domingo, 20 de outubro de 2019

Parecer um anhuca

Pareces um anhuca, foi o comentário que recebi ao vestir um velho par de calças esquecido no fundo de um roupeiro. Não faço a mínima ideia o que seja um anhuca nem qual a sua aparência, mas fiquei com a certeza de que parecia um e, como aquilo que parece é, atirei com o atavio para as profundas de onde viera. Um colóquio sobre a palavra não me esclareceu o sentido e uma consulta na internet não deu melhores resultados. Pelo contrário, há inclusive divergência sobre a sua acentuação, havendo os partidários da sua natureza proparoxítona e os que a grafam como paroxítona, onde me passei a incluir, pois caso eu seja na verdade um anhuca não o quero ser de forma esdrúxula. Um domingo que começa com estas preocupações não me parece fadado a grandes desígnios. Também eu não os tenho. Com o passar dos anos a minha ambição reduziu-se a não parecer um anhuca e estou longe de estar convencido de a conseguir realizar.

sábado, 19 de outubro de 2019

Roupa de Todos os Santos

Quando, depois de acordar, espreitei pela janela, o dia estava vestido como se fora o feriado de Todos os Santos. Fiquei a olhar o céu carregado de cinza escura, que logo desabou em chuva grossa e pensei na sábia decisão de criar esse dia santo de guarda em honra de todos os santos e mártires conhecidos e também daqueles que são desconhecidos. Passados instantes já o pensamento se desinteressava do exército dos santos e mártires e acompanhava o voo rápido de um corvo que se atreveu a passar de uma para outra árvore. A tarde, resolvi-me então, dedico-a à leitura de Jean Bodin, não aos Seis Livros da República, tão pouco a O Teatro da Natureza Universal, mas ao mais prosaico Da Demomania dos Feiticeiros. Será que os demónios transportam os feiticeiros em corpo? Será que estes conseguem transformar os homens em animais? São perguntas destas, para minha perdição em vida, que me movem a curiosidade. Chegada a tarde, faltou-me a vontade para perscrutar tais arcanos e deixei em paz os feiticeiros e os demónios com que aqueles andam mancomunados. Aliás, um almoço pouco frugal tirou-me qualquer interesse pelas opiniões do senhor Bodin, que foi levado desta vida em 1596, não por um feiticeiro nem por um demónio, mas pela peste negra. Neste momento não chove. O sol assoma aqui e ali, mas o dia não deixou de lado a roupa de Todos os Santos. Vou sair para ver o que acontece.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A virtude de ressonar

Depois de um almoço tardio, como se tornou hábito às sextas-feiras, acabei por adormecer sentado num sofá em frente de um jogo de snooker oferecido por um canal televisivo. Prova provada de que a arte de enfiar bolas num buraco me interessa muito pouco, embora seja preferível às notícias que outros canais repetem incansavelmente com a intenção de enlouquecer os espectadores. Adormeci e ressonei. Pessoas que se prezam não ressonam, mas por muito que me preze não consigo deixar de ressonar. Ao sentar-me para pagar a corveia, dei uma espreitadela às notícias online. Uma empresa oferece 115 mil euros pelos direitos ao rosto das pessoas. Ainda examinei a possibilidade de vender os direitos do meu, mas reconsiderei. Não é que eu seja particularmente humano, mas haver um robot com a minha cara com a finalidade de ser um amigo virtual para idosos é como querer vender-me para ser amigo de mim mesmo. Coisa que de bom grado dispenso. Pior que isso foi receber o convite para gostar da página de uma academia jovem de uma agremiação política daquelas que são novas mas dirigidas por gente que deveria estar reformada há muito. Pensei, não sem terror, que se vendesse os direitos do meu rosto, ainda me calhava ser amigo virtual de políticos velhos que em desespero de causa incentivam a existência de academias jovens. Por menos, foi Sócrates executado na Grécia. Antes ressonar em frente a um emocionante jogo de snooker.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A farda da ilusão

A manhã desce a encosta do dia, um declive escorregadio, terreno pedregoso molhado pela chuva. Quando, ainda cedo, me levantei e abri a janela deparei-me com uma neblina impenitente que sufocava os prédios e o arvoredo, deixando apenas transparecer algumas sombras a lembrar velhos fantasmas exaustos, cansados pelos anos, indecisos sobre se se devem manifestar ou voltar para o tugúrio onde abrigados da intempérie se escondem aos olhos dos mortais. Isto era a primeira manhã, depois como sempre acontece tudo mudou com o passar das horas. Nuvens mais escuras deslocam-se sob a vigilância de outras mais claras. Talvez seja o contrário, são as esbranquiçadas que se movem dando a ilusão do oposto. Quantas vezes, estando num comboio parado, pensei estar a deslocar-me iludido pelo movimento de um outro que se tinha posto em marcha. Demorava sempre alguns segundos até perceber a ilusão sensorial. A essas ainda as fui detectando, as outras, as ilusões decisivas e sob o efeito das quais nunca deveria viver, nunca tive o poder de as desfazer. Visto-as como se fossem a farda do exército em que milito. Têm a vantagem de nunca envelhecerem e de não passarem de moda. Um raio de luz fende o vidro da janela, anunciando a hora em que o meio-dia chegará. São parcos os poderes que me foram conferidos e escassa a virtude que cultivo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Amor à compensação

Podia ter sido um business coach ou mesmo um finantial coach, mas não passei de um mero coxo, cuja perna manca nunca teve poder para se alçar ao business ou ao finantial. Admiro a infinita criatividade de todas estas pessoas que, aproveitando a época de saldos, compram palavras inglesas, vestem-se com elas e andam assim fardadas pela vida, pois há sempre quem lhes compre os ersatzes. Adoro esta palavra. Empreguei-a para compensar o meu complexo de não ser um coach de qualquer coisa. Sou frequentador assíduo da compensação. Sem ela, como poderia olhar a vida e não ter vontade de me esventrar com um sabre afiado. Das poucas coisas em que sou versado, confesso não sem orgulho, é a poética da compensação. Não posso ser rei, ao menos que proclame a não existência de coisa mais nobre do que ser súbdito. Assim a vida em vez de um vale de lágrimas soprado pelo vento do ressentimento é uma festa, onde todos os súbditos que não podendo ser trigo descobrem a alegria de nascerem joio. E é isso o que eu sou, embora tivesse um indisfarçável talento para coach ou para rei, talvez mesmo para grilo falante.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Frugalidade

Até a frugalidade parece-me um excesso. Foi o que pensei depois de almoço. Não vivo num tempo de coisas mínimas, mas numa circunstância em que devo minimizar-me. Diminuindo-me, mais fácil será desaparecer. Foi a isto que um antigo ateniense chamou aprender a morrer e a estar morto. Era uma escola rude, a que não faltavam inimigos. Não é de agora o desejo de maximização, apesar de nenhuma época que não a nossa ter insuflado tanto os pequenos egos. Oiço, lá em baixo, risadas alarves, saídas da boca impenitente da adolescência. Essa, compreende-se, é pouco dada ao minimalismo, entregando-se antes ao exercício da hipérbole. Deveria escrever, passou-me pela cabeça, como se escrevia nos antigos telegramas. Chego amanhã stop Espera porta sul stop. E em tudo isto havia a beleza da contenção, do exercício da economia, da redução do discurso à informação e ao mandamento. Pena que não exista um florilégio da escrita telegráfica. Que profissão mais nobre pode haver do que a do antigo boletineiro, que voava levando em mão palavras urgentes e decisivas? Quando se fala do crepúsculo dos deuses é do desaparecimento de gente como os boletineiros, esses hermes da modernidade, que falamos. Como se vê a frugalidade das palavras não é virtude que pratique.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um fingidor

Onde estou avisto duas acácias bastardas, mas não estou certo da denominação. Ainda não lhes vejo sinais a anunciar a caducidade das folhas. Os ramos agitam-se, balançam, enovelam-se, batidos por um vento invisível, empurrado pelo calcário da serra. Apetecia-me passar a tarde a ler, mas as minhas ocupações são incompatíveis com leituras. Há que domesticar os apetites. Se cultivar a estultícia, estarei de acordo com o que se me exige. Olho as árvores, tento focar a visão e distinguir as folhas, mas o que vejo são manchas de verde em metamorfoses contínuas, movidas por um jogo de claros e escuros tremeluzentes, como se a realidade saísse de dentro de um quadro impressionista para invadir a vida e torná-la mais fugidia. Muitas vezes faço a apologia do rigor e da precisão, mas sou um fingidor, o melhor é não me dar crédito. Do que gosto mesmo é do vacilar das fronteiras, do desgaste das estremas, para que tudo se contamine, seja continuamente outra coisa e eu possa ser coisa nenhuma. Desloco-me para dentro da tarde, fecho a porta atrás de mim e escondo-me da indiscrição do meu próprio olhar.

domingo, 13 de outubro de 2019

O Rei Recaredo

Contaminamo-nos facilmente. Mergulhei um rectângulo de chocolate no café. Quando dei por mim tinha as mãos manchadas de castanho. Se as manchas alastrarem, o que farei? Este pensamento risível foi afastado pelo ranger do baloiço no parque infantil, e numa associação ociosa de palavras passo de ranger para Recaredo, o filho de Leovigildo e rei dos Visigodos, perdendo-me em aliterações para compor a prosódia. Deveria ser um mundo esplêndido aquele que tais nomes descobria para distribuir por quem deles necessitava. Olho as mãos e as manchas de chocolate continuam à espere que me levante e as vá lavar, mas não posso abandonar o rei nesse momento difícil, em que o vejo converter-se da heresia ariana à fé de Roma. Convertido o rei, a fé contaminou o reino visigodo. Tenho de vigiar a história para que ela chegue até aos meus dias e eu possa escrever o que estou a escrever. Tremo só de pensar que Recaredo, abandonado a si mesmo, se arrepende e volta ao arianismo. Tudo seria diferente e eu não estaria aqui com as mãos sujas de chocolate nem a criança que lá em baixo se deixa ir embalada pelo estrugido mecânico que não se cala. O domingo progride dentro de mim. Alguém, suponho que o autor destas palavras, diz-me em tom imperativo: lê isto. Nem olho. Respondo: não leio. Hoje é o dia do Senhor, vou meditar na conversão de Recaredo e lançar um anátema ao arianismo. Servo, posso ser, mas não é voluntária a minha servidão. Agora vou lavar as mãos.

sábado, 12 de outubro de 2019

Tornar-me Domingo

Adicionei ao meu eReader um livro do príncipe Piotr Kropotkin. Nunca tive uma alma dada à rebelião contra a existência do Leviatã. Para seres que albergam dentro de si um catálogo ilimitado de monstros, não me parece uma ideia sensata libertá-los do temor pelo monstro bíblico. Sei que almas sensíveis e outras que nem tanto gostam de se afirmar anarquistas, pelo menos ao sábado à tarde. Vou ler o livro como se lesse um romance, mas antes disso terei de atravessar a cidade para uma visita. Melhor que ser anarquista aos sábados à tarde é ir aonde nos esperam e temos o dever de ir. O vento não pára e as persianas da janela chocalham, enviando-me mensagens num código que não consigo decifrar. Também não será mentira se se disser que muitos são os códigos para mim indecifráveis. O autor destes textos poderia ter-me feito um pouco menos limitado, conceder alguma graça e deixar-me ser, aqui e ali, um pouco mais inteligente. Não quer. Um dia ainda me revolto e, contra ele, torno-me anarquista, daqueles que habitavam o mundo de O Homem que Era Quinta-Feira. A minha ambição será então tornar-me Domingo.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O ranger do dia

Parecem gritos de aflição que um animal lança em desespero para partilhar a dor que lhe dilacera o ânimo. Uma ilusão, sei-o bem, pois não é mais que o ranger rouco e angustiado do baloiço que vai e vem, numa repetição intérmina, no parque infantil lá em baixo. Não começa bem a tarde de sexta-feira. Leio um poema e nele encontro araucárias e magnólias, mas se olhar pela janela apenas dou conta de cedros e pinheiros. Ao longe descortino um cipreste. Há tempos, um amigo vindo a esta terra pela primeira vez perguntou-me por que razão havia tantos ciprestes nos campos. Não soube o que lhe responder e a partir desse dia reparei que os havia por aqui mais do que noutros lados. Somos cegos para aquilo que vemos, foi o que me ocorreu, agora que o ranger doloroso se apaziguou. Se me habituar a ele, deixarei de o ouvir. Sinto o dia deslizar. Range como se gritasse dorido pelo punhal do entardecer que lhe abre o peito. Devia eliminar comparações e metáforas, conjecturo, mas o autor não mo permite. A nossa inimizade progride. Penso no punhal, mas ele leva-o para longe e guarda-o num cofre de que só ele conhece o segredo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Falta de apetite

