção. Quando paro o exercício circular, os meus olhos não detectam vestígio da actividade, e essa é outra alegoria. Faça o que fizer, daqui a um tempo ninguém encontrará sinal ou pista que conduza ao que fiz, ao que fui, ao que desejei. Não lamento que seja assim e será mesmo uma boa razão para ficar grato com a ordem do mundo e a natureza das coisas. A tarde desliza nimbada por uma luz esquiva, sorrateira, que dardeja a terra a medo, como se também ela temesse a contaminação. Cresceram muito as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado, erguem-se para os céus, mas não rogam por nós, ou será que o fazem e nós não sabemos escutar? Abri a porta da varanda e entrou uma mosca. Parece perdida, voando para aqui e para ali, como se a sua bússola se tivesse desregulado. Hoje estou com uma forte inclinação para o discurso alegórico. Melhor era o tempo em que as hipérboles me ocupavam o espírito e desse modo me entregava a discursos fantasiosos, onde o exagero expandia os textos para ocultar o grande vazio que há em mim. Estou mais contido. Hoje participei em duas reuniões virtuais e ainda me espera uma terceira. Sou para mim mesmo uma imagem virtual, uma fotografia de passe inquieta no canto de um computador. Mal frequento a televisão, como é hábito, e sou frugal nas notícias, há que evitar a realidade. Hoje é sexta-feira, dia 27 de Março. Vou a uma dessas aplicações que virtualizam o mundo e imploro, como se distribuísse imperativos, um vídeo do meu neto. Vou desenhar mais espirais.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Esquece-te a ti mesmo

Bati devagar e a porta da tarde abriu-se. Ao fundo, um grande espelho devolveu-me a imagem. Pensei em Narciso e logo a minha mente, presa na sua inalterável volubilidade, o associou ao que um certo Sócrates inquieto pensou das palavras à entrada do Oráculo de Delfos. A cada um o seu narcisismo. Em vez de me conhecer a mim mesmo prefiro olhar o horizonte, distanciar-me e, se tal fora possível, esquecer-me. Esquece-te a ti mesmo, eis a minha divisa para o dia de hoje, amanhã logo se verá. Uma divisa por dia, dá saúde e afasta a melancolia. Isto sim, seria um belo slogan. Logo mudo de ideias e julgo que deveria dedicar-me à construção de longas écfrases, daquelas cuja minúcia faz bocejar o leitor, mas o tempo das descrições passou. Uma imagem vale por mil palavras, segundo a sabedoria que nunca compreendeu o que era uma palavra e que nela não há mil, mas milhões de imagens. A rosa que eu vejo quando digo rosa não é rosa que tu vês ao escutar-me, mas isto não interessa a ninguém e há que evitar o didactismo. Tamborilo com os dedos sobre a secretária, dedilho com paciência os minutos e construo com eles um rosário de contas minúsculas e sem fim. Gostava de ser especialista numa especialidade qualquer, mas faltou-me o talento para a especialização e agora, que anda meio mundo a usar da sua autoridade de especialista sobre coisas que não conhece, estou confinado à mudez. Reparo na primeira frase do texto e coro. Não devia escrever coisas daquelas. Quantas pessoas não bateram devagar e a porta da tarde se lhes abriu? Vou fechá-la. Os pássaros meus vizinhos trocam acusações. Apuro o ouvido, quero ver se descubro a causa da dissensão. Hoje é quinta-feira, dia 26 de Março. No campo de jogos da escola aqui ao lado alguém corre como se fugisse de um inimigo astuto e invisível.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Uma mutação

Imagino-me a escrever um diário de bordo, mas o barco não sai do lugar. Os ventos não sopram e a armada está retida. Como não sou caçador não corro o risco de ter irritado a deusa ao matar-lhe um cervo na floresta sagrada. Também não sou Agamémnon, nem a minha missão é ir pôr cerco a Tróia. Tudo isso deixa-me um pouco mais tranquilo. Desde manhã que oiço Sonatas e Partitas de Bach, mas é um ouvir distraído, uma música ao fundo, que se derrama sobre mim enquanto trabalho, envolve-me e talvez fale com alguma coisa escondida na cave da minha consciência. Olho à volta e contemplo todas as coisas inúteis que fui acumulando ao longo da vida. Em tudo isso ainda arde a febre do desejo, a pouca conta que tenho das possibilidades finitas que me são concedidas, a grande fábrica da fantasia que recebi de presente já não sei de quem. A Primavera cresce no ramalhar do arvoredo, embalada pelo canto dos pássaros e o zunir dos insectos. A luz alivia o tom carregado do verde dos cedros e não oiço vozes humanas. Daqui a pouco terei uma reunião. Cada um dos reunidos estará em sua casa e todos se hão-de espreitar com espanto através do monitor, como se fossem fantasmas, gente desencarnada, tomada por preocupações risíveis. Sem se dar por isso sofremos uma transformação ontológica. Transitámos de seres de carne viva para imagens virtuais. Lembro-me então que a grande promessa da Páscoa dos cristãos é a ressurreição da carne. Hoje é quarta-feira, dia 25 de Março. Os dias deslizam vagarosos, como as nuvens que ocultam o sol. Oiço vozes infantis, agora que Bach se calou. Tenho de ir espreitar o friso das orquídeas ou as torres do castelo.

terça-feira, 24 de março de 2020

Espaço e tempo

Da praceta aqui ao pé de casa vem o som da campainha de uma bicicleta. Levanto-me e vou espreitar. Uma adolescente pela idade das minhas netas passeia-se. Estava combinado que elas estariam cá pela Páscoa e haveriam de ir para ali andar de bicicleta, como acontece quase sempre. Agora estão confinadas muito longe daqui, mas a lonjura tornou-se risível. O meu neto está a dois minutos de carro e também está tão longe quanto elas. Assistimos a uma lenta dissolução do espaço. Há pontos, mas não segmentos de rectas ou curvas que os unam. Deveria evitar referências à geometria, aconselho-me. Não há distâncias que possam ser percorridas num determinado tempo. A suspensão do espaço e das trajectórias lança-nos para um mundo onde a única coisa que conta é o deslizar contínuo da areia na ampulheta. Os gregos tinham relógios de água, clepsidras que mediam o tempo pelo escoar da água. O termo teve um feliz destino na poesia portuguesa. Dá nome à recolha de poemas de Camilo Pessanha. Muito mais tarde, João Miguel Fernandes Jorge intitula O Roubador de Água um dos seus livros de poesia. E será isso o que uma clepsidra é, um roubador de água, ou de tempo, ou de vida. A suspensão do espaço talvez pudesse alimentar um romance distópico, onde cada um estivesse afastado dos outros por um abismo inultrapassável, enquanto uma gigantesca clepsidra deixava escoar, com lentidão inusitada, a água. Rio-me da falta de imaginação. Oiço uma buzina e o rumorejar dos carros ao longe. O som de um aspirador sai pela janela de um apartamento contíguo e entra pela minha. Devia fechá-la. Hoje é terça-feira, dia 24 de Março. Os pássaros cantam, enquanto eu descubro um erro de ortografia no texto e apresso-me a emendá-lo. Sem espaço, mas com a ortografia correcta.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Stabat Mater

Num tempo em que a mobilidade se tornou, também ela, uma pandemia, com toda a gente a mover-se para todo o lado, não deixa de ser curioso que ficar em casa se torne uma verdadeira epopeia. Os helenos não se deslocam para Tróia, nem os Gamas demandam a Índia. Ficam em casa e esse é todo o heroísmo que nos resta. Somos heróis domésticos e enfrentamos não pequenos perigos sentados à secretária ou num sofá, enquanto o tempo passa, agora tão vagaroso, tão dado a demoras, tão lânguido, tão pouco compassivo com os anseios dos novos semideuses. Não tarda e não há Penélope que suporte o seu Ulisses, que não deseje que ele se vá para a primeira Tróia que o chame. Fora eu dado ao filosofar esotérico e que belos pensamentos haveria de ter sobre a languidez da duração ou sobre a diferença entre Cronos, o tempo medido pelo relógio, e Kairós, o tempo oportuno para que algo aconteça. Não sou dado, porém, nem à filosofia nem ao esoterismo, cujas competências o destino decidiu negar-me. Evito bater à porta de tais arcanos e embrulho-me na capa da perplexidade. Sento-me à janela e contemplo o deslizar das nuvens, a cor do arvoredo, o vazio da rua. Das colunas sai o Stabat Mater, de Pergolesi. Deixo-me envolver na dor daquela mãe e olho o horizonte, na esperança de que exista ainda um horizonte que espere que o olhem. Hoje é segunda-feira, dia 23 de Março. A Quaresma progride no silêncio da cidade. Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius, e isto é tudo o que me ocorre.

domingo, 22 de março de 2020

Sem eventos na agenda

No email, o calendário da Google informa-me que não tenho eventos marcados para hoje. Olho-o e enternece-me o vazio social da minha existência. Rio-me, pois todos os dias recebo a mesma mensagem. Nunca usei aquela artimanha, ou outra, para dar ordem ao que me acontece. Há pessoas que cultivam agendas, eu tenho apenas uma imaginária, onde registo na memória todas as coisas que hei-de esquecer. Os ramos das acácias ainda estão muito despidos, mas as suas pontas já estão tintas de um verde claro, que escurecerá com o passar dos dias. Da minha janela não avisto ninguém. Há um pequeno restaurante numa aldeia debruçada sobre o Tejo, não muito longe daqui. Uma vez por outra, vou lá aos domingos. Gosto do ambiente provinciano e sem pretensões, da comida e de ver as águas do Tejo a encaminharem-se para uma Lisboa distante. Depois desço a um parque, sempre sem ninguém, mesmo na margem do rio e olho os remoinhos que a água traiçoeira desenha para avisar os incautos. Ir lá não faz parte dos eventos que me esperam hoje. Volto aos domingos de adolescência na exuberância da vida na província. A ida à missa, o almoço de família e a tarde dedicada ao futebol ou ao cinema. Aquela família já não pode almoçar junta, e não há missas, nem futebol nem cinema. Foi tudo suspenso, para que a vida se abrigue de si mesma e das armadilhas que a si estende. Desocupado, passarei a tarde a trabalhar. Hoje é domingo, dia 22 de Março. É o octogésimo segundo dia do ano, um dia primaveril. Há exactamente oitenta e sete anos Roosevelt acabou com a Lei Seca e permitiu o consumo de bebidas alcoólicas. Há que dar importância às coisas verdadeiramente importantes.

