terça-feira, 3 de abril de 2018

Dias assim


Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos. Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas, felizmente.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Abril


O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça chover. Abril é sempre um árduo exercício.

domingo, 1 de abril de 2018

Na rua


Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças, estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro, o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo se enrodilhou na ratoeira do silêncio.

sábado, 31 de março de 2018

Leituras


Não leio em cafés ou na praia. Por vezes, tento mas sou de imediato derrotado. Ainda pensei pegar no livro e ir sentar-me no café ao lado de casa. Espreitei pela janela e desisti. Um excesso de humanidade alegre e ruidosa, presa às suas ilusões e ao vazio que nos coube em sorte. Perderia outra vez. Sento-me à secretária e começo a ler O Fim dos Tempos Modernos. Hoje em dia, desconfio, ninguém lê Romano Guardini. O livro foi publicado em 1950 com o título Das Ende der Neuzeit. Leio a tradução francesa de 1953, tudo anterior ao meu nascimento, pensei. Não admira que já ninguém saiba sequer quem foi Guardini. Inclino-me para o livro, mas as metamorfoses do sol perturbam-me a leitura. Brilha e logo se esconde atrás de alguma nuvem, como se quisesse jogar às escondidas comigo ou cantar aleluias. Não quero. Fico a olhar ao longe, o hospital parece uma alma penada, tragado pelo bolor. Os cedros do pequeno bosque da escola em frente crescem vigorosos. Pena que não existam também ciprestes, concluí e peguei no livro.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Dia da paixão


Tive de ir fazer algumas compras. As pessoas embrulham-se nos afazeres que a necessidade impõe, gratas pelo feriado, indiferentes à razão que lhes permite estarem ali. Vejo gente conhecida há décadas, troco ironias e amabilidades, desejamo-nos boa Páscoa, submetidos ao império do hábito, e cada um segue o seu caminho. Chego à rua e o sol hesita entre esconder-se e brilhar, deixo-me levar pela a aragem e penso que não há metáfora que nos permita descrever aquilo que vemos nem metonímia que autorize um mortal a explicar a realidade. Os carros passam e nesta constatação está todo o meu saber e toda a minha cegueira. O dia desliza lentamente para dentro da cruz de um Cristo abandonado na prateleira do supermercado.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Livros


Fui comprar livros em papel, já não o fazia há algum tempo, rendido que estou, e há muito, às vantagens dos e-Readers. Não vou argumentar sobre questões de fé. Comprei dois livros da Agustina Bessa-Luís editados pela Relógio d’Água e três de poesia. Omito os autores. Saio com os livros num saco de plástico e deixo-me embalar pelo sol de Março, enquanto as pessoas passam apressadas em direcção ao grande fim-de-semana. Alguém me cumprimenta, trata-me pelo nome. Retribuo, mas não sei o nome da pessoa. Mascaro o esforço com um sorriso e desejamo-nos boa Páscoa. Um final feliz, pensei, não sabendo se me esqueci do nome ou se nunca o soube. É melhor não me preocupar. Sinto o sol a entranhar-se na pele, as sombras a crescer para tarde. Estou de passagem, ouvi-me dizer. Encolhi os ombros. Chega de banalidades. Tenho alguém à minha espera e apresso o passo ao atravessar a rua.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Tempo


As horas deslizam sorrateiras e cravam-se na garganta para nos sangrarem. Imagino então o sangue a deslizar, a empapar a roupa, enquanto olho para a rua e vejo um gato à beira do passeio. Hesita longamente e, depois, dá uma rápida corrida para o outro lado da avenida, enquanto um carro trava e eu vejo tudo isso, imaginando o sangue a pingar no soalho, os minutos a passar mais apressados que o gato. Se fosse possível libertarmo-nos do punhal do tempo, medito sem esperança, tudo teria sentido. Um carro passa apressado, buzina, e eu perco de vista o gato. É sempre assim, nunca deixamos de perder de vista aquilo que é mais importante. Talvez chova mais logo, penso ao olhar o céu cinzento.

terça-feira, 27 de março de 2018

Sol quaresmal


Hoje está um sol de Quaresma, pensei ao sair de casa. Um sol quaresmal, mas que coisa será essa? É um sol que brilha sem exuberância, que se derrama sobre os prédios com uma leve tristeza, que toca os espíritos fazendo lembrar umas vezes a solidão e outras a promessa de um grande acontecimento. A cidade não sai diminuída com este sol. Estacionei o carro ao lado da Igreja de S. Pedro. No pequeno percurso que tive de fazer a pé, tudo estava menos deprimente do que é habitual. Graças ao sol. Eu sei que estamos em tempo de ressurreição e que não devemos projectá-la na realidade, mas temos de ser compassivos. Sempre se pode imaginar que a velha vila, aquela que foi exuberante, há-de ressuscitar ou voltar numa manhã de nevoeiro. Não ressuscitará nem voltará, claro. As casas estão cansadas, as pessoas exaustas e o mundo tem mais que fazer do que satisfazer os desejos de quem, tocado pelo sol, se deixa arrastar pela melancolia que cobre as horas. Não haverá nenhum grande acontecimento. E isso pode não ser mau.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Sono


Se estou exausto, um dos meus sítios preferidos para adormecer é em frente ao computador. Chego, sento-me, ligo-o e olho para ali como se estivesse a ver alguma coisa. Não estou. Então, o sono vem sobre mim, a cabeça descai, o queixo choca com o peito. É provável que ressone. Se me babo ou não, isso é coisa a que pouparei o leitor. E a máquina, assim enjeitada, ali fica a trabalhar, com um zelo inexcedível e uma lógica perturbante. Se sonho, não sei. Sou um deficiente onírico, pois raramente me lembro de sonhar. Este pensamento alucinado tranquilizou-me. Seria muito desagradável sonhar uma coisa que entrasse em conflito com o que se passa no monitor. Quando acordo, dói-me o pescoço, mas não nos dói sempre alguma coisa? Umas vezes, um dedo, outras, o nariz, ou a alma ou alguma memória desabrida. Não foi para que nos doesse sempre alguma coisa que nascemos com o pecado original?

domingo, 25 de março de 2018

A glória do dia

Talvez por lhe ter sido roubada uma hora, sinto este domingo quase como uma promessa. Eu sei que não se deve viver de promessas, mas nem a passagem pela avenida marginal, onde, hesitante, a feira de velharias atrai curiosos enfadados, nem a romagem ao sítio onde se arrasta moribunda a feira de Março conseguiram deitar cinza e luto sobre o meu ânimo. É verdade que as pessoas passeiam com o mesmo ar desolado que ostentam nos outros domingos. Um homem caminha apressado, enquanto, em desespero, tenta com um pente pôr ordem no cabelo. Um pai solitário arrasta os filhos em direcção ao carrossel. Um anúncio de farturas mistura-se com a música estridente de todas as feiras destes país. Nada disso, porém, entenebrece o dia e a sua glória. A segunda-feira será menos dolorosa, creio.

sábado, 24 de março de 2018

Visita de estudo


Passei o dia em visita guiada a Tomar. Quase me tornei templário, e isso só não aconteceu porque não havia quem me armasse cavaleiro. Assuntos de cavalaria são coisas sérias e obedecem a regras estritas, e eu não sou de infringir regras, e não ostento títulos no currículo que não me tenham sido autenticamente outorgados. O tempo estava borrascoso, uma frialdade das antigas, uma chuva fria e impertinente, ventos desabridos, como se Éolo quisesse tirar vingança e abrisse a caixa para punir algum dos viajantes, talvez a mim. Antes a caixa de Éolo do que a de Pandora, pensei e fiquei mais tranquilo. Entre claustros e igrejas, lá almocei numa taverna antiqua, onde também não descobri qualquer cavaleiro dotado com poderes suficientes para me fazer entrar na Ordem. Inconformado por não me ter sido dado o merecido acesso à Idade Média, exausto de góticos e manuelinos, lá vim para casa, onde, no conforto do lar, posso imaginar-me cavaleiro da Ordem do Templo, enquanto escrevo isto e oiço jazz. O que devia mesmo era ouvir canto gregoriano, disse de mim para mim. Talvez me fosse mais fácil ser monge beneditino do que cavaleiro de Cristo. Amanhã será outro dia, espero.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Castelos


Agora dou comigo a consultar, com mais frequência, a informação meteorológica. Estava olhar, de uma das janelas aqui de casa, para as muralhas do castelo. O céu cinzento escuro agradou-me. Pensei que este tempo é o verdadeiro tempo de Quaresma e vim ao computador para saber como estará o humor de S. Pedro na próxima semana. Parece que vai estar melhor do que devia, constatei não sem um trejeito de desagrado. O melhor é esquecer-me do tempo e voltar a olhar o velho castelo, agora que ele está limpo e asseado. Para dizer a verdade, gosto imenso de castelos e por isso sinto-me tocado por uma enorme piedade quando os vejo assim tão edulcorados, tão mortos, tão prontos para o postal turístico que ninguém há-de comprar.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Anoitecer


Arrefeceu. Ao início da tarde parecia que a Primavera tinha triunfado, mas com o declinar do dia uma súbita saudade do Inverno tomou conta das ruas. As pessoas encolhem-se um pouco como se isso servisse de esconjuro contra o frio e seguem os seus caminhos, como se nelas houvesse um propósito, uma causa final que as movesse e desse sentido à vida. Parei no passeio e deixei-me ficar a olhar o que se passa na avenida. As árvores ainda estão despidas, noto. A iluminação pública já invadiu a atmosfera e a noite, tecida de tafetá escuro, prepara-se para, gloriosa, cair sobre o dia moribundo. O melhor será ir para casa, pensei, enquanto alguém me acenava ao fundo e, de imediato, desaparecia devorado pela pobre penúria da escuridão. Uns adolescentes passam do outro lado rua como se tivessem toda a eternidade pela frente, riem alto e assustam um gato que, desconfiado, se esconde debaixo de um carro estacionado. É noite.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Estultícia