Tenho de levar o carro à oficina, mas não me apetece. Tenho, aliás, uma série de coisas para fazer para as quais me falta o apetite. Ao escrever esta palavra lembrei-me da saga que eram as minhas refeições. Não tem apetite, dizia-se. Recusava-me a abrir a boca, vomitava, não mastigava a comida. Imagino o exaspero da minha mãe nessas horas épicas. Naqueles tempos acreditava-se em coisas inimagináveis. O Ceregumil e o óleo de fígado de bacalhau. Parece que vinham de Espanha, frutos do contrabando, trazidos por alguém conhecido. Ao primeiro, ainda anuía, apesar de reticente. Ao outro, a minha submissão era mais difícil. Um nojo. Não imagino se aquilo fazia bem a alguém. A verdade é que não morri. A certa altura, fui operado à garganta para extracção das amígdalas, coisa que então estava na moda, e, milagre, o apetite nasceu de um dia para o outro. É este o meu problema. Falta-me o apetite para muita coisa, não tenho fé no Ceregumil nem no óleo de fígado de bacalhau e já não tenho amígdalas para extrair.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Uma quimera senil

Chegam a passar meses, mas de súbito o perfume ressurge perdido dentro do elevador. A primeira vez que me deparei com ele a minha alma rangeu, literalmente. Como era possível? Não era um perfume floral a sublinhar uma feminilidade reservada. A força e o calor que se evolava da fragância era de alguém que não teme o olhar indiscreto. Uma intensa curiosidade apoderou-se de mim. Com o tempo e a repetição, aquele odor foi modelando alguém que me assombra os sentidos. Não vale a pena descrevê-la. Alturas há que chego a sentir-lhe a pele a deslizar sob o império dos meus dedos. A construção do corpo foi um trabalho demorado. Começou, nesse primeiro encontro, com uma figura geral, desejável, embora indefinida. Conforme as experiências se repetiam, o perfume, como um vinho vigoroso, diferenciava-se dando-me a ver ombros, seios, o ventre. O desejo nascido no olfacto ia compondo aquela que era a fonte de um devaneio ridículo, de uma quimera senil nascida numa animalidade cansada. Sonhei-a acordado e a dormir, sonhei-a a cores e a preto e branco. Apenas os olhos se recusavam a nascer da fragância. Depois de um intervalo de várias semanas, anteontem, ao entrar no elevador, lá estava o cheiro que me atormenta. Ao fechar a porta, os olhos revelaram-se-me. Olharam-me onde ninguém me pode olhar. Estremeci. A partir de então subo e desço aterrorizado. Agora que o objecto do meu desejo se completou temo que a realidade, que durante tantos anos me evitou, invada os meus sentidos e faça naufragar o navio onde a fantasia viajou na esperança de um porto desconhecido.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A passo

Antigamente conhecia por aqui vários loucos. Tinham enlouquecido lentamente, uns, outros eram-no desde sempre ou foram vítimas fulminantes de um esgotamento, como se dizia na altura. Não sei se fui eu que me afastei do local por onde eles deambulavam ou se foi a morte que os livrou da sua loucura. Sei que eram estimados e enquadravam com recato na paisagem social. Talvez fossem um espelho para nos certificarmos que fazíamos parte do grupo que ainda não tinha endoidecido. Hoje, ao passar pela avenida, deparei-me com um que não conhecia. Caminhava depressa e imitava o trote de um cavalo, enquanto com um pingalim batia na própria perna dizendo nada de galopes, nada de galopes. Segui-o com os olhos, até que ele se perdeu no horizonte ensolarado, escondido entre a sombra dos transeuntes que o olhavam com desconfiança. Parei e uma estranha deliberação tomou conta do meu cérebro. Estava na dúvida se deveria seguir a trote ou a galope para o sítio que me esperava. A hesitação demorou uns instantes. A passo, disse-me, até por que me falta o pingalim para me fustigar na perna e apressar o andamento.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Ensaio sobre a vida

Há quem perca a vida de um momento para o outro e há aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la. Nem no exercício da perda há igualdade. E eu que fui tão igualitário. Aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la sofrem de uma qualquer dissonância cognitiva que os impede de perceber o sentido de estarem neste mundo. Alguns deles chegam depois de múltiplas experiências e longas meditações à conclusão de que não tem sentido nenhum, outros nem isso. O importante é que se continue, a perda é sempre certa. Talvez tudo isto me tenha ocorrido pela minha actividade da manhã ou como antecipação da que virá a meio da tarde. Hoje atravessei a cidade e não reparei em coisa alguma, só a mecânica dos hábitos me permitiu fazê-lo sem sobressaltos. Todos os dias dou mais um passo para dentro de mim, vou cerrando porta a porta até que já não conheça nada nem ninguém. Isso é triste, dizem-me. Talvez, mas não tenho nada para vender e não há mercadoria que o meu desejo cobice.

domingo, 6 de outubro de 2019

Cenas de um domingo eleitoral

Pela primeira vez o meu neto ficou sozinho com os avós. Chegou eram oito da manhã. Vinha a dormir e quando acordou trocou-me pela avó. Como recompensa levei-o a votar. Não me pareceu particularmente entusiasmado e eu nem sequer lhe mostrei o boletim de voto. Na realidade, entre a descida pelo elevador, o atravessar a estrada, a entrada na escola e a ida à secção de voto, quase que adormeceu. Segurou-se, bocejou, aguentou firme na fila para recolher o boletim. Não protestou quando fui à cabine de voto. Nem sequer teve curiosidade em saber em que partidos os avós votaram. Uma olímpica indiferença. Só espero que, quando começar a exprimir por palavras a sua vontade, não diga aos pais que não quer ir para casa dos avós, que eles levam-no a votar. Agora está a dormir ao meu lado. Mais logo veremos uns desenhos animados no computador. Daqui a uns meses iremos ao parque infantil lá em baixo. A vida passa depressa.

sábado, 5 de outubro de 2019

Meditação transcendental

Hoje é um dia especial, uma hora solene votada à meditação transcendental e à reflexão, para que amanhã possa preencher o papel a depositar na urna em consciência plena. Vi por aqui um conselho interessante para meditação, o de O Livro das Falácias, de Jeremy Bentham. Não é uma ideia desprezível e a meditação seria agradável, por certo, mas não transcendental, como a hora exige. Por mim, recolho-me e medito sobre a cláusula filioque. Será que o Espírito Santo procede apenas do Pai, no dizer dos cristãos ortodoxos, ou, como pretendem os católicos romanos, precede do Pai e do Filho. Não se pense que a pendência não teve consequências práticas dolorosas. Levou ao Grande Cisma do Oriente e talvez sem este Constantinopla não tivesse caído na mão dos infiéis. Como se vê, o assunto é momentoso e apropriado à situação grave em que nos encontramos. Como decidir a precedência do Espírito Santo e dissolver a querela teológica não faço ideia. Não estou só, embora os teólogos de ambos os lados tenham certezas antagónicas. A minha convicção, porém, segreda-me que o Espírito Santo me iluminará amanhã na cabine de voto e me contemplará, ao sair dela, com um jackpot, segredando-me no silêncio da minha razão a sua verdadeira origem. Até lá, estarei em reclusão meditativa. Transcendental, claro.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A campanha alegre

Na caixa do correio tive, de novo, a evidência de que se estará em campanha eleitoral. Não sei se será uma prova irrefutável. Durante estes dias ainda não encontrei nenhum daqueles carros que, nos dias que antecedem o depósito do voto nas urnas, nos anunciam o paraíso que há-de vir, bem como os santos que nos hão-de ajudar, com o seu exemplo casto e virtuoso, a encontrar o caminho da salvação. Ao atravessar a cidade, pensava nestas coisas e ocorreu-me que os santos – na verdade, santos apóstolos – estejam cansados ou, então, perceberam que ninguém quer comprar uma estadia nos paraísos à disposição. Não tarda e teremos eleições civilizadas, sem gente a arruar por aqui e por ali, sem bombos e zés pereiras, palavras inúteis e gestos dispensáveis. Não sei o que me deu hoje para falar de política, mas presumo que sexta-feira seja um dia que nos inclina para a demência. Ainda discuti com o autor destes textos, fiz-lhe ver que o assunto não se quadrava com a minha índole, mas ele foi inflexível e pôs-me, para infelicidade minha, estas palavras na boca. Cansa-me o déspota.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Irrelevâncias

Demorei um tempo sem fim a encontrar uns documentos digitais sobre os quais tenho de trabalhar. Tinha-os deixado de lado há dias e, ao querer voltar a eles, não os encontrava. A hipótese de os ter apagado de forma inadvertida foi o que me ocorreu. Lá fiz as pesquisas que tinha de fazer e nada. Por fim, encontrei-os precisamente no lugar onde deveriam estar. Tinha-me esquecido desse lugar. Nada disto me exalta como herói de uma narrativa. Mesmo num tempo como o actual, um herói não trabalha sobre documentos irrelevantes, para produzir outros ainda mais irrelevantes que hão-de ser louvados na sua absoluta irrelevância. Por outro lado, um herói que se digne de o ser tem uma boa memória e, para além dela, uma inteligência verrumante que, em caso de falência memorial, perfura, no tempo de um relâmpago, o espesso véu do esquecimento. Os deuses decidiram não me dar nada disso. Resolveram, na sua douta sabedoria, que eu deveria ser o prolongamento da irrelevância dos documentos com que tenho de compor a realidade. Sem tristeza aceito o decreto e mergulho na composição de mais uma insignificância. O que me vale é que depois de almoço hei-de passar a tarde a dar de comer a quem não tem fome. Ao menos que me fosse dado o talento de confundir moinhos com gigantes. Nem isso.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Profetas

Pouco frequento cafés. Apesar de múltiplas tentativas, sempre os achei desconfortáveis para ler e, no entanto, eles são uma fonte narrativa que não deveria desprezar. Hoje entrei num. Numa mesa, um homem fulminava os acompanhantes e na sua boca geminavam-se confusamente pragas dirigidas aos homens e injunções que a serem cumpridas os salvariam a todos. O mal do mundo, cogitei, é não darmos ouvidos aos profetas que nele abundam. Entramos num táxi e, se não nos cuidamos, apanhamos com a sabedoria infinita de um Jeremias ou de um Daniel. Passamos distraídos pela rua e a uma esquina lá está um Zacarias irado. Não haverá, porém, lugar mais próprio para a profecia do que um café. Na mesa ao lado do fulminador, duas mulheres ainda novas entreolhavam-se. Havia nelas vontade de escarnecer do profeta, mas continham-se não as fulminasse ele com um raio. Saí dali como quem sai de uma página do Antigo Testamento. A rua acolheu-me benevolente. Olhei o céu e nele não havia sinais da cólera divina. Respirei fundo, entrei no carro e pensei no anunciador de futuros. É pena que não saiba que ninguém é profeta na própria terra.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

O fascínio da fé

Fascina-me sempre a fé que as pessoas têm na sua própria opinião. Também eu terei tido fé nas minhas opiniões. Depois, tornei-me agnóstico e, hoje em dia, sou francamente ateu perante muitas das ideias que me atribuo. A primeira coisa de que desconfio é das opiniões que nascem dentro de mim. Deito-lhes um olhar enviesado, rosno-lhes e, se calha partilhá-las, não é porque creia nelas, mas para me livrar do seu cheiro negro, para evitar que azedem e me empestem os pulmões. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que o caminho da Cartuxa tornaria o mundo bem mais habitável. Isto, todavia, não passa de uma opinião, para qual também me falta fé. Li já não sei onde que a Cartuxa de Évora iria fechar e os monges partiriam para Espanha. Faz sentido, num país onde todos têm opiniões para dar, que não haja quem decida calar-se de vez e entrar na pátria do grande silêncio.

