domingo, 17 de novembro de 2019

A minha bipolaridade

Segundo opiniões escutadas aqui e ali, consta que sofro de bipolaridade. Umas vezes pareço leve e irónico e outras que transporto em mim toda a escuridão disponível no mercado dos lutos. Aquilo que sou, eu que não passo de um ser virtual, pois nem sequer de papel é a minha natureza, devo-o ao autor destas palavras, que manipula o meu ser, fazendo-me à sua vontade, mas talvez não à sua imagem e semelhança. Ele não é Deus, por muito que isso lhe possa doer. Se vejo o mundo como um dia escuro e tempestuoso, uma sexta-feira santa, ou se me entrego ao júbilo de um domingo de Páscoa, isso está para além da minha vontade. Todos os meus exageros, todas os meus esgares, todo o riso sardónico que ostento, nada disso sendo meu me pertence. Sofro-o sem possibilidade de lhe fugir. Um raio de luz fende as nuvens e abre-se com um sorriso triste sobre o casario, logo em mim se esboça uma alegria, não porque eu seja alegre, mas porque aquele que escreve quer que o seja por instantes. Lá fora passa um cão e eu sinto-me irmanado com ele, pois a realidade do animal não é maior nem menor que a minha. O pior é a tosse, se tivesse uns rebuçados peitorais Dr. Bayard seria mais fácil.

sábado, 16 de novembro de 2019

Balanças incrédulas

Guardo para os sábados, ao levantar-me, um ritual que não aconselho a ninguém. Ponho-me em cima da balança e vejo o veredicto. Hoje não foi diferente. A julgadora, amante de hipérboles, concedeu-me uns números excessivos, que não lhe asseguram a meus olhos qualquer credibilidade. Saí de cima dela, respirei fundo e dei-lhe uns segundos para repensar a mensagem que me queria transmitir. Voltei ao rito, ela, contudo, também cultiva a anáfora e devolveu-me o mesmo peso. Tudo isto é inexplicável. Há três semanas que sigo um programa rigoroso de emagrecimento e nada. Todos os dias sento-me tranquilo e apaziguado e dedico vinte minutos a uma profunda meditação transcendental, seguida de cinquenta recitações do mantra Om Mani Padme Hum e, no fim de cada uma, projecto no universo a minha imagem sem barriga e outras adiposidades que não vêm ao caso. A balança, na sua essência digital, não se comove. Estou arrependido de a ter comprado, mancomunada que está com a interpretação científica do mundo, pouco dada à espiritualidade. Se ela não se arrepende e converte substituo-a por uma analógica, que não há-de ter aqueles inconvenientes que Heidegger aponta à técnica moderna. Oiço uma voz insidiosa a exclamar e que tal fazer exercício. Atónito, nem consigo perceber se foi alguém que falou ou se a minha consciência adquiriu alforria e pensa que deve ser o meu personal trainer. Digo silêncio, sento-me e a partir de agora serão trinta minutos de meditação transcendental e cem recitações do mantra sagrado. Hei-de chegar ao peso dos vinte anos.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Ser apócrifo

Entre o original que foi concebido e o que sou vai uma grande distância. Não passo de uma falsificação de mim mesmo, um exercício de apocrifia, como aqueles evangelhos onde Cristo se excede em actos e revelações mas que a Igreja nega-se a reconhecer. Estão lá coisas interessantes, a verdade, porém, está noutro lado. Como todas as pessoas, também gostava de ser o eu autêntico, mas chegado a sexta-feira à noite descubro que não passo de um apócrifo. Vieram os dias frios e isso consola-me. Imagino estar sentado à lareira, com um gato ao pé, a fumar cachimbo, enquanto o lume crepita e o tempo passa a caminho da Primavera. É o meu lado de contrafacção, aliás o único que tenho. A casa não tem lareira, eu não tenho gato nem fumo e o crepitar da lenha no lume não me comove. Quando era adolescente imaginava-me piloto de fórmula 1 e talvez essa tenha sido a única coisa em que me imaginei, embora por escasso tempo. Hoje conduzo resignado e não tenho paciência para saber de carros. Só espero não me enganar na via quando entro para uma auto-estrada. A vida não passa de um conjunto de foras-de-jogo e penaltis falhados.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Da bastardia das acácias

Há pouco desesperei do meu talento de taxinomista (quando escrevo esta palavra penso sempre em taxidermista). Tinha classificado duas árvores que vejo daqui como acácias bastardas. Ter chegado a essa categorização não foi para mim, possuidor de uma ignorância generalizada sobre tudo o que é flora, um exercício fácil. Hoje ao olhar para as árvores lembrei-me que essas acácias são de folha caduca e elas, com Novembro já meio vazio, estão de um verde contumaz. Se são de folha persistente, então não são acácias vítimas de bastardia. Logo veio a ironia fácil e pensei que terão nascido dentro do casamento e são legítimas. Levantei-me, fui à janela para as olhar com mais atenção e tentar perceber mais uma vez o formato da folha. Nesse momento fui salvo. Ao lado das duas está uma irmã, que não via da secretária, já com a folhagem amarela, prenunciando a caducidade das folhas. São-me ocultas as razões que terão levado uma a amarelecer mais depressa que as outras. O meu mundo reduz-se a cada dia que passa. Chove, venta, os astros e os humores andam indispostos e eu penso em coisas tão importantes como a bastardia das acácias, a caducidade das folhas, a caducidade de tudo o que penso, a minha caducidade inexorável. Teria sido mais sensato ter-me dedicado à taxidermia, mas agora é tarde.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Ida à lavandaria

Saí para ir buscar uns livros à lavandaria. Os tempos modernos são assim. Encomendam-se livros online, escolhe-se um sítio onde se podem ir buscar e vai-se lá levantá-los. Antes de termos atingido este grau de modernidade, íamos aos correios e cumpríamos um denso e complicado ritual até termos na mão aquilo que era nosso. Agora, neste tempo em que tudo foi dessacralizado, pode-se fazê-lo na lavandaria ao lado de casa, o que é uma vantagem muito grande. Ficamos certos de que os livros vêm lavados e engomados, prontos a vestir. Também é verdade que já ninguém põe goma na roupa, mas tenho uma certa inclinação para o anacronismo. Quando saí com a encomenda debaixo do braço, a noite tinha caído e na rua havia já vestígios do frio que a partir de amanhã há-de vir da serra para cair sobre os incautos transeuntes. Pego nos livros, cheiro-os, sinto o aroma a asseado. Para ser sincero, dois deles têm um papel reles e é possível que não aguentem muitas idas à máquina de lavar. Quando o mundo começa a trocar as categorias, quando tudo parece fora dos eixos, não sou eu que tenho a sorte maldita de ter de o endireitar. Não há nada como acabar com uma citação de Shakespeare e assim encobrir a funda ignorância que me acomete.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Shift+F7

Chega-se a terça-feira e tudo está perdido. Nessas alturas, tomado por um desvario, quase acredito que seria óptimo crer no bom selvagem, mas logo penso que me falta tempo para conviver com a prolixidade do senhor Rousseau e passo à frente. Da janela avisto um bando de adolescentes. Não disfarçam o selvagem, mas esquivam-se a mostrar a bondade. Já estão corrompidos pelo processo civilizacional, admito. Agora deixo mesmo o genebrino em paz. Tenho uns documentos para concluir, mas sempre convivi não sem beatitude com a procrastinação. Alguém me segreda não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Ah essas memórias vindas do passado são insolências que se intrometem para impedir uma vida feliz. Também o thesaurus do word deu em protelar. Com a palavra a substituir seleccionada, bem carrego no Shif+F7, mas nada se move, deixando-me desolado na minha ânsia de trocar o vocábulo amaldiçoado. Se pudesse também me seleccionava, carregava em Shift+F7 e ficaria à espera de um sinónimo que me servisse melhor do que o original, mas nem para isso estou apto. O céu está cinzento, respiro devagar e vejo o tempo a escorrer. Pressinto a glória do futuro, esse momento em que estaremos todos mortos, e rio como se riem os loucos.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Zé ninguém

Acordei com uma ideia que não me abandonou até agora. Não há grandeza maior do que ser nada, não ter nome, ser ninguém. Terá sido um mau sonho ou terei acordado com os pés de fora. Ao ouvir a algaravia vinda da rua, rio-me da ideia ou de mim, que não serei mais que uma ideia. Toda a gente quer ser alguma coisa, até o maior dos colectivistas ama a colectividade para lhe impor o seu nome. Se a vida fosse uma cartuxa ou uma trapa, haveria menos ruído e qualquer zé ninguém não seria mais nem menos que um zé ninguém. De súbito, descubro que num mundo onde toda a gente é alguém o melhor é ser um zé ninguém. Por vezes, sou levado a dizer coisas com que não concordo, mas não está nas minhas mãos ser dono das palavras que escrevo. Poderia acabar com uma injunção bíblica do tipo quem tiver ouvidos, oiça!, mas não acabo, pois ainda não é chegado o tempo.

domingo, 10 de novembro de 2019

Nostalgia de domingo à tarde

Há pouco tive de passar por um dos supermercados de origem alemã que existem por aqui. Fiquei espantado com a quantidade de pessoas que falavam uma língua que não sei se era russo ou ucraniano. É possível que uns falassem uma e outros, a outra, mas aos meus ouvidos a musicalidade era a mesma. Imaginei que combinassem encontrar-se num sítio daqueles para sentirem estar perto do lugar onde nasceram, criando por instantes uma ilusão que lhes suavizasse a nostalgia das terras do norte. Talvez fosse apenas um mero acaso, irrepetível, fruto do dia triste e chuvoso que desabou sobre a cidade. Os domingos são sempre tristes nas pequenas cidades de província. E ao dizer isto também eu fui tocado pela nostalgia do tempo em que esta cidade era uma vila. Essa designação era justa e nela havia uma nobreza reforçada pela história. Se eu vivesse agora nas terras frias da Ucrânia e da Rússia, também iria a um supermercado para ver se alguém falava a minha língua, para poder recordar-me do pequeno rio que, sob o olhar apaziguado das torres do castelo, atravessa a avenida, numa caminhada solta até se afogar no Tejo. A noite bate-me à janela e eu recebo-a como se recebesse a dádiva de um deus.

sábado, 9 de novembro de 2019

Quantos-queres

Armada com o origami preso aos polegares e indicadores, a minha neta mais velha, apanhando-me distraído, perguntou-me quantos quer? Sete, respondi-lhe inconsciente das consequências, e ela lá manipulou o dispositivo de papel para trás e para frente de modo a que o número cabalístico se cumprisse. Que cor quer? Verde, repliquei incauto. Ela desdobra a maquineta e diz: feio, o avô é feio. É grave, pergunto-lhe. Não, mas o avô é lindo. Esta minha neta tem uma propensão indisfarçável para a correcção social. Eu agradeço-lhe, mais vale uma bela mentira do que sentir o estilete da verdade a sair-lhe da boca. Está uma tarde lacrimosa, batida pelo vento, propícia a um stabat mater. Levá-las a andar de bicicleta ou de hoverboard na rua está fora de causa, mas elas não se importam. Quem paga são as folhas A4, vítimas de uma súbita inclinação para o desenho. Daqui a pouco chega o outro neto, mas esse ainda não quer papel para dar vazão à veia artística, ocupado que está em consolidar os passos para poder explorar a casa e semear o chão com livros e CD. O sábado escorre em direcção à noite, para desaguar num domingo de inverno, imagino.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O terceiro-excluído

Pensava que o terceiro estava excluído, mas não é verdade. Afinal o velho princípio do terceiro-excluído é contingente. A revelação aconteceu inopinadamente, como todas as verdadeiras revelações, ao abrir a conta da água e, por curiosidade mórbida, ter olhado para as parcelas que a compõem. Contas de água, constas de saneamento e contas de terceiros. Quando menos se espera descobrimos que o que pagamos são formas de solidariedade muito activas e capazes de sacrificar os velhos princípios lógicos em nome duma luta contra a exclusão. Alguém menos caridoso dir-me-á que já devia ter há muito lido a factura para ver o que dela consta. É verdade, mas nem tenho propensão para esse tipo de literatura nem sou excessivamente cioso das coisas que o mundo me impinge. Sofro-as sem grande protesto ou particular curiosidade. Um caso perdido. O que vale é que hoje é sexta-feira, a noite caiu e eu espero que o silêncio se propague pelo mundo que me envolve. Depois hei-de sentar-me e, sabendo que não passo do terceiro que é excluído, bendirei quem tal exclusão ditou.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Desengano

Por vezes, vejo num jornal ou numa revista a fotografia de uma mulher e penso que poderia apaixonar-me por ela até que o coração se desengonçasse e o peito rasgado oferecesse ao mundo o espectáculo do amor, pois o mundo nunca o viu, a esse castelo derrubado pelo tempo, a essas ruínas onde crescem ervas daninhas, as entranhas reviradas e o sangue seco e malcheiroso de tudo o que é sentimento. Quando acordo, a fotografia lá está, espera o meu olhar sem a súplica do meu amor. Olho-a e na legenda descubro que a beleza daquela mulher feneceu há muito e o seu corpo foi devolvido à poeira de onde veio. Depois procuro outro retrato da mesma mulher e ao descobri-lo vejo o amor a desvanecer-se ali mesmo, na falta de coerência com que os fotógrafos manejam a câmara, semeando ilusões e desenganos, apenas porque o tempo passou e lhes falta o talento para apagar os vestígios do crime. É assim que o amor está pendente do acaso e da pérfida desatenção do retratista. Não faço ideia por que razão o autor me faz dizer estas coisas, pois o nosso contrato tinha uma cláusula, escorada num direito a rescisão, que o impedia de me dar uma vida privada ou fazer-me falar de coisas para as quais o meu ser não foi criado.