Há pouco, quando passei pela avenida marginal a caminho de casa, perguntei-me, agora que a Primavera se instalou segundo a ordem do calendário, quanto tempo faltará para essas horas de grande ilusão que são os dias dos castanheiros em flor. A palavra ilusão desencadeou em mim uma associação de ideias e fez-me retornar aos primeiros anos em que exerci, vindo da faculdade, a minha profissão. A ilusão, que eu não sabia que o era, residia em pensar que o ser professor me iria dar tempo para fazer longas e demoradas leituras. Nos primeiros anos – seriam os verdes anos profissionais – a ilusão não se desfez e eu ia partilhando com os meus alunos aquilo que ia descobrindo. Anos mais tarde descobri que isso era como o florescimento dos castanheiros na avenida. A ilusão de um instante. A partir de certa altura, ao fim de não sei quantas reformas, um professor quase está proibido de fazer leituras, pois as horas da semana são escassas para tudo o que tem de fazer na escola, para além de ensinar alunos. A forma como a vida escolar se foi organizando, durante a minha vida profissional – pensei, ao fazer a rotunda onde desagua o viaduto de Rio Frio –, parece ter como desígnio a estupidificação dos professores. Quando as árvores florescem a ilusão é magnífica, mas quando a flor cai a realidade mostra as trevas densas que nela habitam. Deveria ter lido Kafka com muito mais atenção. Ele bem me avisou, mas a minha estultícia foi mais forte.

terça-feira, 20 de março de 2018

Equinócio


Consta que ocorreu o equinócio da Primavera. Vi que o acontecimento se deu pelas 16 horas e 15 minutos, segundo informação do Observatório Astronómico de Lisboa. Não dei por nada, mas fiquei mais descansado. As coisas ainda não estão de tal modo que equinócios e solstícios – duas belíssimas palavras, diga-se – se tornem acontecimentos incertos. Quando saí do lugar onde me suportam para que eu possa ter um modo de vida, a cidade não me acolheu primaveril. Limitou-se a deslizar com indiferença pelo tempo, sem esperança nem desespero. E assim também eu passei por ela, sem a olhar nos olhos nem lhe escutar a respiração, para me vir aqui sentar e escrever coisas sem nexo, as únicas que nesta vida valem a pena ser escritas.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Dia do Pai


Há catorze anos ainda vivemos os dois – o meu pai e eu - este dia, mas ambos sabíamos que seria, muito provavelmente, o último Dia do Pai que partilharíamos. Fingimos que o não sabíamos e continuámos a nossa conversa. Era uma conversa como se tivéssemos a vida toda à frente. Em finais de Setembro, tudo ficou consumado, o que sabíamos que iria acontecer aconteceu. Mas aconteceu também outra coisa, a conversa não acabou. Ela continuou dentro de mim e, um dia, espero que continue nos meus filhos, pois trata-se de uma conversa infinita, aquela que liga um pai e um filho. E mesmo no momento em que escrevo isto a conversa continua, flui rapidamente. Eu sei tudo o que ele diria e ele sabe tudo o que tenho a dizer. Este mútuo conhecimento não anula a surpresa das nossas palavras, pelo contrário. É esse mútuo conhecimento que permite a contínua surpresa duma conversa sem fim.

domingo, 18 de março de 2018

Os difíceis domingos

Um casal discutia tão alto que não tive maneira de não saber a dolorosa questão que o animava. Ânimo e entusiasmo parecia não faltar a ambos. Na verdade, trivialidades que fazem da vida um drama sem fim ou que trazem à luz tragédias recalcadas, que aproveitam o trivial para simbolizar o terrível. Como não tinha à mão um comando a que pudesse recorrer para desligar o som, deixei-me arrastar para a memória de algumas cenas de filmes de Bergman, onde as pessoas dizem umas às outras coisas terríveis sem levantar a voz. Até para se dizer o terrível há boas e más maneiras. Não sei se os domingos são mais propícios para o desarranjo da felicidade conjugal. A perspectiva de mais vinte e quatro horas partilhadas momento a momento, depois das de sábado, talvez tenha um peso na propensão para o conflito. Amanhã, com as horas ocupadas pela profissão, tudo se tornará mais sensato. Penso, muitas vezes, que por detrás dessas felicidades que se arvoram publicamente há patologias tais que a única maneira de conviver com elas é criar um grande cenário de vida beata, cheio de corações, sorrisos abertos e fins felizes. Depois, chega a hora em que a boca já não consegue mimar o sorriso e a beatitude mostra o inferno. Talvez a ausência de chuva e de vento tenha serenado os espíritos ou talvez se tivessem cansado. Agora, o silêncio desliza num raio de luz e incendeia-se sobre pequena mata de cedros que avisto. É domingo.

sábado, 17 de março de 2018

Regresso a Ítaca


Muitas vezes, quando vou visitar a minha mãe, aproveito por passar por dentro da cidade. Faço-o como se tratasse de um regresso a casa. Não encontro nessa viagem de retorno os escolhos que Ulisses encontrou, no regresso de Tróia, para chegar a Ítaca. Por aqui não há ciclopes de um só olho nem se escuta o canto das sereias. Tudo se passa como sempre se passou, apenas o tempo cobriu cada coisa com o seu manto de poeira e não há quem esteja disponível para limpar o pó. Os conhecidos estão cada vez mais enrugados e os novos, quando se avistam, são escassos e parecem já envelhecidos, contaminados por uma nostalgia de não se sabe bem de quê. Talvez este tempo de Quaresma obrigue a um jejum de novidade e a antiga vila se prepara assim para o grande luto que antecede o domingo de Páscoa. Ao passar pela velha ponte do Raro espreito o rio. Corre exuberante. O castelo, sonolento, abre a boca das muralhas e boceja. A certa altura, na rua da Fábrica, corto à direita. O carro desliza devagar e eu espero ver-me ali, um pouco mais à frente, nos meus dez anos a jogar futebol em plena rua. Paro o carro e só há silêncio. Cheguei, mas eu não estou lá.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Iluminações


“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”. Assim começa Ovídio as suas Metamorfoses. Vê-se logo que entrei de fim-de-semana. Ora estas metamorfoses são coisas mais importantes do que se pensa. Veja-se o caso de Saulo de Tarso, agora conhecido por S. Paulo. Não fora a súbita metamorfose sofrida por ele na estrada de Damasco e hoje não haveria cristianismo ou, se houvesse, seria outra coisa, talvez menos preocupada com o sexo. Também eu, por vezes, sofro uma metamorfose, não tão dramática quanto a de Paulo, mas também não me ponho a caminho de Damasco. Limito-me a passar pelas ruas de Torres Novas. Durante décadas odiei, com determinação, favas. O cheiro deixava-me nauseado. Como em todos os ódios, também neste o que sobrava em fervor faltava em racionalidade. Há uns tempos, nem sei bem porquê nem aonde, tive uma metamorfose. Hoje foram, não sem grande prazer, o meu almoço. A cada um as suas iluminações.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Aguaceiros


Os dias incertos do final do Inverno repercutem-se na indecisão que alastra nos passos dos transeuntes. Não sabem se o seu caminho é o do sol ou se, daqui a instantes, a água derramar-se-á das nuvens como se a arca de Noé estivesse pronta e um dilúvio viesse purificar a terra da maldade humana. Caminho de chapéu de chuva na mão, mas espero que o sol me poupe a um aguaceiro. A cidade ronrona e furtiva escapa-se-me dos olhos. Passos por pessoas que cumprimento, mas não consigo já localizar o nome de algumas. A folhagem da memória é precária e caduca, torna-se pó com excessiva facilidade. À rua onde passo deram-lhe o nome da revolução, mas nela tudo é sossego e indiferença, uma ordem sem a cegueira delirante da exaltação. Por ali, apenas um tribunal, uma farmácia, mais acima, escolas. Nada que lembre a branca obscuridade do entusiasmo e da fantasia. Os dias são como a vida na província, passam devagar, mas o tempo, esse corre desalvorado e sem tino, ansioso a todos entregar, sem demora, à tranquilidade do ataúde. O melhor é abrir o chapéu, uns pingos grossos anunciam a bátega infernal que há-de vir.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Vontade


Chove. O vento inclina as copas das árvores, fá-las desenhar figuras bizarras, para depois as deixar sonâmbulas, muito aprumadas, ramos a apontar para o céu. Os campos de jogos da escola em frente estão cobertos por lençóis de água. Não se avista, da minha secretária, vivalma. Vejo as notícias – ah essa oração da manhã do homem moderno que ainda não dispenso – e deparo-me com o anúncio da morte de Stephen Hawking, o físico britânico. Fico a olhar para a rua e a pensar no que foi a sua vida. Na verdade, muitos dos problemas dos homens residem na vontade fraca. Ele que deveria ter morrido há quase meio século viveu em circunstâncias físicas excepcionalmente difíceis e é uma das grandes figuras do século XX e inícios do XXI. Sim, ele teria uma inteligência prodigiosa, mas sem uma vontade de ferro nunca o seu nome teria chegado a nós. Ao olhar os seus dados biográficos, descubro que escolheu bem os dias para nascer e morrer. Nasceu no dia em que, trezentos anos antes, morrera Galileu Galilei e morreu no dia em que, cento e trinta nove anos antes, nascera Albert Einstein. Para completar o quadro, pensei, só falta uma coincidência com Isaac Newton. A chuva rumoreja e o dia enovela-se numa cinza triste. Indiferentes a tudo isto, algumas oliveiras permanecem impávidas, como se soubessem de coisas que nunca imaginaremos.

terça-feira, 13 de março de 2018

Palavrões


Fui à farmácia comprar um medicamento que me há-de fazer bem à hipertensão arterial. Um exercício contumaz que evitará, presumo esperançoso, que a tensão se entregue ao devaneio da hipérbole. Animado pela perspectiva, saio e, em plena avenida, passa um bando de pré-adolescentes. Raparigas e, perdido entre elas, um rapaz. Talvez inconsolado pela sua solidão de género, desdobra-se, em altos berros, em palavrões. Em busca da masculinidade, pensei, ou talvez fique mais aliviado e esteja a prevenir alguma doença do fígado. As pessoas passavam, os homens sorridentes, as mulheres de orelhas moucas. Se tivesse a certeza de que uns palavrões eram, para a hipertensão, mais eficazes que um beta bloqueante, acho que também eu desatava a bradar avenida fora. Duvido, porém, da eficácia da metáfora e segui para casa.