Terapia para o caos

Há um momento na tarde em que a luz parece fixar-se sobre o dia e assim tornar-se eterna. Depois, a ilusão desaparece e o tempo acelera, anunciando nos tons das árvores ou no matizado das paredes a noite que há-de vir. Lá em baixo, um bando de adolescentes entrega-se a rituais ruidosos, numa liturgia eterna, antes de entrar para um centro de línguas. Os dias outonais são-me propícios e acolho-os com a benevolência de um sorriso. À minha frente tenho um livro cuja capa reproduz uma gravura de Pieter Bruegel. Percorro-a com os olhos, demoro-me em cada uma das figuras e interrogo-me sobre o que motiva o autor para a teratologia. Também no meu inconsciente habitarão terríveis monstros, mas faltar-me-á coragem para os trazer à luz e com eles compor uma figuração do caos. Chega até mim a voz de uma mãe a perguntar a uma filha se está aí. Depois, diz Maria, Maria. Não se ouve resposta, apenas o ranger rouco de um baloiço. Ao longe, a crista dos cedros inclina-se, dobrada pelo vento. Outubro entrou vitorioso pelo calendário. Enquanto continuo a espiar a gravura de Bruegel, oiço um grito prolongado de golo. Por cada golo gritado, penso, adormece um monstro no fundo do coração daquele que grita. Uma terapia para o caos.

domingo, 29 de setembro de 2019

A alegria do guarda-redes

Não sei o que aconteceu, mas aquela melancolia dos domingos à tarde parece ter-se desvanecido. Não é que tenha razões para tal. As segundas-feiras continuam a seguir-se aos domingos e não me deixaram de trazer com elas os imperativos com que a necessidade me carrega. Lembrei-me, ao pensar nisto, do livro de Peter Handke, que deu origem a um filme de Wim Wenders, A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty. O que angustia o guardador das redes é não saber o que adversário vai fazer, para onde vai atirar a bola. Isso não se pode comparar com a melancolia dos domingos, pois esta nasce de se saber bem de mais o que o dia seguinte traz. Lá fora, a noite progride, cavalga sobre o casario, ri-se das luzes com que os homens fingem deter o seu império tecido na urze das trevas. O silêncio tomou conta das ruas e o último guarda-redes, depois de se atirar para o lado errado, vai a pé para casa, alegre por amanhã ser ainda segunda-feira.

sábado, 28 de setembro de 2019

Compêndios

Comprei um livro que se apresenta como compêndio. Não interessa para o caso aquilo que ele compendia, mas é um sintoma de que, finalmente, percebi que a vida não é eterna. Quando não o sabia e pensava ter a eternidade à minha frente recusava-me a comprar compêndios. Hoje inclino-me para os epítomes – que raio de palavra fui buscar para dizer resumos – e, não tarda, hei-de mesmo compreender a velha estratégia das Selecções do Reader’s Digest de condensar obras literárias. Sábado é um dia que se abre à futilidade. Fui às compras, enquanto decorria a hora de almoço. É uma hora onde não se encontra ninguém. Fiquei, contudo, preocupado comigo. Havia um conjunto de vinhos interessantes, mas nem me apeteceu olhar para eles. Segui em frente como se fosse cego ou nem um bom vinho me interessasse. Há dias que são difíceis de levar pela trela. O tal compêndio está à minha frente. Olho para a capa mas não me atrevo a abri-lo. Há coisas que é mais ajuizado não saber.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Uma irritação

Hoje irritei-me com um acontecimento da vida particular. Uma irritação mesmo naquela hora em que a tarde se afirma no seu mais negro esplendor, com o sol a coriscar e a calçada a arder diante dos meus olhos. Depois, há sempre um depois, olhei para a irritação e não consegui deixar de me rir. A realidade permanece intocada quer me irrite ou não. Esta intocabilidade do real quase me reconciliou com o mundo e a irritação como um fantasma dissipou-se. O vento faz tremular a folhagem das árvores e o sol reverbera nas paredes da escola que avisto da janela. Em tudo há um ar de fim-de-estação, um cansaço desabrido, um chamamento por qualquer coisa que não aquilo que temos de momento. Depois, a propósito de uma controvérsia matinal, lembrei-me de quando tinha quinze ou dezasseis anos e de todas as ilusões que guardava no cofre-forte da minha ingenuidade. Com o tempo, abri o cofre e as ilusões foram saindo pelo seu pé. Estou-lhes grato pela fantasia, mas hoje já não tenho paciência para elas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Mudanças

De súbito, voltei a escutar os pássaros meus vizinhos. Julguei que se tinham mudado, mas não ou, então, foi uma nova família que aqui se instalou. Lá em baixo, uma camionete de mudanças recebe os móveis de alguém que vai procurar outras paragens. Também eu mudaria de lugar se pudesse mudar de mim mesmo. Como não posso, o melhor é ficar onde estou, até que o próprio lugar se farte de mim e aja em conformidade. A manhã declina e um silêncio apoderou-se do mundo que me envolve. Talvez se esteja numa daquelas horas em que um deus se revela ou em que os anjos, cansados de vigiarem os homens, se juntam para jogar dominó. Olho ao longe. No parque de estacionamento do hospital, os pára-brisas multiplicam os sóis, num desejo de incandescência que me parece funesto. Os pássaros emudeceram e o único barulho que oiço é o dos meus dedos a afundarem-se nas teclas. O melhor é também eu entrar na casa branca do silêncio.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Amanuense

Podia falar sobre como uma virose me desacerta do mundo e faz crescer em mim um enjoo persistente, mas não falo. O desacerto é coisa antiga e não faltam por aí coisas que me enjoem. Estou irritadiço e cansado. No novo parque infantil, o baloiço ao mover-se para a frente e para trás grasna continuamente, espalhando pelo ar um aroma a crisântemos em dia de finados. Olho para as estantes e faço a contabilidade de todos os meus enganos. Deveria ser amanuense para passar o dia entre registos e certidões, deixando o tempo passar lentamente, sem que uma fantasia me tocasse, sem que um livro chamasse por mim, sem que um devaneio toldasse a marcha imperiosa do dever. Não há nada de melhor do que não ser nada. Acabada a função, entra-se pela porta do grande silêncio, sem que ninguém nos espere ou dê pela partida. Um dia pego numa esponja e começo a apagar o nome, a data de nascimento, o estado civil. Não há biografia mais autêntica do que a do soldado desconhecido.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Registos

Na minha secretária, feito de papel espesso sobre o qual apetece passar as pontas dos dedos, está um pequeno caderno salmão com uma bela fotografia na capa. Na primeira página, impressos a castanho, flutuam dois versos de um poeta cujo nome prefiro ocultar. Ofereceram-mo pelo menos há cinco anos, talvez há mais, muito mais. Tenho lá algumas coisas escritas, mas não passam de trivialidades soturnas, entre elas anotações sobre o romance Pasenow ou o Romantismo, do tríptico Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Noutra página descubro umas observações pretensiosas sobre a ideia de Jesus Cristo como Urmensch. Tudo o que lá encontro dá-me, de imediato, um desgosto implacável. Só as páginas em branco fazem crescer em mim a alegria, que recompenso com a promessa de nelas nada escrever. Nunca fui dado ao registo das coisas inúteis que me ocorrem.

Da vida amputada

Depois de almoço fui atormentado por uma sonolência infame. Cabeceei, adormeci por instantes, para acabar por acordar sem ter dormido. Imaginei-me dentro de um sonho, cujos contornos logo se esvaíram. O peso das pálpebras é o pior. Nada mais difícil do que a ascese da vigília. Nem a frugalidade monástica da refeição obliterou a tentação. Deveria escrever sobre a vida amputada mas não me ocorre nada que mereça ser dito. Ontem fui ao cinema. Uma plateia ansiosa esperava acção decidida, mas a obra explora a lentidão com que os sentimentos se desenham debaixo da pele para depois brotarem na sua crueza. Ao sair da sala pensei que a tensão entre pai e filho no filme é uma brincadeira sem astúcia nem engenho se comparada com a de Johan e de Henrik no último trabalho de Bergman. Por outro lado, depois de Eça ninguém, num romance ou num filme, deveria ousar trazer o incesto para o enredo. Daqui a pouco terei de entrar para dentro do reino da necessidade e esgaravatar na terra húmida das coisas que não interessam. Nem a mim, nem a ninguém. Talvez seja isso o que há a dizer da vida amputada.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Betabloqueantes

Na farmácia, venderam-me a colecção completa de medicamentos que me prescreveram para baixar o ânimo da tensão arterial. Esta tem tendência para exorbitar e passear pelo meu corpo a sua mania das grandezas. Como eu, também ela é dada à hipérbole. Sofre de um excesso de retórica e de pouca prática da virtude da humildade. Saí da botica pacificado e tranquilo, sabendo que tenho à mão aquilo que há-de humilhar essa pretensiosa. Enquanto calcorreava a avenida em direcção a casa lembrei-me dos primeiros tempos em que tomei um betabloqueante. Tudo o que me aborrecia e irritava desapareceu, como se o pequeno comprimido fosse um portal para o paraíso. Desejei que fosse eterno o efeito, mas como em tudo na vida, também nos betabloqueantes o hábito mata o prazer. As irritações e aborrecimentos voltaram a irritar-me e a aborrecer-me, disse-o ao médico que me olhou com ar complacente e confirmou que a vida é assim. Esta sólida sabedoria deixa-me sempre estupefacto, perguntando-me como não me tinha ocorrido tal coisa. Na rua procuro as sombras e calcorreio o passeio em passo lento. Um cão ladra, adolescentes retêm a sua adolescência a caminho da escola e um casal entra para um carro ajoujado ao peso da mútua presença. Não precisam de betabloqueantes, pensei.

domingo, 22 de setembro de 2019

Um conflito insanável

Entre mim e o autor destas linhas há um conflito que já nada parece poder sanar. Arroga-se a um poder exorbitante, como se eu fora um produto das suas faculdades demiúrgicas. Atribui-me palavras e sentimentos segundo o seu arbítrio, nega-me os anseios que me percorrem a alma, faz minhas pessoas e coisas que não reconheço. Obriga-me, e essa é uma palavra benevolente, a escutar o que não me interessa, como as palavras que há pouco, numa paragem de auto-estrada, dois homens trocavam sobre a cavalagem do carro que um deles tinha comprado. Uma oportunidade, dizia um e outro anuía, com a inveja a dançar-lhe nas órbitas por não ser sua a oportunidade. Eram coleccionadores de oportunidades e amantes de cavalaria. Há dias arrastou-me para um enigma leviano sobre hibiscos numa escola. Outras vezes faz-me falar de família que não tenho. Toda esta servidão gerou em mim o desejo insensato de lhe cravar no peito a lâmina afiada deste punhal que ele inventou. O que vale é que a tarde cai, despenha-se velozmente pelo crepúsculo de cinza em direcção ao abismo da noite. Engulo então o rancor que só o autor destas linhas tem o poder de fazer nascer no meu coração. Ao menos que me fizesse corajoso.

sábado, 21 de setembro de 2019

Comprar papel

Choveu mas não encontrei nas ruas o cheiro terroso das primeiras chuvas. Talvez tenha ficado esquecido em algum portal da infância. Há coisas que se escondem para que o uso não as degrade. Um vento fresco não pára de entrar pela janela e invadir-me o escritório. Um exército invisível desfila então perante mim. Sinto-lhe o ímpeto guerreiro e a mão esquálida que transporta nela o frio que há-de colar no corpo dos soldados mortos na batalha. Hoje tive de entrar num prédio onde não ia há décadas. A melancolia insinua-se sempre perante a devastação que o tempo tece. Fecho a janela. Passo em revista as tarefas que tenho pela frente. Não encontro nenhuma mais importante e urgente do que ir comprar papel para embrulhar o presente de uma das netas. É o que dá o comércio electrónico. Oiço o último trabalho de Ludovico Einaudi, Seven Days Walking. A música desliza pelo corpo do dia, reveste-o de seda e cinza para que ele pareça triste. No entanto, sábado resiste, enquanto as nuvens voam para leste. Ir comprar papel, essa é a verdadeira urgência.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Da perfeição