Desinscrição

Em cima da secretária está uma ficha de inscrição. Por certo irei inscrever-me em qualquer coisa, pois assim determina o fado. As pessoas gostam muito de pertencer e não haverá caminho mais fácil para ser parte do que inscreverem-se. Inscritas, logo serão chamadas e o desejo diz-lhes que hão-de ser escolhidas. Olho para a rua e vejo um sol tímido com vergonha de refulgir nas paredes, avisto as folhas agitadas pelo vento nas árvores que por aqui há. Em tudo o que observo há uma tristeza, uma hesitação, como se a realidade não soubesse que caminho tomar na encruzilhada que um deus colocou diante dela. Não tarda terei de abandonar o lugar onde estou para ir para outro onde me esperam. No caminho não há encruzilhadas, apenas rotundas e cruzamentos. A encruzilhada encontrei-a há muito e escolhi o caminho errado, mas nunca sabemos se, mesmo numa encruzilhada, há um caminho certo. O melhor é preencher a ficha e inscrever-me antes que seja tarde, embora eu pratique a despertença e de tudo me desinscreva. Parece que hoje não chove. Uma pena, as barragens precisam de água como eu de me calar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Errata

Sentei-me para fazer alguma coisa que me alivie do facto de estar vivo. É preciso não levar este tipo de declarações a sério. Quando se escreve um texto, e quando ele é em si mesmo irrisório, temos de começar de alguma maneira. O pathos do começo pode ser uma coisa deplorável, mas se eliminássemos do mundo tudo o que é deplorável, ficaríamos com quê? Comigo não. Sentei-me, dizia, mas esquecera-me que hoje é quarta-feira, o dia em que o grupo de baile da escola vizinha aproveita para a sua sessão de reviver o passado em Brideshead. Cada um tem o Brideshead que pode. Essa é a justiça do mundo e não há outra, foi o que me ocorreu. Estou perturbado. Andei dois dias para me lembrar de uma palavra para título de um singelo documento e, por mais que porfiasse, a memória nunca me deu o que lhe implorava. É uma senhora caprichosa e recusa-se a conceder os seus favores ao primeiro idiota que apareça a cortejá-la. Quando já não necessitava da palavra, ela caiu-me do céu. Errata. Era por esta a palavra que suspirava há dois dias. Que faço agora com ela? O melhor é fazer uma errata, escrever onde se vê (a minha fotografia) deve-se ver (uma outra fotografia corrigida e melhorada), e depois distribuí-la por aí. O grupo de baile silenciou-se, já tem que chegue da sua Brideshead, ou talvez não. O problema dos seres humanos é que eles só aparecem no lado a substituir da errata. Se não os outros, pelo menos eu.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A verdade pela mentira

Acabei de comprar um presente para uma das minhas netas. Já lhe tinha dito várias vezes que não lho daria e ela sempre fingiu acreditar. O avô finge, a neta finge e é nessa ficção que se aprende a lidar com a realidade. Talvez um dia estes jogos em que se diz a verdade através da mentira sejam proibidos e um avô terá de dizer brutalmente a um neto que já lhe comprou o que ele deseja, impedindo o divertimento que ensina a ver para lá das aparências, a lidar com a frustração e, acima de tudo, a ser civilizado ao aprender que o prazer está na incerteza e no diferimento do gozo. Enquanto pensava nisto ia olhando pela janela e via a luz diminuir lentamente como se estivesse ainda na sua mão evitar a chegada da noite, adiá-la para que ela venha festiva e seja o mais desejado dos convidados. Também a natureza ama a verdade dita sob a forma da mentira e, por isso, ela é tão enigmática para aqueles que escondem a estultícia na proclamação que são muito directos e manejam a verdade como se fosse um punhal a cravar nas costas distraídas do próximo. Quando vir a minha neta e ela me falar do presente, dir-lhe-ei “nem pensar” e ela há-de pensar que tudo se encaminha para o seu destino, enquanto diz com ar resignado “está bem”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Incongruência

As persianas tamborilam nas calhas por onde correm, tocadas pelo trote do vento, inquietas e temerosas de alguma tempestade que venha tirá-las do sossego bonançoso em que vivem. Uma réstia de sol perfura o negro das nuvens para desabar na humidade das paredes e reverberar, enchendo de luz o campo de jogos e de esperança os jogadores que se batem com o ardor da sua inocência culposa. O que escrevo é de tal modo exaltante que adormeci depois de escrever a última frase, para acordar agora com uma dor no pescoço. Nem a mim o meu verbo anima. Apesar das bolas continuarem a saltitar, a luz de há pouco recolheu-se para que as paredes perdessem a reverberação que lhes dava alma e embaciadas permanecessem na quietude que é a delas. Com um tema destes não admira que adormeça de novo antes de dar por terminado este texto. Pessoas há que têm muito para contar, as suas vidas são aventurosas e elas heroínas que hão-de permanecer na memória dos vindouros, mas eu quanto mais vivo menos tenho para dizer, apesar do palavrório que me ataca aqui ou ali. O mundo é feito destas incongruências e se não é o mundo, sou eu. A palavra incongruência brilhou dentro de mim e, por instantes, entrevejo a verdade do que sou. Tocaram à campainha. Levanto-me e vou espreitar. Não era ninguém ou talvez fosse eu.

domingo, 3 de novembro de 2019

Um rio brando e sem água

A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e eu pensei que o pathos que nela se manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade. Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da alma. É domingo.

sábado, 2 de novembro de 2019

Memórias no Dia de Finados

Nos últimos anos não há Dia de Fiéis Defuntos que não me recorde de um poema que se cantava na adolescência para fingir que se era rebelde. Não me lembro do texto completo, mas apenas de alguns versos que ficaram na memória como um refrão: Era dia de finados, / E os mortos muitos animados / Lá andavam a dançar. / Tudo estava forrado a preto, / No centro havia um coreto / Feito dos ossos da testa. E o cântico continuava neste tom até que nos cansássemos e, desconfio, nos reconciliássemos com a nossa natureza mortal. Estas recordações não são um desrespeito aos que se foram, mas uma mensagem que recebo de mim mesmo para que não me esqueça que mais do que rir da minha morte devo rir-me de mim e das coisas que me atravancam a memória. Hoje já fui às compras e, devido às inutilidades que me povoam o cérebro, esqueci-me de algumas coisas que tinha de comprar. Valia mais ter feito uma lista do que andar por aí a alvitrar sobre o que se passa num coreto forrado a preto.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Os Santos e os mortos

É com desconsolo que olho para as broas dos Santos. Em tempos eram para mim motivo de perdição eterna. O pecado da gula atirava-me sem freio sobre elas, arrastando-me para o mar das múltiplas espécies que por aqui se cultivam. Depois a vesícula começou a queixar-se e a satisfação do desejo foi sendo diminuída até proporções frugais. Liberto do órgão malfazejo, não me livrei da frugalidade. Os Santos deixaram de ser o que eram. Hoje passei duas vezes perto do cemitério e não faltavam pessoas com pequenos ramos de flores na mão, nem sempre crisântemos, para homenagear os seus mortos. Também eu tenho os meus mortos, mas não vou ao cemitério, nem lhes compro flores. Trago-os nos meus genes e nos meus pensamentos. Com alguns, converso. Falo por eles e falo por mim. Eu sei o que eles me diriam e eles, estou certo, sabem o que lhes estou a dizer. Talvez devesse também ir amanhã ao cemitério, não por eles, mas para que as tradições não morram por falta de comparência. Sei que não vou, até porque espero o meu neto. Um dia, se me for possível, falar-lhe-ei dos meus mortos, que hão-de também ser os dele.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Fine tuning

Apesar de tudo, os dias passam rapidamente. Amanhã já é dia de Todos-os-Santos e daqui ao Natal o tempo correrá à desfilada e eu, como um cavalo enlouquecido, há quem me ache um burro demente, correrei com ele ou arrastado por ele num turbilhão de coisas insensatas. De o pensar, estou já cansado. Correr não é a minha especialidade e cheguei àquela época em que preferia avançar para trás, mas não muito, já que não teria paciência para mim se tornasse ao que fui. Seria penoso. Escureceu há muito. Para surpresa minha, ao final da tarde uns adolescentes quiseram falar comigo sobre os argumentos do fine tuning e do mal, com derivações sobre o determinismo da conduta humana. Poderia pensar que as coisas não estão tão críticas quanto se anuncia. Provavelmente, não estarão.  Recebo uma mensagem no telemóvel. É um convite para uma masterclass de Tequila & Mezcal e começo a pensar que o argumento do fine tuning não será assim tão disparatado. Salva-me amanhã ser dia santo de guarda, um dia onde a santidade se multiplica, como se o regulador destes festejos, cansado, tivesse cedido à paixão da hipérbole. Vou roubar uma broa à cozinha.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Retorno do mesmo

Na escola aqui ao lado, o seu grupo de baile persiste em ensaiar canções que fizeram furor há mais de vinte, trinta ou quarenta anos. Esta obstinação pelo passado não deixa de ser comovente e faz-me lembrar as pessoas que, quando era adolescente, tinham a idade que eu agora tenho. Também elas estavam presas a músicas incompreensíveis, sons que pareciam vir de um planeta distante, e nas quais tinham um prazer que era para mim um enigma. A ideia do eterno retorno do mesmo acabou de me tentar. Resisto à tentação, enquanto, vindo de fora, oiço menina que estás à janela com o teu cabelo à lua. Hoje já não há meninas à janela e os cabelos à lua, também andam ao sol e à maresia do crepúsculo. Dói-me a garganta, recorro a um spray. Logo tenho uma cerimónia à minha espera, embora eu não a esperasse, nem a ela nem a qualquer outra coisa. O carro avariou-se de manhã e tenho de ir ver se já o posso ir buscar. Uma chuva fina diante da janela faz-me lembrar o fumo que se evola dos carros dos assadores de castanhas, mas é só água a descer dos céus. Uma bênção, oiço dizer.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Desvios e mistérios

Hoje li um poema que começa assim Já o gargalo das pedras adormece e fiquei mais tempo do que devia sem saber o que fazer com aquele verso. O poeta, dir-me-ão, pratica o desvio porque esse será o seu ofício. O meu, se é que se pode chamar ofício, fica-se pelo perscrutar da noite, olhá-la no fundo dos olhos para que surpresa revele os seus segredos. Ela porém sorri e olha-me com benevolência e segue o seu caminho, respeitando as estritas regras da gramática que governam o dia e a noite, a passagem das semanas, o devir compassado das estações. O mistério da noite é como o das palavras. Compramo-las presas a um significado, mas se as olharmos longamente, começam a emancipar-se e tornam-se mariposas descuidadas que o vento, à falta de peso, arrasta para onde quer. Hoje escrevi centenas ou milhares de palavras, todas elas pesadas de sentido, todas elas inúteis como uma bóia de salvação nas areias do deserto.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Serei maniqueísta?