segunda-feira, 12 de março de 2018

A repartição


Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo, num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado, tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.

domingo, 11 de março de 2018

Tagarelice


Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por transformar em tagarelice.

sábado, 10 de março de 2018

Sábados de província

Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Registo


Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a sexta-feira despeja na cinza da tarde.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Realidades


Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos, desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma redundância para fim de conversa.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Chuva fria


Depois de uma pequena cerimónia, saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.

terça-feira, 6 de março de 2018

Constrangimento


Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente, lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão constrangidos para mim, pensei.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Colégio de Santa Maria


Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza, um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões. Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens e o tecido inútil de tudo o que passou.

domingo, 4 de março de 2018

Leituras


A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada. Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor, sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.

sábado, 3 de março de 2018

Deveres


Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar, recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados versos Ai que prazer / Não cumprir um dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece. Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e, raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela, mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o tempo. Mais que isto, lembra o poeta, É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de ter os seus deveres.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Homofonias


É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?

quinta-feira, 1 de março de 2018

Conservação


Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as coisas.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Beco sem saída


Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Falar do tempo


Adiar o inadiável, pensei ao ver a chuva cair. Não tarda e a Primavera chega com o seu cortejo de ilusões, os corpos tomados por uma ânsia de Verão e eu, temeroso, sinto já a penumbra fumegante com que o calor me envolve e me lembra, com o estilete do acinte a enterrar-se nas veias, a finitude e a mortalidade que me constituem. Falar do tempo, penso, é aquilo que cabe a quem já não tem nada para dizer. Aos negócios humanos sou cada vez mais estranho e do resto nada sei. Quando não sou capaz de estar calado, sobra-me o tempo como motivo de conversa. Descrever os dias de chuva, os de sol e os que não são uma coisa nem outra. Ah se tivesse uma libertação para proclamar ou uma salvação para anunciar, tudo seria mais fácil. Nunca faltam adeptos, mas como verdade basta-me a chuva que cai, o sol que brilha, as nuvens que passam, a monotonia com que a noite se ergue do ventre entumecido do dia. Chove, não é mau.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Anjos


Só se ouve um piano, mas o título da peça é “Três anjos cantavam”. Os meus ouvidos não estão preparados para escutar as vozes dos anjos, pensei, enquanto deixava o espírito enovelar-se nos acordes musicais. Talvez o título seja uma metáfora ou uma falsa promessa. Promete vozes de anjos e escutamos um piano. Também a tarde de hoje é feita de falsas promessas, presumo. O céu cinzento anuncia chuva, mas ela recusa-se a cair. Olho para a rua e os transeuntes caminham despreocupados, presos aos seus sonhos, mãos vazias como se soubessem que a água prometida é uma conjectura sem sentido. Volto para a voz dos anjos e oiço as notas saídas do piano. Talvez essa voz não seja mais que o silêncio, esse silêncio que abre o corpo do homem ao segredo da música. Observo inquieto a rua e ainda não chove. Um anjo poisa no telhado em frente, quase se desequilibra. Recolhe as asas e canta.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Memória


Temos uma certa crença fundada em experiências antigas – por exemplo, o caminho que liga duas povoações e que foi percorrido inúmeras vezes nos anos setenta do século passado – e estamos certos dessa crença. A certa altura passa-se, dizemos ufanos a quem nos acompanha, por aqui e por ali. Depois, descobre-se que não se passa nem por aqui nem por ali e ficamos perplexos sem saber se já não se passa ou se nunca se passou. A memória é um poder estranho e pouco confiável. Quando pensamos que ela reproduz uma realidade vivida, ela logo nos mostra que a sua função é inventar vidas que nunca existiram, caminhos que nunca foram percorridos ou acontecimentos que nunca aconteceram. Ou talvez tudo isto seja uma história dominical, onde os caminhos do fim-de-semana não coincidem, por respeito ao ócio, com os dos dias úteis, subjugados que estão à corveia que a existência nos impõe.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Vida examinada


Os dias ensolarados de Fevereiro arrastam consigo a triste propensão de nos darem a pensar aquilo que deveríamos não trazer à memória. Algumas contabilidades esquivas têm tendência, se nos descuidamos, a colocar-nos perante o número de anos já vividos. O pior do exercício não será tanto a compreensão da cada vez mais próxima falência do projecto, com o encerramento definitivo da aventura. A falência é a contrapartida necessária e incondicional de as portas terem sido abertas. O pior é aquela linguagem cifrada em livro razão, balanço, deve e haver. Toda a vida é vista, então, como um acumular de entradas e saídas, a que o exercício esotérico da contabilidade parece ser chamado a examinar. Consta que Sócrates, o mestre de Platão, terá dito que uma vida não examinada não merecer ser vivida. E o anjo negro, aquele que também habita dentro de nós ao lado do anjo branco, pergunta: e uma vida examinada será que merece? O melhor é ir apanhar sol e ver se falta muito para os castanheiros da avenida florescerem.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Precaução


Não há pior tentação, pensei ao entrar no carro para me dirigir para casa, que a de tentar corrigir a natureza humana. Quando a ideia nos toma de assalto, a única coisa que devemos fazer é esperar com paciência que ela passe. O importante, meditei, não é melhorar a humanidade, mas precavermo-nos dela, mesmo – ou principalmente – se entre ela e nós não há qualquer diferença. O sol de sexta-feira tem sempre o condão de me fazer pensar sobre coisas em que não devia pensar.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Cegueira


Penso muitas vezes na inevitabilidade das coisas e na estranha cegueira que cai sobre os mortais. Não estou a falar daquilo que acontece necessariamente devido a uma lei qualquer da natureza. Refiro-me ao que poderia não acontecer – e que, muitas vezes, seria desejável que não acontecesse – mas que acabará por acontecer. Há um momento em que isso poderia ser evitado, mas a cegueira para o que pode vir é tanta que, quando tudo se torna manifesto, já é tarde para o evitar. Os que se riam da mera possibilidade são os primeiros a chorar, como se eles não fossem, por omissão, uma causa do estado lamentoso a que se chegou. Os deuses são travessos e raramente perdem oportunidade para se rirem das lágrimas dos homens.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Mortais


O tempo é faceto ou, talvez, volúvel. Ainda ontem prometia, sem pudor, o devir rápido de uma primavera temporã. Hoje, arrependido e tristonho, enovela-se em sombras, deixando vir uma luz equívoca que, dificilmente, alegrará o coração daqueles que, soturnos, vejo calcorrear a avenida. A tonalidade cinzenta da hora parece chumbo que os meus conterrâneos carregam sobre as suas costas. Cada um, pensei então, é uma encarnação do filho de Jápeto, o infeliz que foi condenado a suportar, em seus ombros, os céus. Não há como a mitologia para enquadrar as coisas da vida. O pior, ocorreu-me logo, é a impossibilidade de ver neles a sombra de velhos titãs conjurados contra um poder supremo. Sob a copa das árvores passam apenas mortais conciliados com o seu destino. Antes assim, conformei-me eu também.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Antevisões


Esta luz faz lembrar já os arpejos da Primavera, pensei. Logo, uma onda de calor desceu sobre mim numa antevisão do que virá. O problema todo está nesta maldita Idade de Ferro que nos foi dada a viver. Como o velho Ovídio explica – e outros antes dele – na primeira Idade, a de Ouro, a Primavera era eterna, mas tendo sido devorado esse tempo, com a passagem à Idade de Prata, as estações foram divididas e a Primavera, antes infindável, é agora breve e logo cede o seu reino ao tormentoso Estio. E com esta recordação os raios solares que descem sobre a avenida em vez de consolo são já uma ameaça tórrida a que ninguém, contudo, presta atenção, entregues que os homens estão à celebração da glória luminosa do sol. Recolho-me em casa e tento lembrar-me dessa outra pátria que haveria de ser a minha se a ordem do frio e do calor, da luz e da sombra coincidisse com o meu desejo. E em mim não há mapa onde a encontre nem voz que a sopre aos meus ouvidos.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Transformações


Devido a uns assuntos da profissão dei por mim a meditar sobre transformações. Como é que um adolescente de 15 anos entenderá a transformação de um princípio, máxima na linguagem de Kant, que determina subjetivamente o meu comportamento numa lei universal que haveria de ordenar a todos os homens, em situação semelhante, a comportarem-se daquela maneira? Penso muitas vezes que seria muito mais fácil ensinar-lhes o processo alquímico da transformação do chumbo em ouro do que tornar evidente que a única singularidade lícita é aquela que coincide com a universalidade. Aos 15 anos, tanto quanto me lembro, a singularidade é tão esplendorosa que nem se concebe que para além dela haja outra coisa, quanto mais uma universalidade na qual deverão coincidir todos os seres singulares, caso seja boa a sua vontade. Noutros tempos talvez se ensinassem coisas mais interessantes e não menos profundas. Por exemplo, explicar por que razão a filha de Mínias, Alcítoe, é ímpia ao negar a Júpiter a paternidade de Baco e, por isso mesmo, afirmar que este não merece os ritos mistéricos onde é cultuado. É então que, por impiedade para com o deus que me permite ganhar a vida, chego a pensar que os atenienses não estiveram mal em condenar Sócrates à morte por corromper a juventude. Havendo a paternidade de Baco para discutir ou a arte da transformação do chumbo em ouro para analisar, não será corromper a juventude querer que saibam que o mistério do comportamento moral reside todo nessa metamorfose do querer singular numa lei universal que há-de determinar todos os quereres?