sábado, 21 de março de 2020

Anjos pelos telhados

Chegámos ao tempo da verdadeira contabilidade, aquela cujas razões se dão a conhecer não no segredo dos escritórios mas nos escaparates das notícias. Um exercício de balanços e balancetes, onde se anota os movimentos a débito e a crédito. Lá vêm os mortos e os que escaparam, na falibilidade que há em toda a fuga, os infectados e os que não o estão ou ainda não o estão. Novas rotinas instalam-se, como se nos habituássemos ao cerco que os exércitos inimigos decidiram pôr às portas da cidade. Passei parte da manhã a enviar emails, mensagens que não encontram destinatários dispostos a recebê-las, mas a isso estou habituado há muito. Quem quer saber daquilo que eu tenha para comunicar? Se fosse eu o destinatário das minhas mensagens também me recusaria a abri-las. De mim apenas pode vir spam e o melhor é evitar espreitar o que contêm, será por certo publicidade enganadora. Desde ontem que não largo os ciclos de canções de Schubert, na voz de Fischer-Dieskau. Na minha secretária está a Nova Gramática do Latim. No entanto, é apenas a prova de uma longa hesitação. Acompanharei ou não as lições do autor no facebook? Está um dia de início de Primavera. Depois penso na frase e descubro que ela não quer dizer absolutamente nada, como a maior parte das coisas que digo. Num livro do poeta Daniel Jonas, leio o seguinte verso: Aqui nesta Tebaida, ouço a paz. Fico em silêncio, pois não sei se aquilo que oiço é a paz ou a guerra. Talvez tenha começado a ficar um pouco surdo. Hoje é sábado, dia 21 de Março. A Primavera trouxe alguns anjos que estão sentados nos telhados. Vou à varanda acenar-lhes.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Viagem de Inverno

Olhei para a rua e, de súbito, apeteceu-me ouvir o ciclo de canções Winterreise (Viagem de Inverno), de Franz Schubert. Oiço a primeira interpretação que encontro, com a esperança de uma surpresa, mas não era aquilo que desejava. Procuro uma edição que junta Alfred Brendel e Friedrich Fischer-Dieskau e deixo-me deslizar na tarde. Segundo o calendário estamos a abandonar o Inverno e na próxima estação tomamos o comboio da Primavera, mas o dia chegou mascarado de invernia. Chove e o horizonte cobre-se de uma melancolia tépida. Os campos de jogos da escola aqui ao lado estão vazios, cobertos por finos lençóis de água. As árvores vestem-se de verde, mas os seus matizes são tão distintos que só um hábito enraizado me permite usar a mesma palavra para designar cores tão diferentes. Uma vez, talvez num documentário, descobri que uma certa tribo de esquimós teria mais de sessenta palavras para designar o branco. Também eu agora necessitaria de um vocabulário enorme para designar os verdes que vejo ou para classificar estes dias, em que a nomenclatura semanal começa a diluir-se. Sim, hoje é sexta-feira, e depois? Que diferença faz? Ainda não fui espreitar as torres do castelo, mas a orquídea amarela deu as primeiras flores. Há pouco recebi um vídeo com o meu neto a desarranjar a madrugada aos pais. Do que temos mais saudades aqui é de uma mera possibilidade, a de poder estar com os netos. Deixo o espírito entregue à voz de Fischer-Dieskau e agradeço ao mundo da técnica que nos deixa ouvir os que partiram sabe-se lá para onde. Talvez Deus sinta prazer em ouvir Schubert. Prometo-me, apesar de mortal, que dedicarei as próximas horas a ouvir os três ciclos de canções de Schubert. Hoje é sexta-feira, dia 20 de Março.  O Inverno e a Primavera lutam arduamente pela prevalência. O tempo porém é um deus impiedoso e fará o calendário triunfar.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Florestas de símbolos

Abri a janela e com o ar entra também o canto dos pássaros e o bulício do mundo. Oiço a voz alteada de uma criança já em pré-adolescência, mas não percebo o que diz. Respiro lentamente para sorver o ar renovado. Nestes dias não faltam profetas do apocalipse, detectives que revelam as mais tenebrosas conspirações, analistas que desenham futuros que nos esmagarão como mosquitos. Podia ter evitado a comparação e optado por um enunciado metafórico, mas não devo esgotar rapidamente o stock retórico, a espera parece prolongada. Também não faltam idiotas, que aliás se confundem com as várias classes enunciadas ou os que lhes mimam as teorias. Eu não descobri nenhum segredo, não me foi dada visão de raio-X que equipa esses extraordinários super-homens. Tenho, porém, a vantagem sobre eles de não ser afectado pela Kryptonite, embora isso não me proteja de nada. Os vidros dos carros estacionados no hospital reverberam, enviam mensagens luminosas mas não há quem as saiba decifrar. Numa das leitura que fiz ontem, um filósofo francês referia que tudo é símbolo e logo a minha mente, perdida nos arcanos da volubilidade, chama por Baudelaire e põe-se a declamar La Nature est un temple où de vivants piliers / Laissent parfois sortir de confuses paroles ; / L’homme y passe à travers des forêts de symboles / Qui l’observent avec des regards familiers. Ponho fim ao soneto e volto a mim, mas sinto a saudade de certos olhares familiares. Penso neles e sorrio. À minha frente estão tarefas a realizar e olho para elas com inusitada benevolência. Ligam-me ao mundo, mesmo que esse não seja o melhor dos mundos possíveis. Hoje é quinta-feira, dia 19 de Março. É dia do pai e lembro-me do meu, de como gostaria de falar com ele sobre tudo isto ou sobre nada.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Quando on a que l’amour

Mantenho os hábitos instalados. Não sei, porém, quanto tempo as rotinas resistirão ou se uma nova normalidade virá tomar conta dos dias para lhes dar uma aparência de sentido. Oiço o ruído de um corta-relvas. Levanto-me e confirmo aquilo que oiço, há alguém a aparar a relva da praceta. A partir de agora talvez precisemos de uma nova forma de verificação da realidade. Não basta que uma coisa soe para que ela exista. É preciso vê-la. E nada garante que esta dupla verificação esteja correcta, embora seja um pouco mais difícil, apenas um pouco, que se seja vítima ao mesmo tempo de ilusões sonoras e alucinações visuais. Na minha secretária amontoam-se papéis. Ordeno-os e nisso há um prazer específico, pois toda a classificação é um começo de vitória sobre o caos, e vitórias é aquilo que as pessoas mais precisam. Desenho estratégias para manter a sanidade e as actividades correntes a correr. Oiço vozes e vou à janela. Três homens confraternizam, fumam, mantêm uma quase distância. Um casal que conheço bem, ambos entrados na casa dos oitenta, passeia devagar, ela amparada por uma bengala e pelo braço dele, ele direito como se dissesse podes confiar em mim. Partilham o peso da solidão e a ameaça que parece tudo rodear sem alterar rotinas. Ao vê-los lembro-me de uma canção de Brel que começa assim Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Já pouca gente sabe francês, lembro-me, e sinto uma estranha saudade dos tempos em que descobri a música de Brel. Então recorro ao Youtube e escuto a canção. Contrariamente à minha natureza, pouco dada a manifestações sentimentais, acompanho-a e canto em surdina Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Depois, paro e deixo que a canção se escoe e olho para mim atónito. Hoje é quarta-feira, dia dezoito de Março. Escrevo o nome do mês com maiúscula e esse pequeno prazer ortográfico contenta-me.

terça-feira, 17 de março de 2020

O verde das primeiras folhas

Oiço o canto dos pássaros meus vizinhos. De mais longe chega o ronco de um carro pertencente a alguém que imagina estar em Le Mans. Há coisas que nunca passam e mesmo a actual situação não assegura que exista um salto no QI das pessoas. Não estamos num tempo de vigília mas de vigilância, digo-me para me convencer. Vigiamo-nos a nós mesmos temerosos dos sinais. O pior é a dilação da espera, de uma espera que nem se sabe do quê e que se resume em aguardar que tudo isto passe e a velha vida volte. Agora, faço pequenas caminhadas dentro de casa. De um lado, vejo o hospital com as paredes maculadas pelos fungos, do outro avisto duas torres do velho castelo, batidas por um sol quaresmal. Evito explorar a simbólica que a paisagem guarda e olho para a praceta aqui em baixo. Não posso furtar-me à recordação dos quadros de Giorgio de Chirico. Na verdade, são poucas as coisas de que podemos resguardar-nos desde que chegámos a esta terra. Ocorre-me, então, que somos extraterrestres que lutam por se habituar ao ambiente de um planeta quase hostil e para o qual não foram feitos. São tempos propícios para a proliferação de metáforas e alegorias. Toda a literatura nasce de uma estranheza, de uma inquietante estranheza, e este é um tempo propício. A sirene dos bombeiros acabou de assinalar as doze horas. O dia dobra o cume e começa a diminuir, as orquídeas, porém, erguem-se em direcção aos meus olhos. Olho-as e lembro-me dos netos. Sorrio para enfrentar a ausência. As acácias começam a deixar escapar dos seus dedos imploradores o verde das primeiras folhas.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Olhar as orquídeas

Não vale a pena contar os dias, pois eles serão mais do que suporta o nosso desejo. Fui à varanda, na avenida quase não havia ninguém e só muito a espaços passava um carro. Ao longe, o castelo reverberava, mas o vento estava frio. Voltei para dentro e olhei para o friso das orquídeas. Não cessam de florir e a mim só me resta a gratidão. Comecei a trabalhar pouco passava das oito da manhã. Ordeno papéis, envio mensagens, verifico o que tenho e o que deveria ter, para expedir novas mensagens. Não sei se os destinatários as querem receber ou mesmo se se dignam vê-las. Tudo se tornou aleatório como se o princípio de incerteza de Heisenberg transbordasse do mundo das partículas subatómicas e invadisse o quotidiano e os devaneios de conhecermos a realidade onde se embrulha a existência. E isso pode ser um dos grandes perigos, pois apesar de tudo ser incerto é necessário que à certeza de um comportamento adequado corresponda não a maximização da incerteza do que pode acontecer, mas o contrário. Deveria evitar entrar por caminhos para os quais não fui feito. Deixemos Heisenberg em paz. Há pouco falei com um amigo que se exilou há uns tempos no Alentejo. Ontem troquei emails com outro que está fechado em Lisboa e tem a mulher também fechada em casa em S. Paulo, ambos em duplo isolamento. Lá fora oiço o trabalhar de máquinas que não consigo avistar. O café da praceta está aberto, com a esplanada ensolarada à espera de clientes renitentes em chegar. O ruído mecânico parece um cântico de esperança e não tarda terei saudades de ouvir o ranger insuportável dos baloiços do parque infantil. Vou sentar-me lá dentro para que possa ir olhando as orquídeas.