Assomo à janela e vejo o alcatrão molhado. Os carros deslizam com precaução acrescida e o céu entrega-se contrafeito nos braços do Outono. Na minha secretária está o livro de Michael Sandel, Contra a Perfeição, uma tradução brasileira trazida por um amigo. Devia ler a obra no original, mas encolho os ombros e pergunto-me para quê. Tudo é agora demasiado tarde. O título reconcilia-me com o mundo. A luz do sol intensificou-se um pouco ao encontrar uma camada menos densa de nuvens para atravessar, mas logo volta ao tom umbroso, escurecendo com sombras de melancolia o verde das árvores perfiladas diante dos meus olhos. Oiço o vozear de crianças a afastarem-se. Estamos numa época em que abundam os salvadores. Uns salvam a pátria, outros o planeta, haverá até quem se proponha salvar o universo, imagino. Eu não quero salvar nada nem ninguém. Fecho a janela e rio-me da previsibilidade de tudo, da minha própria previsibilidade. Das colunas sai a Paixão segundo S. Lucas, de Penderecki. Talvez Deus exista. Um email convida-me a responder a um questionário de satisfação. Lembro-me do I can get no satisfation, dos Stones e decido responder para mostrar o máximo agrado. Talvez ajude uma pessoa que nunca hei-de conhecer a manter o emprego. Também tu, digo-me, gostarias de ser um salvador. Rio-me mais uma vez e ocorre-me um versículo de Mateus: Sede vós perfeitos como é o vosso Pai que está no céu.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Parcos poderes

Um dos sites meteorológicos informa-me que o céu está nublado. Abro a janela e confirmo, a realidade não se enganou e comporta-se tal como a previsão determina. O ar fresco entra pelo escritório, inunda-o com uma esperança fugidia. Os hibiscos da escola persistem na sua floração exuberante, indiferentes à volubilidade do tempo, lançando pequenos raios garridos na cinza da manhã. Com tempo assim gosto de viajar. Logo me lembro de uma visita em dívida a um amigo que fez no Alentejo o seu Vale de Lobos. O roncar de um motor e o piar mecânico de uma máquina em manobras desviam-me a atenção e deixo o meu amigo sossegado no seu exílio. Devia passar pelo banco, mas é lugar que evito de bom grado. Se pudesse prendia esta manhã ao calendário, para que ela não deslizasse em direcção à tarde, mas os meus poderes são parcos.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Enganos

Enganei-me na hora aprazada para o meu encontro com a aparência e a realidade. Cheguei à encruzilhada demasiado cedo e tive de esperar longamente por elas. Ao voltar para casa, a Antena 2 transmitia um programa sobre Hildegard von Bingen. Morreu há 840 anos, precisamente no dia 17 de Setembro. O locutor lembrou-se de citar um estudo de Oliver Sacks, o autor Do homem que confundiu a mulher com um chapéu, sobre as visões da freira medieval. Seriam causadas pela enxaqueca. Ficamos todos mais descansados, ainda bem. Saio do carro, subo meia dúzia de degraus e abro a caixa do correio. Uma carta mas não para mim; dois panfletos de partidos políticos, de sinal contrário, repousam um sobre o outro em terno amplexo amoroso. Comovo-me e esqueço-me de os deitar no caixote do lixo. Transporto-os com cuidado para casa não vão eles soltar-se e acusar-me de interferir na sua privacidade. Agora, oiço a música da freira que sofria de enxaquecas e deixo que o silêncio desça sobre mim. Toda a minha vida foi um longo casamento com as aparências. Que se me perdoe a poligamia.

Depois de acordar

Quando me levantei uma neblina cobria a manhã com uma promessa de frescura. Da janela, olhei-a com desconfiança e recolhi-me de imediato como quem foge do convívio de alguém que tem o ludíbrio por modo de vida. Depois de acordar, levo tempo a sintonizar-me com a luz do dia. Desloco-me em silêncio e mal olho para o que me envolve. Enraízo-me lentamente no estado de vigília para cumprir a agenda que um deus desavindo comigo me deu por destino. Ainda não me ocorreu o nome dos arbustos que florescem no parque da escola ao lado. Há dias que olho para eles e pergunto-me sempre pelo seu nome. Nos campos de jogos, adolescentes correm e gritam, libertam-se do excesso de adolescência que os devora. De súbito, o nome de hibisco vem-me à memória. Serão hibiscos o que daqui vejo. Despacha-te, digo-me. Numa encruzilhada tenho um encontro marcado com a aparência e a realidade. Não posso chegar tarde.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Exercícios de compensação

Um exercício de compensação. Estou a ouvir o Gurdjieff Ensemble porque na sexta-feira não posso estar na Gulbenkian para assistir ao seu concerto. A maior parte das coisas que fazemos são substituições daquelas que gostaríamos de fazer. Eu sei que vivo rodeado de heróis que só fazem aquilo que bem entendem, antevejo mesmo as suas estátuas a ornamentar as ruas do futuro. Como só tenho passado, estive a manhã empenhadíssimo a fazer coisas que tinha de fazer. É uma provação ficcional. Depois regressei, entrei lentamente em casa e sentei-me diante da televisão. As imagens passavam e eu passava com elas, sem saber do que tratavam, raptado pelo vazio que se abria em mim, um buraco negro pelo qual a vida entra sem que possa dali alguma vez sair. A música arménia flutua no ar e logo desce sobre mim. Como um Cristo cansado da morte, abro o túmulo e saio ao encontro de quem não me espera. Irrita-me a lentidão com que o word abre o thesaurus e desisto de alterar uma palavra que me está a irritar.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Um pendor para a repetição

A canícula continua incólume. Mal escrevo isto dou-me conta da aliteração e hesito. Talvez devesse escrever outra coisa, antes que alguém me diga para ir aliterar para outro lado. Há pessoas que têm tendência para me olhar de esguelha e eu compreendo-as. Depois de meses de sossego voltaram, ao espaço escolar aqui ao lado, os gritos agudos e os ruidosos risos da histeria. Mais à frente virá a música dos bailes dos anos setenta e as Oscofórias das eleições académicas. Submeto-me passivo e paciente, como um passageiro que num grande transatlântico viaja em terceira classe. É essa a minha glória, ir pela vida fora sentado em cadeiras de pau. Como disse ontem, tenho uma natureza anafórica e, acrescento hoje, um ser dado à aliteração e à assonância. Já hoje me repeti diversas vezes, embora com modulações de ritmo diferentes. No outro dia respondi a um interlocutor, queria puxar-me o pé para literatice, que os recursos estilísticos são apenas formas de vida, fazem parte de uma ascese existencial como os exercícios espirituais para aqueles que aspiram à glória dos altares. Olhou para mim e havia nele desalento e um democrático desprezo, com o seu olhar a insinuar a minha demência. Na realidade, até eu me canso de mim. Não compreendo por que razão o autor destas palavras me criou assim. Desconheço-lhe os motivos, se é que os tem, os desejos e até a biografia. Nunca tive engenho para narrador omnisciente.

domingo, 15 de setembro de 2019

Uma natureza anafórica

Como o calor não abranda tive de ir a uma superfície comercial dedicada à bricolage. A missão era comprar umas redes para colocar nas janelas e, tendo estas escancaradas para que o ar fresco tempere o desvario, evitar que moscas e melgas mais distraídas entrem impetuosas casa dentro. Ainda não me converti a um amor universal a todas as formas de vida. S. Francisco, decididamente, não é o meu santo padroeiro. Nada me inclina a amar o piolho, a mosca, a varejeira, a vespa, o percevejo, a barata e, acima de tudo, a melga. Aliás, entre mim e as melgas há uma relação tensa. Elas desejam-me como nada nem ninguém me há-de alguma vez desejar e sempre que têm oportunidade até o sangue me bebem. Eu não me faço rogado e mato-as. Só espero que não seja crime. A verdade é que não suporto o amor que elas me dedicam. No parque da escola que há aqui ao lado avisto uns arbustos em flor, um pontilhado rosa a fosforescer por dentro de nuvens de verde. Tento sintonizar os olhos, mas não consigo perceber do que se trata. O conhecimento da flora não é coisa que faça parte da minha carteira de conhecimentos. O domingo, depois do almoço tardio, enlanguesce sob nuvens esparsas, indecisas. Amanhã será outro dia, penso e de imediato me sinto pacificado com a minha inclinação para o lugar comum e a iteração. Num mundo em que toda a gente é inovadora e criativa, a mim coube-me a repetição como destino. Tenho uma natureza anafórica e isso explica tudo.

sábado, 14 de setembro de 2019

As magnas questões da humanidade

Hoje é sábado e não sei o que hei-de dizer de um dia assim. Se estivesse de férias iria comprar um jornal em papel e lê-lo numa esplanada. Não o estando, evito as esplanadas, as conversas que me assaltam e ferem o meu desconhecimento do mundo. Preciso do dia para meditar sobre os grandes problemas da humanidade. Mal acordei, assaltou-me um, e não dos mais pequenos. Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete? Já a exacta formulação da questão é um enigma. Como em tudo na vida, também aqui se formaram dois partidos, que se enfrentam com brios sectários, erguer de cruzes e figas para se protegerem do inimigo. Uns dizem que os gloriosos anjos dançam na cabeça de um alfinete, outros afirmam, enquanto murmuram anátemas, que o fazem na ponta de uma agulha. Sobre o lugar do baile, declaro-me agnóstico. Envolvo-me colérico na disputa teológica sobre se um corpo espiritual ocupa ou não espaço, mas logo me distraio e começo a pensar em anjos bailarinos, imaginando-os a dançar um Bolero, talvez um Tango, mesmo um Fandango, pois também os haverá no Ribatejo, daqueles que protegem forcados e toureiros e que, cheios de afición, hão-de gritar olés, enquanto, na cabeça de um alfinete ou na ponta de uma agulha, dançam um Paso Doble. Não sei de maior amor à humanidade do que pensar em anjos. Talvez um dia escreva sobre as potestades, os tronos e as dominações ou sobre a cláusula filioque, que nada tem a ver com anjos. Esmagam-me as magnas questões da humanidade.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A estupidez sem fim

Venho de uma sala cheia de gente. O pólen do calor pousava lentamente nas cabeças e descia pelos corpos ofegantes, cavando finos sulcos por onde o suor deslizava, pequenos córregos onde buliam restos de poalha. Havia quem se abanasse, quem suspirasse, enquanto o tempo, como uma rapariga grávida, inchava sem quietação. Quando Cronos, desinteressado da tortura, determinou o fim da função, saí. Disfarçado com a farda do silêncio, escapuli-me, procurando sombras e esconderijos fortuitos. Entrei no carro. Este, exposto ao sol como um recém-nascido abandonado na roda, ardia. Levou tempo a arrefecer. Cruzei a cidade como quem atravessa o Saara, sonhando com oásis ou com aqueles reinos do norte que limitaram drasticamente os devaneios de Hélio. Os olhos ardiam. Estão secos, disseram-me. Chegado a casa sentei-me a beber água. Não há água, porém, que me purifique da idiotice com que revesti a vida. Em cima da secretária dorme pacificado um livro. Não faço ideia da razão por que o comprei. Um impulso do momento, o mais certo. Tem por título O tempo em que a luz declina. Talvez a alusão ao declínio tenha desencadeado a compra. Recebo um recado e penso que vem aí tempestade. O vento baforeja o seu hálito quente, sob um céu macilento, terroso, arrastado por uma música envinagrada. Olho para a minha vida e começo a compreender aquelas procissões de flagelantes que assombraram o fim da Idade Média. Não, não era para atingirem o paraíso que se flagelavam, mas para se punir da sua infindável estupidez.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Gatos e malas vintage