Um comentário insinua que estou a caminho do ultra-romantismo. Talvez esteja mais perto do solipsismo mas a carapuça do ultra-romantismo também não me há-de ficar mal. A culpa, assevero-o, não é minha, mas do autor destes textos que teima em fabricar-me deste modo. Eu bem me inclino para os factos e acontecimentos, mas ele, com uma rigidez inesperada, tende a cerrar-me dentro de mim mesmo, fazendo-me crer que a realidade é uma coisa pesada e pouco benévola. Desconfio que pretende fazer de mim um discípulo de Manes e ele mesmo será um cátaro, mas os seus desígnios e pensamentos são-me insondáveis. Se ele quer que eu seja um solipsista ou um romântico ou um maniqueísta, o que posso fazer contra a prepotência da sua vontade? Um dia fosco o de hoje. Olho pela janela e vejo sombras a caminhar na avenida e os ciprestes que abundam por estes lugares. Um silêncio nega a realidade, que logo acorda na figura de uma mensagem a informar-me que alguém partilhou documentos comigo. Um dia ainda acredito que sou maniqueísta e que toda a realidade é fruto de um demiurgo pouco frequentável. Que me salvem da heresia, é aquilo que peço, mesmo que essa seja a vontade daquele que me cria.

domingo, 27 de outubro de 2019

Distâncias

Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela. Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto, cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu, como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai da ode à elegia.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Da circularidade semanal

Está a chegar o fim-de-semana e já o vejo a escoar-se, perdido nem se sabe como. As semanas são círculos viciosos, em que se parte de uma sexta-feira para chegar a outra, sem que um sentido para tudo isto se desenhe. Quando oiço falar no território encantado da infância, apesar da expressão me provocar uma certa náusea, lembro-me sempre daqueles anos longínquos em que não havia semanas, com os seus dias fastos e nefastos. Lá em baixo, no parque infantil, um bando de crianças grita. Parecem felizes e, por certo, ainda não descobriram que existem semanas, com a sua corveia e a ilusão de algumas horas de liberdade, para que o jugo férreo pareça mais leve. Eu sei que a civilização tem um preço, as comodidades outro e que nada cai do céu. Isso, porém, não nos deve impedir de increpar a ordem das coisas ou de maldizer aquele descuido de Eva e Adão que nos atirou para a deplorável situação de à sexta-feira já sentir o odor mascavado da segunda. O sol ainda brilha, mais intenso que nos últimos dias e o arvoredo perfila-se imóvel com os seus dedos de azougue voltados para o céu. Bem podia ter evitado o pathos da última frase, mas fui obrigado a dizê-la.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Penúria de realidade

Dentro de mim há uma enorme sombra. Faço dela a casa de onde raras vezes saio. Vejo o mundo por uma janela e aquilo que nele se passa cada vez me interessa menos. Demorei muitos anos a ligar a comédia humana ao que Aristóteles disse da comédia clássica, mas isso são contas de outro rosário, pelo qual já ninguém ora. O dia passou e é o que tenho a dizer dele. Não se trata de escassez de imaginação, mas penúria de realidade. Vivo cercado de pessoas cheias de realidade. Habituei-me à condição de ilhota nebulosa perdida num oceano vigoroso, a transparecer certezas e particular inclinação para a exuberância da felicidade. Mares destes, sempre navegados, cansam-me. A noite chegou, uma ambulância cavalga pela estrada em direcção ao hospital e tanta realidade é insuficiente para me sequestrar à ruminação que crepúsculo abriu em mim. Já é tarde, digo e volto os olhos para o lugar onde a escuridão nasce.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Mudar de vida

Cheguei a casa quando o crepúsculo já se anunciava no descolorido do sol. Sentei-me e os meus olhos embateram numa tradução inglesa de um livro de um pensador alemão contemporâneo. Os alemães são particularmente competentes para encontrar títulos dramáticos que soam ora como uma sombra arremessada pelo infinito, ora como um imperativo a que se deve obedecer, embora não se saiba porquê. Este pretende resumir a religião através do imperativo You must change your life. Peguei no livro, folheei-o lentamente e pensei que mais que mudar a minha vida, o acertado era ter mudado de vida há muito. Há equívocos que se tornam numa condenação perpétua. Os pássaros meus vizinhos sublinharam o meu pensamento com um trilo equívoco e eu sorri agradecido. As vozes lá em baixo calaram-se de súbito, como se um anjo tivesse poisado e a sua beleza fosse sentida como a presença do terrível, tal como nos ensina certa ode. Destemido, o vento empurra os ramos do arvoredo, desenhando murmúrios coloridos na praça vazia. Mudar a sua vida, que penosa injunção para aquele que se prendeu na teia dos seus hábitos.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Sobre as oliveiras

Na escola aqui ao lado há umas quantas oliveiras. Vejo-as envoltas em folhas verde cinza, indiferentes ao vento, esquecidas dos anos. Lembraram-me do tempo em que por aqui ainda era fácil, ao caminhar sem destino, ser invadido pelo cheiro que se desprendia dos lagares. Estes foram morrendo uns atrás dos outros, como pessoas velhas e sem família a que já ninguém conhece. Levaram com eles os aromas quentes que anunciavam o azeite novo, abriam o caminho que ia dos santos ao natal, e deixaram órfãs as oliveiras que escaparam à voragem sem medida dos homens. Conheci oliveiras que tinham, supunha-se, mais de mil anos. Imagino-as indiferentes ao espectáculo da história, ao cortejo de esperanças e desgraças que tocaram esta terra. É possível que já tenham sido arrancadas, levadas pelo despeito daqueles que não têm mais que uma vida breve, risível, impotente para enfrentar o tempo e enganá-lo numa faena de arte consumada. Talvez o touro que os homens lidam nas arenas não seja outra coisa senão o tempo, mas hoje tornou-se perigoso falar de touros e de lides, pois todos têm medo do tempo, dos cornos que ele alça para nos varar, pobres peões de brega.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Um desajustado

Não deixo de ser um enigma para mim mesmo. Gostei da frase mal surgiu não porque ela refira a minha natureza especial mas por ser um exercício inócuo de banalidade. Não há quem não se ache enigmático aos seus próprios olhos, embora os outros vejam com acintosa transparência, e não menor perfídia, aquilo que o próprio julga ser a obscuridade das obscuridades. A nossa verdade reside nos olhos dos outros. Em vez de enigmático pressinto que sou anacrónico. Lancei a mão a três CD para me acompanharem a tarde. Não escolhi, deixei que o acaso revelasse aquilo que eu quero ouvir. Um CD de música Sufi, outro de música tradicional japonesa e para completar um outro de canções de amor trovadorescas do norte de França. Só um desajustado poderia ser contemplado com tal combinação. Estou fora do tempo e do lugar. Poderia ter sido um trovador ou então um monge em busca da realização espiritual. Só não posso ser o que sou, que é a única coisa que posso ser. São difíceis certas segundas-feiras depois do almoço.

domingo, 20 de outubro de 2019

Ser personagem

Por vezes finjo que me interessam os graves problemas da humanidade, tomo posição como se acreditasse nas minhas opiniões, mas deixo antever que não tenho nenhuma solução para qualquer problema quanto mais para os graves, se é que os há. Isto não é propício à minha credibilidade como profeta. Um anunciador de futuros deve ter sempre uma inabalável certeza, uma voz tonitruante e um olhar furibundo. O criador esqueceu-se de mim na hora de distribuir esses talentos. Não se pense que o criador é Deus. Isso seria um engano deplorável, uma heresia das mais terríveis. O meu criador é aquele que escreve estas palavras e que me conforma em consonância com a sua volubilidade. Admito que não o suporto. Obriga-me ora à melancolia, ora à irrisão. É uma vida difícil nas catacumbas da humanidade. O que me vale é que ele desdenha em dar-me paixões temíveis e desejos inconfessáveis. Molda-me nas águas tépidas da existência, sem que me permita mergulhar nos insondáveis mistérios da alma humana. Estou mesmo desconfiado que nem uma alma ele me atribui. Ser personagem nunca foi fácil. Ser uma péssima é um desconsolo de que nunca hei-de recuperar.

Parecer um anhuca

Pareces um anhuca, foi o comentário que recebi ao vestir um velho par de calças esquecido no fundo de um roupeiro. Não faço a mínima ideia o que seja um anhuca nem qual a sua aparência, mas fiquei com a certeza de que parecia um e, como aquilo que parece é, atirei com o atavio para as profundas de onde viera. Um colóquio sobre a palavra não me esclareceu o sentido e uma consulta na internet não deu melhores resultados. Pelo contrário, há inclusive divergência sobre a sua acentuação, havendo os partidários da sua natureza proparoxítona e os que a grafam como paroxítona, onde me passei a incluir, pois caso eu seja na verdade um anhuca não o quero ser de forma esdrúxula. Um domingo que começa com estas preocupações não me parece fadado a grandes desígnios. Também eu não os tenho. Com o passar dos anos a minha ambição reduziu-se a não parecer um anhuca e estou longe de estar convencido de a conseguir realizar.

sábado, 19 de outubro de 2019

Roupa de Todos os Santos

Quando, depois de acordar, espreitei pela janela, o dia estava vestido como se fora o feriado de Todos os Santos. Fiquei a olhar o céu carregado de cinza escura, que logo desabou em chuva grossa e pensei na sábia decisão de criar esse dia santo de guarda em honra de todos os santos e mártires conhecidos e também daqueles que são desconhecidos. Passados instantes já o pensamento se desinteressava do exército dos santos e mártires e acompanhava o voo rápido de um corvo que se atreveu a passar de uma para outra árvore. A tarde, resolvi-me então, dedico-a à leitura de Jean Bodin, não aos Seis Livros da República, tão pouco a O Teatro da Natureza Universal, mas ao mais prosaico Da Demomania dos Feiticeiros. Será que os demónios transportam os feiticeiros em corpo? Será que estes conseguem transformar os homens em animais? São perguntas destas, para minha perdição em vida, que me movem a curiosidade. Chegada a tarde, faltou-me a vontade para perscrutar tais arcanos e deixei em paz os feiticeiros e os demónios com que aqueles andam mancomunados. Aliás, um almoço pouco frugal tirou-me qualquer interesse pelas opiniões do senhor Bodin, que foi levado desta vida em 1596, não por um feiticeiro nem por um demónio, mas pela peste negra. Neste momento não chove. O sol assoma aqui e ali, mas o dia não deixou de lado a roupa de Todos os Santos. Vou sair para ver o que acontece.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A virtude de ressonar

Depois de um almoço tardio, como se tornou hábito às sextas-feiras, acabei por adormecer sentado num sofá em frente de um jogo de snooker oferecido por um canal televisivo. Prova provada de que a arte de enfiar bolas num buraco me interessa muito pouco, embora seja preferível às notícias que outros canais repetem incansavelmente com a intenção de enlouquecer os espectadores. Adormeci e ressonei. Pessoas que se prezam não ressonam, mas por muito que me preze não consigo deixar de ressonar. Ao sentar-me para pagar a corveia, dei uma espreitadela às notícias online. Uma empresa oferece 115 mil euros pelos direitos ao rosto das pessoas. Ainda examinei a possibilidade de vender os direitos do meu, mas reconsiderei. Não é que eu seja particularmente humano, mas haver um robot com a minha cara com a finalidade de ser um amigo virtual para idosos é como querer vender-me para ser amigo de mim mesmo. Coisa que de bom grado dispenso. Pior que isso foi receber o convite para gostar da página de uma academia jovem de uma agremiação política daquelas que são novas mas dirigidas por gente que deveria estar reformada há muito. Pensei, não sem terror, que se vendesse os direitos do meu rosto, ainda me calhava ser amigo virtual de políticos velhos que em desespero de causa incentivam a existência de academias jovens. Por menos, foi Sócrates executado na Grécia. Antes ressonar em frente a um emocionante jogo de snooker.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A farda da ilusão