domingo, 15 de março de 2020

Uma palavra vinda de longe

Hoje é domingo, pensei ao levantar-me. Havia sol nas ruas, mas a aplicação do telemóvel tratou logo de me esclarecer que a temperatura não chegaria aos vinte graus. Noutra altura, seria ocasião para ficar grato ao deus do clima. Uma vaga apreensão nasceu em mim, mas logo a afastei, esperando que o tempo se compadeça e dê uma ajuda. Agora, enquanto escrevo, olho para a rua, o céu cobriu-se de um manto de cinza que os raios solares têm dificuldade em atravessar. Novos hábitos começam a desenhar-se, constato.  Outros porém são difíceis de combater, como a tentação sem fim de levar as mãos à cara. É um exercício de vigilância difícil e nós, há muito, perdemos o hábito de nos vigiarmos. A partir de certa altura a autovigilância começou a ter má reputação, pois contraria um modo de estar espontâneo e a espontaneidade foi entendida como prova de ser autêntico. A vida, porém, contínua. No Facebook, descubro que a missa dominical da TVI é transmitida da Igreja de S. Pedro, oficiada pelo pároco local e pelo bispo da diocese para um auditório vazio. Num site noticioso sou informado que um homem foi assassinado à facada e que a Rainha Isabel II abandona o Palácio de Buckingham. Percorro uma edição online de um tratado medieval atribuído, primeiramente, a Hugo de S. Victor e, depois, a um anónimo cisterciense, companheiro de Bernardo de Clairvaux. Numa pequena introdução dizem-me que está redigido sem ordem nem método e, a partir de certa altura, cheio de repetições. Percorro-o rapidamente e encontro isto: e aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor. Repito para mim a mensagem e talvez ela baste para fazer esquecer toda a desordem que, segundo o editor, macula o texto ou as nossas vidas, acrescento. Alguém, ainda na Idade Média, deixou uma palavra para todos os tempos difíceis. E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor.

sábado, 14 de março de 2020

Dias de excepção

Cheguei aqui já a noite tinha descido em turbilhão sobre mais um dia em que a excepção se torna a norma. Nestas situações, à falta de experiência, recorre-se ao que se tem à mão para lhes dar um sentido. Muitos lembram A Peste, de Albert Camus. Outros não deixam de recordar o Decameron, de Giovanni Boccaccio. Ainda hoje havia quem referisse um conto de Edgar Allan Poe. A mim ocorre-me A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em todos eles vemos a excepção tornar-se a vida habitual. Apesar de difícil, será uma aprendizagem rápida, embora a lógica destas coisas tenha uma inclinação para nos escapar, mesmo aos que possuem uma armadura racional mais poderosa. Há pouco parei uns instantes diante do friso das orquídeas. Estão esplendorosas e indiferentes ao que inquieta os humanos, enchem o espaço com a subtil emanação da beleza, como se ela fosse a mensageira da esperança. Nem todas floriram ainda, reparei, depois voltei-lhes as costas e vim sentar-me, a pensar no que tenho de fazer, no que tenho de cuidar. A verdade é que nos disseram que o paraíso não era aqui, mas noutro lugar de onde fomos expulsos, mas não acreditámos. Imaginámos, contra todas as evidências, que poderia nascer neste mundo e pelas nossas mãos, o que suscitou um não pequeno número de teologias, de incontáveis homilias e de legiões de mensageiros do admirável mundo que estaria à nossa espera. Depois um qualquer incidente recorda-nos o outro lado da história, aquele que nos diz que este é um lugar de exílio. Encolho os ombros e digo entre dentes a cada um a sua metáfora. No telemóvel surge uma mensagem. É uma fotografia do meu neto de chapéu na cabeça. Quer vir para a província, pensei.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Um pássaro canta

No correio havia duas cartas. Pego nelas, olho-as de soslaio e não consigo reprimir um momento de suspeição. Há em nós comportamentos muito arcaicos vindos daqueles tempos em que ainda não tínhamos estabelecido um cordão sanitário eficaz em torno das comunidades humanas para as proteger dos predadores e da própria natureza. Estabelecido este, esses comportamentos foram recorrentemente avivados ora com a guerra ora com a epidemia. Voltam a manifestar-se. Está uma tarde soturna e caminha-se para a Páscoa como se estivéssemos efectivamente na Quaresma. Os lugares estão mais vazios, o bulício das ruas baixou de intensidade e na face das pessoas há um esgar de preocupação. São imensas as coisas por fazer, mas a vontade está avara. Nada corrói mais o querer do que a suspeita e esta tornou-se, também ela, pandémica, uma reacção psicológica à ameaça. Em ambientes destes surgem todas as teorias marcadas pelo terror e a própria razoabilidade vai sendo escavada até que derrui. Nos telhados em volta, não vejo nenhum dos anjos que lá costuma parar. Talvez tenham partido em serviço, talvez tenham ido a um congresso angélico discutir o que fazer connosco, talvez tenham sido chamados pelo Criador para escutar ordens e receber recomendações. Na escola ao lado ainda há bolas a rolar, rapazes a correr, gritos de golo. Um pássaro poisa no parapeito da janela e canta.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Dias difíceis

Não sem dificuldade juntei os bocados em que me divido para chegar a esta hora que anuncia o crepúsculo. Os dias não têm sido fáceis e a prova disso é que as minhas leituras se resumem a O Homem que era Quinta-Feira, de G. K. Chesterton. Não me atenua o cansaço mas faz-me sorrir. Lera-o há muito e havia muitos pormenores que se tinham apagado. Na mesma época li O Ente Querido, de Evelyn Waugh, e A Relíquia, de Eça de Queirós. Lembro-me de os ter juntado, mas não sei precisar a razão. Porventura, um acaso. Tenho pena de já não conseguir situar na existência a época em que os li. Talvez fosse um tempo em que precisasse de me rir um pouco, embora, ao contrário do que por vezes parece, não tenho propensão depressiva. Gosto de pintar o mundo com tintas escuras, mas o mundo faz muito por isso e teima com frequência elevada em não me desmentir. Um pessimismo antropológico não faz mal a ninguém e talvez ajude a que todos sejamos um pouco menos bárbaros. As sombras arrastam-se pelo chão, restos de luz batalham com denodo contra a vinda da noite, qualquer coisa cai num dos andares contíguos, oiço um bater metálico e depois o silêncio desce em espirais sobre mim. No ar, há uma exaltação contida, algum medo disfarçado por risos forçados. Não é fácil ser-se despojado dos hábitos, que são uma segunda natureza no dizer do velho Aristóteles. Nada melhor que citar uma autoridade para acabar.

quarta-feira, 11 de março de 2020

O deus do vazio

Anúncio do Verão. A temperatura chegará por aqui aos vinte e nove graus. O inferno insinua-se ainda a estação fria olha para o deve e haver e faz o balanço final, antes de entregar a contabilidade nas mãos da Primavera. Os últimos dias deixaram-me a cabeça mais vazia do que o habitual. Uma descoberta já não recente ensinou-me que quando lidamos com o vazio tornamo-nos como ele. O nada contamina a realidade e fá-la explodir. Com os anos fui descobrindo que a nulidade é uma divindade poderosa e tem ao seu serviço um sacerdócio persistente, auxiliado por janízaros impiedosos. São pagos para destruir tudo o que faça sentido e instituir a nova ordem onde nada existirá. Continuo a falar por enigmas e isto não é sinal de sanidade mental. Daqui a pouco irei para a rua e não sei se hei-de fingir-me no Inverno rigoroso ou se cedo à tentação estival. A cidade estará ensolarada e no sítio onde me esperam haverá sacerdotes do deus do vazio, perdidos em liturgias que só o demónio poderia ter inventado. O hospital ergue-se sombrio, as paredes maculadas por fungos, um bloco preso à terra para me roubar a vista dos campos. Desvio o olhar e vejo ao longe a serrania e penso que nunca sabemos para o que estamos votados.

terça-feira, 10 de março de 2020

O dardo refulgente

Sob o olhar atónito um espectro silencioso desenha a sua sombra de antracite na prosa gasta do mundo. Universidades e escolas fechadas, eventos cancelados, um país em quarentena. A fragilidade de tudo borbulha e ouve-se o ploc-ploc das bolhas ao rebentar. Tivera pendor para moralista e que magníficas máximas poderia agora expelir sobre a vaidade dos homens e as ilusões da vida. Não passo todavia de um mero narrador cujas palavras são o capricho de um autor com o qual nem sempre mantenho as melhores relações. Há que evitar moralizar sobre a desgraça, diz-me e eu obedeço-lhe. Sento-me à secretária e vejo o tempo, como um dardo refulgente, a deslizar à minha frente. Ao lado dele vai um casal de mãos dadas, perdido na verdura dos anos, o vigor dos corpos ainda disfarça aquilo que os espera na curva dos dias. O ranger do baloiço está cada vez mais insuportável, lembra o crocitar de uma ave agoirenta, enquanto uma criança vai e vem, vai e vem, impelida por uma mãe distraída, que por vezes leva as mãos à cabeça para compor os cabelos que o vento teima em desalinhar. Ao longe, no vazio dos campos, erguem-se ciprestes, um aqui outro ali, mais dois ou três à esquerda. Estão silenciosos e a sua sombra cresce oblíqua pelo chão. A reverberação da luz espalha um traço de melancolia na tarde e em tudo descubro a convocação de um romantismo chegado no vapor que deixou a estação do século XIX. Lá em baixo um adolescente grita ó Filipe anda cá já, um imperativo cambado, tinto pela incerteza de se fazer obedecer. Na avenida, os carros passam, param na passadeira para que peões cheguem ao outro lado, como se houvesse outro lado aonde chegar.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Tempo de sacrifício