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Envelhecer


Sentado ao balcão, o homem metia conversa com as mulheres que passavam. Elas, bastante mais novas, condescendiam em trocar umas palavras. É penoso envelhecer, pensei, enquanto ia almoçando apressado num canto do bar. A tarde entrava pela grande vidraça e caía ensolarada e impiedosa sobre as mesas. A Primavera aproxima-se, até um corpo gasto ainda sente o sobressalto, concluí. A boca do homem enrolava-se à procura de uma palavra, uma única que pudesse dizer a memória fugaz do desejo, daquele desejo que se desejaria ter. Quase senti vergonha de estar ali e de assistir à luta desigual do corpo gasto contra o tempo. Elas sorriam perante a banalidade, respondiam com outra e seguiam em direcção à porta, sem que ele esboçasse um protesto. Eram as regras do jogo, deduzi. A rua esperava-as e, na sua complacência, pressenti o medo que as habita, esse medo de chegar a hora em que faltam palavras para o desejo, em que este para se dizer gagueja e descobre as piores, aquelas em que nunca deve ser dito. É penoso envelhecer nestes dias de sol, em que a Primavera se anuncia e o deus anda solto e desamparado pelos campos.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

A seda da noite


As noites nem sempre são boas conselheiras. Envolvem-nos com a sua tecelagem de equívocos e enganos, arrastam-nos para a turbulência que habita o centro de toda a bonança, prendem-nos ao risível que nunca se cansa de aflorar no rosto, no nosso. Então vemos a vida a desfiar-se e raras são as vezes que gostamos daquilo que se vê. Talvez a noite tenha a virtude de tornar mais sombria a realidade e de deixar, na boca dos homens, uma trago amargo, o fel que o passar dos dias foi acumulando. Há pouco, num dos apartamentos aqui perto ouvia-se um bebé chorar. Agora, são uns saltos que golpeiam o chão de pedra e ressoam dentro do cansaço que há mim. Espreito pela janela e tudo parece imóvel. Ao longe ouve-se o frufru da seda da noite. Nada é eterno, talvez a mulher se tivesse descalçado e a criança adormecido. Pego num livro, mas sinto os olhos a picar.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-feira de cinzas


Chegou a quarta-feira. Cinzas derramam-se dos céus, arrastadas pela melancolia do sol, banhadas na água lustral de nuvens que passam devagar sobre os telhados da antiga vila. E quase sinto saudades daqueles tempos em que havia Quaresma com jejuns e proibições, uma árdua preparação para a ressurreição da carne. Volteio pela cidade de carro e penso que ela, na verdade, entrou há muito tempo na Quaresma e promete por lá ficar, sem que uma ressurreição se adivinhe no horizonte. É agora um lugar de melancolia. As pessoas, aquelas que vejo atarefadas e sombrias, atravessam-na com cuidado, assombradas por um espectro que não sabem identificar. Há muito que estas ruas e praças, que estas gentes, onde me incluo, entraram numa irremissível quarta-feira de cinzas.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Não saber


As árvores do passeio em frente foram podadas. Parecem agora mãos disformes erguidas aos céus e não sei se elas se abrem numa súplica ou se mostram as garras afiadas em ameaça. São cada vez menos as coisas que sei, constato não sem alegria. Por debaixo delas passam, indiferentes, pessoas e cães. Um casal, de mão dada, arrasta-se, ela presa a uma mala excessiva e ele de passo incerto, deixando, a cada instante, a perna esquerda um pouco mais para trás. Talvez a felicidade deles resida naquela mala demasiado grande ou no esforço de trazer a perna ao seu lugar. Nunca sabemos o que torna os outros felizes. E o melhor é não o saber. Umas persianas abrem-se e da janela chega a imagem de uma mulher. Acende um cigarro. O fumo sai-lhe pela boca e pelas narinas. Talvez a felicidade que lhe cabe nesta vida esteja toda nesse fumo que o corpo deseja para logo o expelir. E sigo pela rua fingindo não ver aquilo que vejo. Toda a virtude, concluo, está em fingir não ver o que se vê. Virtude e sabedoria.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Desprezo


Fiquei todo o dia a tratar de expediente escolar, enquanto, lá fora, o sol se abria sobre a cidade e caía delicado nos prédios, soprado por um vento insípido. As nuvens, julgo que serão cúmulos, navegam lentamente pelo oceano bonançoso do céu, alheias aos homens. Envelhecer será, penso-o agora, contentar-se com a indiferença com que a natureza acolhe os meus desejos. Não há nela nenhum projecto para os frustrar, apenas a sabedoria de os não tomar em consideração. E é este desprezo pelas ânsias da humanidade, admito-o, aquilo que ela terá de mais admirável.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Na hora anunciada


Mesmo se sombrios, são gloriosos os domingos, os que não possuem uma segunda-feira no horizonte, pensei ao chegar à janela. O céu cinzento não é uma ameaça mas uma promessa, ilusória como toda a promessa, de uma eternidade mesmo ali ao alcance da mão. E recolhi-me nessa fantasia, ruminando projectos e arquitectando obras, semeando o porvir de esperanças para as quais, sei-o bem, ele não está disponível. Um pombo lacera o céu, plana de asas hirtas como se não houvesse gravidade, sustido pelo vento e pelos meus olhos que não se desprendem daquele voo. E nesse breve instante a eternidade manifestou-se, suspendendo o tempo, e falou com a sua língua de fogo para que eu a escutasse. Fechei os olhos e ao abri-los não havia pombo, nem língua de fogo, nem a eternidade falava dos seus segredos no fundo do meu coração. É domingo e a segunda-feira já se ergueu para pôr os pés ao caminho e chegar aqui na hora anunciada.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Signum citationis

Por vezes deparo-me com expressões que têm o condão de salvar o dia. Não que ele esteja perdido ou que eu sinta a sua queda iminente, mas está embaciado por algum desejo que turba o coração ou ofusca a luz da razão. Sento-me e olho para a rua. O sol persiste em iluminar a terra, reverbera nos vidros dos carros que passam. Um dia ainda será acusado de contumácia no crime de trazer a luz, prognostiquei. Leio alguém que fala sobre esse sinal equívoco que tem o nome de aspas. A dado momento, escreve, referindo-se-lhes, signum citationis. Fiquei siderado a olhar para a expressão e deixei que ele quase cantasse em mim. Só a música nos pode salvar, pensei então, deixando-me embalar pelas aliterações e assonância presentes naquelas duas palavras de uma língua morta. O vento empurrava a ramagem do arvoredo sem que a música se desvanecesse. E de súbito percebi a vida como uma citação de um texto apócrifo, umas vezes marcada pela musicalidade do signum citationis, outras exibindo-se como um plágio sem pudor.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Carnaval


Quando se aproximam os dias de Carnaval sinto crescer a desolação. É possível que outrora tenha existido uma qualquer relação de continuidade com as Saturnais romanas ou com grandes festas dionisíacas. Agora são dias em que o próprio sol se envergonha e, quando brilha, fá-lo quase com pavor de iluminar a terra. De manhã, aqui ao pé de casa, crianças de uma escola desfilavam ao som de uma música abrasileirada. Pais e avós olhavam embevecidos, tiravam fotografias, filmavam. E toda aquela alegria era tão triste e tão desolada, que o coração se apiedou e a razão, misericordiosa por uma vez, não se esqueceu de recordar que em breve tudo terá passado.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Enredos

As noites de domingo são lugares vazios onde qualquer coisa pode encontrar abrigo. Um sentimento, um desejo, a emoção que se escapou ao controlo feroz da razão. Por vezes, chegam memórias antiquíssimas e recolhem-se no desvão com que o fim-de-semana termina. Não sei porquê, lembrei-me da atenção com que, na casa de uns tios-avós, se ouvia no rádio, num tempo em que as televisões eram raridade, a informação sobre as previsões do estado do tempo. Isso seria quase tão importante, penso agora, como ir à missa ao domingo. Talvez estivessem interessados autenticamente no que iria acontecer, se precisariam de chapéu de chuva ou se o calor iria trazer o fogo como ameaça. Prefiro, porém, imaginá-los a registar a previsão para depois verificarem se ela se cumpria ou não, uma atitude de vigilância aos prognósticos da meteorologia. E é na esteira desta memória que entro na noite de domingo. Deixo-a trabalhar dentro de mim, tento lembrar-me das faces desses meus tios, dos seus gestos, das palavras. Silêncio e escuridão. Foi há tanto tempo que tudo isso foi rasurado e dizimado pela voragem com que a vida, como um romance, se enredou. 

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Viagens genéticas

Talvez uma parte dos meus genes tenha feito uma grande viagem, vindos de paragens setentrionais frias e pouco luminosas. Do que sei deles, não há indicação que tal tenha acontecido, mas a minha sabedoria, com tudo o que essa sabedoria tem de precário, não vai muito para além dos dois séculos. A verdade é que cheguei à janela e vi uma tarde cinzenta, sombria, a chuva a cair. Enquanto olhava com prazer para a rua, algo em mim sussurrava: esta é a tua pátria, uma terra de sombras, dias pequenos e frios. As pessoas corriam para se abrigarem da chuva e eu pensava que raramente sentia saudades dos dias de calor, dessas orgias de luz, abulia e transpiração. A chuva parou. A tarde declina e sento-me como se este lugar fosse outro, longe daqui, sem que uma ameaça de fogo sobre ele impendesse, logo que a primavera se aproxima da tormenta estival. Sabemos lá de onde vêm os nossos genes.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A escada rolante

A semana fechou-se no escuro da noite, deslizou sorrateira para os braços do esquecimento, para o porto onde os homens, depauperados pela inutilidade dos dias, aguardam o festim do sábado, o grande baile em que dançam, dançam, dançam na sala vazia da solidão. As noites de sexta-feira são promessas que o tempo nunca cumprirá. Sento-me, cerro os olhos e deixo o pensamento vaguear. O ideal seria não pensar, parar a corrente de consciência e entrar na escuridão de mim mesmo, escutar o inaudível que uiva no âmago do corpo, aproximar-me desse silêncio que as vezes ecoa numa imagem, num gesto, na pétala de uma rosa que o vento arrasta. Na aparelhagem, um quator solta-se, inunda o ar e cai sobre mim. Também nele o silêncio ladra, penso e levanto-me. Vou jantar e logo sou arrastado pela escada rolante do tempo.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O promontório e a charneca