A manhã desce a encosta do dia, um declive escorregadio, terreno pedregoso molhado pela chuva. Quando, ainda cedo, me levantei e abri a janela deparei-me com uma neblina impenitente que sufocava os prédios e o arvoredo, deixando apenas transparecer algumas sombras a lembrar velhos fantasmas exaustos, cansados pelos anos, indecisos sobre se se devem manifestar ou voltar para o tugúrio onde abrigados da intempérie se escondem aos olhos dos mortais. Isto era a primeira manhã, depois como sempre acontece tudo mudou com o passar das horas. Nuvens mais escuras deslocam-se sob a vigilância de outras mais claras. Talvez seja o contrário, são as esbranquiçadas que se movem dando a ilusão do oposto. Quantas vezes, estando num comboio parado, pensei estar a deslocar-me iludido pelo movimento de um outro que se tinha posto em marcha. Demorava sempre alguns segundos até perceber a ilusão sensorial. A essas ainda as fui detectando, as outras, as ilusões decisivas e sob o efeito das quais nunca deveria viver, nunca tive o poder de as desfazer. Visto-as como se fossem a farda do exército em que milito. Têm a vantagem de nunca envelhecerem e de não passarem de moda. Um raio de luz fende o vidro da janela, anunciando a hora em que o meio-dia chegará. São parcos os poderes que me foram conferidos e escassa a virtude que cultivo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Amor à compensação

Podia ter sido um business coach ou mesmo um finantial coach, mas não passei de um mero coxo, cuja perna manca nunca teve poder para se alçar ao business ou ao finantial. Admiro a infinita criatividade de todas estas pessoas que, aproveitando a época de saldos, compram palavras inglesas, vestem-se com elas e andam assim fardadas pela vida, pois há sempre quem lhes compre os ersatzes. Adoro esta palavra. Empreguei-a para compensar o meu complexo de não ser um coach de qualquer coisa. Sou frequentador assíduo da compensação. Sem ela, como poderia olhar a vida e não ter vontade de me esventrar com um sabre afiado. Das poucas coisas em que sou versado, confesso não sem orgulho, é a poética da compensação. Não posso ser rei, ao menos que proclame a não existência de coisa mais nobre do que ser súbdito. Assim a vida em vez de um vale de lágrimas soprado pelo vento do ressentimento é uma festa, onde todos os súbditos que não podendo ser trigo descobrem a alegria de nascerem joio. E é isso o que eu sou, embora tivesse um indisfarçável talento para coach ou para rei, talvez mesmo para grilo falante.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Frugalidade

Até a frugalidade parece-me um excesso. Foi o que pensei depois de almoço. Não vivo num tempo de coisas mínimas, mas numa circunstância em que devo minimizar-me. Diminuindo-me, mais fácil será desaparecer. Foi a isto que um antigo ateniense chamou aprender a morrer e a estar morto. Era uma escola rude, a que não faltavam inimigos. Não é de agora o desejo de maximização, apesar de nenhuma época que não a nossa ter insuflado tanto os pequenos egos. Oiço, lá em baixo, risadas alarves, saídas da boca impenitente da adolescência. Essa, compreende-se, é pouco dada ao minimalismo, entregando-se antes ao exercício da hipérbole. Deveria escrever, passou-me pela cabeça, como se escrevia nos antigos telegramas. Chego amanhã stop Espera porta sul stop. E em tudo isto havia a beleza da contenção, do exercício da economia, da redução do discurso à informação e ao mandamento. Pena que não exista um florilégio da escrita telegráfica. Que profissão mais nobre pode haver do que a do antigo boletineiro, que voava levando em mão palavras urgentes e decisivas? Quando se fala do crepúsculo dos deuses é do desaparecimento de gente como os boletineiros, esses hermes da modernidade, que falamos. Como se vê a frugalidade das palavras não é virtude que pratique.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um fingidor

Onde estou avisto duas acácias bastardas, mas não estou certo da denominação. Ainda não lhes vejo sinais a anunciar a caducidade das folhas. Os ramos agitam-se, balançam, enovelam-se, batidos por um vento invisível, empurrado pelo calcário da serra. Apetecia-me passar a tarde a ler, mas as minhas ocupações são incompatíveis com leituras. Há que domesticar os apetites. Se cultivar a estultícia, estarei de acordo com o que se me exige. Olho as árvores, tento focar a visão e distinguir as folhas, mas o que vejo são manchas de verde em metamorfoses contínuas, movidas por um jogo de claros e escuros tremeluzentes, como se a realidade saísse de dentro de um quadro impressionista para invadir a vida e torná-la mais fugidia. Muitas vezes faço a apologia do rigor e da precisão, mas sou um fingidor, o melhor é não me dar crédito. Do que gosto mesmo é do vacilar das fronteiras, do desgaste das estremas, para que tudo se contamine, seja continuamente outra coisa e eu possa ser coisa nenhuma. Desloco-me para dentro da tarde, fecho a porta atrás de mim e escondo-me da indiscrição do meu próprio olhar.

domingo, 13 de outubro de 2019

O Rei Recaredo

Contaminamo-nos facilmente. Mergulhei um rectângulo de chocolate no café. Quando dei por mim tinha as mãos manchadas de castanho. Se as manchas alastrarem, o que farei? Este pensamento risível foi afastado pelo ranger do baloiço no parque infantil, e numa associação ociosa de palavras passo de ranger para Recaredo, o filho de Leovigildo e rei dos Visigodos, perdendo-me em aliterações para compor a prosódia. Deveria ser um mundo esplêndido aquele que tais nomes descobria para distribuir por quem deles necessitava. Olho as mãos e as manchas de chocolate continuam à espere que me levante e as vá lavar, mas não posso abandonar o rei nesse momento difícil, em que o vejo converter-se da heresia ariana à fé de Roma. Convertido o rei, a fé contaminou o reino visigodo. Tenho de vigiar a história para que ela chegue até aos meus dias e eu possa escrever o que estou a escrever. Tremo só de pensar que Recaredo, abandonado a si mesmo, se arrepende e volta ao arianismo. Tudo seria diferente e eu não estaria aqui com as mãos sujas de chocolate nem a criança que lá em baixo se deixa ir embalada pelo estrugido mecânico que não se cala. O domingo progride dentro de mim. Alguém, suponho que o autor destas palavras, diz-me em tom imperativo: lê isto. Nem olho. Respondo: não leio. Hoje é o dia do Senhor, vou meditar na conversão de Recaredo e lançar um anátema ao arianismo. Servo, posso ser, mas não é voluntária a minha servidão. Agora vou lavar as mãos.

sábado, 12 de outubro de 2019

Tornar-me Domingo

Adicionei ao meu eReader um livro do príncipe Piotr Kropotkin. Nunca tive uma alma dada à rebelião contra a existência do Leviatã. Para seres que albergam dentro de si um catálogo ilimitado de monstros, não me parece uma ideia sensata libertá-los do temor pelo monstro bíblico. Sei que almas sensíveis e outras que nem tanto gostam de se afirmar anarquistas, pelo menos ao sábado à tarde. Vou ler o livro como se lesse um romance, mas antes disso terei de atravessar a cidade para uma visita. Melhor que ser anarquista aos sábados à tarde é ir aonde nos esperam e temos o dever de ir. O vento não pára e as persianas da janela chocalham, enviando-me mensagens num código que não consigo decifrar. Também não será mentira se se disser que muitos são os códigos para mim indecifráveis. O autor destes textos poderia ter-me feito um pouco menos limitado, conceder alguma graça e deixar-me ser, aqui e ali, um pouco mais inteligente. Não quer. Um dia ainda me revolto e, contra ele, torno-me anarquista, daqueles que habitavam o mundo de O Homem que Era Quinta-Feira. A minha ambição será então tornar-me Domingo.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O ranger do dia

Parecem gritos de aflição que um animal lança em desespero para partilhar a dor que lhe dilacera o ânimo. Uma ilusão, sei-o bem, pois não é mais que o ranger rouco e angustiado do baloiço que vai e vem, numa repetição intérmina, no parque infantil lá em baixo. Não começa bem a tarde de sexta-feira. Leio um poema e nele encontro araucárias e magnólias, mas se olhar pela janela apenas dou conta de cedros e pinheiros. Ao longe descortino um cipreste. Há tempos, um amigo vindo a esta terra pela primeira vez perguntou-me por que razão havia tantos ciprestes nos campos. Não soube o que lhe responder e a partir desse dia reparei que os havia por aqui mais do que noutros lados. Somos cegos para aquilo que vemos, foi o que me ocorreu, agora que o ranger doloroso se apaziguou. Se me habituar a ele, deixarei de o ouvir. Sinto o dia deslizar. Range como se gritasse dorido pelo punhal do entardecer que lhe abre o peito. Devia eliminar comparações e metáforas, conjecturo, mas o autor não mo permite. A nossa inimizade progride. Penso no punhal, mas ele leva-o para longe e guarda-o num cofre de que só ele conhece o segredo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Falta de apetite

Tenho de levar o carro à oficina, mas não me apetece. Tenho, aliás, uma série de coisas para fazer para as quais me falta o apetite. Ao escrever esta palavra lembrei-me da saga que eram as minhas refeições. Não tem apetite, dizia-se. Recusava-me a abrir a boca, vomitava, não mastigava a comida. Imagino o exaspero da minha mãe nessas horas épicas. Naqueles tempos acreditava-se em coisas inimagináveis. O Ceregumil e o óleo de fígado de bacalhau. Parece que vinham de Espanha, frutos do contrabando, trazidos por alguém conhecido. Ao primeiro, ainda anuía, apesar de reticente. Ao outro, a minha submissão era mais difícil. Um nojo. Não imagino se aquilo fazia bem a alguém. A verdade é que não morri. A certa altura, fui operado à garganta para extracção das amígdalas, coisa que então estava na moda, e, milagre, o apetite nasceu de um dia para o outro. É este o meu problema. Falta-me o apetite para muita coisa, não tenho fé no Ceregumil nem no óleo de fígado de bacalhau e já não tenho amígdalas para extrair.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Uma quimera senil

Chegam a passar meses, mas de súbito o perfume ressurge perdido dentro do elevador. A primeira vez que me deparei com ele a minha alma rangeu, literalmente. Como era possível? Não era um perfume floral a sublinhar uma feminilidade reservada. A força e o calor que se evolava da fragância era de alguém que não teme o olhar indiscreto. Uma intensa curiosidade apoderou-se de mim. Com o tempo e a repetição, aquele odor foi modelando alguém que me assombra os sentidos. Não vale a pena descrevê-la. Alturas há que chego a sentir-lhe a pele a deslizar sob o império dos meus dedos. A construção do corpo foi um trabalho demorado. Começou, nesse primeiro encontro, com uma figura geral, desejável, embora indefinida. Conforme as experiências se repetiam, o perfume, como um vinho vigoroso, diferenciava-se dando-me a ver ombros, seios, o ventre. O desejo nascido no olfacto ia compondo aquela que era a fonte de um devaneio ridículo, de uma quimera senil nascida numa animalidade cansada. Sonhei-a acordado e a dormir, sonhei-a a cores e a preto e branco. Apenas os olhos se recusavam a nascer da fragância. Depois de um intervalo de várias semanas, anteontem, ao entrar no elevador, lá estava o cheiro que me atormenta. Ao fechar a porta, os olhos revelaram-se-me. Olharam-me onde ninguém me pode olhar. Estremeci. A partir de então subo e desço aterrorizado. Agora que o objecto do meu desejo se completou temo que a realidade, que durante tantos anos me evitou, invada os meus sentidos e faça naufragar o navio onde a fantasia viajou na esperança de um porto desconhecido.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A passo