Poderia dizer que o meu computador parece um gato. Isso, porém, não estaria de acordo com a realidade. É mais exacto afirmar: o meu computador é um gato. Dei-lhe um comando e ele, irritado e altivo, desatou a soprar ameaçador, com vontade de me trincar. Juro que lhe vi o dorso arqueado, o pêlo a eriçar-se-lhe e os dentes ostensivamente ameaçadores, numa boca de onde nascia um vendaval. Está tudo perdido, pensei sem saber o que fazer para acalmar a fera. Estava nesta indecisão quando ele decidiu calar-se, desarquear os costados e oferecer-se ronronante à actividade dos meus dedos. Respirei fundo, pois o ânimo dos gatos não se confunde com a subserviência canina. Salvo da indisposição da máquina, entro pelo domínio mirabolante da internet. Corro por ela como se fizesse uma maratona. A certa altura sou assaltado por um anúncio da TAP. Diz que vende sacos, a que dá o nome de malas vintage. Lembro-me de em adolescente ter uma que usava para transportar o equipamento de ginástica. Naquela altura eu não sabia que o saco era uma mala e ainda menos vintage. A verdade é que não devia sequer saber o que era vintage, pois sempre fui muito serôdio em tudo na vida. Agora que sei o que é vintage falo de coisas que não interessam a ninguém e confundo gatos com máquinas. A perfeição não é, por certo, o meu destino.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Sinfonia concertante

Toc-toc-toc. Toc-toc-toc. Há nas mãos do calceteiro que compõe a calçada junto ao parque infantil um ritmo musical que lhe orienta a técnica. Um percussionista dedicado. Sabe que a pedra se acomoda apenas com três batidas compassadas e assim vai cobrindo a terra nua, vestindo-a com a brancura do calcário. A batida compõe-se com os outros sons que vêm da rua. Uma criança arrasta um carro que arranha o cimento, as vozes murmuram alto e, mais que tudo isto, o som do silêncio que se desprende da serra. Estes sons chegam-me pelas janelas abertas e perfuram-me o sossego. Diante de mim, empilham-se documentos para ler, dados para analisar, mas nada disto é musical, nada disto tem o poder de compor uma sinfonia concertante como aquela que o acaso dos encontros compõe ali em baixo, com solistas tão inusitados. Uma voz de homem insiste sobre uma qualquer verdade que só ele conhece e as mulheres da esplanada compõem trinados cheios de segundas intenções e pequenas malícias para despertarem a curiosidade entre a assistência. Olho para o céu e penso que o sol terá perdido um pouco do seu vigor. As ilusões nunca deixam de se pagar caro, ocorre-me de imediato.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estratégias editoriais

Talvez seja mais interessante editar livros do que ter leitores que os leiam. Ainda Agosto não tinha acabado enviei um email a uma editora dizendo estar interessado em comprar quatro livros por ela publicados e que não se encontram nas livrarias. É uma editora pequena mas com um catálogo interessante e um design gráfico também merecedor de atenção. Até hoje não recebi qualquer resposta. Talvez ninguém abra os emails, foi o que pensei. Depois ocorreu-me que alguém o tenha lido e que, olhando para o nome do possível comprador, achou por bem que eu não mereceria ter aqueles livros na minha biblioteca pessoal. Resigno-me a esta sabedoria editorial. Se eu fosse editor também só venderia livros a pessoas que tivessem um nome merecedor de os comprar. Seguindo o ensinamento groucho marxiano nem a mim mesmo venderia livros por mim publicados, mesmo que eu estivesse disposto a pagar o dobro do seu valor de mercado, o que não era o caso. Há que manter elevado o nível e evitar que certas palavras caiam sob os olhos profanos de um leitor desconhecido.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Demasiado tarde

A tarde nublou-se. Presumo que se trate apenas de uma pequena trégua na grande guerra das estações. O Verão tem destes ardis e como um camaleão lança mão do mimetismo, disfarçando-se com vestes de Outono para, sem este dar por isso, entrar-lhe em casa, ocupar-lhe o território e daí lançar os seus raides mortais. Mais do que um crepúsculo dos ídolos, estamos perante um crepúsculo das estações, afirmo com a confiança de quem cultiva dogmas. Se vivesse nos dias de hoje, faltaria a Vivaldi matéria para os seus concertos mais célebres, acrescento. Há dias que não oiço os pássaros meus vizinhos. É possível que, descontentes com a vizinhança, tenham mudado de casa. Como os compreendo. Resta-me agora o arrulhar dos pombos, o matraquear das persianas embaladas pelo vento, algum latido disperso e o infinito cacarejar da humanidade que se junta numa esplanada aqui em baixo ou chama pela filharada no parque infantil. Leio uns documentos a que não posso furtar-me e penso o que sobre eles hei-de escrever. Sensato seria não escrever nada, mais sensato ainda era não saber escrever. O cume da sabedoria teria sido Tamuz ter silenciado Thoth para sempre. Agora, porém, é demasiado tarde. Aliás, é sempre demasiado tarde.

sábado, 7 de setembro de 2019

Coisas de sábado

O sábado goteja gingão pelas paredes de caliça do dia. Cobre-o não a seda ou a cambraia, mas o veludo com que sufoca aqueles que entraram para dentro da sua casa. Estou sentado à sua mesa e perscruto-lhe os humores. A minha secretária está um caos, digo-lhe. Livros empilhados, uma garrafa de água vazia, duas esferográficas à espera de irem para o lixo, uma pilha para o comando do carro, cartões que não couberam na carteira oferecida pelas minhas netas, uma conta por pagar, moedas esquecidas e os cabos para ligar a máquina fotográfica ao computador. Detesto esta confusão, mas nos últimos dias tenho-a cultivado como uma espécie de compensação para o que vem aí. Talvez amanhã ou na segunda, tudo entrará na ordem. Os livros encontrarão o lugar nas estantes, as moedas recolher-se-ão esbaforidas na carteira e todas as coisas descobrirão no remanso dos respectivos lares a paz por que anseiam. Tudo isto é desolador, mas não mais desolador que o resto, mesmo aquelas emoções extremas com que nos iludimos e julgamos darem sentido ao que não tem sentido. A manhã já acabou e ainda não pus um pé fora de casa nem espiei a avenida onde, adivinho-o, gente ocasional desfila na passerelle ensolarada, com recortes de sombras que descem devagar dos ramos das árvores públicas, com as quais o município disfarça o deserto em que tudo isto se está a transformar.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Enlouquecer

As pessoas enlouquecem devagar, penso ao ver um grupo de mulheres sentadas à mesa do canto de um café cujo nome prefiro ocultar. De cabelos eriçados, zambras, o rosto cavado por rugas que nada disfarçará, fazem-se fotografar, em abandono estrepitoso, por fotógrafo de ocasião, um conhecido de há muito. Ele ainda não sabe que elas perderam a réstia de siso que as fazia, noutros tempos, calar tormentos, as dores que o ócio faz nascer em carnes secas e corações desocupados. Os homens enlouquecem de outra maneira, digo para mim mesmo. Começam a caminhar cada vez mais depressa para dentro do silêncio, até emudecerem. Então, com olhos mortiços e meditabundos, lançam olhares de suspeição para um ponto que só eles vêem. Se alguém passa por eles e os cumprimenta, nem dão por isso, tão presos à sua loucura e aos mundos que só ela ilumina. Fotografadas, as mulheres da mesa do canto entregam-se, em alvoroto, a risadas entumecidas pelo desvairo, presas aos vestidos cambados que nos protegem dos seus corpos macerados pelo tempo. A porta abre-se e entra uma mulher ainda bem longe da loucura, traz com ela uma criança de uns dois anos a quem chama Amélia, Amélia. Faz-se silêncio no café para que o nome da criança ressoe dentro da consciência dos clientes. E ele ecoa límpido, fazendo replicar as sílabas no desfiladeiro da boca da mãe. Findo o eco onomástico, o murmúrio do lugar retoma a sua rota entrecortado pelas gargalhadas de quem já nada tem a perder. O telemóvel avisa-me. Uma conhecida marca de GPS tem os novos mapas prontos. Um sinal do destino. Levanto-me e saio. Ao cruzar a porta, oiço Amélia, Amélia, mas isso já pertence a outro lugar, e não àquele que me espera e onde me preparo para enlouquecer. Há pouco ouvi a sirene dos bombeiros. Deve haver fogo por perto.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A casa do tempo

Para ir de casa ao lugar que me permite enfrentar os decretos da necessidade tenho de atravessar a cidade de lés-a-lés. Serve-me a travessia para exercícios de vigilância. Espreito aqui, lanço uma espiadela ali, faço-o à velocidade modorrenta com que um carro pode andar no espaço urbano. Tento descobrir-lhe o ânimo, compreender-lhe o espírito, tudo isso a partir de um corpo difuso, feito de prédios, rotundas, avenidas, castanheiros, quintais com limoeiros e buganvílias, pessoas que não sem bravura enfrentam o martelar furioso do sol. Não tenho alma de bairrista, penso quando passo perto do castelo. Falta-me o pathos que anima aqueles que amam o lugar sobre todas as coisas. Não pertenço ao espaço, nenhum lugar é o meu lugar. A minha casa é o tempo, sussurro para me distrair. É uma casa alugada a termo certo, embora não o conheça. Há alturas em que me sento perto da janela e olho o horizonte, mas o que vejo é a areia da ampulheta a deslizar pela fina garganta de uma para outra âmbula. Fascina-me essa queda contínua. Talvez por nela se esconder o mistério da minha morte, que será a única coisa que neste lugar assombrado não tem mistério.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A sombra do coração

Um piar mecânico insinua, na sua intermitência, uma máquina em manobra. Olho pela janela, mas não consigo descobrir onde se encontra. Pára, descansa do cântico uniforme, repetitivo, monótono, para, passados instantes, retomar a cadência invariável com que, ao avisar da sua presença, me entra pelos ouvidos. No parque infantil do espaço público contíguo, um baloiço, ao ir e vir, grasna compassadamente, como uma ave cujos bicos rangessem. Os carros ronronam, são gatos semiadormecidos, apenas acordados pelo silvar das sirenes que, cavalgando ambulâncias, abrem caminho em direcção ao hospital. Esta música vacilante e rude acentua uma sombra que me nasceu dentro do coração e inquinou a vista, dando-me uma paisagem turva, desfocada. Os olhos com que vemos o mundo, ocorreu-me, não estão ligados ao cérebro mas ao coração. Perdem a precisão do contorno mas ganham rigor na compreensão. Um novo ruído chega-me aos ouvidos, parece o de uma serra a abrir caminho, não sem dificuldade, por uma planície de ferro. Imagino o pioneiro a enfrentar a dureza da campina. A coruja mecânica retoma a melopeia, agora mais afastada. Os raios solares, ao embater nos prédios, também eles rangem. São cães a rosnar rentes ao corpo enfraquecido pela sombra do coração.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

A vida na província

Há pouco o calor caía em pingos grossos sobre as ruas. Há que pagar a conta de um arranjo doméstico e por isso não tenho outro remédio senão meter-me sob a intempérie bonançosa que cobre o rosto da cidade com a máscara do inferno. Entro na sede da empresa prestadora do serviço, sou recebido por uma temperatura decente e uma rapariga afável e diligente. Pago, dou o número fiscal e o email para receber, por essa via, a factura digital. Admiro o zelo e a ausência da pergunta se pretendo contribuinte. Saio, pego no carro e sou obrigado a passar pelo mercado. Hoje é terça-feira, a zona está cheia de gente e de viaturas que deslizam lentamente. Fico numa passadeira largos minutos, enquanto à minha frente flutuam os peões, com sacos na mão. Vejo pessoas conhecidas que nunca imaginei no mercado. Um dirigente político e um rapaz do meu tempo, bon-vivant e femeeiro contumaz, lá vão eles absortos e domésticos, prestáveis, reluzentes de suor, ajoujados às compras. Contribuem com denodo para a harmonia doméstica. Carros apitam, mas os peões vão na passadeira sem pressa, a pensar se terão esquecido alguma coisa ou onde deixaram o automóvel. Uma mulher jovem pára e acende um cigarro. O fumo evola-se entre os lábios e ela desaparece. Aproveito uma aberta e esgueiro-me. Tenho os vidros abertos e sinto o calor entrar para dentro do carro. A viagem será curta e evito o ar condicionado. Chego à avenida marginal e a exuberância que havia no mercado desapareceu. A garrulice que entretinha as gentes perdeu-se e a monotonia da província cresce para dentro de mim, como um punhal que procura no coração o alvo que o espera. O calor sangra pelas paredes.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A disciplina do exagero