A luz de Inverno é um promontório de onde espreito o mundo. As casas vacilam no meu olhar e as pessoas, tão pequenas se vistas daqui, caminham oscilantes, com o pensamento ocupado em sabe-se lá que demandas. Protejo-me nestas escarpas luminosas, tudo o que vejo imagino-o como um oceano matinal, perdido no ir e vir da ondulação, a rumorejar bravio na pressa do trânsito. O melhor que a idade traz, penso, é poder confundir tudo, o mar com a cidade, as pessoas com cristas das ondas, o fluxo do trânsito com o ribombar das águas salgadas ao bater na escarpa. Quando a luz de Inverno se transformar em luz primaveril, o mundo começa a tornar-se plano. O promontório de onde espreito será então uma charneca polvilhada de pedras e desolação.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Bênçãos

Quando levantei as persianas, a manhã já ia alta, deparei com um sol melancólico, apesar do brilho que os seus dardos faziam cair sobre o casario. Pensei: é um sol matinal de domingo igual a tantos outros dos domingos de Inverno. Então, recolhi-me e deixei os raios solares dardejarem ao abandono. Quando me sentei à secretária, peguei em O Prelúdio, de William Wordsworth, comprado ontem, numa tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Leio o primeiro verso “Oh, uma bênção existe nesta doce brisa”. Então, lembrei-me do meu virar de costas ao sol dominical. Também eu deveria ver ali uma bênção, mas não vi. Depois, olhei a rua através dos vidros da janela. Os carros reluziam e percebi que o tempo do romantismo que permitia ver bênçãos nos elementos naturais acabara há muito. Um carro apitou e ao longe vibra uma sirene. O sol persiste preso à sua melancolia.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Chegar e partir

Chegou como se tivesse vindo de muito longe. Parou, rodopiou com calculada lentidão sobre os tacões, sorriu ao sentir o sol a iluminar-lhe o rosto e sentou-se. Não pretendo nada, respondeu quando o empregado lhe perguntou o que desejava. Nada, exclamou este atónito. Isto é uma esplanada. É uma esplanada, confirmou ela. E logo se levantou, o sol bateu-lhe no rosto, tornou a rodopiar com calculada lentidão sobre os tacões. Parou por um instante e partiu como se fosse para muito longe.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Ferida narcísica

O melhor seria deixar de ler jornais, pensei ao ver a notícia do Público. Não há quem não se ache o fruto de uma ocasião única e especial. Nesta coisas ligadas à identidade e à existência, até os mais empedernidos socialistas se acham individualistas e, em segredo, liberais, filhos de projectos racionalmente planeadas para os tornarem naquele ser único e já pleno de iniciativa ainda mal concebido, especulei ancorado na minha triste formação filosófica. Acreditamos nisso como as crianças crêem no Pai Natal ou nesse ser benfazejo conhecido por Fada dos Dentes. E eu por que motivo haveria de ser excepção? Não era. Não era até hoje. Agora, porém, sinto-me abatido, terrivelmente.  O que descobri eu? Eu que nasci em Setembro, e por isso me achava tão virginalmente distinto, fui confrontado, amaldiçoado jornal, com o mais tenebroso dos colectivismos. Um estudo, feito por entidades respeitáveis, mostra que Setembro – isso mesmo, nove meses após o Natal – é o mês com mais nascimentos nos países de cultura cristã no hemisfério Norte. Não bastando isto, o nefando artigo ainda tem a desfaçatez de afirmar que os ciclos de reprodução humana são guiados pela cultura e coincidem com estados de espírito colectivos. Meu Deus, que fizeste tu da singularidade da minha concepção? Foi para me humilhares deste modo que inventaste o Natal? É assim que nascem, para abater o nosso orgulho pecaminoso, as feridas narcísicas, concluí eu, lembrando-me das figuras tenebrosas do Copérnico, do Darwin e do Freud. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Metamorfoses

Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo, assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável, coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me. Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter. O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa, o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Não sei

Da janela do meu escritório, avisto o hospital. Sombrio e lúgubre. Os fungos da humidade tomaram conta das paredes ainda há pouco brancas e resplandecentes. Agora é uma nódoa na paisagem, uma mancha que insiste em cravar as garras da sua solidão no meu horizonte. Bocejo. É o que faz deitar tarde e levantar cedo, penso. O melhor seria dormir uma sesta, mas estou comprometido com o baby-sitting das minhas netas. Acho que elas preferiam que eu dormisse. Terão as suas razões que, como todas as razões infantis, são enigmáticas. Conjuram no quarto não sei que aventura e, como é hábito, não tardam em  invadir-me o escritório, para se sentarem na secretária da avó e brincarem, pobres infelizes, às escolas. Chegam e uma diz para a outra: vá, diz sim ou não, não sei não é resposta. E eu fico siderado por tanta autoridade a transbordar de uns sete anos ainda por fazer. Olho pela janela, o sol esbranquiçado cai em borbotões sobre a rua e pergunto-me se ela alguma vez irá saber que a única resposta que temos, seja para o que for, é não sei. Vá, insiste ela, diz sim ou não.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Perfeição

Um frio glorioso caiu sobre a cidade, cobriu-a de um veludo vítreo e negro, onde, a custo, se avistam vultos que lutam para chegar a casa. A náusea da repetição, pensei, de fazer sempre a mesma coisa, dia após dia, semana atrás de semana, chega a ser uma bênção. Tudo parece ter um destino e cumpri-lo com perfeição. Também eu pertenço a essa perfeição nauseante, constatei, enquanto o frio se cerrava sobre a face. Talvez vivamos mesmo no melhor dos mundos possíveis, passou-me pela cabeça ao atravessar a passadeira, enquanto alguns carros paravam solícitos, também eles habituados à perfeição com que a vida se regula. Quem passa por mim vai em silêncio e mal olha para as iluminações de Natal. Pelo contrário, eu olho-as e sinto uma tristeza tão grande que logo deixo de crer que se viva no melhor dos mundo possíveis. Sou volúvel, constato ao mudar de opinião. Se este fosse o melhor dos mundos, poderia haver guerras, homicídios, violências, coisas que há em todos mundos. Não haveria por certo, iluminações de Natal que nos inclinam para a tristeza. Aventuro-me em direcção à farmácia. Ali tudo é claro, nítido e lança sobre o coração do paciente a ilusão de que haverá sempre, neste ou noutro mundo, uma cura à sua espera. Não há, e isso, que deveria entristecer-me, tranquiliza-me.

domingo, 17 de dezembro de 2017

A luz branca

A luz branca deste domingo cai sobre a cidade como um véu. E assim veladas as pessoas passam devagar na avenida, respiram lentamente, esperam por certo que o sol as aqueça. Algumas deambulam atreladas a pequenos cães. Há quem corra solitário para alcançar a boa forma que nunca haverá de chegar. Um ciclista, daqueles que se equipam da cabeça aos pés, apeia-se, abre o grande caixote do lixo verde e deita qualquer coisa lá dentro e regressa, em paz com a sua consciência, ao selim e à azáfama de pedalar. As árvores, medito, têm um singular destino. Umas despem-se no Inverno, enquanto as outras, tomadas por um pudor ancestral, persistem em manter o folhedo que as cobre. Há quem diga que possuem folha persistente. Prefiro pensar que sofrem de um embaraço contumaz. E é para isto que serve a luz branca que cai, naquele segredo invisível da onda-corpúsculo, sobre as coisas. Para que alguém as possa ver e descrever, não na sua essência, mas nos acidentes em que elas se manifestam. Os carros teimam em não deixar de passar. Vão lentos, temerosos, também eles são um acidente que nenhuma essência salvará. Os domingos são sempre dias incompreensíveis.

sábado, 16 de dezembro de 2017

A praça

Passei há pouco pela Praça 5 de Outubro. Parece uma viúva a tiritar de frio, pensei ao olhá-la. Depois, disse para mim mesmo: estas analogias não têm pés nem cabeça. E fiquei a contemplá-la no abandono que é o dela, perdida a remoer pensamentos obscuros, a desfiar perfídias e vinganças, enquanto uma ou outra sombra a atravessavam. Há lugares que gostaríamos que fossem eternamente aquilo que, um dia, foram para nós. A eternidade, devia sabê-lo de cor, não é um atributo das coisas humanas, nem sequer dos lugares que fervilharam de vida. O espírito que em tempos a animou retirou-se, discorri. Alguém, apressado, acena-me e desaparece no crepúsculo. Demoro-me mais uns minutos, olho-a lentamente, deixo que uma ou outra recordação venha até mim. Depois, rodo a chave na ignição, engreno a primeira e faço o carro deslizar dali para fora. Não devemos perturbar a viuvez de uma viúva. Exclamei, sem que ninguém me ouvisse.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Esperar

Fechei devagar a porta da sala e saí. Tinha acabado, pelo menos por uns dias. A tarde começara cinzenta, mas não deixava de ser tocada por um halo de esperança. O ruído dos intervalos ficava para trás. Quando passei pelo portão, respirei fundo. Haverá ainda dias de reuniões e papéis, de actas e do resto, sempre tão elusivo, que é necessário para satisfazer a fome insaciável do Leviatã moderno. Tudo isso se não servir para mais nada, há-de valer para a remissão dos meus pecados, ponderei sem entusiasmo. Paro na passadeira junto ao tribunal. Apressado, um homem, porventura um advogado, atravessa-a. Aonde o levou aquele passo rápido? Não o cheguei a perceber. Talvez o esperasse alguém perdido no labirinto de um processo ou talvez fosse a mulher, impaciente e pouco solícita, com a toga que ele teria esquecido em casa. Nunca se sabe o que atormenta as pessoas e as precipita mundo fora. No semáforo, logo a seguir, torno a parar. Como acontece sempre, a Antena 2 perde o sinal e o carro mergulha no silêncio. Espero. E é tudo o que resta a um mortal, esperar. O quê? O melhor é não o saber. Lá atrás, ficaram as salas fechadas, pensei, enquanto o Quator de Messiaen retornava e estendia sobre mim a luz dolorosa que é a sua. É sexta-feira, pensei.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Oblívio

Sento-me e pego num livro, do poeta Daniel Jonas, denominado Oblívio. Como os amores, também há títulos perfeitos, concluo. Oblívio é a fase da existência em que entrei. Assim como antes a memória era excessiva, agora o esquecimento progride sorrateiro mas voraz. E com isto esqueci-me do que queria vir aqui contar. Não sei se um episódio que me atormentou o dia – mas qual? – se uma descoberta que a noite me trouxe. E é neste oblívio que tento navegar no mar encapelado da vida. O melhor seria ir dar uma volta e fumar um cigarro, talvez me lembrasse, mas não sou animal noctívago e há tempo que não toco em tabaco. Vale-me o título do livro que se estende para mim como uma mão solidária, como quem diz que, em matéria de esquecimentos, não estou sozinho no mundo. O melhor, penso, será seguir o conselho do poeta: “Pedala, vá pedala, não faz mal; / De tanto pedalares, nesse tour / De igual cenário és um novo Artur, / Um velho visionário pelo Graal.” E escrito isto, logo me lembrei que, depois de jantar, não consegui recordar-me se tinha tomado o comprimido para a tensão arterial. 