Antigamente conhecia por aqui vários loucos. Tinham enlouquecido lentamente, uns, outros eram-no desde sempre ou foram vítimas fulminantes de um esgotamento, como se dizia na altura. Não sei se fui eu que me afastei do local por onde eles deambulavam ou se foi a morte que os livrou da sua loucura. Sei que eram estimados e enquadravam com recato na paisagem social. Talvez fossem um espelho para nos certificarmos que fazíamos parte do grupo que ainda não tinha endoidecido. Hoje, ao passar pela avenida, deparei-me com um que não conhecia. Caminhava depressa e imitava o trote de um cavalo, enquanto com um pingalim batia na própria perna dizendo nada de galopes, nada de galopes. Segui-o com os olhos, até que ele se perdeu no horizonte ensolarado, escondido entre a sombra dos transeuntes que o olhavam com desconfiança. Parei e uma estranha deliberação tomou conta do meu cérebro. Estava na dúvida se deveria seguir a trote ou a galope para o sítio que me esperava. A hesitação demorou uns instantes. A passo, disse-me, até por que me falta o pingalim para me fustigar na perna e apressar o andamento.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Ensaio sobre a vida

Há quem perca a vida de um momento para o outro e há aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la. Nem no exercício da perda há igualdade. E eu que fui tão igualitário. Aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la sofrem de uma qualquer dissonância cognitiva que os impede de perceber o sentido de estarem neste mundo. Alguns deles chegam depois de múltiplas experiências e longas meditações à conclusão de que não tem sentido nenhum, outros nem isso. O importante é que se continue, a perda é sempre certa. Talvez tudo isto me tenha ocorrido pela minha actividade da manhã ou como antecipação da que virá a meio da tarde. Hoje atravessei a cidade e não reparei em coisa alguma, só a mecânica dos hábitos me permitiu fazê-lo sem sobressaltos. Todos os dias dou mais um passo para dentro de mim, vou cerrando porta a porta até que já não conheça nada nem ninguém. Isso é triste, dizem-me. Talvez, mas não tenho nada para vender e não há mercadoria que o meu desejo cobice.

domingo, 6 de outubro de 2019

Cenas de um domingo eleitoral

Pela primeira vez o meu neto ficou sozinho com os avós. Chegou eram oito da manhã. Vinha a dormir e quando acordou trocou-me pela avó. Como recompensa levei-o a votar. Não me pareceu particularmente entusiasmado e eu nem sequer lhe mostrei o boletim de voto. Na realidade, entre a descida pelo elevador, o atravessar a estrada, a entrada na escola e a ida à secção de voto, quase que adormeceu. Segurou-se, bocejou, aguentou firme na fila para recolher o boletim. Não protestou quando fui à cabine de voto. Nem sequer teve curiosidade em saber em que partidos os avós votaram. Uma olímpica indiferença. Só espero que, quando começar a exprimir por palavras a sua vontade, não diga aos pais que não quer ir para casa dos avós, que eles levam-no a votar. Agora está a dormir ao meu lado. Mais logo veremos uns desenhos animados no computador. Daqui a uns meses iremos ao parque infantil lá em baixo. A vida passa depressa.

sábado, 5 de outubro de 2019

Meditação transcendental

Hoje é um dia especial, uma hora solene votada à meditação transcendental e à reflexão, para que amanhã possa preencher o papel a depositar na urna em consciência plena. Vi por aqui um conselho interessante para meditação, o de O Livro das Falácias, de Jeremy Bentham. Não é uma ideia desprezível e a meditação seria agradável, por certo, mas não transcendental, como a hora exige. Por mim, recolho-me e medito sobre a cláusula filioque. Será que o Espírito Santo procede apenas do Pai, no dizer dos cristãos ortodoxos, ou, como pretendem os católicos romanos, precede do Pai e do Filho. Não se pense que a pendência não teve consequências práticas dolorosas. Levou ao Grande Cisma do Oriente e talvez sem este Constantinopla não tivesse caído na mão dos infiéis. Como se vê, o assunto é momentoso e apropriado à situação grave em que nos encontramos. Como decidir a precedência do Espírito Santo e dissolver a querela teológica não faço ideia. Não estou só, embora os teólogos de ambos os lados tenham certezas antagónicas. A minha convicção, porém, segreda-me que o Espírito Santo me iluminará amanhã na cabine de voto e me contemplará, ao sair dela, com um jackpot, segredando-me no silêncio da minha razão a sua verdadeira origem. Até lá, estarei em reclusão meditativa. Transcendental, claro.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A campanha alegre

Na caixa do correio tive, de novo, a evidência de que se estará em campanha eleitoral. Não sei se será uma prova irrefutável. Durante estes dias ainda não encontrei nenhum daqueles carros que, nos dias que antecedem o depósito do voto nas urnas, nos anunciam o paraíso que há-de vir, bem como os santos que nos hão-de ajudar, com o seu exemplo casto e virtuoso, a encontrar o caminho da salvação. Ao atravessar a cidade, pensava nestas coisas e ocorreu-me que os santos – na verdade, santos apóstolos – estejam cansados ou, então, perceberam que ninguém quer comprar uma estadia nos paraísos à disposição. Não tarda e teremos eleições civilizadas, sem gente a arruar por aqui e por ali, sem bombos e zés pereiras, palavras inúteis e gestos dispensáveis. Não sei o que me deu hoje para falar de política, mas presumo que sexta-feira seja um dia que nos inclina para a demência. Ainda discuti com o autor destes textos, fiz-lhe ver que o assunto não se quadrava com a minha índole, mas ele foi inflexível e pôs-me, para infelicidade minha, estas palavras na boca. Cansa-me o déspota.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Irrelevâncias

Demorei um tempo sem fim a encontrar uns documentos digitais sobre os quais tenho de trabalhar. Tinha-os deixado de lado há dias e, ao querer voltar a eles, não os encontrava. A hipótese de os ter apagado de forma inadvertida foi o que me ocorreu. Lá fiz as pesquisas que tinha de fazer e nada. Por fim, encontrei-os precisamente no lugar onde deveriam estar. Tinha-me esquecido desse lugar. Nada disto me exalta como herói de uma narrativa. Mesmo num tempo como o actual, um herói não trabalha sobre documentos irrelevantes, para produzir outros ainda mais irrelevantes que hão-de ser louvados na sua absoluta irrelevância. Por outro lado, um herói que se digne de o ser tem uma boa memória e, para além dela, uma inteligência verrumante que, em caso de falência memorial, perfura, no tempo de um relâmpago, o espesso véu do esquecimento. Os deuses decidiram não me dar nada disso. Resolveram, na sua douta sabedoria, que eu deveria ser o prolongamento da irrelevância dos documentos com que tenho de compor a realidade. Sem tristeza aceito o decreto e mergulho na composição de mais uma insignificância. O que me vale é que depois de almoço hei-de passar a tarde a dar de comer a quem não tem fome. Ao menos que me fosse dado o talento de confundir moinhos com gigantes. Nem isso.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Profetas

Pouco frequento cafés. Apesar de múltiplas tentativas, sempre os achei desconfortáveis para ler e, no entanto, eles são uma fonte narrativa que não deveria desprezar. Hoje entrei num. Numa mesa, um homem fulminava os acompanhantes e na sua boca geminavam-se confusamente pragas dirigidas aos homens e injunções que a serem cumpridas os salvariam a todos. O mal do mundo, cogitei, é não darmos ouvidos aos profetas que nele abundam. Entramos num táxi e, se não nos cuidamos, apanhamos com a sabedoria infinita de um Jeremias ou de um Daniel. Passamos distraídos pela rua e a uma esquina lá está um Zacarias irado. Não haverá, porém, lugar mais próprio para a profecia do que um café. Na mesa ao lado do fulminador, duas mulheres ainda novas entreolhavam-se. Havia nelas vontade de escarnecer do profeta, mas continham-se não as fulminasse ele com um raio. Saí dali como quem sai de uma página do Antigo Testamento. A rua acolheu-me benevolente. Olhei o céu e nele não havia sinais da cólera divina. Respirei fundo, entrei no carro e pensei no anunciador de futuros. É pena que não saiba que ninguém é profeta na própria terra.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

O fascínio da fé

Fascina-me sempre a fé que as pessoas têm na sua própria opinião. Também eu terei tido fé nas minhas opiniões. Depois, tornei-me agnóstico e, hoje em dia, sou francamente ateu perante muitas das ideias que me atribuo. A primeira coisa de que desconfio é das opiniões que nascem dentro de mim. Deito-lhes um olhar enviesado, rosno-lhes e, se calha partilhá-las, não é porque creia nelas, mas para me livrar do seu cheiro negro, para evitar que azedem e me empestem os pulmões. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que o caminho da Cartuxa tornaria o mundo bem mais habitável. Isto, todavia, não passa de uma opinião, para qual também me falta fé. Li já não sei onde que a Cartuxa de Évora iria fechar e os monges partiriam para Espanha. Faz sentido, num país onde todos têm opiniões para dar, que não haja quem decida calar-se de vez e entrar na pátria do grande silêncio.

Terapia para o caos

Há um momento na tarde em que a luz parece fixar-se sobre o dia e assim tornar-se eterna. Depois, a ilusão desaparece e o tempo acelera, anunciando nos tons das árvores ou no matizado das paredes a noite que há-de vir. Lá em baixo, um bando de adolescentes entrega-se a rituais ruidosos, numa liturgia eterna, antes de entrar para um centro de línguas. Os dias outonais são-me propícios e acolho-os com a benevolência de um sorriso. À minha frente tenho um livro cuja capa reproduz uma gravura de Pieter Bruegel. Percorro-a com os olhos, demoro-me em cada uma das figuras e interrogo-me sobre o que motiva o autor para a teratologia. Também no meu inconsciente habitarão terríveis monstros, mas faltar-me-á coragem para os trazer à luz e com eles compor uma figuração do caos. Chega até mim a voz de uma mãe a perguntar a uma filha se está aí. Depois, diz Maria, Maria. Não se ouve resposta, apenas o ranger rouco de um baloiço. Ao longe, a crista dos cedros inclina-se, dobrada pelo vento. Outubro entrou vitorioso pelo calendário. Enquanto continuo a espiar a gravura de Bruegel, oiço um grito prolongado de golo. Por cada golo gritado, penso, adormece um monstro no fundo do coração daquele que grita. Uma terapia para o caos.

domingo, 29 de setembro de 2019

A alegria do guarda-redes

Não sei o que aconteceu, mas aquela melancolia dos domingos à tarde parece ter-se desvanecido. Não é que tenha razões para tal. As segundas-feiras continuam a seguir-se aos domingos e não me deixaram de trazer com elas os imperativos com que a necessidade me carrega. Lembrei-me, ao pensar nisto, do livro de Peter Handke, que deu origem a um filme de Wim Wenders, A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty. O que angustia o guardador das redes é não saber o que adversário vai fazer, para onde vai atirar a bola. Isso não se pode comparar com a melancolia dos domingos, pois esta nasce de se saber bem de mais o que o dia seguinte traz. Lá fora, a noite progride, cavalga sobre o casario, ri-se das luzes com que os homens fingem deter o seu império tecido na urze das trevas. O silêncio tomou conta das ruas e o último guarda-redes, depois de se atirar para o lado errado, vai a pé para casa, alegre por amanhã ser ainda segunda-feira.

sábado, 28 de setembro de 2019

Compêndios

Comprei um livro que se apresenta como compêndio. Não interessa para o caso aquilo que ele compendia, mas é um sintoma de que, finalmente, percebi que a vida não é eterna. Quando não o sabia e pensava ter a eternidade à minha frente recusava-me a comprar compêndios. Hoje inclino-me para os epítomes – que raio de palavra fui buscar para dizer resumos – e, não tarda, hei-de mesmo compreender a velha estratégia das Selecções do Reader’s Digest de condensar obras literárias. Sábado é um dia que se abre à futilidade. Fui às compras, enquanto decorria a hora de almoço. É uma hora onde não se encontra ninguém. Fiquei, contudo, preocupado comigo. Havia um conjunto de vinhos interessantes, mas nem me apeteceu olhar para eles. Segui em frente como se fosse cego ou nem um bom vinho me interessasse. Há dias que são difíceis de levar pela trela. O tal compêndio está à minha frente. Olho para a capa mas não me atrevo a abri-lo. Há coisas que é mais ajuizado não saber.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Uma irritação