Há dias em que acordamos rodeados de sombras. A janela com uma discreta abertura deixa passar um fiapo de luz que embate nos objectos para os transformar em fantasmas, aqueles mesmos que saíram dos nossos sonhos. Um acto falhado deixar assim a janela, pensei. Fazemos tudo para evitar as trevas mais negras, temerosos que assaltem o coração. Somos tripulantes de um navio de cabotagem, daqueles que fazem navegação costeira. As sombras são as águas que nos indicam que a luz está já ali. Confortados por essa certeza, voltamo-nos na cama, para que um sobejo de sonolência ainda permita um ou outro devaneio. Depois, levantamo-nos e quando nos confrontamos com o espelho fazemos uma careta, para disfarçar aquilo que o aleivoso teima em mostrar. Submetemo-nos então à água lustral para nos redimirmos da noite e nos purificarmos do lixo que vive no mais fundo de nós. Ao pensar tudo isto, entro pelo dia e lembro-me de um verso: Deixai toda a esperança, vós que entrais! Rio-me da minha propensão para a hipérbole, mas o que seria de todos nós sem a dura disciplina do exagero?

domingo, 1 de setembro de 2019

Setembro chegou

Gostava de saber lidar com o mês de Setembro, mas foi uma das muitas coisas que nunca consegui aprender. É um mês astucioso e esquivo. Quando se aproxima, o corpo macerado pelas penitências de Julho e Agosto deixa-se iludir pelo declinar dos dias e pensa-se liberto do calvário do Verão. Puro engano. Só agora a época estival começa. Não devia pensar assim deste mês, até porque lhe pertenço de corpo e alma, embora seja daquelas pertenças que não resultam da eleição mas do curso natural das coisas. Fui fazer uma visita familiar antes que chegasse a hora do almoço. A cidade suava solidão por poros mal abertos. Sempre que a atravesso sinto uma sensação depressiva. As ruas vazias, o sol violento sobre o casario, o alcatrão a fumegar. Por vezes, sob uma chapada coberta de sombra, um cão estira-se dolente, incapaz de se erguer, símbolo do abandono que corrói os alicerces que sustentam por aqui a vida. Ao almoço, pus uma nódoa na camisa. Consta que é a minha única especialidade. É a prova de que entre mim e a mecânica do mundo há um desacerto inultrapassável. Se fosse capaz inventava uma língua onde pudesse dizer como a realidade me é estranha, mas nem para isso sou capacitado. Acho que vou dormir uma sesta, como se fosse um verdadeiro castelhano.

sábado, 31 de agosto de 2019

Prisões e previsões

Ontem houve por aqui um pequeno sarrabulho entre claques de futebol, cujos membros, num acto de exemplar cidadania, decidiram prestar-se ao treino da polícia de intervenção. Esta não foi ingrata e não se fez rogada. Distribuiu umas bastonadas para desenjoar da falta de actividade, algemou uns tantos figurantes e deve tê-los levado para o conforto de uma esquadra, para lhes fazer um casting para uma telenovela. Uma animação. Estas iniciativas são sempre de louvar pois têm objectivos pedagógicos. Servem para mostrar que afinal o Estado tem autoridade e que ainda não estamos com vontade de nos divertirmos numa guerra de todos contra todos, mesmo que seja apenas à pedrada. Hoje a avenida estava serena, arvorava até um ar de inocência, mas as avenidas são assim, umas dissimuladas, que logo escondem a má vida em que andaram. Agosto vai terminar pacato e paroquial, como convém na província e me convém a mim, ao mais provinciano dos provincianos. Fui consultar a previsão para os próximos dez dias e Setembro chega envolto numa ferocidade inominável. Promete subir aos quarenta graus. Ainda tentei argumentar, mas S. Pedro respondeu-me torto e de má cara. Se achas que quarenta é muito, então imagina lá a temperatura que está no Inferno. Perante um argumento destes, calei-me. Ele sempre foi o primeiro Papa, e um Papa como se sabe é infalível. Portanto, se nestes dias enlouquecer, saibam que o culpado é o santo que regula o mercado das temperaturas. Os supervisores são todos assim.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Do tamanho de ervilhas

Sou informado que ondas cerebrais são detectadas em cérebros de tamanho de ervilhas cultivados em laboratório. Tamanho de ervilhas, afinal ainda posso ter esperança. Talvez ainda consigam descobrir no meu cérebro alguma actividade. Eu bem tento animá-lo. Faço-lhe respiração boca-a-boca, incentivo-o, chego a prometer-lhe que, caso se ponha a trabalhar, o hei-de levar à Disneylândia. Ele, porém, não se comove, esquece-se de emitir as tais ondas que me raptariam ao estupor, à estupidez e, se não for pedir muito, à estultícia. A sexta-feira chegou marejada de dolência, que escorre pelos poros do dia. Ainda não é uma daquelas sextas-feiras festivas que me rouba ao pesado tributo que há que pagar às ninfas da necessidade. Escrito isto, sou tomado por uma angustiante dúvida. Serão ninfas ou sereias? Talvez sejam sereias. As necessidades têm a sua melopeia inconfundível que, se não lhe fecharmos os ouvidos, se apodera de nós, para que nos devorem em festa e sem piedade. Sou um asceta falhado, um monge sem mosteiro, penso enquanto oiço o rumor dos carros na rua. Valeu-me um sisudo livro que me recordou o nome do herói da série americana Tudo em Família. Archie Bunker, o qual também possuía um cérebro destituído de ondas cerebrais. É nestas coisas que nos sentimos pertencer a uma fraternidade, a qual não é tão pequena quanto isso. Para onde quer que nos voltemos, deparamos com um Archie Bunker, até nos mais insuspeitados postos de comando deste mundo. Como eu dizia, ainda há esperança para mim.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Dias com má estrela

Há dias que nascem marcados por uma má estrela, isto a crer na influência dos astros sobre as coisas que acontecem. O abastecimento de água à cidade foi suspenso por umas horas. A electricidade recusa-se, não sem veemência, em chegar a uma série de tomadas aqui em casa, enquanto flui despreocupada e sonolenta noutras. Um dos estores avariou-se, negando-se a subir e a descer. Pior que tudo, porém, é o zelo roncante com que o funcionário de uma empresa de jardinagem teima em cortar a relva que decora os espaços públicos entre prédios. Tenho coisas para fazer que dispensam a presença do vruuuum laminador, mas não me parece que tão cedo o jardineiro vá jardinar para outras paragens. Enquanto a relva é degolada ao som de um rondó mecânico, desfolho os livros que agora me chegaram. Num deles leio “também os raciocínios estritamente circulares são válidos, ainda que não sejam cogentes”. Apesar da falta de cogência, fico aliviado, eu que vivo entre rotundas e tenho uma propensão indisfarçável para a circularidade. De raciocínio, note-se. No outro livro, logo salta à vista a frase “Dentro de si o músculo do coração aperta-se, enrola e malha na parede do peito”. A máquina calou-se, mas temo que seja apenas um truque para me levar a crer na perfeição do mundo. Em silêncio percorro o meu exército de raciocínios circulares. Vejo-os perfilados, temerosos, de coração apertado a bater sem compasso, à espera das ordens de um sargento enlouquecido. O ruído voltou, um pouco mais longe. Regresso a um dos livros e recebo a notícia, aliás destituída de novidade, de que há um número infinito de verdades lógicas. Não sei se hei-de exultar ou não. Há dias em que o infinito me assusta como se fosse um cão raivoso que me persegue para aplacar na minha carne o desespero da sua raiva. Estou cansado e manhã só vai a meio.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Maldita realidade

Regresso lentamente à realidade. É um exercício penoso. Descobri que os dias de afastamento me trouxeram mais dois quilos. Chamei embusteira à balança, asseverei-lhe que o melhor era ir trocar a pilha, mas ela permaneceu muda e sem pestanejar. Então, lancei-lhe um anátema. Encolheu os ombros, como se as questões religiosas lhe fossem indiferentes. Voltei a pesar-me. Mais dois quilos. Odeio balanças persistentes. Algumas são volúveis, mas não a que me coube em sorte. Saí e fui pôr o carro a lavar. Estava sujo de irrealidade, com manchas de fantasia e nódoas feias de tanta extravagância. A casa está um pouco mais quente do que quando a deixei. Abri-lhe as janelas para que a manhã entrasse com o seu exército de frescura e as vozes apócrifas que escuto sentado à secretária, como um pássaro no poleiro. Desconfio que tenho coisas para fazer, mas filio-me de imediato no clube dos procrastinadores. Entro para a grande sala, perguntam-me o que quero e eu respondo “um whiskey”. Fazem uma leve vénia. Espero, espero, espero que o empregado deixe de procrastinar. Se houvesse vento, seria mais fácil suportar a realidade, pensei. Um homem com umas longas barbas atravessa a passadeira. Tem o ar de profeta do Antigo Testamento. Aguardo o momento em que, iracundo, se volte e comece a profetizar. Ele, porém, senta-se numa esplanada e daí a pouco vejo-o a beber uma cerveja. Maldita realidade, é o que me acode ao pensamento.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Terra Plana

Compreendo bem o drama da imprensa nas pavorosas tardes de Agosto. Como se sabe nesse mês, em que os dias já declinam, não se passa nada, os acontecimentos recusam-se a acontecer, as ocorrências evitam ocorrer, os sucessos não querem suceder, os incidentes não incidem e os eventos não eventam. Alegam férias, excesso de calor, embora a razão seja sempre a mesma. A pouca vontade de trabalhar. Os jornalistas então vivem o pesadelo das páginas em branco, da falta de matérias para partilharem com os sequiosos leitores de novidades. Hoje, por exemplo, uma conhecida revista, na edição online informa que em Novembro – claro, em Novembro já é mês para que se passem coisas – decorrerá no Texas a terceira conferência anual da Terra Plana. E como o espaço é coisa que não falta, são elencadas dez razões para crer, o que nos permite entrar de imediato no domínio da lógica doxástica, que o nosso planeta é plano. Aliás, e este é o meu contributo para a teoria, se a Terra fosse redonda não seria um planeta mas um redondeta. Eu sei que a pilhéria é desoladora, mas não me ocorreu outra melhor. Culpada de tudo isto é a NASA que quer ocultar Deus dos olhos dos mortais, esse Deus invisível, a quem ninguém viu, o Deus que se escondia atrás da nuvem e, agora, da NASA. Agosto estrebucha, a sua morte nunca é pacífica. Encosto-me a uma sombra e leio em Eugénio de Andrade: Estou à espera / duma tarde semelhante ao sono das maçãs. Também eu espero qualquer coisa de que não me lembro. Além da esperança não me falta fé, pois creio que o nosso planeta se manterá plano e não arredondará até Novembro. O pior é que sou um raciocinador instável, daqueles que acreditam que acreditam numa coisa sem de facto acreditar nela.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Inadimplência

Uma infelicidade não ter estudado leis e não saber latim. Um mal nunca vem só, foi o que pensei quando, arrastado por uma mórbida curiosidade, consultei o dicionário para saber o que eram clientes inadimplentes, dos quais uma certa marca de automóveis se queixa e, por ínvios caminhos, persegue. Pensei logo que não seriam grande coisa, tão horrível era a palavra que o jornal empregava para classificar tais clientes. Mesmo sem saber o significado, a última coisa que eu queria ser era um inadimplente. Consultado o Porto Editora que tinha à distância de um click, a coisa era mais simples do que parecia. Gente que, talvez por falta de memória, por distracção ou por dificuldade de se relacionar com o tempo, não cumpria, no prazo acordado, um pagamento ou um contrato. Pessoas pouco católicas têm a tendência de lhes chamar aldrabões, mas isso é falta de caridade. Por vezes sou assaltado por estranhos pesadelos, nos quais me entrego a pesados estudos do Direito. A tarefa principal é a de construir listas de palavras onde a ordenação jurídica opera para se ocultar do mais culto dos mortais. São sonhos de cortar a respiração. Lembrado desses devaneios oníricos, depois de tomar café, fui a uma loja de chineses, com o promissor nome de Compraky, e adquiri três cadernos pautados, com a capa a dizer notebook, e que hei-de encher, durante os meus piores sonhos, com vocábulos que só a ciência do Direito tem o poder mágico de evocar. Tudo isso é preferível, pensei, do que chegar a inadimplente. É duro ser ignorante.