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O ardil

Dezembro deixou que os dias se contaminassem de festividades. Nem o frio bastou para evitar a algazarra que de tudo há-de tomar conta. São dias de alarido, penso, enquanto rasgo a noite com a luz dos faróis. O calendário é, sei-o bem, uma fortaleza inexpugnável, uma emanação da frieza cósmica para nos agarrar pela coleira e pontapear para dentro da vida. Ou da morte, acrescento em silêncio. Ao sair do carro recebo a carícia do vento e olho para o café ao lado de casa. Há muito que não entro ali. Outrora, sabia o que poderia fazer num café. Agora, tudo se me estranhou e evito o deambular à procura de uma mesa. Talvez esteja num processo de regressão vegetal, mas a humanidade tornou-se muito pesada. A noite está fria e eu olho o café, a luz que nasce dentro dele para morrer na tristeza dos olhos de quem passa. Se eu entrasse lá agora? Um casal de namorados entra, enquanto duas senhoras, talvez casadas, saem. Na verdade, o mundo é feito de estranhas compensações, constato. Ah se eu entrasse ali, tudo se desequilibraria. O melhor é ir para casa, resguardar-me de Dezembro e dos pensamento que, como tentações, me entregam ao ardil do inimigo.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A fístula

Uma fístula, veja lá. E agora tem de ser operado para a fecharem. Coitado, uma fístula entre a traqueia e o esófago. Ele há cada coisa. Se há, pensei, enquanto as duas mulheres se afastavam de mim, para se perderem no outro lado da estrada, arrastadas por um cão insignificante, desejoso de ir cheirar os troncos húmidos pelas últimas chuvas ou por alguma cadela transida de cio. Têm razão, concluí, enquanto elas se dissolviam na atmosfera espectral que a noite derrama no frio dos dias de Dezembro. Não há nada pior do que fístulas, podem crer. Aliás, o mundo não passa de uma rede fístulas por onde comunicam coisas que nunca deveriam comunicar. Se houvesse menos comunicação, os dias seriam mais fáceis, asseverei a mim próprio, talvez sem me convencer. E enquanto seguia o meu caminho, ia arquitectando todo um sistema de oclusão de canais. Via-me já como um grande cirurgião especializado em tratar das fístulas do mundo que põem, para desgraça universal, toda a gente em comunicação com toda a gente. E assim cheguei à porta do prédio onde moro. Uma, duas, três vezes, e nada. Não consegui abri-la. Malditos códigos, não há nada como fechaduras com chaves. A fístula que me haveria de levar da rua ao elevador estava obstruída. São cruéis os deuses, meditei inquieto. Não perdem uma oportunidade para nos fazerem a vontade.

domingo, 10 de dezembro de 2017

A faca

O dia cresce como uma faca espetada no peito. Oiço-o a rasgar a carne, enquanto a pulsação enfraquece e a respiração entrecortada faz-me entrar num estupor, talvez a esperança de que imobilidade do corpo arraste a do tempo, e tudo fique suspenso nesta glória eterna. Os domingos são traições à esperança na eternidade, penso. Por isso, os homens iam à Igreja para se lamentarem da fraqueza da carne. Ou talvez fossem para ver as mulheres ou nem isso. Sei lá o que ia ou vai na cabeça dos outros, se nem na minha sei o que se passa. O pior é a carne dilacerada pelo tempo que passa, como se este fosse uma conspiração do espírito para sublinhar a sua superioridade perante a falência sem fim do corpo. Agora, gostaria muito de moralizar, mas falece-me o talento e a vontade. Bem na minha frente, a alguns passos, uma mulher compõe o cabelo, passa nele a mão húmida e assenta-o, como se ainda tivesse um poder para amainar os ventos. Não tem. E nem ela nem eu o temos para parar a grande faca do tempo a ranger nos músculos deste domingo. O melhor é não ser complacente.

sábado, 9 de dezembro de 2017

A rapariga cega

Os dias deslizam para o Natal e a minha memória resvala para territórios que o tempo corrompeu. Na rua, carros e pessoas passam esmagados pelo peso da quadra que se aproxima. E eu olho-os da minha janela e finjo-me inocente de tantas preocupações. Depois, a minha avó chega-me apressada à casa da memória. Vem com os cabelos brancos que sempre lhe vi, e eu recordo-me dos dias em que brincava na despreocupação do quintal que havia na sua casa térrea. Nessas alturas haveria por lá um ou outro primo, mas tudo era muito diferente de hoje, o cobalto do céu era mais vivo e nada ainda tinha caído na ruína da recordação. O quintal era dividido de um outro, talvez por uma paliçada de canas ou por um muro, não sei bem, pois o que recordo é a cobertura, a que chamavam enleio, de campânulas roxas e que a tudo ocultava. E foi desse outro quintal que veio o objecto do meu primeiro amor. Uma voz feminina. A pronúncia, o ritmo, as próprias palavras fascinavam-me, tão diferentes do que me era dado ouvir, e eu, sem o saber, era tocado por Eros, desejando o meu coração, mais que o corpo imaturo, que aquela voz não se apagasse e desabasse em silêncio dentro de mim. Um dia soube, não sei bem como, que quem assim falava era uma rapariga bem mais velha e, digo-o ainda com emoção, cega. Fiquei atónito. Como seria possível que aquelas palavras saíssem da boca de alguém que não via? Os primeiros amores, esses que não sabemos sequer que o são, trazem já consigo a ferida narcísica que rasga a carne para que a realidade entre pelos olhos dentro. Julgo que nunca a vi, talvez ela não saísse de casa, e a sua voz, que um dia foi em mim o murmúrio de Afrodite, foi-se extinguindo até não ser mais do que um amontoado de palavras partilhado na insipidez de uma rede social.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Humidade

Há um véu de humidade sobre as ruas. As pessoas caminham pelo Outono com trejeitos de invernia. Piso as folhas e lembro-me dos plátanos de uma casa onde vivi. Já vivi em tantas que lhes perdi a conta. Algumas ainda pesam como uma sombra. Perderam as portas e as janelas, perderam a configuração do espaço que tiveram na minha vida, mas ainda ressoam nelas as vozes dos que já morreram. Há dias, como o de hoje, em que me levanto e penso nos meus mortos. Talvez precise de falar com eles. Ou eles precisem de me dizer alguma coisa. Mas continuamos obstinados. Eles no seu silêncio; eu na minha surdez. E assim desabamos no embaraço da saudade e da obstinação. Aquilo de que queria falar era de árvores no lume brando destes dias, mas já não sei o que hei-de dizer. Passa por mim, esbaforida, uma mulher. Trauteia uma melodia que desconheço. Vejo-a a afastar-se e percorrer o grande corredor do Outono onde, percebo-o bem, abrirá a porta do Inverno. Esta é a minha cidade e ninguém, além de mim, sabe o seu nome, uma palavra feita de humidade e luz, bela como uma lâmina a deslizar na rasura da pele.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Dogmas

Ao atravessar a cidade, já a tarde tinha declinado na escuridão da noite, lembrei-me de que amanhã será feriado. E fiquei grato ao Papa Pio IX e à sua Bula Ineffabilis Deus, onde  declara, pronuncia e define a doutrina da Imaculada Concepção de Maria. Contrariamente ao que ensino aos meus alunos, a quem louvo os méritos da razão crítica e da submissão do dogma ao colírio da dúvida, há em mim um certo culto pela dogmática, uma espécie de licença sabática para os devaneios da razão. E ainda mais maravilhado fico se um dogma tem tanto poder que consegue roubar os homens aos afazeres que a corveia da necessidade lhes impõe. Meditando assim no mérito da bula papal, deixo o carro deslizar, enquanto olho para as iluminações de Natal, onde alguns dos adereços quase fazem lembrar um crescente. Não chego a ficar perplexo, pois tenho de entrar numa rotunda, acautelar-me de algum condutor imprevidente, e logo o pensamento me foge em direcção à bênção, ou à graça, que, no longínquo ano de 1854, Pio IX decidiu derramar sobre todos nós. Amanhã suspendo a razão e deixo deslizar, com demora, o dogma pelo meu dia. Assim o espero.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Verdade e versos