Hoje irritei-me com um acontecimento da vida particular. Uma irritação mesmo naquela hora em que a tarde se afirma no seu mais negro esplendor, com o sol a coriscar e a calçada a arder diante dos meus olhos. Depois, há sempre um depois, olhei para a irritação e não consegui deixar de me rir. A realidade permanece intocada quer me irrite ou não. Esta intocabilidade do real quase me reconciliou com o mundo e a irritação como um fantasma dissipou-se. O vento faz tremular a folhagem das árvores e o sol reverbera nas paredes da escola que avisto da janela. Em tudo há um ar de fim-de-estação, um cansaço desabrido, um chamamento por qualquer coisa que não aquilo que temos de momento. Depois, a propósito de uma controvérsia matinal, lembrei-me de quando tinha quinze ou dezasseis anos e de todas as ilusões que guardava no cofre-forte da minha ingenuidade. Com o tempo, abri o cofre e as ilusões foram saindo pelo seu pé. Estou-lhes grato pela fantasia, mas hoje já não tenho paciência para elas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Mudanças

De súbito, voltei a escutar os pássaros meus vizinhos. Julguei que se tinham mudado, mas não ou, então, foi uma nova família que aqui se instalou. Lá em baixo, uma camionete de mudanças recebe os móveis de alguém que vai procurar outras paragens. Também eu mudaria de lugar se pudesse mudar de mim mesmo. Como não posso, o melhor é ficar onde estou, até que o próprio lugar se farte de mim e aja em conformidade. A manhã declina e um silêncio apoderou-se do mundo que me envolve. Talvez se esteja numa daquelas horas em que um deus se revela ou em que os anjos, cansados de vigiarem os homens, se juntam para jogar dominó. Olho ao longe. No parque de estacionamento do hospital, os pára-brisas multiplicam os sóis, num desejo de incandescência que me parece funesto. Os pássaros emudeceram e o único barulho que oiço é o dos meus dedos a afundarem-se nas teclas. O melhor é também eu entrar na casa branca do silêncio.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Amanuense

Podia falar sobre como uma virose me desacerta do mundo e faz crescer em mim um enjoo persistente, mas não falo. O desacerto é coisa antiga e não faltam por aí coisas que me enjoem. Estou irritadiço e cansado. No novo parque infantil, o baloiço ao mover-se para a frente e para trás grasna continuamente, espalhando pelo ar um aroma a crisântemos em dia de finados. Olho para as estantes e faço a contabilidade de todos os meus enganos. Deveria ser amanuense para passar o dia entre registos e certidões, deixando o tempo passar lentamente, sem que uma fantasia me tocasse, sem que um livro chamasse por mim, sem que um devaneio toldasse a marcha imperiosa do dever. Não há nada de melhor do que não ser nada. Acabada a função, entra-se pela porta do grande silêncio, sem que ninguém nos espere ou dê pela partida. Um dia pego numa esponja e começo a apagar o nome, a data de nascimento, o estado civil. Não há biografia mais autêntica do que a do soldado desconhecido.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Registos

Na minha secretária, feito de papel espesso sobre o qual apetece passar as pontas dos dedos, está um pequeno caderno salmão com uma bela fotografia na capa. Na primeira página, impressos a castanho, flutuam dois versos de um poeta cujo nome prefiro ocultar. Ofereceram-mo pelo menos há cinco anos, talvez há mais, muito mais. Tenho lá algumas coisas escritas, mas não passam de trivialidades soturnas, entre elas anotações sobre o romance Pasenow ou o Romantismo, do tríptico Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Noutra página descubro umas observações pretensiosas sobre a ideia de Jesus Cristo como Urmensch. Tudo o que lá encontro dá-me, de imediato, um desgosto implacável. Só as páginas em branco fazem crescer em mim a alegria, que recompenso com a promessa de nelas nada escrever. Nunca fui dado ao registo das coisas inúteis que me ocorrem.

Da vida amputada

Depois de almoço fui atormentado por uma sonolência infame. Cabeceei, adormeci por instantes, para acabar por acordar sem ter dormido. Imaginei-me dentro de um sonho, cujos contornos logo se esvaíram. O peso das pálpebras é o pior. Nada mais difícil do que a ascese da vigília. Nem a frugalidade monástica da refeição obliterou a tentação. Deveria escrever sobre a vida amputada mas não me ocorre nada que mereça ser dito. Ontem fui ao cinema. Uma plateia ansiosa esperava acção decidida, mas a obra explora a lentidão com que os sentimentos se desenham debaixo da pele para depois brotarem na sua crueza. Ao sair da sala pensei que a tensão entre pai e filho no filme é uma brincadeira sem astúcia nem engenho se comparada com a de Johan e de Henrik no último trabalho de Bergman. Por outro lado, depois de Eça ninguém, num romance ou num filme, deveria ousar trazer o incesto para o enredo. Daqui a pouco terei de entrar para dentro do reino da necessidade e esgaravatar na terra húmida das coisas que não interessam. Nem a mim, nem a ninguém. Talvez seja isso o que há a dizer da vida amputada.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Betabloqueantes

Na farmácia, venderam-me a colecção completa de medicamentos que me prescreveram para baixar o ânimo da tensão arterial. Esta tem tendência para exorbitar e passear pelo meu corpo a sua mania das grandezas. Como eu, também ela é dada à hipérbole. Sofre de um excesso de retórica e de pouca prática da virtude da humildade. Saí da botica pacificado e tranquilo, sabendo que tenho à mão aquilo que há-de humilhar essa pretensiosa. Enquanto calcorreava a avenida em direcção a casa lembrei-me dos primeiros tempos em que tomei um betabloqueante. Tudo o que me aborrecia e irritava desapareceu, como se o pequeno comprimido fosse um portal para o paraíso. Desejei que fosse eterno o efeito, mas como em tudo na vida, também nos betabloqueantes o hábito mata o prazer. As irritações e aborrecimentos voltaram a irritar-me e a aborrecer-me, disse-o ao médico que me olhou com ar complacente e confirmou que a vida é assim. Esta sólida sabedoria deixa-me sempre estupefacto, perguntando-me como não me tinha ocorrido tal coisa. Na rua procuro as sombras e calcorreio o passeio em passo lento. Um cão ladra, adolescentes retêm a sua adolescência a caminho da escola e um casal entra para um carro ajoujado ao peso da mútua presença. Não precisam de betabloqueantes, pensei.

domingo, 22 de setembro de 2019

Um conflito insanável

Entre mim e o autor destas linhas há um conflito que já nada parece poder sanar. Arroga-se a um poder exorbitante, como se eu fora um produto das suas faculdades demiúrgicas. Atribui-me palavras e sentimentos segundo o seu arbítrio, nega-me os anseios que me percorrem a alma, faz minhas pessoas e coisas que não reconheço. Obriga-me, e essa é uma palavra benevolente, a escutar o que não me interessa, como as palavras que há pouco, numa paragem de auto-estrada, dois homens trocavam sobre a cavalagem do carro que um deles tinha comprado. Uma oportunidade, dizia um e outro anuía, com a inveja a dançar-lhe nas órbitas por não ser sua a oportunidade. Eram coleccionadores de oportunidades e amantes de cavalaria. Há dias arrastou-me para um enigma leviano sobre hibiscos numa escola. Outras vezes faz-me falar de família que não tenho. Toda esta servidão gerou em mim o desejo insensato de lhe cravar no peito a lâmina afiada deste punhal que ele inventou. O que vale é que a tarde cai, despenha-se velozmente pelo crepúsculo de cinza em direcção ao abismo da noite. Engulo então o rancor que só o autor destas linhas tem o poder de fazer nascer no meu coração. Ao menos que me fizesse corajoso.

sábado, 21 de setembro de 2019

Comprar papel

Choveu mas não encontrei nas ruas o cheiro terroso das primeiras chuvas. Talvez tenha ficado esquecido em algum portal da infância. Há coisas que se escondem para que o uso não as degrade. Um vento fresco não pára de entrar pela janela e invadir-me o escritório. Um exército invisível desfila então perante mim. Sinto-lhe o ímpeto guerreiro e a mão esquálida que transporta nela o frio que há-de colar no corpo dos soldados mortos na batalha. Hoje tive de entrar num prédio onde não ia há décadas. A melancolia insinua-se sempre perante a devastação que o tempo tece. Fecho a janela. Passo em revista as tarefas que tenho pela frente. Não encontro nenhuma mais importante e urgente do que ir comprar papel para embrulhar o presente de uma das netas. É o que dá o comércio electrónico. Oiço o último trabalho de Ludovico Einaudi, Seven Days Walking. A música desliza pelo corpo do dia, reveste-o de seda e cinza para que ele pareça triste. No entanto, sábado resiste, enquanto as nuvens voam para leste. Ir comprar papel, essa é a verdadeira urgência.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Da perfeição

Assomo à janela e vejo o alcatrão molhado. Os carros deslizam com precaução acrescida e o céu entrega-se contrafeito nos braços do Outono. Na minha secretária está o livro de Michael Sandel, Contra a Perfeição, uma tradução brasileira trazida por um amigo. Devia ler a obra no original, mas encolho os ombros e pergunto-me para quê. Tudo é agora demasiado tarde. O título reconcilia-me com o mundo. A luz do sol intensificou-se um pouco ao encontrar uma camada menos densa de nuvens para atravessar, mas logo volta ao tom umbroso, escurecendo com sombras de melancolia o verde das árvores perfiladas diante dos meus olhos. Oiço o vozear de crianças a afastarem-se. Estamos numa época em que abundam os salvadores. Uns salvam a pátria, outros o planeta, haverá até quem se proponha salvar o universo, imagino. Eu não quero salvar nada nem ninguém. Fecho a janela e rio-me da previsibilidade de tudo, da minha própria previsibilidade. Das colunas sai a Paixão segundo S. Lucas, de Penderecki. Talvez Deus exista. Um email convida-me a responder a um questionário de satisfação. Lembro-me do I can get no satisfation, dos Stones e decido responder para mostrar o máximo agrado. Talvez ajude uma pessoa que nunca hei-de conhecer a manter o emprego. Também tu, digo-me, gostarias de ser um salvador. Rio-me mais uma vez e ocorre-me um versículo de Mateus: Sede vós perfeitos como é o vosso Pai que está no céu.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Parcos poderes

Um dos sites meteorológicos informa-me que o céu está nublado. Abro a janela e confirmo, a realidade não se enganou e comporta-se tal como a previsão determina. O ar fresco entra pelo escritório, inunda-o com uma esperança fugidia. Os hibiscos da escola persistem na sua floração exuberante, indiferentes à volubilidade do tempo, lançando pequenos raios garridos na cinza da manhã. Com tempo assim gosto de viajar. Logo me lembro de uma visita em dívida a um amigo que fez no Alentejo o seu Vale de Lobos. O roncar de um motor e o piar mecânico de uma máquina em manobras desviam-me a atenção e deixo o meu amigo sossegado no seu exílio. Devia passar pelo banco, mas é lugar que evito de bom grado. Se pudesse prendia esta manhã ao calendário, para que ela não deslizasse em direcção à tarde, mas os meus poderes são parcos.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Enganos

Enganei-me na hora aprazada para o meu encontro com a aparência e a realidade. Cheguei à encruzilhada demasiado cedo e tive de esperar longamente por elas. Ao voltar para casa, a Antena 2 transmitia um programa sobre Hildegard von Bingen. Morreu há 840 anos, precisamente no dia 17 de Setembro. O locutor lembrou-se de citar um estudo de Oliver Sacks, o autor Do homem que confundiu a mulher com um chapéu, sobre as visões da freira medieval. Seriam causadas pela enxaqueca. Ficamos todos mais descansados, ainda bem. Saio do carro, subo meia dúzia de degraus e abro a caixa do correio. Uma carta mas não para mim; dois panfletos de partidos políticos, de sinal contrário, repousam um sobre o outro em terno amplexo amoroso. Comovo-me e esqueço-me de os deitar no caixote do lixo. Transporto-os com cuidado para casa não vão eles soltar-se e acusar-me de interferir na sua privacidade. Agora, oiço a música da freira que sofria de enxaquecas e deixo que o silêncio desça sobre mim. Toda a minha vida foi um longo casamento com as aparências. Que se me perdoe a poligamia.