domingo, 25 de agosto de 2019

Da vida selvagem

Há uma forma de fazer filosofia, hoje com as acções em alta no mercado de valores intelectuais, que dá uma importância desmesurada às classificações. Em qualquer assunto proliferam uma quantidade indefinida de espécies catalogadas por nomes que, em geral, terminam com o sufixo -ista. A filosofia é então uma tarefa infinita de sufixação e criação de categorias para lá incluir a fauna que se dispersa numa selva que não pára de crescer. Parece ser o único sítio no planeta em que a vida selvagem não se encontra em perigo. Ter pensamentos destes antes de um almoço de domingo não é sintoma de grande saúde mental. Por outro lado, estas coisas não interessam a ninguém a começar por mim, embora eu seja um exemplo acabado de pessoa que se interessa por coisas que, na verdade, não a interessam para nada. No sítio onde estou, avisto uma chaminé antiga, daquelas redondas, feitas de tijolo, que se elevam, impantes, sobre a pequenez do casario e que indicam a existência de um forno. Espero ver o fumo sair dela, mas a minha esperança é defraudada. À sua exuberância fálica corresponde uma esterilidade de facto. O almoço parece atrasado, as vozes lá de dentro sussurram e eu, sem saber o que fazer, sigo a pista dos contigentistas e dos necessitistas, como quem segue no rasto de animais exóticos, embora sem esperança de criar um zoo e cobrar entradas aos excursionistas de domingo e a deslumbradas turistas de telemóvel em punho. O talento para os negócios foi uma virtude que a divindade achou por bem não distribuir pela minha pobre pessoa. Não fora isso e abriria um jardim zoológico.

sábado, 24 de agosto de 2019

Pescadores de paciência

Passei uns dias num sítio – em Portugal, note-se – onde a temperatura recusa afrontar-me. Pelo contrário, sempre foi cordata e raramente me desmentiu a sensação de estar num daqueles países do norte, de onde imagino que há muitos séculos um desconhecido antepassado teria saído e aportado por aqui, para distribuir uns genes que, apesar de trambolhões e naufrágios, chegaram a mim, fazendo-me sonhar com paisagens frias sob a névoa, bosques e frutos silvestres, que só naquelas paragens haveria. Isto, porém, não merece confiança, pois sou dado a imaginar coisas e à prática da hipérbole. Nesses dias, de manhã, dava longos passeios perto do mar. Fazia parte da digressão entrar por um molhe e ir até ao farol. No molhe, encontrava invariavelmente uns quantos pescadores à linha, com as suas cadeiras, as canas, os anzóis, sacos e cabazes misteriosos. Quase sempre solitários. Por vezes, levantavam-se, recolhiam a linha manejando o carreto, que grasnava não sem gravidade. Depois, executavam um movimento de corpo, um balanceamento de trás para a frente, quase um passo de dança que lhes permitia lançar mais longe o anzol e logo se sentavam, a olhar hipnotizados as águas ou a fumar distraídos um cigarro. Nunca vi um peixe que fosse. Talvez eles se dediquem à pesca apenas como exercício de paciência ou para pagar alguma promessa, pensei numa altura. Agora que falo disto, lembrei-me de mim. Também eu sou um lançador de anzóis a que nenhum peixe morde o isco. Deveria ir pescar para outro lado, mas é tarde e o crepúsculo não deixa de ter o seu encanto.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Questões de pombos

Há pouco, na esplanada onde fui tomar café, entraram dois ou três pombos, que se saracotearam, de peito feito e cauda trémula, por ali, entre o prazer de uns e o nojo de outros. Em quase tudo, a humanidade reparte-se e, se o assunto toma dimensão, logo se formam partidos, onde gente açulada por algum chefe se prepara para degolar os oponentes. No caso dos pombos, eu era neutro, verdadeiramente apolítico. Nem prazer, nem desprazer. Achei-os, como sempre que os vejo andar, completamente ridículos e um pouco raquíticos. Mais o branco que os cinzentos, pois o peito era menos exuberante e a penugem parecia amarfanhada. Como é de desconfiar, não sei nada de pombos, a columbofilia nunca tocou sequer o círculo mais longínquo dos meus interesses. Falo agora deles porque, apesar de tudo, não é tão desolador quanto falar da espécie humana. Eles, honra lhes seja feita, não ostentam a designação de animal racional, que nós humanos tão orgulhosamente exibimos, embora isso pouco corresponda à realidade. E não se pense que estou a colocar-me fora da humanidade, num lugar sobranceiro para alardear a minha suposta mas nunca provada racionalidade. Pelo contrário. Que racionalidade haverá em escrever sobre pombos que entram numa esplanada? Nenhuma, dirá o leitor, e eu concordo de imediato. Eles lá se foram embora, num passo hesitante, depois levantaram voo e eu fiquei sem assunto. Também é verdade que podia falar sobre a mistela que uma mulher já entrada na casa dos trinta ia levando à boca. Agora, porém, seria eu que ficaria enojado e pronto para tomar partido a favor de alguma forma de abolicionismo. Tenho de me precaver destes impulsos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Desastres manuais

É um trauma antigo. Tenho uma relação difícil com os tubos de cola. Fundamentalmente, com aqueles minúsculos de onde sai uma substância translúcida que consegue até grudar o céu ao inferno, imagino eu. Exigem uma perícia no manuseamento que a natureza ou Deus decidiram não me conceder ou, para persistir no registo religioso, o diabo me roubou. O certo é que, sempre que me aventuro em unir aquilo que o tempo ou o descuido desuniu, fico com os dedos lambuzados com a maldita mistela, a qual, sem me dar tempo para reagir, seca e forma uma película sobre a pele. Irrita-me a insensibilidade digital a que fico sujeito. Não una o homem aquilo que foi desunido, parece-me uma injunção a não desprezar. Suspeito que haverá um produto que dissolva a mixórdia que me envolve os dedos, mas nunca me lembro de o comprar, caso exista. Fico assim cativo da minha inabilidade estrutural. Quando isto acontece, como há pouco, olho para as minhas mãos, como se contemplasse a mola propulsora de um desastre. Depois, rio-me. Nem disso, por pequeno que fosse, seriam capazes. Os trabalhos manuais sempre foram uma penitência excessiva e se oiço a palavra bricolage afasto-me de imediato, num exercício de verdadeira prudência.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Do falhanço como obra de arte

Falhar a vida é uma tarefa meticulosa, um exercício contínuo que exige uma persistência sem limites. Apesar da péssima fama com que a turba, acicatada pelos funâmbulos do mérito, acolhe o falhado, este pode ser altamente criativo. Não é descabido pensar a falência existencial como obra de arte. O candidato a falhado pega na matéria da vida e trabalha com ardor sobre ela. Estica-a, encolhe-a, testa-lhe a plasticidade. Um golpe aqui, uma pressão acolá, um corte mais além. Sempre que suspeita um plágio, uma citação ou até uma mera referência, ele retorce a sua vida, até que a torna incompreensível. Nessa altura, quando a obra se torna inédita, de uma originalidade irrecusável, começam a sussurrar nas costas do artista do falhanço. Crescem os dedos acusadores. De tanto se alongarem, alguns destes dedos transformam-se em verdadeiros estiletes. Os sussurros são já a vozearia que a alcateia não consegue calar, mas como há quem se faça eunuco por amor do reino dos céus, também o falhado se faz surdo por amor da sua falência. Com o meu falhanço às costas, deixo que Setembro se aproxime e com ele me seja atirado à cara o daguerreótipo da minha vida. Há sonhos que se deveriam apagar mal acordamos, penso enquanto me preparo para ir ver como está o mundo lá fora.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A vida quotidiana

Um brilho áspero desce dos céus e poisa impenitente sobre os ombros dos transeuntes. Estes caminham ajoujados ao peso dos raios solares, suspiram e limpam o suor a lenços sujos e já gastos. Em sentido contrário vem uma mulher coberta de folhos, saracoteando-se no pequeno palco que a rua lhe oferece. Alguns olhos, tomados por uma febre raquítica, prendem-se aos requebros e imaginam desfolhadas. É difícil perder o atavismo rústico, pensei. Por fim, fez-se silêncio lá dentro. As vozes incomodavam-me a visão. Abro a janela e deixo entrar o ar vindo da rua. Com ele chegam as imagens do que se passa lá fora. O escritório torna-se um hall onde se encontram as mais inusitadas pessoas. Olham-se desconfiadas, garras afiadas, aturdidas por se encontrarem ali. Um homem baixo, olhar velhaco, tira uma navalha do bolso, enquanto a mulher dos folhos pára os bamboleios. Prepara-se para gritar. Um pombo aproxima-se da janela, mas afasta-se de imediato assustado. Também ele viu aquilo que só eu vejo. Bato as palmas, aquela gente sai pela janela, que fecho de imediato. Lá em baixo, o homem de olhar velhaco esconde a navalha, enquanto as ancas da mulher dos folhos retomam o seu ondular campestre. Então, enlouqueço lentamente. O melhor será cobrir os móveis com gualdrapas, digo, mas ninguém quer saber daquilo que eu digo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Um cavalo desenfreado

Olho para o relógio e sinto na face um ricto de desagrado. A tarde correu mais depressa do que tinha pensado. O almoço prolongou-se, sem que uma fronteira definida o colocasse perante um fim imperativo. Nestes dias em que os grilhões do dever se abrem para criar uma ilusão de liberdade, relógios e calendários são tomados por uma imprecisão nefasta, banhando-se no negro oceano da vagabundagem. O tempo, assim liberto da vigilância apertada, é tomado por um galope desenfreado, como se fugisse de uma maldição ou perseguisse uma recompensa rara e irrecusável. São estes pensamentos que me atormentam em Agosto, o mais difícil dos meses. Viajo sempre com grande dificuldade na paisagem que este mês oferece, vítima de um dilema que ainda não estou em condições de resolver ou sequer de partilhar. Abro um livro e leio: «As raparigas mantinham-se fascinadas, com o olhar vidrado». A ideia de um olhar proveniente de olhos de vidro cativa-me de imediato. Só esse olhar poderia deter o tempo, aprisioná-lo, suspender-lhe o vício de se mover sempre para a frente. Depois, penso na infelicidade das raparigas com olhos de vidro. Comovo-me e devolvo-lhes o olhar animal que era o delas. O tempo desata logo num galope desenfreado, até que as raparigas, arrastadas pela fúria do cavalo, morrem de velhice. Lá fora, os carros passam indiferentes ao meu luto, à dor de tão rapidamente o tempo ter levado com ele as promessas do meu amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Pensamentos lúgubres

Há palavras que detesto, mais por uma questão estética do que ética, e outras de que gosto, porventura pelas mesmas razões, mas não estou certo. Gosto da palavra deriva quando usada na expressão à deriva. Há em mim uma inclinação para simpatizar com todos os que andam ao sabor das ondas ou da corrente, daqueles a quem a vida não concedeu poder para governarem o precário bote da existência. Sinto com eles uma espécie de irmandade, um vínculo indissolúvel. Estar à deriva é a autêntica condição humana, digo para mim mesmo. Estes, porém, são pensamentos lúgubres para um domingo de Agosto. Há dias que imagino como seria bom ser um profeta do Antigo Testamento e fazer sair da minha boca a cólera que habita no coração divino, mas temo que, caso alguém me escutasse, acabaria por rir-se de mim. O tempo dos profetas coléricos acabou e os que restam andam ao sabor da corrente. Como não sabem nadar, acabam por se afogar. Estes, todavia, continuam a ser pensamentos sombrios. Ao passar diante de um espelho, este devolveu-me a imagem de um profeta rubicundo e irado. Antes mesmo de começar a distribuir anátemas sobre o mundo, ri-me de mim mesmo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O canto do galo

Nestes dias tenho ouvido um galo cantar por volta das seis da manhã. Para honrar um modo de vida que está a ser rapidamente rasurado, levanto-me e vejo o alvorecer do dia. É uma hora assombrosa. A realidade parece ter saído há momentos dos dedos do criador e, mesmo a mim, um pessimista velho e contumaz, tudo parece ainda possível. A aurora traz consigo um excesso de promessas que o corpo e a vontade são incapazes de cumprir. Muitas vezes, os homens tomaram a aurora como símbolo de um mundo novo a vir, esquecendo que ela não era mais que o resultado de uma prestidigitação astral, da ilusão do sol orbitar o lugar que nos foi dado para viver, ou do mais prosaico rodopiar da terra em torno do seu eixo. Naqueles instantes, porém, não quero saber nada disto. Aspiro o ar fresco da madrugada, embebedo-me de promessas e quase elevo aos céus uma oração, para que os poderes do alto suspendam o tempo. Não sou convincente, os deuses não me escutam, e não me resta senão ir de novo para a cama, para acordar numa hora menos dada a ilusões e promessas que não se hão-de cumprir.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Aves e anjos