Daqui a pouco devo participar num exercício de penitência. Penso isto e rio-me. Afinal estamos na Quaresma e este é um tempo penitencial. Depois ocorre-me a possibilidade de já não ser assim. Não vejo ninguém com ar penitente, nem que se exima de carnalidades. Os jejuns passaram de moda e a abstinência contraria as regras do mercado. A ideia é nunca nos abstermos seja do que for. Alguém terá de fazer sacrifícios pelo bem da comunidade e hoje cabe-me a mim, intimo-me com a habitual tendência para o exagero. Lembro-me de imediato de alguns sacrifícios célebres. O de Isaac, que prazer em não escrever Isaque, por Abraão e o de Ifigénia. Naqueles tempos as coisas eram bem mais sérias. A tarde espuma um sol esbranquiçado, preguiçoso, enquanto eu antecipo o altar que me espera, os artifícios dos sacerdotes e sacerdotisas de serviço e o próprio deus, perante o qual sou completamente ateu, a que eles votaram as suas vidas. Há escolhas que são tão eloquentes que nem vale e pena sublinhá-las. O melhor é não fazer juízos apressados, pois houve quem visse no carrasco um ser sagrado, a pedra angular sobre a qual se constrói o edifício social. Hoje estou com uma tendência desmedida para o enigma, mas tudo no mundo é enigma, a começar por esta chávena por onde bebo o café e a acabar no facto cru de haver tardes, noites e manhãs. Respiro fundo e só espero que chegada a hora, em plena liturgia, não me dê o sono. Ando a dormir pouco e mal.

domingo, 8 de março de 2020

Um treino para o futuro

Realizo com método e sem prazer um conjunto de tarefas que tem por finalidade coisa nenhuma. Conheço muita gente que faz coisas úteis, mesmo que isso não lhe dê um especial prazer. Eu especializei-me em inutilidades. A inutilidade tem uma estratégia insidiosa para impor a sua natureza despótica. Durante muito tempo ela traveste-se, mostra-se como um farol que iluminará o bem. Quando o incauto, neste caso eu, dá por isso, está enrolado de pés e mãos e já passou há muito o tempo em que poderia ter-se posto a grande distância. A partir daí terá de sofrer, e isto não é uma hipérbole, os desvarios das coisas inúteis, o poder infinito dos produtores de irracionalidades, das imaginações transbordantes com que conseguem apresentar as maiores idiotices como sinal de razoabilidade. Alturas há em que chego a apreciar este meu destino, o treino que me dá lidar com a insensatez. Tenho esperança que no futuro me seja de grande préstimo, quando a idade, se a ela chegar, me trouxer a demência ou coisa semelhante. Terei paciência para mim, serei condescendente com os esquecimentos, a troca de nomes, as frases truncadas, até com os risos idiotas que haverei de ter sobre coisas que não têm graça nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas, é o que penso quando me deixo invadir pela cultura ao gosto popular. Dá-me uma realidade insensata para que eu aprenda a viver com a insensatez que me espera. O domingo está cinzento e preciso de sair, mas muitas são as coisas idiotas que me retêm.

sábado, 7 de março de 2020

Mistérios da botânica

Acordei muito cedo. Pus-me a ler e tornei a adormecer. Não é que Chesterton me dê sono, mas dormira muito pouco. Quando dei por mim a manhã tinha entrado na idade madura, com uma luz quente e uma temperatura sensata. Lembrei-me que ainda há uns meses o pequeno almoço começava ritualmente, sem qualquer expectativa terapêutica e apenas por puro prazer, com um copo de sumo de toranja. Entre esta e um medicamento que tenho de tomar existe uma incompatibilidade tal que não podem coexistir no meu pobre organismo. Durante muito tempo, pus de lado o medicamento. Agora rendi-me à realidade, que é sempre mais perversa do que deveria ser. Antes de tomar o pequeno almoço dei uma volta pela casa para abrir janelas. De todas as coisas teóricas que me interessaram, a botânica não foi uma delas. E entre as poucas coisas práticas que me solicitaram o desejo, não consta a jardinagem. A verdade, porém, é que nunca deixo de contemplar o friso das orquídeas e o pequeno mistério que lá habita. O friso dar orquídeas é uma hipérbole para designar o parapeito de uma janela onde habitam dez exemplares desta espécie. Estão a florescer. O mistério é o da orquídea branca que chegou aqui nos finais de Março do ano passado com as flores abertas. Enquanto as suas novas vizinhas entregavam a beleza ao criador e hibernavam, ela manteve-se florida até hoje e, conforme pude constatar, promete continuar. Durante os meses de Outono e Inverno foi incansável, oferecendo o imaculado da sua brancura como uma bandeira para apaziguar os espíritos. Quando a olho imagino que será um anjo cansado de voar e que tomou a forma de uma planta. Os anjos são capazes de tudo, embora também angelologia não seja uma das áreas a que tenha dedicado atenção, o que não me permite ter a certeza se entre as hierarquias angélicas existirá alguma cujos membros se possam transformar em orquídea. O sábado já passou pelo portal do meio-dia. A minha consciência olha-me acusadora e pergunta-me por que razão não dei atenção à botânica nem ao estudo dos anjos. Olhei-a nos olhos e fiz-lhe um gesto que por decoro me abstenho de descrever.

sexta-feira, 6 de março de 2020

As memórias inúteis

Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos, como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos, crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Tendência para a dissipação

Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou. Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes resistir. Haverá alguém que leia O Prato d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.

quarta-feira, 4 de março de 2020

O verbo reunir

Olho para a minha agenda, uma agenda imaginária, claro, e sou assaltado por uma pergunta. Que mistério haverá no verbo reunir para que ele exerça sobre tantos tão poderosa atracção? Vou a um dicionário, olho o verbo bem nos olhos, perscruto-lhe a intimidade e começo a vislumbrar aquilo que nele há de tão poderoso. Exprime uma nostalgia e uma recusa. Imaginemos a expressão toca a reunir. Nela há uma urgência na recusa do estado de dispersão. Haverá medo de que dispersos, perdidos na singularidade, não consigamos resistir a não se sabe bem o quê. E é aqui que nasce a nostalgia desse tempo mítico em estávamos todos unidos. As instituições estão cheias de reuniões porque muitos daqueles que as ordenam são pessoas nostálgicas e medrosas. Não suportam a solidão do estado de dispersão, desejam ardentemente voltar ao estado arcaico que habita a sua imaginação. Tudo isto para dizer que tenho duas reuniões para me ocuparem a tarde, sem que lhes vislumbre a necessidade, a não ser para aqueles que têm medo da solidão. Uma motorizada ronca pelas ruas aqui à volta. O ruído da maquineta é inversamente proporcional à inteligência de quem a conduz. Depois imagino que também ele terá pressa para se reunir. Os pássaros meus vizinhos parecem corroborar a minha ideia, mas logo abandonam o assunto para se entregar a uma conversa sobre os planos de voo. Também eles precisam de acertar detalhes, tomar decisões, fazer escolhas. Calaram-se agora, sinal que tudo está resolvido.

terça-feira, 3 de março de 2020

A insurgência contra a voz

O céu sobre o hospital parece chumbo, tão carregadas estão as nuvens. Tenho alguns assuntos pouco entusiasmantes para resolver, mas folheio um livro de memórias de Elias Canetti, O Archote no Ouvido – História de Uma Vida. Leio umas frases aqui, outras ali, saltitando com inconstância, enquanto vou espreitando os meteoros. Já ninguém emprega esta palavra para designar o que acontece na atmosfera. A terceira parte do livro, que trata da vida do autor em Viena entre 1926 e 1928, tem um título extraordinário, A Escola do Ouvir. Será, por certo, uma metáfora, mas representa um modo de existência. Aprender a ouvir e aprender ouvindo são a mais profunda forma de aprender a viver. Só a voz toca as cordas do coração e abre caminhos insuspeitos, muitos dos quais se manterão secretos até que, por um qualquer acidente de percurso, eles se revelem, com o que têm de benfazejo. Hoje ninguém quer aprender a ouvir. Não se suporta escutar uma voz. As crianças não devem aprender ouvindo, diz-se, mas devem fazer, experimentar, como se estivessem todas condenadas à fabricação. O que me impressiona é o medo que se tem de saber escutar. Esse medo nasce da recusa da voz. Os filhos não escutam a voz dos pais. Os alunos recusam a voz dos professores. Temem que essas vozes não sejam as do futuro ou não foram educados a suportar o imenso peso do passado que uma voz traz em si. Não é por acaso que um certo livro do Novo Testamento começa dizendo que no princípio era o Verbo. No início está a voz que profere a palavra. A insurgência contra a voz, a recusa da escola do ouvir, não representa progresso algum, mas a perda da nossa humanidade, que está toda ela nessa voz que faz ouvir e que se escuta. Hoje cheguei à tarde envolvido num pathos metafísico, o mais sensato será ir comer chocolate.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Uma tarde na vida de um pobre mortal

A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas, entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala, sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir. Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório, sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera, como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me, imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse, respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.

domingo, 1 de março de 2020

Cultivar um jardim

Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois, com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade. Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul Han com o belo nome de Louvor da Terra. Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me responda.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

A verdade numa app

Acordei com a chuva a tamborilar nas janelas, mas como me converti ao pechisbeque tecnológico do mundo pós-moderno em que vivo fui verificar na aplicação do telemóvel se era verdade. Era-o. De facto, a água caía mesmo aqui, na freguesia em que vivo. Fiquei descansado, pois nem a natureza se atreve a desmentir aquilo que a técnica diz estar a ocorrer. Fora eu dado a meditações filosóficas e haveria motivo para longas argumentações sobre o estatuto da verdade nos nossos dias. É verdade aquilo que uma aplicação informática, chamam-lhe app, diz que o é. Vale-me a mim e aos que têm a infelicidade de me ler que não sou dado a tais pensamentos. Se me ocorrem, desvio logo os olhos e fico a ver a paisagem, as nuvens no céu, o sol a brilhar nas superfícies molhadas, a mulher de curvas recortadas que arrasta com vagar um guarda-chuva sobre a passadeira, enquanto os carros param com cerimónia e os condutores olham quem, tão exposto ao desejo dos seus olhos, assim passa sem pressa. Ao escrever isto assaltou-me uma inquietação. Será que ainda se podem dizer estas coisas? Farei eu parte de uma conjuração patriarcal? O melhor é também afastar estes pensamentos, pois o autor destas palavras proibiu-me tudo o que tivesse odor a política. Eu sou apenas um pobre narrador e sei qual é o meu lugar. Olho pela janela e vejo o sol a romper as nuvens e lançar os seus dardos – meu Deus, isto não é uma metáfora moribunda, mas um cadáver ambulante que trouxe para o texto – sobre as árvores incautas que dele não se sabem proteger. Será verdade, o que vejo? Pressuroso precipito-me para o telemóvel e sinto-me reconfortado pela app meteorológica confirmar que não é ilusão aquilo que os meus olhos observam. Fecho-os e neles logo passa a mulher de curvas recortadas que arrasta um guarda-chuva pela passadeira e maldigo-me por ainda não ter descarregado a aplicação que me confirme se ela vai mesmo pela passadeira.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Entre Uqbar e Pasárgada