Depois de acordar

Quando me levantei uma neblina cobria a manhã com uma promessa de frescura. Da janela, olhei-a com desconfiança e recolhi-me de imediato como quem foge do convívio de alguém que tem o ludíbrio por modo de vida. Depois de acordar, levo tempo a sintonizar-me com a luz do dia. Desloco-me em silêncio e mal olho para o que me envolve. Enraízo-me lentamente no estado de vigília para cumprir a agenda que um deus desavindo comigo me deu por destino. Ainda não me ocorreu o nome dos arbustos que florescem no parque da escola ao lado. Há dias que olho para eles e pergunto-me sempre pelo seu nome. Nos campos de jogos, adolescentes correm e gritam, libertam-se do excesso de adolescência que os devora. De súbito, o nome de hibisco vem-me à memória. Serão hibiscos o que daqui vejo. Despacha-te, digo-me. Numa encruzilhada tenho um encontro marcado com a aparência e a realidade. Não posso chegar tarde.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Exercícios de compensação

Um exercício de compensação. Estou a ouvir o Gurdjieff Ensemble porque na sexta-feira não posso estar na Gulbenkian para assistir ao seu concerto. A maior parte das coisas que fazemos são substituições daquelas que gostaríamos de fazer. Eu sei que vivo rodeado de heróis que só fazem aquilo que bem entendem, antevejo mesmo as suas estátuas a ornamentar as ruas do futuro. Como só tenho passado, estive a manhã empenhadíssimo a fazer coisas que tinha de fazer. É uma provação ficcional. Depois regressei, entrei lentamente em casa e sentei-me diante da televisão. As imagens passavam e eu passava com elas, sem saber do que tratavam, raptado pelo vazio que se abria em mim, um buraco negro pelo qual a vida entra sem que possa dali alguma vez sair. A música arménia flutua no ar e logo desce sobre mim. Como um Cristo cansado da morte, abro o túmulo e saio ao encontro de quem não me espera. Irrita-me a lentidão com que o word abre o thesaurus e desisto de alterar uma palavra que me está a irritar.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Um pendor para a repetição

A canícula continua incólume. Mal escrevo isto dou-me conta da aliteração e hesito. Talvez devesse escrever outra coisa, antes que alguém me diga para ir aliterar para outro lado. Há pessoas que têm tendência para me olhar de esguelha e eu compreendo-as. Depois de meses de sossego voltaram, ao espaço escolar aqui ao lado, os gritos agudos e os ruidosos risos da histeria. Mais à frente virá a música dos bailes dos anos setenta e as Oscofórias das eleições académicas. Submeto-me passivo e paciente, como um passageiro que num grande transatlântico viaja em terceira classe. É essa a minha glória, ir pela vida fora sentado em cadeiras de pau. Como disse ontem, tenho uma natureza anafórica e, acrescento hoje, um ser dado à aliteração e à assonância. Já hoje me repeti diversas vezes, embora com modulações de ritmo diferentes. No outro dia respondi a um interlocutor, queria puxar-me o pé para literatice, que os recursos estilísticos são apenas formas de vida, fazem parte de uma ascese existencial como os exercícios espirituais para aqueles que aspiram à glória dos altares. Olhou para mim e havia nele desalento e um democrático desprezo, com o seu olhar a insinuar a minha demência. Na realidade, até eu me canso de mim. Não compreendo por que razão o autor destas palavras me criou assim. Desconheço-lhe os motivos, se é que os tem, os desejos e até a biografia. Nunca tive engenho para narrador omnisciente.

domingo, 15 de setembro de 2019

Uma natureza anafórica

Como o calor não abranda tive de ir a uma superfície comercial dedicada à bricolage. A missão era comprar umas redes para colocar nas janelas e, tendo estas escancaradas para que o ar fresco tempere o desvario, evitar que moscas e melgas mais distraídas entrem impetuosas casa dentro. Ainda não me converti a um amor universal a todas as formas de vida. S. Francisco, decididamente, não é o meu santo padroeiro. Nada me inclina a amar o piolho, a mosca, a varejeira, a vespa, o percevejo, a barata e, acima de tudo, a melga. Aliás, entre mim e as melgas há uma relação tensa. Elas desejam-me como nada nem ninguém me há-de alguma vez desejar e sempre que têm oportunidade até o sangue me bebem. Eu não me faço rogado e mato-as. Só espero que não seja crime. A verdade é que não suporto o amor que elas me dedicam. No parque da escola que há aqui ao lado avisto uns arbustos em flor, um pontilhado rosa a fosforescer por dentro de nuvens de verde. Tento sintonizar os olhos, mas não consigo perceber do que se trata. O conhecimento da flora não é coisa que faça parte da minha carteira de conhecimentos. O domingo, depois do almoço tardio, enlanguesce sob nuvens esparsas, indecisas. Amanhã será outro dia, penso e de imediato me sinto pacificado com a minha inclinação para o lugar comum e a iteração. Num mundo em que toda a gente é inovadora e criativa, a mim coube-me a repetição como destino. Tenho uma natureza anafórica e isso explica tudo.

sábado, 14 de setembro de 2019

As magnas questões da humanidade

Hoje é sábado e não sei o que hei-de dizer de um dia assim. Se estivesse de férias iria comprar um jornal em papel e lê-lo numa esplanada. Não o estando, evito as esplanadas, as conversas que me assaltam e ferem o meu desconhecimento do mundo. Preciso do dia para meditar sobre os grandes problemas da humanidade. Mal acordei, assaltou-me um, e não dos mais pequenos. Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete? Já a exacta formulação da questão é um enigma. Como em tudo na vida, também aqui se formaram dois partidos, que se enfrentam com brios sectários, erguer de cruzes e figas para se protegerem do inimigo. Uns dizem que os gloriosos anjos dançam na cabeça de um alfinete, outros afirmam, enquanto murmuram anátemas, que o fazem na ponta de uma agulha. Sobre o lugar do baile, declaro-me agnóstico. Envolvo-me colérico na disputa teológica sobre se um corpo espiritual ocupa ou não espaço, mas logo me distraio e começo a pensar em anjos bailarinos, imaginando-os a dançar um Bolero, talvez um Tango, mesmo um Fandango, pois também os haverá no Ribatejo, daqueles que protegem forcados e toureiros e que, cheios de afición, hão-de gritar olés, enquanto, na cabeça de um alfinete ou na ponta de uma agulha, dançam um Paso Doble. Não sei de maior amor à humanidade do que pensar em anjos. Talvez um dia escreva sobre as potestades, os tronos e as dominações ou sobre a cláusula filioque, que nada tem a ver com anjos. Esmagam-me as magnas questões da humanidade.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A estupidez sem fim

Venho de uma sala cheia de gente. O pólen do calor pousava lentamente nas cabeças e descia pelos corpos ofegantes, cavando finos sulcos por onde o suor deslizava, pequenos córregos onde buliam restos de poalha. Havia quem se abanasse, quem suspirasse, enquanto o tempo, como uma rapariga grávida, inchava sem quietação. Quando Cronos, desinteressado da tortura, determinou o fim da função, saí. Disfarçado com a farda do silêncio, escapuli-me, procurando sombras e esconderijos fortuitos. Entrei no carro. Este, exposto ao sol como um recém-nascido abandonado na roda, ardia. Levou tempo a arrefecer. Cruzei a cidade como quem atravessa o Saara, sonhando com oásis ou com aqueles reinos do norte que limitaram drasticamente os devaneios de Hélio. Os olhos ardiam. Estão secos, disseram-me. Chegado a casa sentei-me a beber água. Não há água, porém, que me purifique da idiotice com que revesti a vida. Em cima da secretária dorme pacificado um livro. Não faço ideia da razão por que o comprei. Um impulso do momento, o mais certo. Tem por título O tempo em que a luz declina. Talvez a alusão ao declínio tenha desencadeado a compra. Recebo um recado e penso que vem aí tempestade. O vento baforeja o seu hálito quente, sob um céu macilento, terroso, arrastado por uma música envinagrada. Olho para a minha vida e começo a compreender aquelas procissões de flagelantes que assombraram o fim da Idade Média. Não, não era para atingirem o paraíso que se flagelavam, mas para se punir da sua infindável estupidez.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Gatos e malas vintage

Poderia dizer que o meu computador parece um gato. Isso, porém, não estaria de acordo com a realidade. É mais exacto afirmar: o meu computador é um gato. Dei-lhe um comando e ele, irritado e altivo, desatou a soprar ameaçador, com vontade de me trincar. Juro que lhe vi o dorso arqueado, o pêlo a eriçar-se-lhe e os dentes ostensivamente ameaçadores, numa boca de onde nascia um vendaval. Está tudo perdido, pensei sem saber o que fazer para acalmar a fera. Estava nesta indecisão quando ele decidiu calar-se, desarquear os costados e oferecer-se ronronante à actividade dos meus dedos. Respirei fundo, pois o ânimo dos gatos não se confunde com a subserviência canina. Salvo da indisposição da máquina, entro pelo domínio mirabolante da internet. Corro por ela como se fizesse uma maratona. A certa altura sou assaltado por um anúncio da TAP. Diz que vende sacos, a que dá o nome de malas vintage. Lembro-me de em adolescente ter uma que usava para transportar o equipamento de ginástica. Naquela altura eu não sabia que o saco era uma mala e ainda menos vintage. A verdade é que não devia sequer saber o que era vintage, pois sempre fui muito serôdio em tudo na vida. Agora que sei o que é vintage falo de coisas que não interessam a ninguém e confundo gatos com máquinas. A perfeição não é, por certo, o meu destino.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Sinfonia concertante

Toc-toc-toc. Toc-toc-toc. Há nas mãos do calceteiro que compõe a calçada junto ao parque infantil um ritmo musical que lhe orienta a técnica. Um percussionista dedicado. Sabe que a pedra se acomoda apenas com três batidas compassadas e assim vai cobrindo a terra nua, vestindo-a com a brancura do calcário. A batida compõe-se com os outros sons que vêm da rua. Uma criança arrasta um carro que arranha o cimento, as vozes murmuram alto e, mais que tudo isto, o som do silêncio que se desprende da serra. Estes sons chegam-me pelas janelas abertas e perfuram-me o sossego. Diante de mim, empilham-se documentos para ler, dados para analisar, mas nada disto é musical, nada disto tem o poder de compor uma sinfonia concertante como aquela que o acaso dos encontros compõe ali em baixo, com solistas tão inusitados. Uma voz de homem insiste sobre uma qualquer verdade que só ele conhece e as mulheres da esplanada compõem trinados cheios de segundas intenções e pequenas malícias para despertarem a curiosidade entre a assistência. Olho para o céu e penso que o sol terá perdido um pouco do seu vigor. As ilusões nunca deixam de se pagar caro, ocorre-me de imediato.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estratégias editoriais