Olho a rua e sinto toda a verdade que se esconde num verso de Eugénio de Andrade. “Com o sol a trepar pelas árvores”, escreveu, há muito, o poeta. E é isso que vejo, nesta manhã, antes de ser tragado pelos monstros que, dia após dia, devoram a vida dos homens. Olho pela janela e os monstros desaparecem, refluem para o lago que, subterrâneo, desliza dentro de mim, tecendo, com zelo, a minha perdição. O sol trepa pelas árvores, penso. Por vezes, canta nos verdes outras sussurra nos amarelos, mas nunca deixa de trepar ramos acima, mostrando a verdade de cada árvore na verdade de um verso. Rio-me ao pensar na mistura de verdade e versos. Deveria seguir a lição de Platão e expulsar o poeta da cidade, ficaria mais tranquilo. Nada pior do que ficções, recordo. E nesse instante, entre o verso de Eugénio de Andrade e a indisposição de Platão para com a poesia, penso que o próprio Platão seria o poeta que deveria ser expulso da cidade. Assim como o sol trepa pelas árvores e eleva-se aos céus, também os homens dizem, as mais das vezes, o contrário daquilo que sentem. Se fossem árvores, não o diriam, e eu não escreveria estas palavras sem utilidade, nem propósito, nem verdade.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Castanheiros

Quando cheguei a casa descobri que me tinha esquecido dos óculos de ler na escola. Nada a fazer senão mergulhar na noite e atravessar a cidade. Havia muita gente em trânsito. Os carros deslizavam devagar e os peões eram sombras que se desvaneciam nos passeios. Os castanheiros da avenida estão agora lacrimosos. Quando se aproxima o Natal, descarregam sobre eles uns fios semeados de pequenas luzes, como se isso os tornasse mais adequados a uma época que não é a deles. O que vale é que, estóicos, suportam tudo, mesmo os desvarios dos homens. O seu reino virá mais tarde quando florirem. É isso que lhes importa. Como os castanheiros, também os homens deveriam apenas preocupar-se com o que lhes importa, com essa hora em que hão-de florir, especulei ao deixar a avenida. Como sempre sou dado a ilusões e deixo-me arrastar por analogias cujo sentido logo me parece bizarro. Por que razão haveria de florescer um ser humano? Nem flores nem frutos, pensei. E apressei-me para descobrir onde tinha deixado os óculos.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Segunda-feira

As segundas-feiras, com o seu excesso de realidade, não deixam de ser dias enigmáticos. São como uma rede desmedida que captura os homens no mar do ócio e os descarrega no porão do trabalho, onde prestam o forçoso tributo à necessidade. Também eu sou levado na rede e, ao cruzar-me com outras vítimas da grande captura, nunca deixo de me espantar com o seu ar de felicidade. São múltiplas as causas que movem os homens, penso então, perdido nestas manhãs de frio cortante. O melhor é entregar a felicidade de cada um àquilo que o anima e deixar-me de enigmas com temperaturas tão baixas. Metáforas não aquecem ninguém e, numa sala sombria, haverá gente à minha espera, para que eu lhe fale de coisas que ninguém quer ouvir e que eu, se não tivesse tanta propensão para a irrealidade, me absteria de dizer. Não são dias fáceis as segundas-feiras. E o pior é que não chove.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Domingo

Quando, esta manhã, saí de casa assaltou-me uma dúvida. Esta não nasceu da falta de luz. Pelo contrário, havia aquela luz exuberante dos dias frios, uma luz que, ao derramar-se sobre a terra, consegue enganar até os menos incautos, segredando-lhes que não se caminha para o Inverno mas para o Verão. A dúvida, porém, não tinha a ver com a luz terminal do Outono, mas com o domingo, o sétimo dia, aquele que Deus escolheu para descansar do trabalho da criação, tão satisfeito estava, pois tudo o que tinha fabricado era bom. Se Deus, em vez de ter criado o mundo quando o criou, o fizesse hoje, pensei, será que descansaria ao domingo, mesmo que este fosse o sábado dos judeus? Trabalharia ele, o grande operário, por turnos ou cumpriria um horário regular, entrada às oito e saída às dezassete? O sol, apesar do brilho, não me aquece a alma e, ao caminhar, entrego-me a estas meditações plenas de heresia. O melhor seria não as partilhar, mas já é tarde para conseguir uma reputação aceitável. Encontro pessoas endomingadas e outras perdidas na contagem dos dias da semana e penso na minha infância. Nesses dias, tudo era claro. Um domingo era um domingo. Com a mãe, ia à missa. Com o pai, ao futebol. E Deus olhava-nos com benevolência entre a homilia e um penalti falhado. Agora, a mãe assiste à missa na televisão, o pai há muito que decidiu, para minha tristeza, perder os jogos por falta de comparência, e Deus, ora o que se há-de dizer dele? Ficou cego? Cansou-se? Há quem diga que foi de férias e que, endomingados ou não, proclamou que já era tempo de tomarmos conta da nossa vida. O sol, concluí, engana-nos e faz-nos pensar em coisas que não lembram a ninguém.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Flatland

De tarde, ao sair de casa, estava um sol frio, um sol natalício. Não tarda e o Natal está acabado, pensei. Os carros saíam e entravam para o estacionamento de uma superfície comercial. Perante a azáfama, fiquei a meditar na estranha designação. Superfície comercial, como se nós, pobres mortais, pelo acto de comprar e vender ficássemos reduzidos a seres bidimensionais a viver numa espécie de flatland. E enquanto caminhava por dentro do frio, pisando, sem piedade, as folhas ressequidas espalhadas pelo passeio, meditava na mensagem oculta por detrás de tal designação. As pessoas passavam por mim, indiferentes à minha meditação, e iam com o rosto cheio de Natal. O mundo está prenhe de coisas improváveis, coisas como superfícies comerciais ou rostos cheios de Natal, concluí eu, enquanto me apressava para fugir da noite que o céu, indiferente, anunciava. As tardes estão muito pequenas, pensei, mas ninguém ouviu os meus pensamentos. Ou talvez tivessem ouvido e não soubessem o que responder.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

As folhas mortas

Sento-me sob o sol desmaiado da tarde e deixo que ele desça sobre mim. Vejo os ramos do arvoredo a balançar, um vento frio toca-os e, uma a uma, arranca-lhes as folhas secas. Ao fundo, os carros passam devagar, como se esperassem mais alguma coisa de um dia que nada mais tem para lhes dar, a não ser a permissão esquiva de passarem lentamente. Fixo-me nas folhas. O vento açoita-as e elas entregam-se a uma dança acrobática antes de poisarem, secas, leves e mortas, tão mortas, no chão. E em cada folha, vejo-me a ser arrastado pelo vento, vejo-me livre em plena queda que me conduz para a terra que há-de ser a casa da minha eternidade. Dezembro é um mês frio, pensei. Ergui-me e admiti, após breve exame, que raramente escrevo sobre pessoas. A minha alma pertence ao deserto, exclamei, mas não havia ninguém para me ouvir.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Frio

Há pouco, perto de mim, alguém dizia que, na ausência de chuva, houvesse frio. Ao menos, matava-se a bicharada nos campos, o que ajudaria a lavoura. E eu fiquei espantado com esta sabedoria que me era servida inadvertidamente. Para mim o frio é apenas ocasião de vestir uma roupa mais quente e não uma arma de guerra biológica. E foi assim que enfrentei, na rua, a frialdade com que a noite tomou conta do dia. Imaginei então campos onde mil hecatombes de pequenos seres é oficiada pela descida das temperaturas. Se eu fosse um homem do campo, que coisas não haveria de saber e de transmitir aos outros. Coisas úteis, sérias, profundas, onde se joga a vida e a morte, e não frivolidades sobre se o homem possui livre-arbítrio ou se devemos determinar a moralidade dos nossos actos pelo imperativo categórico ou pelo princípio de utilidade. Em vez de papéis e gente aborrecida à minha frente, haveria campos de milho e de trigo, talvez um roseiral de onde colheria as rosas que alguém espera de mim.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Ignorância

Nomear as coisas é uma arte de difícil consecução, pensei hoje ainda a tarde era luminosa. Quantas vezes, neste estranho Outono, vou pelas ruas e fico espantado com as cores que, aos poucos, tomaram conta das folhas do arvoredo? E se eu quero dizer esse espanto e partilhar o prazer que vermelhos, castanhos, ocres, amarelos, violetas ou rosas me deram, a empresa morre de imediato na impossibilidade de nomear as árvores que suportam ainda nos seus ramos tais catálogos vivos de cor. Estou-lhes grato, digo de mim para mim, mas não sei o seu nome e temo que, um dia, elas não me perdoem a ofensa. Juro então que irei dedicar algumas horas ao reconhecimento das árvores, mas logo penso que talvez seja tarde, que o meu tempo é mais o do esquecimento que o de adquirir saber. E assim as árvores, essas que tanto prazer me dão, entram na noite que é a terra dos não nomeados. Ali são todas iguais, todas árvores, que se confundem na tonalidade pardacenta da minha ignorância.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

O resto

Há pessoas que têm uma estranha propensão. Escolhem fazer coisas que sabem ir contra a sua natureza. Penso nisto enquanto oiço o Hilliard Ensemble a interpretar música de Victoria e de Palestrina e me deixo arrastar, literalmente, para o paraíso. Conheço alguém que estudou filosofia não porque se interessasse por argumentos mas porque amava a literatura. Nunca lhe perguntei a razão de tal comportamento, nem a pessoa esboçou alguma vez uma explicação para a sua dissonância existencial. Fui anotando, contudo, ao longo dos anos, episódios desse seu conflito. Um dia, após um concerto em Leiria, deste mesmo Hilliard Ensemble, onde ouvimos música de Bach, disse-me que fazia mais pela fé um concerto de Bach do que qualquer argumento sobre a existência de Deus. Objectei que esses argumentos não pretendiam fomentar a fé mas determinar se é racional ou não crer em Deus. Olhou-me divertido. A noite, ao contrário da de hoje, estava amena. A Primavera era quase Verão. Passados alguns instantes, respondeu, sem tirar os olhos do chão: a racionalidade ou a irracionalidade da crença, o que tem isso a ver com Deus ou com a sua existência ou inexistência? Bach sabia que Deus existia e a sua música é a prova disso, o resto... E não completou a frase.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Iluminações