Um ruído de canivetes afiados chega-me aos ouvidos. Bandos de crianças de um dos Jardins de Infância desembarcaram no parque, anunciando-me a aproximação do fim-de-semana. Admiro a coragem de quem se presta a passar o dia a receber alfinetadas nos tímpanos. Não sei como não enlouquece e não se torna em personagem de um dos quadros de Munch. Conto os minutos para que o ruído se evapore e possa respirar fundo, olhar com demora para um livro que descobri ontem e entrar no reino do silêncio. Tenho um pequeno ensaio para escrever. É tão pequeno que me esqueci dele e só me lembrei quando o fim do prazo de entrega fez soar o gongo anunciando as poucas horas que restam para que tudo fique consumado. As crianças continuam a gritar, chamam-se por nomes inverosímeis, o que abre no meu coração a porta para o que há de pior, a tentação de elaborar um estrito catálogo de nomes possíveis e torná-lo lei incondicional e com efeitos retroactivos. É em momentos destes que me lembro de uma passagem de Borges, em que este atribui a Casares a recordação de que um dos heresiarcas de Uqbar declarara espelhos e cópula como coisas abomináveis, pois ambos multiplicam o número de homens. Nunca deixei de admirar estes heresiarcas apócrifos e alturas houve, movido pelo cansaço que os espelhos provocam, em que pensei também eu tornar-me um grande heresiarca. O meu problema foi a hesitação. Comecei por um inventário de heresias, mas havia tantas e tão extraordinárias que nunca consegui decidir-me por nenhuma e, desse modo, falhei a vocação. Resta sonhar-me em Uqbar carregando no dorso a heresia que não escolhi ou, caso o dia esteja escuro, em Pasárgada, lá serei amigo do rei. Hoje estou demasiado sul-americano.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Caminhar dentro da realidade

Não tarda e caminharei por dentro da realidade. Esta combina estranhas características, um misto de rameira e de alcaiota, onde os ademanes de prostíbulo e as estratégias do alcovito se fundem entre urros selvagens e longos desesperos. Ali cultiva-se a ignorância e há que ter punho de ferro para sobreviver. Por vezes, há quem caia em combate. Consta que as enfermarias estão cheias de feridos de guerra, gente mutilada pelos cantos, uma visão preparatória para a entrada no Inferno, onde Dante e o seu mestre ainda nos esperam, contrariamente ao que consta por aí. Como é habitual, a minha propensão para a hipérbole não se conteve e deixei transparecer o cepticismo contumaz com que envolvo tudo que tenha a ver com a realidade, a humana para ser mais específico. Desaconselham-me a descrença nessa realidade, pois, afirmam, vivemos no melhor dos mundos possíveis, ou se ainda não o é para lá caminha a grande velocidade, aquela que nos leva para o futuro. Esquecem-se, porém, que o único futuro certo que temos é a morte, mas sobre esta o melhor é seguir a máxima wittgensteiniana sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar, o que contraria a inclinação natural para a logorreia de que sofro. Com tantas citações eruditas, não fora eu o que sou, há muito teria evitado a corveia da realidade.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Meditações em Quarta-Feira de Cinzas

Sic transit gloria mundi. Era assim que deveria começar este texto, mas recuso-me a fazê-lo. Sei que é Quarta-Feira de Cinzas, que estas são símbolo da transitoriedade humana e que o latim não iria mal com o dia de hoje. Há nele uma melancolia tal que sinto o coração a contrair-se. Esta tristeza veste muito bem os dias quaresmais que batem à porta. Não é que haja quem se entregue, nestes tempos, a jejuns hercúleos e abstinências rigorosas, mas é a própria Quaresma que empresta tonalidades entristecidas a um sol cúmplice e a uma luz de pouco ânimo. Salvo algumas excepções, espanto-me sempre com a falta de personagens nestes textos, como se o que é humano não devesse ser o motivo de quem narra. É preciso talento para falar de pessoas, dar-lhes vida, avigorá-las com acções, excitá-las com desejos e instigá-las com objectivos a perseguir ou apoucá-las com o peso da decepção. O meu talento, porém, viveu sempre de longos jejuns e árduas abstinências e por isso escrevo coisas que não interessam a ninguém. Por exemplo, John Locke pensava que as palavras são sinais sensíveis das nossas ideias. O que falta explicar é como me ocorrem tantas palavras sem que na minha mente haja uma ideia. Para mim, palavras são peças de Lego que vou encaixando umas nas outras. É verdade que nunca consigo fazer uma casa, um carro ou um helicóptero, mas gosto de as ver arrumadas da esquerda para a direita e de cima para baixo. Essa ordem tranquiliza-me, como se fosse um escudo contra o transitório que há em tudo o que existe. Não é, mas não deixa de ser virtuoso mentir a si mesmo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Manteiga de arsénio

Acordei com uma sensação de irritação na garganta, um pré-aviso de faringite, e o primeiro pensamento foi onde está o Strepfen. Não devia fazer publicidade gratuita à indústria farmacêutica, mas não há ninguém que, ao acordar envinagrado, pense onde está a solução para pulverização bucal de flurbiprofeno. O comércio com as suas marcas é muito mais entusiasmante do que a química, a qual desde a reforma da nomenclatura feita por Lavoisier, Bertholet, Fourcroy e Morveau – são legião as coisas inúteis que eu sei – perdeu a natureza poética que animava o mundo governado pela teoria do flogisto e onde existiam coisas tão espantosas como fígado de antimónio, sal da sabedoria, flor de bismuto, isto para não falar no açafrão de Marte e na manteiga de arsénio, a qual deveria ter excelente utilidade em casos desesperados, e que hoje em dia, se vi bem, é conhecida pela designação despoética de tricloreto de arsénio. Acordar assim no dia de Carnaval não é um bom sintoma e não sei a quem culpar se à minha faringe se ao Lavoisier. Durante a noite, e num momento de insónia, o senhor Chesterton, do qual estive a ler umas páginas para tentar chamar o sono, recordou-me uma verdade central da existência. Tudo o que é extraordinário depende de um veto, de uma proibição, por norma destituída de sentido. Lembrei-me de imediato de Adão e Eva e da sua extraordinária existência paradisíaca presa pelo veto de comerem o fruto de uma árvore. Se o leitor, porém, for um nietzschiano empedernido ou um cultor da supremacia ariana e achar que isso são coisas de uma cultura judaico-cristã decadente, recordo-lhe que também a felicidade de Orfeu dependia da estranha proibição de olhar para Eurídice enquanto se afastavam do país dos mortos. Num mundo em que já não há fígado de antimónio nem flor de bismuto, o sal da sabedoria é descobrir qual a proibição que vela pela sua felicidade e o mais sensato é não comer maçãs ou olhar para trás, não vá lá estar a Eurídice que se perderá para sempre.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Outros carnavais

Nestes dias ainda não avistei por aqui foliões a imaginar que estão no Carnaval. Anda tudo muito circunspecto. Se deixar a memória fluir, hei-de lembrar-me de que no tempo de criança, na escola primária, talvez antes, ter-me-iam comprado uma caraça – havia as de pasta de papel e as de plástico – uma pistola de água, as inevitáveis serpentinas e os estalinhos, não sei se por outros lados teriam outro nome. Nada disto entrava na escola e os professores daquele tempo, com os seus fatos escuros e gravatas sombrias, eram gente séria e pouco dada à volatilidade do corso, prontos a manejar uma régua com que imaginavam civilizar uma turba de selvagens. Mascaradas e outros devaneios conflituavam com a santidade do que havia para aprender. Mesmo em casa, as bombinhas de mau cheiro não faziam parte do permissível e os sacos de confettis, vá lá saber-se o motivo, também não. Não seria um Carnaval inebriante, mas na altura tudo aquilo pertencia a uma ordem inquestionada do mundo, que se aceitava porque era assim, mesmo os selvagens actos civilizacionais de professores austeros. As pistolas de água nem sempre davam ocasião a situações amistosas e as serpentinas nunca deixaram de ser uma decepção. Lançadas, era impossível recolhê-las para as tornar a lançar. Serviam apenas para juncar o chão de papel colorido e ficar a olhar para aquilo sem entusiasmo, não percebendo na altura a lição que havia nelas sobre a irreversibilidade de tudo o que acontece. Na verdade, aprendiam-se muitas coisas, talvez as mais importantes, sem saber que se aprendiam e nisso havia uma inteligência profunda que foi vendida ao desbarato nalguma feira da ladra.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Meditações em Domingo Gordo