Nos fios do telefone conto seis andorinhas. Há alguns dias que as vejo naquele lugar. Estão ali suspensas sobre a terra. Parecem descansar ou, então, têm uma missão que não consigo vislumbrar. Não há por aqui ninhos que justifiquem a sua presença, mas o meu conhecimento de ornitologia, como praticamente de tudo, é nulo, o que me impede de compreender os seus hábitos, movimentos e modos de vida. Na minha mesa tenho um livro sobre metafísica e lógica modal. Encolho os ombros e penso que melhor fora ter um tratado de angelologia. Apesar de ninguém se interessar pelo assunto, não há saber mais profícuo que aquele que nos informa sobre a natureza, o papel e as divisões taxionómicas desses intermediários entre os homens e Deus. Se percebesse os anjos, ocorreu-me, talvez fosse capaz de captar o sentido das andorinhas insistirem em ficar paradas nos fios de telefone. E, não há como evitar a hipótese, num qualquer mundo possível, as andorinhas serão mesmo anjos disfarçados que, necessariamente, vigiam os nossos actos. Podia bater as palmas e elas voavam, pensei, mas não tenho direito de distrair os anjos quando estão em missão.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Questões de espírito

Há pessoas pacientes e dadas à extrema minúcia que registam tudo o que julgam digno de nota. A mim sempre me faltou a inclinação para a minúcia e, se pensar bem, o dom da paciência. Por norma, não registo seja o que for. Nunca deixei de admirar aqueles que mantêm longos ficheiros de citações e notas, que elaboram com diligência e espírito de futuro. Na verdade, sempre fui dado a uma anarquia contida, a uma desordem que encontrava a sua raiz numa certa ordem que reside na memória e que me foi dada por herança genética. Era e é neste suporte, na memória, que confiava os meus registos. Se mantivesse um registo de citações não deixaria de lá inscrever a resposta que Madame de Montsousonge deu ao pobre Jan, que, acossado pelo despeito ou pelo ciúme, pôs em causa a sua virtude: «A minha virtude é o meu único luxo». A ambiguidade da última palavra é o segredo da sublimidade da resposta. Será a virtude um objecto de preço elevado? Será ela uma coisa dispensável? Será o sinal de excelência? Será uma mera extravagância? Que pena eu não usar a prática do registo de frases memoráveis, agora que a confiança na memória se desvanece. Em breve esquecerei a frase, depois Madame de Montsousonge. Por fim, o livro onde li tudo isso. É uma pena, pois sempre podia utilizar a frase para parecer espirituoso, eu a quem sempre faltou espírito.

domingo, 11 de agosto de 2019

Adormecer

Há um barulho por aqui que me incomoda o repouso. Parece alguém a bater com um maço numa estaca, mas, tendo em conta que o ruído se prolonga há muito, não é provável que haja um braço tão obstinado. Penso, então, numa conspiração da natureza para me atormentar nestas horas em que deveria entregar-me ao mais escandaloso dos ócios. Se fechar a janela tudo cairá no silêncio, mas não me apetece sair daqui. Tenho dois livros entre mãos. Hesito sobre qual deverei usar como soporífero. Não que sejam desinteressantes e enfadonhos. Não são. Durante muito tempo, se acordava por volta das cinco da madrugada, era tomado por uma insónia que me impedia de dormir as horas que faltavam, o que provocava em mim um pequeno tormento, que só tinha fim quando o despertador dava sinal para sair da cama. Descobri que o melhor remédio é ler. Pego num livro, leio até que o sono chega e eu deixo-o cair. É isso que vou fazer agora. Uma pessoa nunca pensa que chega a este grau de decadência, mas a realidade é o que é.

sábado, 10 de agosto de 2019

Conversas de esplanada

Espreguiço-me devagar por dentro do sábado. A trama inesgotável do mundo cansa-me e há muito que desisti de esperar que alguma sensatez desça sobre a turbamulta. Esta gosta de ulular, o que, não fora o ruído, parece-me muito adequado. Na esplanada, duas mulheres em modo balzaquiano tagarelam de mesa para mesa, sem que cuidem de moderar o débito sonoro. A inevitável excelência das respectivas filhas não me espantou. Raras são as mulheres que, ao falar da prole, resistem à tentação da hipérbole. Se falam dos maridos são mais comedidas, quando não francamente omissas. Nessas alturas a retórica escasseia e a imaginação não encontra combustível com que se ateie. Isto é o meu cinismo a pensar alto sobre a comédia humana. Tento ler uma crónica do Expresso, mas bocejo. Salva-me a ideia de que no Douro alguém envelhece chá chinês em pipa de Vinho do Porto para o vender na China. O mundo é um lugar muito mais perfeito do que aquilo que estou disposto a admitir. O tempo escoa-se entre os dedos. Levanto-me, e as mulheres em modo balzaquiano ainda competem no encómio filial.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Sextas-feiras de Agosto

São elusivas as sextas-feiras de Agosto. Acordam devagar, bocejam, espreguiçam-se e levantam-se como se fossem qualquer outro dia. Não vale a pena sentir-se afrontado com o desplante. Rapidamente, Agosto entregará a alma ao criador e as esquivas sextas-feiras logo perderão o traço fugidio com que agora se disfarçam. Hoje pude consultar a data em que, a partir dela, todas elas serão como as de Agosto. Faltam três anos e nove meses. Encolhi os ombros e fui tomar café a uma esplanada. Há que beber o cálice até ao fim, pensei. Colónias de turistas enchiam o ar com linguajares diversos. Fiquei por ali a ouvir aquela babel, enquanto olhava o horizonte em busca de sinais de chuva. As línguas diferem mais pelo ritmo do que pelas palavras, constatei mais uma vez. Uma tatuagem descia do ombro para o braço, e toda a harmonia e beleza que havia na jovem mulher tatuada se dissolvia ali, na pele maculada por cores soturnas e imagens gastas. Ao pensar nisso ri-me do meu gosto desajustado e conservador. Abri o livro, mas a prosa resistiu às minhas incursões. O concerto das nações impedia-me a leitura. Levantei-me, antes que o dragão da tatuagem se soltasse da mulher e lançasse sobre mim o fogo do seu desprezo.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Da origem da homossexualidade

Estar de férias é uma possibilidade única para aumentar a cultura científica. Faço os possíveis para não dissipar uma oportunidade. Até ontem, infelizmente, nunca tinha ouvido falar do bispo cipriota Neophytus da Igreja Ortodoxa Grega. Não fora o ócio, teria perdido o seu contributo decisivo para a ciência. Confrontado com a vexata quaestio da existência de gays, acabou por dar uma das explicações científicas mais notáveis sobre o fenómeno (ver aqui). Com modéstia, sua Excelência Reverendíssima explicou que a causa reside nos pais. Se o pai, num momento desavisado de luxúria, se enganar no caminho natural e sodomizar a mãe, o rapaz nasce gay. É o que acontece com pais que sabem pouca Gramática e nunca ouviram falar de homonímia. Confundem recto caminho com caminhar pelo recto (o sr. bispo perdoar-me-á a brejeirice e o leitor, o fácil trocadilho). Seja como for, a sabedoria do alto dignitário da Igreja Ortodoxa é um autêntico ovo de Colombo, uma evidência mais evidente que a do cogito cartesiano, uma inspiração para todos. Assim, nem preciso que sua Excelência Reverendíssima venha explicar por que existem lésbicas. É óbvio, a partir da sua sábia lição, que se o pai, ignorante em Geografia, perder o norte e confundir a boca da mãe com a vulva e se se entregar, confuso e desorientado, à prática da cunilíngua, a rapariga a nascer só pode ser lésbica. As lições práticas de tal conhecimento científico são fáceis de extrair. Há que estudar Gramática e Geografia para evitar a homossexualidade. O bispo pode ser Neophytus de nome, mas não é neófito nenhum na via da ciência.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A virtude da preguiça

Quanto mais depressa se aproxima a catástrofe mais rapidamente corremos para ela. Fiquei espantado com a minha sabedoria. É o que dá ler os jornais, essa oração da manhã do homem moderno. O que vale são as férias. Quer lá uma pessoa saber o que pode acontecer amanhã se agora se pode entregar ao exercício virtuoso da preguiça. A Igreja Católica, é certo, decidiu condená-la, mas é uma condenação espúria, para não dizer imoral. Que a Igreja tenha condenado a acídia, compreende-se. Só um espírito maligno pode ficar melancólico por receber bens espirituais, mas traduzir isso por preguiça e meter esta nobre virtude no rol daquilo que há-de perder eternamente uma pessoa é inaceitável. Há quem tenha feito um elogio da preguiça, mas tendo em conta o sogro do autor, o panegírico foi desprezado. A estultícia dos homens nunca acaba. Se estes fossem mais preguiçosos talvez as catástrofes fossem coisas mais longínquas, pensei. Não sei se foi da chuva da manhã, mas hoje só me ocorrem pensamentos sombrios e ideias sem sentido. Talvez não tenha nada para dizer, como é habitual, e o melhor é calar-me.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Fine-tuning

Pouco depois do almoço, antes de adormecer no primeiro sítio em que me hei-de sentar, dei uma vista de olhos pelas vendas de livros que há na Internet. Numa propunha-se A Noiva Despida, de autor anónimo, noutra A Viúva Grávida, de Martin Amis. Não comprei nenhum, mas pude entregar-me a uma benfazeja meditação. A ordem do mundo é uma das coisas que nunca deixa de me surpreender e de me maravilhar. Pessoas influenciadas pelo indeterminismo poderão dizer que tudo se deve ao acaso. Eu, pelo contrário, vejo nisto um exemplo de fine-tuning, essa sintonia precisa que nos mostra não apenas a harmonia que reina sobre o caos como a exactidão com que tudo é disposto neste mundo, para que o desarranjo não leve a melhor sobre a arrumação. É claro que num universo bem ordenado como o nosso, primeiro despe-se a noiva e só depois se morre deixando-a grávida. Não faria sentido morrer deixando uma viúva e só depois desse infausto acontecimento despir a noiva para a engravidar. Ela poderia ficar perturbada e não conseguir conceber ou, então, o noivo já morto ser vítima de um despropositado ataque de impotência. Evitemos o absurdo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Despoletar

Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des- tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a aplicação que me controla o fitness – meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão, peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.

domingo, 4 de agosto de 2019

As tarde de Agosto

Ontem as netas foram-se embora com os pais. Ao sair, a mais nova voltou-se e, misturando a ironia e o imperativo, disse: agora, os avós não vão chorar. Não sei o que admirei mais, se o atrevimento, se a capacidade para ficcionar, pois nunca os avós choraram quando elas se foram embora. Hoje, domingo, o almoço foi mais tardio. A verdade é que a casa ficou vazia, sem a agitação delas, os pequenos dramas das raparigas e a esperança toda que há dentro de crianças que caminham para adolescência. Também é verdade que deixei de ter bicicletas para levar a remendar furos, uma das minhas actividades nos últimos dias. Eu sei, eu sei, que sempre se podem reparar câmaras de ar em casa. Antigamente, não sei se hoje, havia os remendos Tip-Top, mas não sou dado ao exercício da bricolage e falece-me o talento para a mecânica. Arrumadas as bicicletas, o tempo cresce-me. Assim, posso banhar-me no silêncio e nadar em oceanos de palavras, lembrando-me dos Verões em que as tardes se dilatavam quase até ao infinito e eu lia o Ciclone e o Condor, o Falcão, onde o meu grande herói era o Major da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. Agora que o Major Alveja já não abate nenhum avião da Alemanha nazi, entretenho-me a ler as Memórias de um Morto. O tempo não está para gente tão viva quanto o piloto luso-britânico. Quando o meu neto crescer, hei-de falar-lhe do grande Major, o meu herói dos tempos da escola primária. Tenho que fazer os possíveis para não me esquecer.