Há dias que algumas ruas da cidade foram tomadas pelas iluminações natalícias. Atravesso-as atónito, não sabendo o que pensar desta proeza que todos os anos temos de suportar com benevolência e cuja finalidade não deixa de ser um enigma. Foi para isto que o filho de Deus escolheu vir ao mundo na penúria do presépio, pergunto-me, enquanto o carro rola ao sabor do trânsito. Nos passeios, os peões são sombras que a noite vai apagando. Já nem um mês falta para a consoada, penso, enquanto se insinua a memória dos que nunca mais estarão presentes. E uma nostalgia de um Natal autêntico assoma. Um Natal feito de silêncio e de contenção. Um Natal em que os homens pudessem perceber o mistério que o envolve e os envolve. Faço uma rotunda, endireito o carro. Um cão ladra distraído, enquanto um casal de namorados passa envolto na tristeza que é a sua. Quem quer saber de mistérios? Travo numa passadeira e penso que deveria fazer o caminho a pé. Encolho os ombros. As iluminações gritam numa girândola de cores, enquanto um anjo desce e diz-me que, se não apagarem as luzes, não haverá Natal. Com tanta luz, o Menino recusa-se a nascer. Não deveríamos tentar os deuses, digo para comigo.

domingo, 26 de novembro de 2017

Modalidades

Por um motivo que não vem ao caso, e estando ocioso, comecei a interessar-me, ainda que incipientemente, por lógica modal, a qual envolve proposições onde se afirma a necessidade ou a possibilidade de algo. Estava assim neste ócio, quando olhei para a rua e vi um sol desmaiado a cair sobre os prédios exaustos, cujo esboço desliza, como uma sombra delida, ante mim. A luz da lógica é como um sol exuberante, pensei. Contudo, a vida é sombria e o sol, por vezes, não tem a luz necessária para a iluminar. E enquanto os pombos voavam de prédio para prédio e as pessoas, lá em baixo, passavam envoltas no domingo, lembrei-me de um livro de Milan Kundera, A Arte do Romance. Faz ele notar que o romance moderno é contemporâneo do nascimento da filosofia moderna. À evidência e certeza cartesianas, o romance traz-nos aquilo que não é necessário, nem certo e muito menos evidente. Traz-nos o sombrio e o não racional. Não é o romance filho do Quixote? Ao ouvir uma sirene, uma dúvida, porém, assaltou-me. Há quem pense que os romances tratam da possibilidade, que os mundos romanescos são mundos possíveis. Talvez a lógica modal tenha pregado uma partida à arte do romance, e a tenha reconduzido, apesar da resistência, ao redil da razão. E perante essa possibilidade, soltou-se da minha boca a jaculatória: valham-nos os oximoros dialécticos do Pessoa. Amén.

sábado, 25 de novembro de 2017

A pequena heresiarca

Um drama, e não dos pequenos, aqui por casa. A minha neta mais nova, perante a tarefa de escrever três frases com a palavra cão, decidiu, na terceira, inovar e entrar pelo perigoso caminho da heresia. “O cão tem uma capela na escola e tem Jesus”, escreveu. Como sabemos, o Santo Ofício não é permissivo e não gosta de inovações. Não se comoveu com a conjunção das proposições simples, nem com a extensão da salvação aos animais, e, entre admoestações teológicas e considerações de ordem prática sobre a recepção escolar da frase, usou da borracha para apagar o perigoso erro. O pior é que a pequena heresiarca não gostou e decidiu entregar-se, inconsolada, a um choro de protesto. Persiste em mostrar-se amuada, como se a santa censura lhe tivesse retirado o maior dos bens, a liberdade de expressão. É assim que, na história, se formam os grandes revoltados.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Milongas e chacareras

Enquanto entardecia lugubremente, fui buscar o carro à oficina. Há ali uma sabedoria que me deixa sempre espantado. Talvez não se saiba da mecânica do mundo, mas a das máquinas é tanta que nunca deixa de me maravilhar. Circulo pela cidade, para a ver fenecer na tristeza que é a sua e recolho-me. Que música, pergunto-me, para o cinzento outonal de uma sexta-feira à tarde. E deixo-me levar por milongas e chacareras. Não é que me transfira para a Argentina, mas há nestas melodias qualquer coisa que me lembram que sou português. E assim fico a saborear esta descoberta espúria. O dia, acobardado perante as potências das trevas, retira-se, enquanto a iluminação eléctrica chega em ampolas amareladas, para que a noite seja menos noite, e uma voz rouca e baixa cante uma chacarera, e tudo siga uma ordem e um desígnio que, penso-o há muito sem o lastimar, nunca compreenderei. A voz calou-se e a guitarra cedeu ao silêncio. Os cedros, ali ao fundo, erguem-se hirtos, ansiosos pelo vento que os há-de vergar. Esperam a noite. Ela virá.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Chove

Quando saí da escola, já a noite tinha caído. Não que fosse tarde, mas porque os dias, vergados aos decretos da astronomia, resolveram minguar. Chovia. E não há nada como a chuva para lavar as almas. Almas são coisas que se conspurcam com muita facilidade. E não falo desses pequenos pecados que levam as pessoas, ainda vivas, às prisões, e aos infernos, se a morte as leva. Pecar contra o espírito, isso sim, é grave. E haverá maior pecado contra o espírito do que tentar ensinar metafísica a adolescentes? Talvez a ética nos prescreva o dever de nos abstermos de tal desígnio. Hoje acordei voltado para as incompatibilidades. Mas, como se sabe, a carne é fraca e precisa de se ocupar com alguma coisa ociosa. Saí do edifício e, no caminho para o carro, senti cada pingo de chuva que caiu sobre mim. A metafísica ficava lá para trás e pensei, arrastado por um lugar comum: comam chocolates, comam! Olhem que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. E assim de alma lavada, como se tivesse acabado de me confessar, rasguei o veludo negro da noite e cheguei, sem estados de alma nem inquietações, a casa. Chove e isso, por agora, basta.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Lítotes e hipérboles

Tenho sempre na secretária um livro que, apesar de fastidioso, consulto, a mais das vezes ao acaso, para minha instrução. Trata-se de Elementos de Retórica Literária. Abri-o há pouco e vieram até mim as páginas que tratam da lítotes e da hipérbole. Estas coisas não interessam a ninguém, mas eu tenho uma acentuada inclinação por coisas que não interessam a ninguém. Enrolo-me nelas e, enquanto as pessoas sensatas tratam de coisas que interessam a alguém, eu fico por aí a cultivar inutilidades. Espero que elas me iluminem e me contem um qualquer segredo, mas elas são avaras. E estava eu de volta da hipérbole pura e da hipérbole combinada, a meditar no exagero da sua sovinice, quando, ao mudar de página, caem umas requisições de livros feitas numa biblioteca de Lisboa há 20 anos. Não apenas me confirmam a minha obsessão pelo inútil como me atiram para dentro de um passado que se tornou tão inútil quanto o meu amor, não pequeno, por lítotes e hipérboles. E chegado aqui, hesito se fico na contiguidade da metonímia ou se vou à janela ver se chove. De preferência, hiperbolicamente.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Queda

Hoje a minha tarde foi ocupada com um intenso trabalho sobre coisas ociosas. Poderia ter ido passear e ver as folhas mortas que estendem as suas garras lacrimosas pelos passeios. Teria aprendido bem mais do que aprendi. A humanidade tem sempre uma enorme capacidade de me decepcionar. Eu sei que os padrões são altos. Como pode a sabedoria humana competir com o saber que há numa folha cuja seiva secou e, nessa leveza, se entregou à vertigem do vento e da gravidade? Não pode, pois não há sabedoria maior do que aquela que nos leva ao transe da queda. 

domingo, 19 de novembro de 2017

Silêncio

Os domingos penso-os, muitas vezes, silenciosos. Não basta que as pessoas deixem, por umas horas, de se entregar ao bulício dos negócios. É preciso que dentro delas cresça um silêncio que transbordará nas praças e nas avenidas. Assim, o domingo seria santificado, e tudo teria a marca desse novo hossana ao que há de mais secreto em cada um. As conversas, os gestos, os grandes passeios dominicais. Os amantes amar-se-iam dentro do silêncio e o seu amor ficaria protegido pelo segredo e, desse modo, seria mais forte. Um amor que transborda para fora do silêncio fenece e, não tarda, passa do alvoroço com que se ostenta para o declínio que o aguarda. O silêncio, aquele que eu, aos domingos, penso que eles deveriam conter, é o alicerce que permite ao mundo persistir, apesar da rudeza do ruído que, até ao domingo, como uma folha morta, de tudo se desprende.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anarquistas

Inadvertidamente, dei por mim a ouvir Les Anarchistes, na voz de Léo Ferré. Que conjunção astral se terá desenhado para que isso acontecesse, não sei. Os desígnios dos astros são ainda mais obscuros que os de Deus. A verdade é que lá estava a voz inconfundível do cantor a prestar tributo aos anarquistas espanhóis. Lembro-me bem daquela figura vestida de preto, a cantar solitária, num cenário vazio, em concertos transmitidos pela RTP. Dizia-se na época, coisa que nunca confirmei, que para além de viver num castelo, Ferré era anarquista. Talvez vivesse e talvez fosse. Ora os anarquistas são como aqueles clubes de futebol de que toda a gente gosta, mas que ninguém leva a sério. Por exemplo, simpatizo com o Belenenses e com a Académica de Coimbra, mas… Com o anarquismo, nem isso. Li Piotr Kropotkin, as coisas que uma pessoa lê, mas acho que nunca li Mikhail Bakunin. O que li mesmo foi G. K. Chesterton e a novela O homem que era quinta-feira. Quinta-feira era um polícia infiltrado numa terrível organização anarquista. O comité central da organização era composto por sete membros e cada um tinha por pseudónimo o nome de um dia da semana. Ora o que quinta-feira vai descobrir é que ele não é o único polícia infiltrado na tenebrosa organização anarquista. Todos os membros do comité central eram polícias infiltrados e, tanto quanto me lembro, o domingo acumulava a chefia do grupo e o da polícia. Para mim, numa noite de sexta-feira, o anarquismo confunde-se com um livro de Chesterton lido há décadas. Como é possível dizer isto e ser verdade?