Ganha-se má fama e pouco há a fazer. Depois de ter ouvido a irmã dizer mil vezes que têm de levar as raquetes de badminton para jogarem comigo, a minha neta mais velha, cansada da iteração, respondeu que não achava isso grande ideia, pois a última vez que o avô jogou com elas deu cabo das costas. Entrar na adolescência é abrir a porta da blasfémia, foi o que me ocorreu quando soube do comentário impiedoso acerca da minha condição atlética. Dei indicação estrita para não se esquecerem das raquetes. Se ficar sem me mexer, paciência. Está um domingo gordo, cheio de sol, os insectos que o inverno tinha adormecido despertam e enchem o ar de zumbidos. Tenho dias em que a verve descamba para o regionalismo, para pintar paisagens bucólicas, por onde caminho à beira do rio, a vida a florescer à minha volta, os pássaros a cantar. Ser provinciano é um exercício trabalhoso, onde há que adoçar as vísceras, conter ideias que possam atravessar a mente como um relâmpago e desabarem no mundo como um trovão. Duas comparações seguidas não são bom augúrio para o meu destino de autor. Há tempos comprei duas obras da Sarah Beirão. Falo a sério. Amores no Campo e Serões da Beira. Numa deles, a autora escreve: Amavam-se enternecidamente. E fico aqui na minha província, diferente da dela, sentado à secretária, a olhar para aquele amor terno, à antiga, como de imediato se esclarece. Um daqueles amores de almas enlaçadas, a vibrar nas mesmas emoções, uma cornucópia de olhares e desejos que hão-de traduzir-se em muitos filhos, ou não, pois nunca li o conto. Um dos livros traz, no interior, uma assinatura e o ano de 1942 e, mais abaixo, uma dedicatória e a data de 16-XI-59. A vida tem destas coisas. Alguém, uma mãe, compra o livro ainda a segunda guerra mundial estava a meio, oferece-o à filha e ao genro, ou ao filho e à nora, mesmo antes de se chegar aos gloriosos anos sessenta e agora jaz à minha frente, depois de ter sido vendido a um alfarrabista. O que tem isto a ver com o badminton? Nada, mas a vida é feita de coisas que não têm nada a ver umas com as outras.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Nostalgias incompreensíveis

Hesito sempre entre o antes e o depois, não sei qual das personagens me desagrada menos, embora pareçam muito distantes e diferentes. Não estou a falar de literatura. Hoje hipotequei a manhã num corte de cabelo. Antes de o cortar talvez parecesse um velho intelectual da rive gauche. Agora, já que corto sempre o cabelo curto, talvez pareça um velho militar na reforma. Não me desagrada o ar marcial. Há uns anos, por motivos fortuitos que não vêm ao caso, cortei rente o cabelo. Gostei da sensação. Há em mim nostalgias incompreensíveis, saudades de coisas que nunca experimentei. Umas vezes, penso que deveria ter sido monge cartuxo ou trapista. Ponho-me a imaginar a vida disciplinada, a prática do sacrifício, as horas de oração, a dádiva total à vontade divina. Outras vejo-me como militar, o serviço prestado à comunidade, a dádiva no campo de batalha. Talvez haja em mim uma inclinação trágica para o sacrifício. A verdade, contudo, é que sou um filho de Adão e tão volúvel como este, que logo se deixa levar pelo sorriso de Eva e vende o paraíso pela primeira quimera que lhe oferecem. Cheguei cedo a este sábado. Já não sou o mesmo que era quando saí da cama. Não lerei o Le Monde nem o Libération, sentado numa esplanada. Olho-me ao espelho e vejo nele o militar que não fui. Há pouco, quando escrevi que não estava a falar de literatura, menti.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Dias difíceis

Enquanto escrevo, um programa de optimização do computador exerce laborioso a sua função. Talvez não devesse estar a escrever enquanto ele luta com denodo contra a corrupção da máquina e faz o que pode para a manter à tona de água. Invejo os computadores. Como eu desejaria poder correr em mim um software que me optimizasse. Não haveria erros de registo, nem de atalhos. Acabaria com os problemas de privacidade, as ameaças de spyware e o desempenho, esse elevar-se-ia à estratosfera. Infelizmente, não há um programa desses que me livre de tudo aquilo que me corrompe as vísceras, infecta a alma e apodrece o espírito. É neste estado que enfrento a entrada numa das épocas mais melancólicas do ano. Só de me lembrar daqueles carnavais portugueses, com as raparigas quase despidas, a fingir que são brasileiras e que trazem o samba à flor da pele, dá-me vontade de chorar. Depois, oiço palavras como foliões e nesse delicado momento a minha vontade de invadir a Bélgica ou mesmo a Polónia é desmedida. Vão ser tempos difíceis. Os dias estão cada vez maiores e o sol mais quente. Olho para a paisagem e só vejo primaveras e qualquer coisa em mim fica apreensiva. A Primavera é um embuste da natureza para nos enfiar à socapa nos matagais ínferos do Verão. O baloiço lá em baixo range e eu vou rangendo com ele. Hoje devia recomeçar as caminhadas. Aliás, devia recomeçar muitas coisas e não tenho tempo para tanto recomeço, o melhor é procrastinar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O caos avança

A quinta-feira passou a fronteira que separa a manhã da tarde, vai a trote, sem impaciência. Ao nomear o dia lembrei-me de um romance de Chesterton lido há muito, O Homem que Era Quinta-Feira. A história metia anarquistas, polícias e espiões infiltrados, acabando por tudo se confundir. É o que acontece na vida não romanesca. Tudo se confunde. Porventura, eu deveria ser mais honesto e dizer tudo se me confunde ou confundo-me com tudo. Imagino que quando se é recém-nascido a mente seja povoada por um caos e que, paulatinamente, se vai organizando até se tornar um cosmos límpido e quase aprazível, como aquele que Descartes exibia quando tinha por habitantes da sua mente as evidências, tão claras e tão distintas, que ofuscariam um sol como o de hoje. Eu, confesso, nunca tive muitas evidências, embora viva num mundo onde não há cão nem gato que não as exija . Seja como for, eu sei que é quinta-feira porque o calendário assim o diz ou talvez me tenha lembrado do romance do Chesterton e feito a dedução, aliás brilhante, que se segue: hoje lembrei-me do romance O Homem que Era Quinta-Feira, logo hoje só pode ser quinta-feira. Como se vê, existem já evidências do meu estado de confusão mental, em que confundo a objectividade do calendário com a subjectividade da memória. Espero que amanhã, por contiguidade metonímica ou por mera associação, me lembre do Robinson Crusoe e acerte no dia da semana. Com o avançar da tarde a confusão só pode aumentar. Quando a noite cair, o caos mental será tão grande que talvez já nem saiba o meu nome, se é que terei algum nessa altura.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A quarta-feira escorrega

Enfastiado, deixo a quarta-feira escorregar por mim. Não sei o que fazer com ela, embora saiba o que fazer nela. Tenho muito para ler, mas não é literatura que me desvaneça. Cansar-me-á os olhos. Haverá de me fazer sorrir, outras vezes bocejar. Do parque infantil, chega-me o ranger das roldanas. Não fora o ruído e quase acharia um tom poético na aliteração. Isto aqui, porém, é prosa e manda a correcção do estilo evitar repetições sonoras, mas elas insistem, desabam no texto, caminham por ele e deixam uma pegada que ninguém apagará. Uma mãe chama uma filha, um aspirador sorve a poeira num apartamento vizinho, o ar fresco entra-me pela janela, enquanto os meus olhos saltam para a paisagem em frente. O pequeno bosque ergue-se como uma barreira verde que começa a ocultar-me o mundo. É uma tapada de árvores uniformes, de onde se exceptuam alguns cedros, que deram em esgalgar e querem confundir-se com marcos miliários, pelos quais os anjos hão-de contar as milhas que percorrem nessa estéril tentativa de proteger os homens de si mesmos. O aspirador calou-se. Não tarda e o grupo musical da escola vizinha há-de vir animar a tarde, com as suas canções de baile de província. Ocorre-me que ande a ensaiar para o baile da pinhata ou para alguma verbena. O telemóvel informa-me que o antivírus está a olhar por mim. Inclino a cabeça em sinal de gratidão e penso que sempre existem anjos. A minha operadora de comunicações, purificando-se pela caridade, insiste em oferecer-me coisas, como se tivesse urgência em ganhar o céu. O inferno são os outros, mas isso é conversa de intelectual que não vem ao caso.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Escolher o pior

Devia ter-me dedicado ao comércio, trocar mercadorias por dinheiro. Comerciar é um exercício pacífico em que ambos os lados, os que compram e os que vendem, acabam por se sentir felizes e por isso cooperam, quase sempre com a bonomia e o trato civilizado que o interesse mútuo supõe. Há nessa civilidade fingimento e dissimulação? Claro, mas sem essas duas virtudes – pois virtudes são e virtuosos, os seus efeitos – o mundo seria um lugar nefasto e muito mais insuportável do que é. A minha natureza, porém, impediu-me a escolha sensata. Fui dotado de uma propensão para optar pelo pior. Não falo por falar. Escolhi dar de comer a quem não tem fome. Uma profissão de mérito, embora com pouca utilidade. Durante uns tempos ainda me apareciam famélicos, alguns mesmo subnutridos, a quem eu tinha o privilégio – coisa que não sabia na altura que o era – de alimentar. Depois, os enjoados e os enojados, que vomitam com facilidade, começaram a crescer em número e tornaram-se dominantes, mas foram já ultrapassados por aqueles que se recusam a abrir a boca. A colher vai e vem, enquanto eles indiferentes ostentam uma saciedade desarmante. Como seria empolgante esse mundo de letras e livranças, de cheques e numerário, com os seus almoços e jantares de negócios, uma pessoa rodeada de gente com apetite, sempre disposta a abrir a boca, sempre disponível para mais uma iguaria. Como é belo um balanço e terna a relação entre o deve e o haver. Escolhi, porém, dever tudo e não ter nada a haver. Quando começo a falar por enigmas, o melhor é desconfiar da minha sanidade mental.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Uma questão de fidelidade

Enterneço-me com pouco, afinal. Ao abrir a caixa do correio, encontrei uma carta da operadora de comunicações. Franzi o sobrolho, mas não a abri de imediato pois não tinha óculos à mão. Chegado a casa, com a visão devidamente aumentada, li a comunicação. Ofereciam-me um cheque de 150 euros para gastar na respectiva loja. Foi aqui que fiquei enternecido. Afinal, ainda há operadoras de comunicações boas e caridosas. Com a emoção a fazer vibrar as cordas do coração, fui ler as condições, pois até os santos mais caridosos têm as suas condições para a prática do bem. Eles são santos, não são, como Kant, adeptos do dever pelo dever. Havia algumas sem importância, mas uma exigia-me mais 24 meses de fidelidade à operadora. Apesar de enternecido, rasguei o cheque. Depois, olhando para os despojos, perguntei-me se o meu coração terá tanta capacidade em enternecer-se quanta em evitar fidelizações. Talvez ele não seja inclinado a pôr-se ao abrigo do pecado da infidelidade ou não esteja disposto a ser fiel por uns miseráveis 150 euros. Não quis aprofundar a questão, peguei nos papéis e fui colocá-los no caixote da reciclagem. Temo o dia em que receba um pequeno embrulho da operadora. Será um anel de noivado e um pedido de casamento pela Igreja.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Dramas dominicais