Talvez seja mais interessante editar livros do que ter leitores que os leiam. Ainda Agosto não tinha acabado enviei um email a uma editora dizendo estar interessado em comprar quatro livros por ela publicados e que não se encontram nas livrarias. É uma editora pequena mas com um catálogo interessante e um design gráfico também merecedor de atenção. Até hoje não recebi qualquer resposta. Talvez ninguém abra os emails, foi o que pensei. Depois ocorreu-me que alguém o tenha lido e que, olhando para o nome do possível comprador, achou por bem que eu não mereceria ter aqueles livros na minha biblioteca pessoal. Resigno-me a esta sabedoria editorial. Se eu fosse editor também só venderia livros a pessoas que tivessem um nome merecedor de os comprar. Seguindo o ensinamento groucho marxiano nem a mim mesmo venderia livros por mim publicados, mesmo que eu estivesse disposto a pagar o dobro do seu valor de mercado, o que não era o caso. Há que manter elevado o nível e evitar que certas palavras caiam sob os olhos profanos de um leitor desconhecido.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Demasiado tarde

A tarde nublou-se. Presumo que se trate apenas de uma pequena trégua na grande guerra das estações. O Verão tem destes ardis e como um camaleão lança mão do mimetismo, disfarçando-se com vestes de Outono para, sem este dar por isso, entrar-lhe em casa, ocupar-lhe o território e daí lançar os seus raides mortais. Mais do que um crepúsculo dos ídolos, estamos perante um crepúsculo das estações, afirmo com a confiança de quem cultiva dogmas. Se vivesse nos dias de hoje, faltaria a Vivaldi matéria para os seus concertos mais célebres, acrescento. Há dias que não oiço os pássaros meus vizinhos. É possível que, descontentes com a vizinhança, tenham mudado de casa. Como os compreendo. Resta-me agora o arrulhar dos pombos, o matraquear das persianas embaladas pelo vento, algum latido disperso e o infinito cacarejar da humanidade que se junta numa esplanada aqui em baixo ou chama pela filharada no parque infantil. Leio uns documentos a que não posso furtar-me e penso o que sobre eles hei-de escrever. Sensato seria não escrever nada, mais sensato ainda era não saber escrever. O cume da sabedoria teria sido Tamuz ter silenciado Thoth para sempre. Agora, porém, é demasiado tarde. Aliás, é sempre demasiado tarde.

sábado, 7 de setembro de 2019

Coisas de sábado

O sábado goteja gingão pelas paredes de caliça do dia. Cobre-o não a seda ou a cambraia, mas o veludo com que sufoca aqueles que entraram para dentro da sua casa. Estou sentado à sua mesa e perscruto-lhe os humores. A minha secretária está um caos, digo-lhe. Livros empilhados, uma garrafa de água vazia, duas esferográficas à espera de irem para o lixo, uma pilha para o comando do carro, cartões que não couberam na carteira oferecida pelas minhas netas, uma conta por pagar, moedas esquecidas e os cabos para ligar a máquina fotográfica ao computador. Detesto esta confusão, mas nos últimos dias tenho-a cultivado como uma espécie de compensação para o que vem aí. Talvez amanhã ou na segunda, tudo entrará na ordem. Os livros encontrarão o lugar nas estantes, as moedas recolher-se-ão esbaforidas na carteira e todas as coisas descobrirão no remanso dos respectivos lares a paz por que anseiam. Tudo isto é desolador, mas não mais desolador que o resto, mesmo aquelas emoções extremas com que nos iludimos e julgamos darem sentido ao que não tem sentido. A manhã já acabou e ainda não pus um pé fora de casa nem espiei a avenida onde, adivinho-o, gente ocasional desfila na passerelle ensolarada, com recortes de sombras que descem devagar dos ramos das árvores públicas, com as quais o município disfarça o deserto em que tudo isto se está a transformar.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Enlouquecer

As pessoas enlouquecem devagar, penso ao ver um grupo de mulheres sentadas à mesa do canto de um café cujo nome prefiro ocultar. De cabelos eriçados, zambras, o rosto cavado por rugas que nada disfarçará, fazem-se fotografar, em abandono estrepitoso, por fotógrafo de ocasião, um conhecido de há muito. Ele ainda não sabe que elas perderam a réstia de siso que as fazia, noutros tempos, calar tormentos, as dores que o ócio faz nascer em carnes secas e corações desocupados. Os homens enlouquecem de outra maneira, digo para mim mesmo. Começam a caminhar cada vez mais depressa para dentro do silêncio, até emudecerem. Então, com olhos mortiços e meditabundos, lançam olhares de suspeição para um ponto que só eles vêem. Se alguém passa por eles e os cumprimenta, nem dão por isso, tão presos à sua loucura e aos mundos que só ela ilumina. Fotografadas, as mulheres da mesa do canto entregam-se, em alvoroto, a risadas entumecidas pelo desvairo, presas aos vestidos cambados que nos protegem dos seus corpos macerados pelo tempo. A porta abre-se e entra uma mulher ainda bem longe da loucura, traz com ela uma criança de uns dois anos a quem chama Amélia, Amélia. Faz-se silêncio no café para que o nome da criança ressoe dentro da consciência dos clientes. E ele ecoa límpido, fazendo replicar as sílabas no desfiladeiro da boca da mãe. Findo o eco onomástico, o murmúrio do lugar retoma a sua rota entrecortado pelas gargalhadas de quem já nada tem a perder. O telemóvel avisa-me. Uma conhecida marca de GPS tem os novos mapas prontos. Um sinal do destino. Levanto-me e saio. Ao cruzar a porta, oiço Amélia, Amélia, mas isso já pertence a outro lugar, e não àquele que me espera e onde me preparo para enlouquecer. Há pouco ouvi a sirene dos bombeiros. Deve haver fogo por perto.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A casa do tempo

Para ir de casa ao lugar que me permite enfrentar os decretos da necessidade tenho de atravessar a cidade de lés-a-lés. Serve-me a travessia para exercícios de vigilância. Espreito aqui, lanço uma espiadela ali, faço-o à velocidade modorrenta com que um carro pode andar no espaço urbano. Tento descobrir-lhe o ânimo, compreender-lhe o espírito, tudo isso a partir de um corpo difuso, feito de prédios, rotundas, avenidas, castanheiros, quintais com limoeiros e buganvílias, pessoas que não sem bravura enfrentam o martelar furioso do sol. Não tenho alma de bairrista, penso quando passo perto do castelo. Falta-me o pathos que anima aqueles que amam o lugar sobre todas as coisas. Não pertenço ao espaço, nenhum lugar é o meu lugar. A minha casa é o tempo, sussurro para me distrair. É uma casa alugada a termo certo, embora não o conheça. Há alturas em que me sento perto da janela e olho o horizonte, mas o que vejo é a areia da ampulheta a deslizar pela fina garganta de uma para outra âmbula. Fascina-me essa queda contínua. Talvez por nela se esconder o mistério da minha morte, que será a única coisa que neste lugar assombrado não tem mistério.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A sombra do coração

Um piar mecânico insinua, na sua intermitência, uma máquina em manobra. Olho pela janela, mas não consigo descobrir onde se encontra. Pára, descansa do cântico uniforme, repetitivo, monótono, para, passados instantes, retomar a cadência invariável com que, ao avisar da sua presença, me entra pelos ouvidos. No parque infantil do espaço público contíguo, um baloiço, ao ir e vir, grasna compassadamente, como uma ave cujos bicos rangessem. Os carros ronronam, são gatos semiadormecidos, apenas acordados pelo silvar das sirenes que, cavalgando ambulâncias, abrem caminho em direcção ao hospital. Esta música vacilante e rude acentua uma sombra que me nasceu dentro do coração e inquinou a vista, dando-me uma paisagem turva, desfocada. Os olhos com que vemos o mundo, ocorreu-me, não estão ligados ao cérebro mas ao coração. Perdem a precisão do contorno mas ganham rigor na compreensão. Um novo ruído chega-me aos ouvidos, parece o de uma serra a abrir caminho, não sem dificuldade, por uma planície de ferro. Imagino o pioneiro a enfrentar a dureza da campina. A coruja mecânica retoma a melopeia, agora mais afastada. Os raios solares, ao embater nos prédios, também eles rangem. São cães a rosnar rentes ao corpo enfraquecido pela sombra do coração.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

A vida na província

Há pouco o calor caía em pingos grossos sobre as ruas. Há que pagar a conta de um arranjo doméstico e por isso não tenho outro remédio senão meter-me sob a intempérie bonançosa que cobre o rosto da cidade com a máscara do inferno. Entro na sede da empresa prestadora do serviço, sou recebido por uma temperatura decente e uma rapariga afável e diligente. Pago, dou o número fiscal e o email para receber, por essa via, a factura digital. Admiro o zelo e a ausência da pergunta se pretendo contribuinte. Saio, pego no carro e sou obrigado a passar pelo mercado. Hoje é terça-feira, a zona está cheia de gente e de viaturas que deslizam lentamente. Fico numa passadeira largos minutos, enquanto à minha frente flutuam os peões, com sacos na mão. Vejo pessoas conhecidas que nunca imaginei no mercado. Um dirigente político e um rapaz do meu tempo, bon-vivant e femeeiro contumaz, lá vão eles absortos e domésticos, prestáveis, reluzentes de suor, ajoujados às compras. Contribuem com denodo para a harmonia doméstica. Carros apitam, mas os peões vão na passadeira sem pressa, a pensar se terão esquecido alguma coisa ou onde deixaram o automóvel. Uma mulher jovem pára e acende um cigarro. O fumo evola-se entre os lábios e ela desaparece. Aproveito uma aberta e esgueiro-me. Tenho os vidros abertos e sinto o calor entrar para dentro do carro. A viagem será curta e evito o ar condicionado. Chego à avenida marginal e a exuberância que havia no mercado desapareceu. A garrulice que entretinha as gentes perdeu-se e a monotonia da província cresce para dentro de mim, como um punhal que procura no coração o alvo que o espera. O calor sangra pelas paredes.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A disciplina do exagero

Há dias em que acordamos rodeados de sombras. A janela com uma discreta abertura deixa passar um fiapo de luz que embate nos objectos para os transformar em fantasmas, aqueles mesmos que saíram dos nossos sonhos. Um acto falhado deixar assim a janela, pensei. Fazemos tudo para evitar as trevas mais negras, temerosos que assaltem o coração. Somos tripulantes de um navio de cabotagem, daqueles que fazem navegação costeira. As sombras são as águas que nos indicam que a luz está já ali. Confortados por essa certeza, voltamo-nos na cama, para que um sobejo de sonolência ainda permita um ou outro devaneio. Depois, levantamo-nos e quando nos confrontamos com o espelho fazemos uma careta, para disfarçar aquilo que o aleivoso teima em mostrar. Submetemo-nos então à água lustral para nos redimirmos da noite e nos purificarmos do lixo que vive no mais fundo de nós. Ao pensar tudo isto, entro pelo dia e lembro-me de um verso: Deixai toda a esperança, vós que entrais! Rio-me da minha propensão para a hipérbole, mas o que seria de todos nós sem a dura disciplina do exagero?

domingo, 1 de setembro de 2019

Setembro chegou

Gostava de saber lidar com o mês de Setembro, mas foi uma das muitas coisas que nunca consegui aprender. É um mês astucioso e esquivo. Quando se aproxima, o corpo macerado pelas penitências de Julho e Agosto deixa-se iludir pelo declinar dos dias e pensa-se liberto do calvário do Verão. Puro engano. Só agora a época estival começa. Não devia pensar assim deste mês, até porque lhe pertenço de corpo e alma, embora seja daquelas pertenças que não resultam da eleição mas do curso natural das coisas. Fui fazer uma visita familiar antes que chegasse a hora do almoço. A cidade suava solidão por poros mal abertos. Sempre que a atravesso sinto uma sensação depressiva. As ruas vazias, o sol violento sobre o casario, o alcatrão a fumegar. Por vezes, sob uma chapada coberta de sombra, um cão estira-se dolente, incapaz de se erguer, símbolo do abandono que corrói os alicerces que sustentam por aqui a vida. Ao almoço, pus uma nódoa na camisa. Consta que é a minha única especialidade. É a prova de que entre mim e a mecânica do mundo há um desacerto inultrapassável. Se fosse capaz inventava uma língua onde pudesse dizer como a realidade me é estranha, mas nem para isso sou capacitado. Acho que vou dormir uma sesta, como se fosse um verdadeiro castelhano.