Num dos apartamentos contíguos, os habitantes esqueceram-se de baixar o volume das vozes. Por certo, não sabem onde deixaram o comando e pertencem a gerações que já não trazem botão para controlar o som. O tema da dissensão, se é que existe alguma, não o percebo, tão pouco consigo discriminar qualquer palavra no meio das ondas sonoras. Há apenas uma melodia exasperada, que me chega como um murmúrio amplificado, com algumas tonalidades rudes, talvez a memória genética do tempo em que o volume sonoro da voz era tido como manifestação de poder e exercício de autoridade. Porventura não será nada disto e eu esteja a pôr-me a adivinhar por manifesta falta de vontade de fazer aquilo que tenho para fazer. Escrito isto, a minha consciência pôs-se a ruminar insultos, mas conteve-se e perguntou se eu não sabia que hoje era domingo e aos domingos não há nada para fazer. Como o leitor pode perceber, tenho uma consciência velha, daquelas que cresceram no tempo em que não havia grandes superfícies comerciais e em que o domingo não se confundia com os dias úteis. As ondas encapeladas do mar sonoro que me atingiu há pouco serenaram. Faltou-lhes energia para se tornarem um tsunami. O prédio encerrou-se no seu habitual silêncio e daqui de casa chegam-me, quase sussurradas, umas frases imperativas sobre trabalhos de casa a fazer, seguidas de um silêncio comprometido. Uma tragédia, suponho. Os domingos são dias de imensas tragédias, basta serem a véspera de segunda-feira. Não serão tragédias, para falar com exactidão e evitar a minha inclinação para a hipérbole, mas pequenos dramas, onde se exprime uma revolta conformada com o que tem de ser. A culpa foi de quem congeminou a nossa expulsão do Éden. O grande programador divino, usando o fruto da sua presciência, poderia ter evitado esse bug no software com que nos dotou, mas preferiu que tivéssemos de enfrentar um mundo com dias úteis e dias inúteis. Ele lá terá as suas razões.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Deambulações num sabat de província

De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida. Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

S. Valentim

Por vezes sou brindado por certas iluminações. Não se pense que se trata de ficar exposto à acção de um qualquer holofote. Podia ser, mas não. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam insight. Não sei como, mas acontece-me, muitas vezes depois de uma refeição, ter um insight. Há quem sugira que o álcool pode ajudar. Não o creio e devemos evitar dar ouvidos à ironia de vozes que não sabem calar-se. Ao sentar-me passei os olhos pela imprensa, observei o estado do mundo e uma luz acendeu-se em mim. A vida em sociedade é uma enorme manta de irracionalidades. O fundamental é que alguém saiba dirigi-las de maneira a que se anulem entre si. Julgo que seria a este trabalho de maestro e tecelão que se dava o nome arte política. Não é um brilhante insight, mas como se sabe também as lâmpadas têm potências diferentes, iluminando umas mais e outras menos. A minha serve apenas para luz de presença. Respiro fundo, depois faço uma longa expiração, enquanto tapo os ouvidos. O parque infantil foi invadido por bandos de crianças com as suas vozes de estilete. Faltam ainda algumas horas para que chegue o fim-de-semana. A pátria dorme uma sesta desconsolada, enquanto os seus filhos dilectos comemoram o dia de S. Valentim, essa antiquíssima tradição que uniu os corações de Pedro e Inês e pela qual D. Sebastião se perdeu em Alcácer-Quibir. Se não acreditam, não esperem de mim a luz que vos convença da verdade. O que me aborrece mesmo é não poder ir jantar fora sossegado, tão ocupados estão os restaurantes com os Pedros e as Ineses, elas tão puras e castas e eles tão firmes e pétreos.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Do cantabile ao adagio

Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio. Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da madrugada. Também eu caminho do cantabile para o adagio. Ah, o relatório, digo e bocejo.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Não haveria paciência

Na praceta, extraviado da escola ou do centro de línguas, um grupo de adolescentes urra. O desarranjo hormonal manifesta-se das formas mais inusitadas. As hormonas compor-se-ão lá mais para diante e os proprietários haverão de se comportar como se fossem normais. É preciso não deixar cair por terra o princípio de esperança. Tenho de limpar as lentes dos óculos, pois a realidade parece-me turva. Lá fora, o dia está cinzento e isto fez-me lembrar os tempos em que era existencialista, lia Sartre e Camus, e cultuava o Vergílio Ferreira como existencialista doméstico. Tudo era então náusea e absurdo. O mundo se não era feito de carvão bem negro, era-o de uma cinza escura, pegajosa e quase nojenta. Descobri mais tarde, sem alvoroço, que o existencialismo não era uma doença crónica e que se podia tratar, apesar de deixar algumas sequelas. Se fosse linguista e dado a reformador ortográfico, introduziria de imediato o trema e ficaria com seqüelas existenciais. Aliás, também ressuscitava todas as consoantes mudas que têm vindo a ser decapitadas desde o infausto ano de 1911. O destino, todavia, foi avisado e não me fadou para andar por aí a endireitar os tortos ortográficos. Talvez por isso tenha caído no caldeirão existencialista. Nunca se sabe muito bem por que razão acontece aquilo que acontece. Consulto a agenda, franzo o sobrolho, arrumo o pano de limpar os óculos no estojo e penso que talvez haja alguma razão em quem diz que há em mim uma certa propensão para o autismo. Mastigo dois comprimidos Aero-Om. Se não me curam da terrível propensão, talvez impeçam um recidiva existencialista. Não haveria paciência.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Wilhelm Reich fora de horas

Pertenço a uma geração que nos verdes anos leu coisas inverosímeis. Ao escrever esta frase, como narrador obediente que me prezo de ser, não deixei de torcer o nariz, coisa que foi de imediato sentida pelo autor. Qual o problema? Olhei-o e a medo disse-lhe que havia vários problemas. Verdes anos e coisas inverosímeis estão longe de ser noções claramente definidas. Depois, acrescentei, eu não tive verdes anos nem li coisas inverosímeis. Sou apenas um ser virtual, nem sequer sou um ser de papel, como eram os narradores de antigamente. O autor olhou-me e perguntou-me se na juventude não tinha lido Wilhelm Reich. Por Deus, disse-lhe eu. Não, não li, nem Reich nem o que quer que seja. Eu não leio. Um narrador não é um leitor. Pois, disse-me ele já irritado, eu li. E não sei o que é mais inverosímil se ter lido Reich ou ter tido verdes anos. Encolhi os ombros, sem paciência para as revisões existenciais a que o autor se entrega. O dia está quente. Fevereiro parece querer arrancar-se à lânguida ciclicidade do ano e correr em direcção à Primavera. Não sei se há alguma ligação entre as memórias reichianas do autor e a anunciação da Primavera. Se há, o melhor é que ele olhe para idade que tem e perceba que os combates da juventude pouco têm a ver com a calma sensatez da idade madura. Excessivamente madura, diga-se. Na escola do lado, um vulto pisa lentamente a erva, senta-se debaixo de uma oliveira e recosta-se. Aposto que nunca ouviu falar em Wilhelm Reich e que o mais certo é que nunca há-de ouvir. Dele será o reino dos Céus.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A poética das análises laboratoriais

Recebido por correio electrónico, imprimo o relatório das análises que mais logo terei de mostrar ao médico. Está dividido por secções cujos nomes lembram a designação de disciplinas de um curso superior. Hematologia, Bioquímica I, Bioquímica II. Será que também aqui haverá precedências? Quem chumbar na Bioquímica I poderá fazer a Bioquímica II ou terá de repetir a I? Outra secção, porém, tem um nome menos amigável, Marcadores Tumorais. Esta não se parece com uma cadeira universitária, mas com um quadro onde se vai inscrevendo a evolução de um jogo de bilhar às três tabelas. Olho com condescendência para os resultados, verifico se eles se integram nos valores de referência. Por fim, tento descortinar o valor literário da informação. Vejo por ali vocábulos extraordinários. Eritrócitos, hemoglobina, hematócrito, leucócitos, eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. Isto para não falar da glicémia, da ureia, do colesterol e dos triglicéridos. São verdadeiras famílias, com as suas sagas, os seus amores e ódios, triunfos e desditas. O nosso organismo está cheio de histórias com personagens que nem sonhamos. Não admira a quantidade de escritores médicos. Têm a mente povoada de personagens com nomes destes, cuja acção determina a vida ou a morte do hospedeiro, a glória ou a tragédia do herói. A tarde nasceu enfastiada e o fastio que dela se desprende toma conta da atmosfera, envolve os transeuntes na avenida, repousa-se nos ramos do arvoredo. Aqui perto, caminham dois eritrócitos e três leucócitos. Falam em surdina, fazem planos, traçam mapas onde se inscreve a vida e a morte. Param perto de mim e um deles, o leucócito mais apessoado, pergunta-me se conheço a transaminase glutâmica oxalacética. Embaraçado, respondo que não, embora conheça a transaminase glutâmica piruvica, que deve ser prima. Se quiser falar com ela, não tem nada que enganar. Faz a rotunda, sai na terceira saída, é logo o primeiro prédio. No segundo direito.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

O espírito aos domingos

Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente repousa um livro que tem por subtítulo Um diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e, eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na verdade era sujeição ao ethos provinciano, onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória, podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Poupar os pormenores

Hoje ao abrir as janelas dei-me conta de que no friso das orquídeas persiste florida uma quase há um ano. Comprei-a em Março passado por razões que não vêm ao caso e já estava florida. Enquanto as outras foram perdendo as flores, ela atravessou impante a Primavera, fingiu que o Verão era coisa de somenos por aqui. Quando o Outono deu lugar ao Inverno, a queda de umas flores foi compensada pelo rebentamento de outras. E ali está ela pronta para chegar a Março. Ocorreu-me que tivesse sido enganado na florista e que não seja uma orquídea. Na realidade, não sou um Nero Wolfe. A minha vida não é desvendar crimes sentado à secretária e cultivar orquídeas. Também não tenho um cozinheiro à disposição e, por isso, já fui consultar a ementa de uma dessas casas que têm por função transformar pessoas como eu em cozinheiros improváveis. Se me perguntarem de quem é a responsabilidade do almoço, posso responder é minha. Evito os pormenores. A sabedoria da vida reside toda aí, no evitar os pormenores. Quanto mais pormenores se sabem, maior é a descrença na humanidade. Uma pessoa sensata tem por norma o imperativo categórico poupem-me os pormenores! Um pormenor delicioso é narrado em Walden Two, o romance de B. F. Skinner, o behaviorista. Frazier, enquanto aluno de licenciatura pegou num artigo do reitor da universidade, para usar um título à nossa medida, publicado numa revista, assinalou-lhe a vermelho os erros de ortografia, compôs-lhe a sintaxe e com recurso à simbolização lógica formalizou os argumentos, mostrando a sua não validade. Feito isto, enviou o artigo ao seu autor com a classificação de C. E qual foi a resposta do magnífico reitor, pergunta quem tenha a desventura de estar ler este texto. Não sei. B. F. Skinner, no romance, poupou-me o pormenor.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Acasos

O acaso tem um papel nas nossas vidas muito maior do que supomos. Mal escrevi a frase vi a que enredos ela poderia conduzir-me e hoje não estou para ardis nem para ciladas. Foi o acaso que me fez escutar uma canção que ouvia muito há mais de quarenta e cinco anos. Um poema de Rosalía de Castro musicado e cantado por um dos trovadores em voga na época. É uma bela canção, de uma tristeza comovente. Depois, pensei que nessa altura, com a idade que tinha, não deveria ouvir música daquela. A canção acabou, Rosalía voltou para a sua Galiza, onde nasceu sem que do registo de baptismo constasse o nome dos pais. Lembrei-me então que hoje, ao atravessar a cidade e enquanto me preparava para enfrentar as Erínias, ouvi na Antena 2 que era dia de aniversário de Juliette Greco. De imediato procurei uma das canções dela de que mais gosto, Déshabillez Moi (honni soit qui mal y pense) e achei que a tarde poderia ter acabado pior. Vou passar as próximas horas a ouvir cançonetas que não lembra ao diabo, enquanto a noite vai tricotando a sua agonia, à espera de um relâmpago que a salve de se precipitar na maresia da madrugada. Rosalía não chegou aos cinquenta anos, mas a Greco fez hoje noventa e três. Não sei se nisto haverá alguma mensagem cifrada ou se tudo não passa de um acaso.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Pensamentos alados

Leio um poema e nele vejo os preconceitos da autora, das mais importantes, o seu universo de anuências e recusas em forma de verso e sinto-me infeliz, pois, na minha cegueira poética, a procura da linguagem primordial exige que o poeta comece a despir-se dos conceitos e, de seguida, dos preconceitos. Esta frase já vai demasiado longa, reparo agora. Um anjo, mas não o que me guarda das tentações, interpela-me e, em modo de sarcasmo, pergunta-me se a poesia não tem direito a dizer coisas, se ela é apenas como o chilrear dos pássaros, uma ondulação sonora com requebros rítmicos. Vi logo que era um anjo comprometido socialmente e desejoso de transmitir uma mensagem. Depois, concedi que é assim mesmo que deve ser. Os anjos são mensageiros. Foi esse o papel que lhes foi destinado e, por isso, foram colocados abaixo dos homens e, acrescento eu, dos pássaros. Ando a ficar preocupado comigo. Parece que os meus cuidados existenciais se dividem entre a angelologia e a ornitologia. Seres alados, digamos assim, ocupam-me a mente e isso pode significar que também a habita o orgulhoso desejo de voar. Depois, estremeci só de pensar que poderia ser um Ícaro e que acabaria por ter o mar Egeu à minha espera. O mais sensato é ficar sentado e deixar a quem tem asas a tarefa de voltear pelos céus. O anjo com a sua conversa distraiu-me da crítica literária e isso não foi mau. De uma das janelas, sobrepondo-se a um bosque de cedros, ergue-se o hospital. As paredes brancas estão cinzentas. Batalhões de fungos invadiram-nas e o que era alvo e brilhava ao sol é agora uma cortina de cinza alquebrada pela tristeza. Devia parar com estas tiradas de um romantismo mais que serôdio. Não tarda e terei de almoçar. Espera-me uma tarde tão longa que entra pela noite fora.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Bach e Deus

Estava a ouvir a suite francesa nº 2 de Bach e, ainda a peça fluía pela Allemande, já o espírito se distraía perdido na pátria das coisas inúteis. Os pensamentos talvez sejam obra do acaso, tão inopinadamente irrompem para, como um exército inimigo, invadirem o território da atenção. Sem saber porquê, o argumento modal da existência de Deus requereu a minha atenção. Estranhei. Fiz um esforço para deixar de lado necessidades e possibilidades e acompanhar a música. O argumento não se calava. Seria a sua natureza estética, a beleza que há na simplicidade, que disputava a atenção, ocorreu-me. Fechei os olhos e deixei a música deslizar por mim e disse-me se é para aceitar uma prova da existência de Deus, o melhor é crer que a música de Bach é mais convincente que um qualquer argumento a priori. Depois ri-me. Pensamentos destes depois de almoço não se recomendam a ninguém. Levantei-me e olhei pela janela. Bach continuava a sair pelas velhas colunas e na rua o esbranquiçado das nuvens mesclava-se com o azul do céu. Uma nuvem mais densa escondia Deus que dormia embalado pela música que eu ouvia. Talvez os homens existam para que Deus possa através deles ouvir Bach. Mais que uma possibilidade, os homens seriam uma necessidade divina. Retorno à minha agenda onde colecciono, como se fosse num herbário, os recados que dou a mim mesmo, e escrevo: nunca ouvir Bach na digestão e evitar argumentos ontológicos quando se ouve música.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O canto dos pássaros

Os pássaros meus vizinhos poisam no parapeito de uma das janelas e conversam longamente. Não os vejo, mas oiço-os. Não há neles irritação e o diálogo flui ligeiro, com pausas e troca ordenada de locutores. Será o mundo das aves mais ordenado que o dos homens, foi a pergunta que se formou em mim. Soubesse eu música, tivesse talento para compositor e faria como Olivier Messiaen. Comporia um catálogo dos pássaros, para que na voz do piano se escutasse o canto de uma ave. O desejo maior, porém, seria de entender a sua fala, o vocabulário, a sintaxe os artifícios semânticos. Haverá por ali belas metáforas, metonímias inesperadas e chego a desconfiar que não são parcos no eufemismo. Na prosódia, não se furtam à anáfora e são cultores assíduos da assonância e da aliteração. Estes devaneios distraem-me e estou constantemente a trocar letras no teclado. Fico a olhar para os erros. Umas vezes, a palavra assim inventada quase merece vir à existência. Outras, observo o teclado para tentar perceber que conexão neuronal se desviou da regularidade e me tentou arrastar para o caos. Raramente fico elucidado e desisto. Da rua, vêm os gritos doridos de uma adolescência que não aprendeu a domar-se. Também um aspirador regurgita das entranhas um zunido infernal. Temos sempre um pequeno inferno à nossa mão. Agora silenciou-se. Talvez o canto dos pássaros volte e eu compreenda pela primeira vez uma frase.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Meditações de uma alma pura

Ocupam-me os dias coisas inúteis cuja finalidade é melhorar o mundo e as pessoas, mas que, por um capricho da natureza que escapa aos homens, têm o poder desmedido de tornar o mundo pior e as pessoas mais incapazes de lidar com ele. Abstenho-me de entrar pelos ínvios caminhos da política, os quais me estão proibidos, mas agradeço aos deuses a sua sabedoria, pois sempre que querem melhorar os homens, estes pioram, sempre que querem curar as coisas, estas adoecem. Se os deuses não fossem tão inteligentes talvez se deixassem dos seus infinitos planos de melhoria. Corriam, porém, o grave risco de o mundo e as gentes se tornarem um pouco melhores. O que seria desagradável. Com esta conversa toda, deve-me ter acontecido alguma coisa. Não é verdade. Há dias que qualquer um, mesmo um mero narrador incorpóreo, alma pura, tem de desabafar sobre o ínvio curso das coisas. É um costume antigo e venerando e, por isso mesmo, digno de apreço e reconhecimento como verdade. Lá fora, o sol ainda deve estar quente. Tinha pensado fazer uma caminhada após o almoço para digerir as maleitas da existência, mas temi que, como alma pura, não suportasse o calor. Se tivesse um boné para a cobrir, ainda me arriscava. Não posso esquecer-me de apontar na lista de compras um boné. Estão de volta os pássaros que o ano passado me acompanharam os dias. Cantam à minha janela como se estivessem num serão para trabalhadores promovido pela Fundação Nacional para Alegria no Trabalho. Mais dia menos dias, só quem tiver mais de setenta anos percebe alusões como esta. A minha alma sem corpo não está a funcionar lá muito bem. Talvez a devesse descontinuar e criar um modelo novo.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Contra o coração

Depois de tomar o pequeno-almoço fui acometido por um súbito estado meditativo. Isto não traz nada de bom, pensei. Um sol esplêndido cai sobre as ruas, as pessoas aspiram os primeiros aromas da Primavera, a natureza não desdenha de começar a despir os andrajos invernosos e de procurar nas lojas da moda alguma roupa para a estação que há-de vir. Deveria ir celebrar a vitória da luz, mas lembrei-me de imediato que não tardará muito e o Estio entrará de rompante pelos corpos, inundando-os de suor, roubando-lhes energia, fazendo-os sonhar com as ondas do oceano. Sentei-me e fui arrastado para o livro do deve e haver da vida. Diante de mim está um telemóvel novo, comprado há três semanas, mas que continua intocado como uma virgem. Ainda não tive coragem para ler as instruções. Sempre desconfiei de instruções e ainda mais de aparelhos que precisam de instruções. Estou a afastar-me do assunto. O balanço é pior do estava à espera. Uma vida erguida entre duas falácias. Quando se é novo, o coração anseia a novidade porque é novidade. Quando se é velho, o coração inconstante cultiva a tradição porque é tradição. Ocorre-me, então, que o coração deveria ocupar-se apenas em bombear com presteza o sangue e deixar-se de considerações para as quais não lhe foi concedida competência. O mal do coração é querer meter-se onde não é chamado, emitir opiniões, dar conselhos que não passam de palpites enviesados sobre o que deve ser. Se a humanidade não tivesse coração, melhor andaria o mundo. O sol com o seu fato domingueiro de provinciano chama-me. Vou? Não vou?

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Um problema de família

Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém, está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste criado ex nihilo. Contente com o latinório não se conteve e rematou ex nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.